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ARISTOTELES SOBRE JX FAI IIE POBTICA HIGES Bal IE ISAM KGE Te: APIZTOTEAHS “Todos os dreits reservados pela Autética Editora, Nenhuma parte desta ~publicacdo poderd ser reproduzida,seja por meios mecénics,eletnicos, _seja via copia nerogafica, sem a autorizacdo previa da Editor, 7. 7s 29. 129. 131. Prefacio Jacyntho Lins Brandéo Introducao a Arte poética Anténio Mattoso e Anténio Queirés Campos Sobre a arte poética Referéncias Notas Prefacio A poética de Aristoteles é uma teoria da literatura? Jacyntho Lins BrandGo* A propésito de Sobre a arte poética de Aristoteles, escreveu Miguel Garrido Gallardo que, tendo ela sido con- siderada a “primeira grande teoria dos géneros literarios’, poder-se-ia dizer que “a teoria dos géneros ocidental nao é, no substancial, mais que — dela — uma vasta parafrase’.' De- claracées desse teor correm sempre o risco da generalizacao e do exagero, caso se trate de reforcar o lugar-comum de que tudo jé foi dito pelos gregos (neste caso, por um grego da Maced6nia), o que implicaria nao perceber a natureza da relagao da Poética com as teorias da literatura. Sem duvida, nem tudo foi dito ou pensado por Aristételes, ¢ a reflexao sobre a literatura, depois dele e ao longo dos séculos, de- monstrou um vigor de renovagao inegavel. Isso nao tem acarretado, contudo, perder de vista 0 carater seminal da sua poética, cuja importancia se pode aquilatar pela propria capacidade de incitar e produzir vigor e renovacao. Jacyntho Lins Brandao, doutor em Letras Classics pela U! de Lingua ¢ Literatura Grega na UFMG na drea de literatura, lingua e filosofia grega Auténtica, a tradugao da Epopeia de Gilgdmesh. GARRIDO GALLARDO, Miguel, Una vasta parifrasis de Aristoteles. In; Teorfa de los géneros literarios, Madrid: Arco Libros, 1988. p. 9. eus principai . Publicou em 201 Dizer dealgo- sobretudo de um discurso, como éaqui © caso ~ que é seminal, implica que tem mais de nao dito que de dito, nao por ignorancia, mas por se ater ao essen- cial - ou, para usar do jargao aristotélico, por ter mais em poténcia que em ato. Como o leitor constatard, Aristételes nio se furta em declarar 0 que nao sabe ou nao tem. Assim, por exemplo, ele afirma nao saber detalhar as origens da comédia, como diz que nao tem, em sua lingua, um termo para “denominar, em comum’, tanto composigdes metrifi- cadas quanto em prosa ~ essa arte para ele ainda “inomi- nada” sendo o que se chamou depois, com termos latinos, de literatura, Justamente o fato de que se tratasse de algo, em grego, anénymos — pois o senso comum dizia “poesia” apenas do que se apresentava em versos ~ nos da a medida do gesto de Aristoteles ao recortar, nos termos de Miner, “um ramo distinto e separado do conhecimento humano’, concebendo a poética como “um objeto distinto das suas obras sobre ética, metafisica, politica, ret6rica, zoologia ¢ ‘outros assuntos designados por seus respectivos titulos’? De fato, Arist6teles legou-nos nao sé a primeira po- ética grega (caso se queira, a primeira poética ocidental), como também, o que nao é pouco, a forma do tratado ~ ainda que, na verdade, os gregos chamassem esse tipo de escrito de “hypémnema” (exatamente: memorial), e tudo eva a crer que a denominagao atual que mais exatamente Ihe corresponda seja a de “ensaig”: Ao que parece, Aristoteles tem consciéncia de que compe uma obra sem precedentes, pols nao se refere a nenhum antecessor - e isso se levando ‘€m conta que, coma forma do tratado, ele nos legou também 4 pratica do que hoje chamamos de “revisao da bibliogr@- fia, de que € um exemplo admiravel o primeiro livro da * MINER, Ear Podtcacomparada. ‘Tradugao de Angela Gasper. Bras: Editora UnB, 1996. p. 28, no _Metafisica, em que passa em revista todos os fildsofos que, antes dele, haviam abordado a questo das causas, indo de Tales até Plato. ‘Também na Retérica (outro tratado fun- dador de ampla influéncia), ele cuida de observar, logo nos primeiros parigrafos, que “os queantes compuseram artes dos discursos nao abordaram, por assim dizer, nem mesmo ‘uma parte dela’, referindo-se explicitamente mais adiante, a propésito do silogismo aparente, “arte retorica de Corax Com a pottica parece, portanto, que tudo se passa de modo diverso: ele conta nada mais que com o corpus da literatura e, quando muito, com tradigdes esparsas, como as relativas as origens da tragédia e da comédia, ou, no que diz respeito a denominagao desta iltima, mesmo com tradigoes conflitantes. Nao se recorda outra “arte poética” (poietike tékhine) de que possa valer-se, com a qual possa debater € dialogar. Parece razodvel supor que essa arte de fato nao exis- tisse. Entretanto, ¢ preciso reconhecer que a Poética continua _fatécerto ponto se contrapoe a tearizagaa de Platao, 0 qual ~ éverdade que numa forma literdria diferente, o didlogo ~ja havia estabelecida os alicerces das poéticas gregas, a sal um ponto de partida para a teoria dos generos, dado pela que, mesclado em graus variados aquela, torna possive sua variagio; a definicao da poesia como pseiidos (Fic¢io), € nao cor 1a modalidade de discurso verdadeiro, 0 ue impde 0 problema de sua recep¢ao. Em resumo, sao de dois tipos'os antecedentes de Atistoteles: de um lado, a experiéncia de uma literatura cuja autoridade nao estava atrelada a alguma verdade ou revelagao ~ ja Solon ensinava que “muito mentem os aedos"; de outro, a teorizacao de Platio, cuja tiltima conse- quéncia, embora honrando os poetas pela destreza de seus Yersos, fora no admiti-los na cidade justa, uma vez que, ‘Sua ocupacao sendo a mimese, se encontram afastados trés PrEroo 9 graus do yerdadeiro, Ora,o que fez Aristételes, antes de mais tirar parti itica plat6nica, trazendo. para o primeiro plano a mimese, & qual se atribui valor e com a qual se pode definir um campo proprio nao s6 para a literatura, como também para as artes em geral: tudo é_ ~ ue poiético € mimético, sendo-portanto a mimese que dliz aquilo até entao sem nome, incluindo ainda musica, danga e pintura. z ‘Primeira consequéncia: para Aristételes, tratar de A . 1ss0 leva aos admiraveis capi- s de Sobre a arte poética, em que se elabora o modelo teérico com base em parametros extremamente simples: os meios (literalmente, em que ou com o que se mimetiza), os objetos (o que se mimetiza) ¢os modos (como se mimentiza). Assim como poetas e prosadores fazem ‘como discurso (0 légos), pintores trabalham com figuras e cores, miisicos, com harmonia e ritmo, dangarimos, s6 com ritmo. Além disso, com esses variados recursos é possivel mimetizar caracteres melhores, piores ou semelhantes a 16s. Enfim, a mimese pode valer-se de narragao - com a subdivisio de que a narrativa pode caber inteiramente a0 poeta ou pode ele narrar e fazer falar suas personagens ~ ou de atuagio ~ no caso em queas personagens se apresentam agindo elas proprias, sem que se faca ver o poeta. A partir desses parimetros admiravelmente simples ~ em qué, 0 que e como ~ constrdi-se o modelo tedrico que se aplica a0 corpus da literatura entao disponivel. A Atragtdia, considerando-se os objetos, ¢ 0 mesmo que a -Spopeia. pois ambas poem em cena personagens eleva- Aas, como deuses ¢ herdis, a0 contrario da comédia, que busca caracteres risiveis. Mas do ponto de vista do como, € comédia s4o 0 mesmo, sendo ambas diferentes da epopeia. Isso mostra como os trés critérios - meios. objetos, modos ~ constituem uma espécie de grade que se 10 ro sobrepGe ao corpus da literatura, permitindo que os tragos de cada género e mesmo de cada obra se deixem perceber ‘com mais intensidade. A virtude do modelo tedrico, contudo, nao se esgota em iluminar um tinico corpus ~ a literatura existente na época de Aristételes -, pois tanto mais teoricamente perfeito ele sera quanto permita aplicar-se também a outros corpora. Ora, se a epopeia se define como o género que usa de dis- curso metrificado, poe em cena caracteres de condigao celevada e faz falar tanto o narrador quanto as personagens, & vyerdade quea tiltima parte de tal definigao se aplicaria bem a0 romance (um género inexistente na época de Aristételes, mas ja em curso nos primeiros séculos da nossa era, tanto em grego quanto em latim), competindo substituir, quanto ao primeiro parametro, o verso pela prosa, e, no que res- peita ao segundo, os caracteres elevados por personagens semelhantes a nés. Do mesmo modo, com relacao a tragédia € comédia, a substituigao dos caracteres melhores e piores pelos semelhantes a nés definiria bem o drama moderno. Finalmente, o desenvolvimento tecnolégico dos meios vem permitindo uma variedade de formas miméticas insuspei- tada na Antiguidade, de que o exemplo mais contundente se encontraria no cinema, o qual logra provocar, na esteira da tragédia, a conflucao da arte de poetas, pintores, misicos e dancarinos numa obra tinica. E assim que uma teoria funciona e é para isto que serve: compreender o que existe (ou 0 real) sem deixar de Projetar o possivel (ou o virtual). Isso implica dizer que ela estar sempre aquém e além dos fendmenos, pois nenhuma teoria daria conta de todos os elementos que compoem 0 Corpus sobre o qual se debruga - existiria tragédia, comédia ouepopeia teoricamente puras, considerando-se a rigor os trés parametros aristotélico: 2 -, a0 mesmo tempo que, por ater-se ao geral, logra cla avancar dos géneros histéricos, PREFACIO iderando-se que é por meio dela existentes em um dado outras circunstancias. E een bate OB)ORIveis em demonstra consi .B assim que, em | simese se demonstra consi se entrela eee oe 7 {que homem “adquire os primeiros conhecimentos’ Por H +) “Gut ado, seu potencialestéico ica caro diane do “fato de “omas mimetizacbes” prova disso sendo a ela contem| a P i Fe ach contempornes Mais de uma dizia de géneros san Vee secre c ridos, no interesse de testar e demonstrar o discen eS onesled 2 at razer que decorre deo ‘mento proposto em teoria:.epopeia, tragédia, comédia, or Re chicka ey rastdi ; is ; rntemplarmos a mimese daquilo animais repulsivos e cadaveres. Sgica, os que contemplam as ditirambo, mimo, didlogo, j a comedta raridlaghingy encima — SCE 4), Enfim, da perspec Saari a CEE smagens “aprendem ¢ concluem o.que ¢ cada coisa reco- “iecendo, por exemplo, num arbusto pintado, que se trata citaristica, siringica), na pintura ena danga. Muitos ti : FE ie a cee eS da obra se concen- de um arbusto. A todos esses argumentos se acrescenta que ‘re na tragédia, a epopeia e a comédia sendo convocadas a poesia é “algo néo s6 mais filos6fico, mas também mais dlevado que a histéria’ porque, competindo a esta dizer “o apenas para contrapontos com ela. Ora, para entender a i ‘que aconteceu’, ao poeta cabe falar do “que poderia acontecer importancia que = m Vista pelo menos trés aspectos. O primeiro, que se trata do as coisas possiveis segundo o verossimil ou o necessirio’ ~ outros termos: se ao historiador cumpre tratar do particular produto poético entio de alcance mais abrangente, pois in- (por exemplo, “o que Alcibiades fez ou experimentou”), 0 ofo) do universal. teiramente vinculado aos festivais em honra de Dioniso, os ( quis integravam o calendario ofcial de Atenas, marcando poeta se ocupa (como o filéso G transcurso anual do tempo. Por outro lado, deve-se terem Vale a pena retornar a Platio para ter a medida da mente que a tragédia constitula, como pretende o Proprio reviraoltaaristotéica Para aquele, a mimese impcria iAristdteles, uma espécie de obra total, na medida em a nivel mais desprezivel de conhecimento porque afastada trés Arist es ero maior de meios (sens qu) "80S raus do verdadero: assim, hi a ideia de cama, produzida Tinguagem metrificada, com varias espécies de metro, nos pelo deus, una eprfeita (primeiro nivel), as camas fetas 2 ng b ES tree sic pelo carpinteiro, miitiplas e imperfeitas (segundo nivel), didlogos e nos intermezos do cor? ee ecm 6 finalmente, as camas pintadas pelo pintor, mimese das recursos da cenogra’™® camas miltiplas e imperfeitas fabricadas pelo carpinteiro (terceiro nivel). Ora, a0 defender que 0 poeta, enquanto mi- danca, figurinos e todos 0s eee oltara, por ser 0 fora contra a tragédia que Plato mais se v' mais mimético dos géneros. ai metizador, Bespecialmente para lidar com este ultimo probe remete nao éa algo particular, como a uma cama qualquer 0 produzida pelo carpinteiro, mas a0 universal, a0 possivel. que Aristoteles se empenha em re ens 0 et jos inicia!® a usa 6 zi it mese,o quese desdobra em quatro Sa Dara usacnua por terminologia, forma de cama, sem “poderiamos ‘lassificar, respectivamente, Eom arse a individuacdo numa matéria - 0 que levaria 0 poeta, se i Sua formula pudermos fazer confluir os dois filésofos, a algo como a is i i éti mosiologico- ‘ _gico, paidéutico, etético.e gnosiolOai jar iat ide : ‘Tara: do ponto de vista antropol6gic mi fee jade cama. Sendo de destacar que € exatamente por a ear gue que, pornaturest izer respeito ao universal que a mimese permite 0 passo eutico 3 homens”, o que implicaria c ) stent sepia coe ‘ohomem é um animal miméti 4 0 ; gnosiolégico que leva ao reconhecimento dis: pois nao se exige que quem contempla a eee reconhega que se trata de uma drvore apenas se tive a antes a arvore particular que serviu de modelo a ee mas por reconhecer a forma de arvore. ee Ora, a destreza mimética do poeta (como a de out artistas) nao se pode medir, portanto, pela adequagao a a externo propria obra, pois isso diria respeito ao pers Pelo contrario, sao critérios internos & , a necessidade a verossimilhanca, que garantem a universalidade do poético, Anote-se que o que se costumou traduzir por “ve- rossimilhanga” prescinde em grego do “vero” (0 verdadeiro) ~ 0 termo “eikés” compreendendo as esferas do semelhante, do adequado e do conveniente. Isso significa que nio se tem em vista a semelhanga do que se mimetiza com algo verdadeiro externo a obra, pois isso implicaria voltar es- fera do particular, mas antes que se atribua, por exemplo, a uma personagem (naturalmente ficticia) de caréter elevado aun dens ou herbi — palavras ¢ a¢des convenientes ¢ 5 condicao. A necessidade (andnke), por sett ado, pode-se entender como a concatenagio das agdes que nao soa ia, devem caracterizar 0 mito (isto é 0 enredo ques mimetiza), “de tal modo que, transpondo-se ou suprimindo alguma parte, se modifique ou desarranjeo todo. Ultima das questoes tedricas de fundos quais 0 tos da poesia? Jé vimos que ela, enquanto mimese, oe prazer € conhecimento, mas resta saber, 10 caso : om genero, quais os efeitos patéticos que Ihe #0 Cr Gefinicao de tragédia, com justisa famosa, di a8 jsso: “a tragédia é mimese de agao eleva’ ae das certa extenséo, com linguagem ornamentada Be rastes Berean tiessas especies de arnernen em eine mediante narrag0d™° TE ses atuando os agentes, © nao : compaixao e temor, Jevaa cabo a cartarse de tas al ro definigao trata de a primeira parte da pleta, com certa (“acio elevada e com de em que se mimetiza (‘com lingua: das cada uma de suas espécies de to/em suas partes”), terceira, de como se mimeti*a (“atuando os agentes, ¢ 130 ‘mediante narragao”) - 0 dpice da definigio sendo dedicado aos efeitos: ‘mediante compaixio temor” ela “leva cabo a catarse [katharsis] de tais afecgoes [patematon]” © efeito proprio da tragédia ser, Por apurificagao de certas ‘afecgoes, nomeadamente compal xio a eesof o que tanto se poderia entender no sentido do que cada individuo experimenta, a0 acompanhar a represen: tagdo do mito trégico, numa espécie de purificasao fisica e psicolbgica dessas emogbes, quanto se poderia ampliar seu Hleance para 0 conjunto dos espectadores, especialmente por tratar-se de uma performance a céu aberto, em que palco € publico se veem e, em certa medida, contribuem para 0 espetaculo ea comun! ‘dramitica, experimentando uma espécie de alivio coletivo, algo como uma catarse politica, nao perniciosa, mas benéfica para a cidadese is oT ‘Mesmo que a catarse das afecgdes (pathemdton keitharsis) se diga, em Sobre a arte poética, por alguma ra7é dificil de determinar, apenas da tragédia, é razoavel supor que também para a comédia se pudesse propor efeito a Jogo ~ naturalmente envolyendo afecgdes condizentes co" o riso -, bem como para outros géneros. Essa suposi¢ao — que, em vista do texto, permaneceré nada mais que simples suposi¢ao ~ permite que retornemos ao carater seminal da poética aristotélica com relagao as teorias da literatura. ‘Além de constituir ela propria uma auténtica teorizacao, podemos dizer que sua importincia maior esté no que deixa em aberto, fecundando 0 pensamento que toma a poesia como questo, do ponto de vista dos problemas que cercam tanto sua composicao quanto sua recep¢ao. Como se constata, o que se mimetiza extensio”),a segunda, gem ornamentaca, Sepa ornament m. ae FAcio Resta acrescentar que a fungao seminal que se reco- nhece em Sobre a arte poética nao se cumpriria plenamente sem oesforco renovado de traducio. A primeira de que se tem noticia foi feita para o siriaco, no século IX, a que se seguiram versbes para o drabe (séc. X) ¢ 0 latim (a partir do séc. XIII), bem como, depois do Renascimento, para linguas modernas, E esse movimento, que faz. da poética aristotélica algo capaz de incutir vigor e renovacao no pen: samento critico sobre a literatura e a arte, que se perpetua no presente volume, traduzido pelos professores Antonio Carlos Mattoso Salgado e Antonio José Queirés Campos, da Pontificia Universidade Catdlica do Rio de Janeiro. Traduzir denovo um texto implica, partir de determinadas escolhas, realgar certos aspectos obnubilados em outros trabalhos ‘ou esmaecidos pelo mero desgaste do tempo. Celebre-se pois esta nova versio em portugués de Sobre a arte postica, valorizada pela tradugao feita a partir de critérios préprios € justificados (como manter em grego os termos mimesis e mythos) e pela apresentacao também do texto grego, 0 que permite ao leitor interessado o percurso da direita para a esquerda ou vice-versa, configurando-se excelente convite para a reflexao, Enfim, se é evidente descomedimento pretender que Aristételes jé tivesse dito tudo sobre a poesia, 0 resto nao Passando de pardfrase, nao sera exagero reconhecer em Sobre a arte poética o texto seminal de nossa compreensao da literatura e da arte. 6 O texto grego que serviu de base para esta tradugao foi o estabelecido, em 1932, por J. Hardy,! que, por sua vez, se fundou nos trés cddices disponiveis: o Parisinus 1741 (cha- mado no aparato critico de “A’), o Ricardianus 46 (“B” no aparato critico) e 0 cédigo arabe (‘Ar” nas notas criticas) O primeiro, que é 0 mais completo, data do século XI 4.C. €.08 outros, dos séculos XIV e X/XI, respectivamente Quanto aos propésitos dos tradutores, 0 que se teve em vista primordialmente foi a maxima literalidade possivel ‘emrelagao a escrita aristotélica, mesmo que & custa, talvez, de alguma estranheza do leitor com certas construgoes sintaticas e certos idiomatismos do grego atico € com a excessiva concisio do proprio estilo aristotélico. Nao se teve como preocupagio fundamental embe- lezar a sequidao lacunosa do original apenas para tornar 0 1 Em algumas passagens, os tradutoresfizeram concessbes pontuais 20 texto estabelecdo por Rudolf Kasse, de 1965 Ha um quarto cédice, subsistente numa tradugao latina de Moerbeke, 1278, mas enjo manuscrto desapareceu, ¢ que, no aparato critica ¢ chamado de ©. sexto mais palativel a0 leitor, o que ndo raro leva a paréfrases ‘explicativas que arruinam 0 sentido primitivo, Isso é papel ‘Gas otas de traducio, razio por que sio abundantes. _Apropasite,o leitor deve estar avisado de que 0 texto ‘original, como obra de carater escolar e por isso algo lacu- mos ¢ prenhe dos subentendidos naturais entre mestre ¢ Giscipelos, néo tem 0 acabamento formal ¢ a beleza com- .pativeis com sua riqueza de conteido. Aristételes nasceu em 384 a.C., em Estagira, Maced6- ‘nia, cidade colonizada por jénios, de dialeto jénio. ‘Seu pai, Nicimaco, era médico e serviu na corte do rei Amintas da Macedénia, pai de Filipe e avé de Alexandre. Aes 17 anos, em 367, Aristételes muda-se para Ate- ‘sas € entra para a Academia platonica, que ja funcionava ‘ba anos. Na época, Plato se encontrava 2 fora, em sua segunda S Ficou na Academia por cerca de 20 anos, até a morte Na Academia, escreve sua obra exotérica, a maior Pecans de itlogos, oa defendendo os principios formalacbes de seu ‘mestre, ora submetendo-os a duras ‘tices, como no caso da Teoria das Ideias, z wo Rao «dscordando da correne dominante ao Atenas em direcio A Asia Menor, onde, oh ee Fespectivamente, da aulas de filosofia ton se a 9 BATE cdc dh, Ale: Em 323, em meio a conflitos entre atenienses e ma- cedénios, teve de se exilar e morreu no ano seguinte, ainda no exilio. O corpus aristotelicum consta, com excecao dos frag- mentos, grosso modo, de: 1) Organon, tratado de Légica, composto de seis livros: Categorias, Sobre a Interpretacao, Primeiros Analiticos, Segundos Analiticos, Tépicos e Refuta- 0es Sofisticas. 2) Obras de Filosofia Natural: Fisica, Da Geragao e Corrupgao, Dos Animais, etc. 3) Psicologia: Sobre a alma. 4) A Metafisica. 5) Obras de Filosofia Moral: Etica Nicomaqueia, Etica Eudémia, Minima Moralia. 6) Obras de Filosofia Politica: Politica e Constituigao de Atenas. 7) Poética e Retérica. Aristoteles dividiu as cincias ou artes em trés ramos, segundo sua importancia hierarquica, quanto & possibilida- de que oferecem de um conhecimento rigoroso * Ciéncias teoréticas, que buscam o saber por si mesmo (Metafisica, Fisica, Matematica, Teologia, Astronomia). = Ciéncias ou artes pragmiticas, que buscam o saber para, por meio dele, atingir a perfeigio moral ¢ praticar boas ages (Politica e Etica). + Artes poiéticas ou produtivas, que buscam o saber pelo fazer (pofesis), isto &, com o fim de produzir IMMROBUCAD A ARTE ROCTICA certos objetos ou certos resultados concretos (Po- esia, Medicina, ete.). abe aduzir aqui que os gregos, ag pensar na ativida- de da arte, privilegia nento cognoscitivo, para ontrapd-laa simples experiéncia (empeiria), que consiste et Anica is edimento: obter resultados sem se perguntar o porqué de seu pro- ‘prio fazer (exemplos: a culinaria, a cosmética, a carpintaria, ‘aarte do ferreiro, o artesanato em geral). ‘A arte, ao ir além da mera empiria e se indagar sobre a racionalidade de seu fazer, se credencia a ipo de goohecimento. Em sua Fisica, Aristoteles se refere as artes imitativas ou miméticas nesses termos: “Algumas coisas que a natureza nao sabe fazer, a arte faz: as outras, ao invés, imita’.? __Eventre as artes poiéticas, hd aquelas que tém mera utilidade pritica, que suprem deficiéncias da natureza e ou- =e imitam a propria natureza, reconfigurando alguns eee através de cores, sons, formas e palavras, = jonealiees Entre estas iltimas, Aristoteles cuida eae a ae oe au lua com lingua- aera oo ioridade & poesia trigica 2 Por ee € tradicional a divisdo dos escritos eS m Gas BruPOS 05 esotéricos ou acromti- sdestinados a0 owvido e a0s discipulos;e os exotéricos, estinados & publicacio a : i Os esotéricos, por si seevam um pibico de iniciadosfrequentadores da ou por ele mesmo ou por algum discipulo, razao de seu estilo um tanto descuidado e fragmentario, proprio de seu regime de oralidade. Seu cardter muitas vezes eliptico ¢ frequentemente alusivo a outras obras do corpus aristote- licum pode dever-se ao fato de ser um texto proposto para discussao e aprofundamento em aula. ‘Além disso, a Poética, a par de sua aparéncia de obra escolar, é também incompleta, terminando meio abrup- tamente seu tiltimo capitulo ~ 0 XXVI - e ficando apenas prometido um Livro II (que nem se sabe se foi escrito ou se desapareceu) acerca da poesia cémica e do esclarecimento de nogdes mencionadas no Livro I, como a catarse. Apesar de toda essa precariedade a ela inerente, a Poética continua sendo, junto com os trabalhos aristotélicos sobre Légica, Metafisica e Etica, um dos textos do autor de maior atualidade, tendo alimentado por séculos aceso debate de agudo interesse para a teoria da literatura e para a Estética em geral. Quanto a hipétese de ser a Poética de Aristételes escrito meramente poetoldgico — isto é, simples colegio sistemati zada de normas e prescrigdes para a composicao de poemas, Por oposi¢ao a uma dita filosofia do “tragico’, como categoria filoséfica proposta pelo idealismo alemao do século XVII -, é obrigatéria a mencao a duas publicagGes de referéncia, dis- Poniveis em lingua portuguesa, que defendem tal posi¢ao. So elas: O ensaio sobre o trdgico, de Peter Szondi (2004) € O nascimento do tragico, de Roberto Machado (2006). Assim apresenta Szondi (2004, p. 23-24) seu ponto de vista: Desde Aristételes, hd uma postica da tragédia; apenas desde Schelling, uma filosofia do tragico. Sendo um, ensinamento acerca da criagio poética, 0 escrito de “Aristoteles pretende determinar os elementos da arte trigica; seu objeto, nao a ideia de tragédia, Mesmo quando vai além da obra de arte concreta, ao per- {guntar pela origem e pelo efeito da tragédia, a Poética permanece empirica em sua doutrina da alma, e as constatagoes feitas ~ a do impulso de imitagao como crigem da arte ea de catarse como efeito da tragédia ~ nio tém sentido em simesmas, mas em sua significagao para a poesia, cujas leis podem ser derivadas a partir dessas constatagdes. . No mesmo sentido se manifesta Roberto Machado (2006, p.24):"A Poética de Aristételes inaugura a tradicio de uma anilise ‘poética’ ou poetoldgica da tragédia como Parte de um estudo sobre a técnica poética em geral, sem considerar 0 poema trégico como expressio de uma sa- bedoria ou visio do mundo que a modernidade chamaré de tragica’, De todo modo, segundo essa perspectiva de lei oe com escrito decunho eae ae eeresio sobre gineros posticos hoje em dia nio mais se ae ioe de formas e regras para escrever ve = conceitos por tras de cada genero, especialmei trigieo, que, em seu sentido filos6fico, & sempre pesado Parti de uma estrutura daltica, pa ho campo da estética refletu a perspec- Flosofia moderna desde Descartes, dahipertrofia or erigido em nica realidade a priori, sees into ontolégico da nature: ‘© possa estar fora da consciéncia do acho! it Isso explica a perda de prestigio das teorias estéticas baseadas na mémesis, porque sua manutengao passaria a ofender a emergente nogo de génio criativo, atribuida ao artista moderno, herdeiro do subjetivismo hiperbdlico do idealismo pés-cartesiano, que néo mais podera se confor- mar a copiar a natureza ou mesmo té-la como referéncia necessaria em suas produgées, e cuja grande virtude ser, doravante, a originalidade, a criagdo a partir do nada, que faz do artista uma réplica do deus cristo onipotente. De todo modo, a filosofia do tragico teria por objetivo niio 0 exame da tragédia, como criagao artistica concreta, e sim a expressao de um fundo metafisico ¢ essencial que a informaria e que explicaria sua necessidade e seu vigor transistérico. Em suma, acentralidade crescente da nogao de sujeito do conhecimento na filosofia moderna tem sua contrapa tida estética na preocupagao ontoldgica de refletir sobre 0 trdgico como categoria que tem algo a dizer sobre o ser, a totalidade dos seres, sobre o homem atemporal e universal- mente considerado, sobre a realidade do que existe. E essa corrente recusa a Aristételes ter feito qualquer investida, na Poética, em tal direcao. ‘BY Teoria da arte poetica ou datragédia De fato, como os defensores da corrente anterior pro pugnam, a leitura da Poética como manual de bem compor ‘© mfthos trigico nao pode de jeito nenhum ser inteiramente descartada, mas, ao contrario, como 0 proprio Arist deixa claro logo na abertura de seu texto, sua principal fi nalidade é falar sobre a arte postica “se esti destinada a ser belaa composicio poética” (1447, X, al). Essa interpretagao, portanto, é perfeitamente adequada a diego do autor, mas; nosso ver, esti longe de esgotar todas as possibilidades de leitura possiveis. INTRODUGAO A ARTE POETICA género poético auténomo, titulo que concede a tragédia com todas as honras, sem se importar com o fato de que, para tanto, tenha de, senao contradizer-se frontalmente em sua opiniaio sobre o papel da melopeia e do espeticulo na mimesis poética, pelo menos, modular bastante o que ja dissera e exaltar essas partes qualitativas do drama tragico ‘como pontos a favor da tragédia, 0 que termina contando para sua vit6ria vis-a-vis a epopeia. Nao custa lembrar aqui que os discursos forenses terminam sempre e canonicamente por um epilogo ou perora¢ao em que se faz uma ethopotia (exame e construcao do carater) elogiosa ~ mas meio irdnica - da capacidade de discernimento dos julgadores e por uma pequena rememo- ragio dos argumentos empregados ~ dando a entender que nao seriam assim tio preclaros os juizes a ponto de reterem na memoria o cerne do que foi dito. Nessa rememoracao (mnéme), a siimula final dos argumentos é apresentada de modo mais tosco, redutor e acessivel do que o fora durante a fase argumentativa (pistis). Talvez 0 mesmo tom ret6rico possa ser atribuido ao Livro X da Reptiblica de Platao, que termina, depois de di- eae ea ecctonsts metafisica dos Livros VI e VII, 2 Ba ae eine da chamada Doutrina pee eae ‘Onica, com recurso a artefa- es universal (0 nome “cadeira”) e Propriamente dita (Ideia ou Forma de cadeira). Se como for, esperamos ter dado algumas indicaa ase ‘tolongo da & icagdes textuais, de age le notas, dessa possibilidade ¥ redutora e unilateral da extraordinaria dynamis dessa pe- quena obra-prima. “-V) Duas premissas basicas para a leitura da Poética Por tiltimo, cabe salientar a existéncia de dois pres- supostos heuristicos ou premissas inafastaveis para a com- preensao desse texto aristotélico. A primeira édar-seconta de quese trata de uma resposta ao. Platao lancadono Lin iiblica (607 d-e), em que expulsa o poeta da Pélis i deixando, porém, a porta entreaberta em seu Estado ut6pico para a poesia mimética, nos seguintes termos: Concederemos certamente a seus defensores, que nao forem poetas, mas forem amantes da poesia, que falem ‘em prosa, em sua defesa, mostrando como € nao sé agradével, como util para os Estados e a vida huma- na, E escuté-los-emos favoravelmente, porquanto s6 teremos vantagem, se se vir que ela é nao s6 agradavel, como também util. Ora, nada mais evidente que Aristételes encarnou essa figura do amante da poesia, que, em prosa, resolveu desincumbir-se de sua defesa, mostrando sua utilidade social (catarse, como purificacao do excesso de emogoes Perigosas?) e apontando as virtudes cognitivas inerentes 4 poesia em sua proximidade com o carater universal da filosofia, em sua descoberta de “universais poéticos”. Esse papel defensivo e apologético requerido pelo repto platonico talvez explique o tom algo retérico que assume no final a Poética, entronizando a tragédia a custa da epopeia. Com a Poética, no entanto, Aristételes vai além da mera resposta ao desafio de seu mestre, mostrando a arte oética como itil, mas contra-ataca Plato, desconstruindo INTRODUGKO A ARTE potTiCA 2 onceito de mimesis, exatamente como nos agones fo- : m contesta a acdo nao so contestar os mas também voltar-se contra 0 autor po-lo na defensiva (chama-se a seu renses ¢ licito a que seus estritos termos, da aco, atacar suas teses € isso hoje de reconven¢ao). , Finalmente, a outra premissa de leitura também cru- cial é a necessdria compreensao da Poética como estuario de numerosos conceitos de Aristdteles provindos de seu sistema de pensamento como um todo, notadamente os oriundos das obras légicas, uma vez que a propria ideia original de mfthos de Aristoteles é de algum modo tribu- téria de uma tentativa de entender sintatica e logicamente as composicoes poético-miméticas de seu tempo. Sua Fisica também esta presente, com o primado conferido na Poética 4 questao do movimento (aco). En- contramos a Metafisica, igualmente, em sua quadrupla causalidade, aplicada 4 Poética, sendo a causa formal do poema a mimesis centrada no mjthos; a causa eficiente, poeta; a causa material, os meios e os modos da arte poética; ee ee entre 0 agir Ariat ea ithe, ee fiastes Enfim, Aristételes ‘4 . rae aimee. um sistema bastante coeso (em- bora i i eta i Mapay Pontos), e€ preciso ter isso muito ot oY Hottica, em especial, por ser esta eee ‘4 das suas ultimas obras, herdeira de ‘© de mundo anteriormente exposta.

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