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Historias de | Sortugal Esta obra constitui um bom exemplo de como a nova histo- riografia pode renovar temas tradicionais. O seu objecto de estudo é a Casa de Braganga, uma grande casa senhorial da €poca moderna, a maior de todas ¢ de onde viria a sair a dltima dinate rinane- Agi ela €eneareda fo tanto como um pl yee ene aie dis grande polca do reino, mas ani como un modelo de A Casa de Braganc¢a construgiio € exercicio do poder tipico das sociedades moder- - nas. De facto, 0 seu poder decorria de prerrogativas senhoriais 1560 — 1640 doadas pela coroa. Mas derivava, sobretudo, de relagdes de rere fidelidade e dependéncia que os duques foram paulatina inas . Persistentemente construindo, ao conceder mereés ¢ beneficios, ieee terme rer ice ‘a0 distribuir rendimentos, ao reforgar as esferas de influéncia da sua gente. Os rendimentos € posigdes sociais recebidos da coroa eram assim capitalizados em redes de dependéncias, que cobriam todo o espago politico do reino. E que, mais tarde, sero decisivas para compreender a ascensfio dos Duques 20 trono, bem como os mecanismos de recrutamento do pessoal politico da nova dinastia. Por isso é que este livro, qu: nfo aborda expressamente a alta politica peninsular, acaba por ser uma outra forma de contar a «Restaurag4o». Mafalda Soares da Cunha icas senhoriai Mafalda Soares da Cunha licenciou-se em Histéria na Faculdade de Ciencias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em 1982. Realizou provas de aptidio pedag6gica e capacidade cientifica ‘na Universidade de Evora (Linhagem, Parentesco e Poder. A Casa de Braganca, 1384-1483, Lisboa, Fundacto da Casa de Bragangs, 1990). Em 1997, doutorou-se em Historia Moderna nessa mesma Universi- dade, onde é professora auxiliar do Departamento de Hist6ria. BIBLIOTECA GERAL Ed 1986638 wna ISBN 97 ‘Publicaglo patrocinada pela Fundagto da Casa de Braganga Mafalda Soares da Cunha A Casa de Braganca 1560 ~ 1640 Praticas senhoriais € redes clientelares FICHA TECNICA Capa: José Antunes ustrazfo da capa: Desembarque das tropas portuguesas comandadas por D. Jaime, duque de Braganga, na tomada de Azamor, em 1513. Fresco seiscentista no Paco Ducal de Vila Vigosa. Compesigio: Byblos - Fotocomposigio, Lda. Impressio € acabamento: Rolo & Filhos - Artes Grificas, Le, 1. edigio: Abril de 2000 Depésio legal n.° 149899700 ISBN 972-33-1539-4 ‘Copia: © Mafalda Soares de Cone rial Estampa, Lda, Lisbos, 2000 one lingua portuguesa INDICE ‘AGRADECIMENTOS INTRODUGAO ... . st Primazia social, Estratégias de preservagio do status Estratégias matrimoniais da Casa de Bragenc Concessdo de nobreza Hébitos e comendas da Ordem de Cristo Formas de tratamento, precedéncias e auséncia da corte régia Privilégios comerciais. Relagdes de poder e redes sociais 1. A CORTE DUCAL OU A «FAMILIA» DOS DUQUES DE BRAGANCA . 1. Confluéncia de modelos relacionais organizativos: idedrio da cavalaria e valores domésticos LL. Andlise semdntica dos ttulos dos moradores da casa... 11.1. O «séquito» € a economia do direito feudal Cavaleiros, escudeiros e fidalgos. 1.1.2. A familia © a economia doméstica. Moradores, filhamentos € criagto .. 1.2. Organizagao do espago doméstico 1.2.1, Dimensio € orginica intema 12.1, Dimensdo da cas. 12.12. Orgénica inverna. 4) Alimentaso ¢ aposentadoia 2) Vestre deitar. 45 45 48 48 89 89 €) Cavalrigas 4) Caga e coutades, ©) Capel. 12.13. Casas dentro da Casa 1.3. Formas de remumeragéo e satisfagdo de servigos.. 2. Codificagao ¢ ritualizagao. A exaltagao do poder da Casa 2.1. Regras e preceitos funcionais: a etiqueta de corte 2.2. Espacos de encenacdo do poder: 0 Paco 2.3. Espacos de encenagao do poder: a capela ducal . 2.4. Momentos de encenagdo do poder: actos solenes festas so I, DISTRIBUIGAO SOCIAL DE RECURSOS E EXERCICIO DO PODER SENHORIAL ...rscnrnnnrtsenn 1. Exerefcio do poder senhorial 1. Caractertsticas dos senhorios. L.L.L. Espessura temporal 1.1.2. Dimensdo e configuragio fisica 1.1.3, Privilégios e privilégios jurisdicionais .. 1.2. A administragdo senhorial: processos ¢ agentes de comunicagao politico-administrativa 1.2.1. Do Pago para as «terras»: 0 exercicio das jurisdigées senhoriais... 12.1.1, A administragdo da justica: 0s owvidores.. 12.1.2. A administragdo da justica: os juizes de fora 12.1.3, Camaras, processos eleiorais e controle do espaso politico local L214. A adadas de oficios: 1.2.15. Copacidade de recratamento militar. 1.2.16. Cobranga de direitos ¢ controle econdmico do senhorio 1.2.2. Do Pago para as «lerrase: especial da Casa... 1.22.1, Desembargadores: 1.222. Procuradores dos feltos da Casa 110 2 116 119 125 149 151 165 17 201 215 21 222 229 236 246 252 1.23. Do Pago para o cemtro politico... 280 123.1. Agentes no estrangeiro, na Corte « no Conzelho dde Portugal. see 2800 1232 Procuradores © advogados da Caza nos tribunais centrais 294 1.233, Pamicipagao dos procuradores dos concelhos em Cones. 304 2. Habitos e comendas da Ordem de Cristo: a institucionalizagdo de recursos distributveis 312 3. Direitos de padroado € patrocinato religioso .. 332 3.1, Direitos de padroado e apresentagao de beneficios... 334 3.2, Patrocinato as ordens religiosas regulares 360 370 5. Processos de comunicagéo no interior da rede clientelar 382 4. Misericérdias, hospitais e confrarias.... IIL ESTRUTURA E ORGANIZACAO DAS REDES CLIENTELARES BRIGANTINAS.... 395 1, Modelo de andlise de redes sociais 396 Ll. A definigdo do Universo 399 1.2. Metodologia de andlise 405, 2. Caracterizagao social das clientelas brigantinas.. 408 2.1. A elite clientelar se 408 2.1.1, Recrutamento: continuidade e renovagio 408 2.1.2, Lugares de poder e esferas de influércia 425 2.1.2.1, Apadrinkamemtos . 431 21.22, Procuragoes 443 2.1.23. Fancas, empréstimas e atindes econinicas 454 468 2.1.3, Modelos e priticas de reprodugio social 2.1.33, Prdticas de heranga e adopeto do modelo eprodutvo vnewlar 491 2.2. Os escalées inferiores 498 2.2.1. Modelos reprodutivos e caracterizagio Social... 498 2.2.2. Trajectérias: redes sociais ¢ optimizagto de recursos 514 222.1. Concentragéo de recursos e preservagéo do status: estraiégias endégenas ~Os Casto, fisicos do duque 515 222.2. Sucesso e diversificagdo de «investimentes» Francisco Soares, 0 advogado «mata asninhos» .... 524 2223. Reconfiguragao das redes da alianga ~ A rede de relagdes dos pais de Anténio Cavide.. 535 CONCLUSAO.... a ANEXOS... o wow SST Plantas 958 Quadros Genealégicos . veneers 566 FONTES E BIBLIOGRAFIA .cennes 595 INDICE ONOMASTICO. 623 INDICE TOPONIMICO E DE INSTITUIGOES 643: INDICE DOs ANEXOS 649 INDICE DOS QUADROS E DOS GRAFICOS... 651 10 AGRADECIMENTOS A obra que agora se apresenta retoma quase integralmente a dis- sertaglo de doutoramento em Histéria, defendida em Novembro de 1997 na Universidade de Evora. Como ent tive ocasiéio de sublinhar, 56 foi possivel concretizar este estudo pelo apoio e confianga que durante anos muitas pessoas ¢ instituigdes me dispensaram. A todas, fem getal, expresso 0 meu agradecimento, mas nfo posso, nem devo, deixar de destacar algumas. Agradego, antes de mais, 4 Universidade de Evora as condigdes de trabalho que me proporcionou. Ao Departamento de Historia a con- fianga que depositou nas minhas capacidades ¢ a solidariedade que sempre aj encontrei entre colegas € amigos. Da amizade de Filipe ‘Themudo Barata, de Teresa Amado, de Herminia Vilar, de Femanda Olival ¢ de Maria Ana Bemardo sou tributéria de constantes trocas de ‘deias. Aos tés primeiros devo, ainda, um j4 muito longo e particular clima de boa disposigio ¢ amizade indispensdvel as constantes deslocagdes Lisboa-Evora-Lisboa. A Fundagao da Casa de Braganga, na pessoa do seu Presidente Dr. Joo Gongalo Amaral Cabral, expresso o meu mais profundo re- conhecimento pela gentileza, pelo apoio e pelas facilidades de acesso & documentagdo, sem as quais grande parte deste trabalho seria absolutamente invivel. Devo ainda a Fundagao da Casa de Braganca © apoio agora concedido & sua edigao. Agradego também a disponi- bilidade manifestada pelo Dr. Manuel Inécio Pestana e a paciéncia e deligéncia que o Sr. Manuel Ferréo sempre revelou nas consultas da documentacio. un A Camara Municipal de Vila Vigosa louvo 0 cuidado na organi: Go dos seus importantes fundos documentais e a boa vontade com ‘que me facilitaram 0 acesso ao seu arquivo, Aos funcionérios da Biblioteca Publica e do Arquivo Distrital de: Evora, muito em especial ao Sr. Constantino, & D, Eduarda e & D. Candida, agradego a simpatia e amabilidade com que, meses a fio, atenderam todas as solicitagdes da demorada investigagio que af realize. ‘A conecyio € ao profissivnalismy da Catarina Crespo e do Tiago Araijo devo 0 bom gosto gréfico de alguns quadros e dos anexos. A amizade da Maria Alexandre Lousada, da Rosa Maria Perez € do Rui Santos devo 0 cuidado, a eficiéncia e o conhecimento com que, apesar dos miiltiplos afazeres, me ajudaram a ver e a corrigir as imprecisdes da versio final deste texto. Todas as que ainda subsistem a mim se devem. ‘Ao Rui Santos agradego ainda as indicagées bibliogréficas, as inGimeras conversas cientificas e, sobretudo, a ironia e a cumplicidade ‘com que envolveu tudo isso, € mais as idas e vindas a0 arquivo de Evora. ‘Ao Nuno G. Monteiro, para além da muita amizade, devo constan- tes, insistentes e inspiradoras conversas e trocas de ideias. ‘Ao Prof. Doutor Anténio M. Hespanha agradego a grande amizade € a enorme disponibilidade que a0 longo de todos estes anos de orientagao cientifica me manifestou. As duividas que soube esclarecer, a oportunidade com que apresentou sugestdes e apontou perspectivas de anilise e, sobretudo, a confianga que sempre me facultou fazem com que este trabalho Ihe seja largamente tributério, A todos 0s amigos que nao cabem aqui, mas a quem devo muito, obrigada. ‘Ags meus irmaos reconhero e agradeco a paciéncia perante a minha indisponibilidade. Gostaria ainda que o Pedro visse como 0 esforgo vale bem a pena. Por fim, e como sempre, ao Fernando. Agora, também a Isabel e a0 meu filho Martim. It INTRODUGAD: Quem, pelo titulo do trabalho, criar expectativas sobre eventuais ropostas que clarifiquem a composiglo e as estratégias das redes politicas que ajudaram a derrubar os Austrias do trono de Portugal, em 1640, deve desenganar-se. No porque o tema nao pudesse ou nio erecesse esse tipo de tratamento, mas to-s6 porque néo foi esse 0 objecto de anilise escolhido. Propomo-nos tratar a Casa de Braganga como um lugar institucional de promo¢do ou consolidagao do poder. Assim, pressupde-se que além da existéncia de dispositivos formais e de préticas informais inerentes as préprias l6gicas de organizac3o do poder, ¢ em particular do poder senhorial, houvesse também um conjunto de estratégias conscientes que direccionavam as acgdes da Casa. Comecemos, pois, por este ‘ltimo ponto. Primazia social. Estratégias de preservacdo do status A trajectéria hist6rica dos Braganga revela metas e comportamen- (os diversos ene 0 século xv € os séculos xvi e xvit, Enquanto a fase uatrocentista parece essencialmente dirigida & acumulagao de recur- 808 € de poder através do aproveitamento, ou até mesmo da criagio, de conjunturas geradoras dessas mesmas possibilidades, 0 perfodo ‘subsequente parece sobretudo visar a consolidago e manutengdo das osigdes sociais e politicas entretanto adquiridas. A alterago do con- texto hist6rico e dos equilibrios intemos do reino parece nao Ihes ter deixado margens para outro tipo de comportamentos, malgrado as opinides de alguns dos seus cronistas. 3 século xv fora um século marcado por lutas pela composigao € recomposiglo dos poderes, em que os diferentes actores sociais pare- ‘cem ter procurado estender as fronteiras da sua acgdo até atingirem limites virtualmente impossfveis de serem articulados com as freas de intervengao do centro politico. Os instrumentos de ordenacio do es- ppago social que a Coroa criou € as necessidades de legitimacao do sew proprio poder, decorrentes da implantagao de ume nova linha dinés- tica, $6 tiveram os efeitos pretendidos a médio prazo. A titulagio e as regras de precedéncias como instrumento de organizac3o do topo do grupo nobilidrquico, o registo sistemético dos moradores da Casa Real ‘como uma das formas de estruturagao € ordenamento do espaco curial, a compilagao € sistematizagao dos instrumentos legais e de interven- ‘do juridica concretizadas nas Ondenagdes Afonsinas e, finalmente, as ‘miltiplas oportunidades (econémicas e sociais) resultantes do alarga- ‘mento do espago territorial teriam continuidade e impacte definitive sobre os trés séculos subsequentes. Se Ihes acrescentarmos as novi- dades administrativas criadas por D. Manuel — Reforma dos Forais, Regimentos dos oficios, dos pesos e medidas, entre outros — poucas outras com tio significativas consequéncias ocorreriam antes do sé- culo xvin, Mas, como se disse, este fluxo de dispositivos de ordenamento do- espago politico € social contrastava com o carécter ainda difuso fluido do poder monérquico. A incorporagio € a assimilagdo desses novos instrumentos de organizagdo da sociedade foram lentas, permi- tindo que ainda coexistissem com as formas tradicionais de conquista € disputa do poder nas periferias. Ou seja, antes de conseguirem impor uma determinada ordem, suscitaram resistencias ¢ oposigdes por parte dos diversos organismos da sociedade. O que, de alguma forma, ex- plica o desencadeamento de confrontos politicos internos com expres- io militar ainda impregnados de sabor e formatos medievais e tornow ossfvel o af& brigantino na acumulagao de titulos,jurisdigoes, rendas, direitos, privilégios e aliangas internobiliérquicas ao longo da centtiria de quatrocentos. No século xvi, 0s novos recursos distributivos de que a Coroa passou a usufruir com a administragao € a explora¢o comercial das reas coloniais permitiram uma maior harmonizagio entre os esforgos de intervengio politica do centro sobre o territério € 0 espaco social do reino. A monarquia distanciou-se definitivamente de todos os seus 14 potenciais concorrentes intemnos, deixando, assim, de recear quaisquer ‘excessos de acumulacdo de poder. Podia mesmo permitir que alguns pélos politicos se reforgassem e consolidassem. E era esta liberdade de actuagéo conferida Aqueles que tinham sidy tomados como.os seus mais directos concorrentes que melhor evidenciava a diferenciagéo dos espagos de intervengdo ¢ a disparidade de recursos j4 existente entre a Coroa e os «corpos intermédios». Neste novo contexto politico, a Casa de Braganga direccionou a sua acglo sobretudo para consolidar e reforgar as posigdes jd adqui- ridas. Social e simbolicamente era dificil obter maior distingo que a de ser jurado herdeiro do trono, como ocorrera ao duque D. Jaime logo no infcio do século xvi. A manutenco e a continuidade da indiscutivel preeminéncia assim reconhecida pela propria monarq parece ter sido, pois, o principal objectivo que posteriormente orien- tou as acgdes da Casa Ducal. Foi, pelo menos, essa a convicgio que, apés 1640 e sob formas diferenciadas, se procurou criar e que teri contaminado alguma historiografia posterior. D. Francisco Manvel de Melo atribufa expressamente essa intengo a D. Teodésio II: «quando 05 seus intimos 0 acusavam respeitosamente das conveniéncias que perdia [em nao requerer a0 soberano a heranga de certos bens da Coroa pertencentes a0 seu falecido irmao D. Filipe), costumava res- ponder que aos seus antepassados coubera o papel de juntar e acres- centar & grandeza de sua casa, e & sua pessoa, por agora s6 competia trabalhar no sentido de manter o que em honra e fortuna, eles tinham ganho»'. Um pouco mais tarde dizia-se que «(...] Falta a estes senho- res a generosidade, que sobejou ao Serenissimo Duque D. Theodosio [..] © qual convidado por ElRey Filipe II], de Castella, quando veyo a Portugal na era de 620. que the pedisse mercés, respondeo com Palavras dignas de cedro, ¢ de laminas de ouro: Vossos e nosscs avés encherad nossa casa de tantas mercés, que no me deixaraé lugar para aceitar outras, Em Portugal ha muitos fidalgos pobres de mercés, € Francisco Manuel de Melo, D. Teodésio Duque de Braganga, Poro, Liv. Civilizagio Editora, 1944, p. 199. Anténio Caetano de Sousa repetiu 0 divo de 1D. Teodésio I: «que os seus predecessores havidotido o euidado de ajunar, ¢ exaltar ‘8 sua grandeza, e que agora, & sua pessoa $6 tocavatrabalhar para conservar& honra, ¢ estado, que elles havito estabelecidos, Anténio Caetano de Sousa, Histéria Gerealégica da Casa Real Portuguesa, tv, Coimbra, Ailintida Livraria Editora, 279 (doravante citado apenas como HGCRP). 1s ricos s6 de merecimentos, em quem V.Magestade péde empregar sua Real magnificencia...»?. Esta questo merece, todavia, uma reflexio um pouco mais porme- norizada. A nosso ver ela deverd ser feita pelo cruzamento des dados disponiveis sobre a politica da Casa referente & salvaguarda e acres- ‘centamento dos seus direitos ¢ privilégios com os diversos perfodos hist6ricos. E que, com excepgaio de Francisco Morais Sardinha, os cronistas brigantinos redigiram os seus textos ap6s 1640. E este facto exige por si s6 alguma preocupagio critica na descodificagio das representagdes criadas sobre a posigiio politica dos duques de Braganga. Essa aura de desinteresse face as mercés da monarquia dificilmente adere aos factos hoje conhecidos para a centiria de quinhentos, sobre- tudo se se ponderar também o comportamento dos duques em 1580. De facto, a0 longo do século xvi a Casa de Braganga contraiu 0 ‘espago fisico do seu senhorio. As poucas terras com jurisdigio civel crime que Ihe foram outorgadas no tinham dimensio geogréfic nem importancia econémica, demogréfica ou militar significativ foram doadas com um estatuto precério (em vidas)? ¢ nao compen- saram, portanto, os concelhos que, por diversos motivos e vérias for- mas, a Casa alienou‘. Obtiveram, no entanto, uma série muito ampla de novos privilégios ou a confirmago de privilégios concedidos an- teriormente que Ihes garantiam condigdes excepcionais na administra~ 80 do senhorio. Ou seja, preferiu-se a manutengio € o reforgo do eque de instrumentos de intervengio senhorial € dos signos de di tingdo social em detrimento do acrescentamento da base territorial do senhorio. ia, ntrod e notas de Roger Bismut, INICM, 1991, cap. 2 arte de Furtar, ed, 5. 280, Por ocasio do primeiro casamento de D. Teodésio I, foram-Ihe dondos os concethos de Vale de Nogueira e Vila Franca, no termo de Braganga; em 1602 0- cons6rcio de D. Teodésio II valeu-the a doagio de Vila do Conde. “ Os concethos da Vidigueirae Vila de Frades foram vendidos, em 1519, 2 Vasco. «da Gama; a jurisdigao e padroados de Vila Alva e Vila Ruiva foram escambadas com D. Rodrigo, 1° conde de Tentégal. por rendas da dizima do pescado de algumas Focalidades e pela quinta de Andaluz em 1520; 0 ducado de Guimaries foi integrado. no dote de casamento de D. Isabel, filha de D. Jaime, com o infante D. Duarte em 1536; a5 beetrias do Mario, apés 0 sew confisco em 1483, nlo voltaram Casa, ‘sendo, porém, compensadas pecuniariamente. Cf. Anténio Caetano de Sousa, HGCRP, ty, passim e A. M. Hespanha, As Vésperas de Leviathan. Insinigdes Poder Polttico. Portugal ~ sée. XVII, vol. u, ed. do autor, Lisboa, 1986, passin. 16 A corespondéncia mantida com Filipe 11 e com os seus agentes revela, por seu tumo, a amplitude das contrapartidas exigidas nas negociagées efectuadas no ano de 1580°. Se, por um lado, o desejo livremente expresso de negociar revelava algum desinteresse pela tomada de poder ou, pelo menos, 0 reconhecimento implicito da in- capacidade de confrontar com éxito o outro candidato, 0 resultado Pratico foi a rentincia voluntéria dos direitos de sucessdo na Coroa Portuguesa. A lista das propostas brigantinas para efectivar 0 acordo € a todos os thtulos clarificadora da estratégia politica da Casa, sobre- tudo se for tomada como um inventério de desejos e de ambigdes senhoriais. Agregando-as em t6picos teremos um primeiro grupo re- lativo & definigo do destino dos filhos; um segundo que agrupa a simbélica da «honra» (titulag2o, tratamentos, armas da Casa, servigos € presenga na corte régia); um terceiro que integra as medidas de ampliagdo das prerrogativas excepcionais j4 detidas pelos Braganca (apresentagao de comendas, isengao de direitos de importagi0 de especiarias indianas, por exemplo) € um dltimo que inclui propostas de significativo alargamento das jurisdigdes ¢ dos direitos senhoriais ccarregadas de simbolismo (doagio de novas terras de juro e herdade 0 fundameno negocal da duquess D. Catarina era a resoldo do impasie sobre sucesso 20 tone de Portugal po va de scocero © Uaneaege We ea ta das és modalidees gue els aponiva Come Send uso segue sands hone lvidae sobre as mais (as ous dua erm ajosiga ~e' data doit dat ‘egocigdesessasndanlo hava sido deterinada jor quem de eto ts ya dos armas ~ eve Flipe Ilse peste liza mts que @duquess reo). cara ‘ue as poses dos dois pretendentes erm oposus ura ver ques esa andie'@ ‘horas eaxehhano conrapanka mo have dvds se o kplimiate dor see dics, ot eva a emender no eee da enna onl scetonos a dug para legiimament, omar pose do Reo de Pongal, Nest aca o ‘06D: Caaina prope como contapanis conta lige Il enendssrem teres gracias (seo, de resto em carta daladn de 10 de Never de 1380 ses wan cena cn oso que sel porte me ingun goer de obligaion). Ow segundo perspec epee do abate, 8 negociagdo com a Casa de Braganga assemelhar sea. asim, ds ours jf conte: tzadas com ris casas Senos portugues, Da ocldalo poss pcos agentes Uvigamins om clrfear«posbildade (as exemais hips de Po) ot daques nhs de fazer valer os sve diton ma ve qe aga sine 3 no pronunciara sobre a matéia, Cia eonespondenca pelicada por. M Gusiés oso em 0 Interegno dor Govemadores e 0 Breve Renato de i Antone, Liston, Academia Portgucsa de Hsia 1953, «Apénace Documenta py. 201 ©. A ciapio, supra do cana de 10-de Novembro, repona-ce 3p 27, 7 ~ quase todas com tradigo de pertenga a Casas de infantes -, maior autonomia jurisdicional e novas rendas). (Os dados mais interessantes neste leque de pedidos quase inviéveis so tanto 0 esforgo para obter direitos régios juridicamente inaliendveis®, quanto a perseguigéo de bens simbélicos ou (como veremos depois) através do jogo de aliangas matrimoniais e dos pri- vilégios de tratamentos, garantir um estatuto social {mpar para a Casa, no j& apenas no contexto portugués, mas também no ibérico. ‘A imagem de absoluta primazia que a Casa detinha no espago social portugués era relativamente consensual. Assim 0 entendiam e © expressavam eles mesmos: a) independentemente da exist€ncia de outros duques € dos destinatérios das missivas, os titulares da Casa assinavam e eram identificados em textos simplesmente como «ho duque»? ; b) segundo as palavras de um dos préprios (testamento do duque D. Joao I, em 1583), estipulava «Ao Duque de Barcellos meu filho mando que de tal maneira proceda sempre no servigo delRey ‘meu Senhor que ninguem possa fazer comparagam com elle...»®, Sempre que sentiam desafiados, impunham aos menos convictos essa imagem, contribuindo para tal a forga do seu poder e das suas cone- Ges. E essa capacidade advinha-thes, em grande medida, da conivén- cia da prépria Coroa: a rainha D. Catarina era a primeira a considerar publicamente o duque de Braganga como «o principal sr. deste reyno»®, © ram, por exemplo, os casos da dooglo das siss das teas, da outorga do privlégio de nao entrada dos provedores no senhworo, da concessio do mesirado aoordem de Avis, ds prvilgios relatives & confirmacio dos hibites e comendas da sua apresentagio. CF. 0 parecer de Nuno Alvares Pereira sobte estas mati in {Queirés Velloso. O Inverepno dos Governadores... pp. 263-265. 7 Exe t6pico era de tal modo relevant que foi objecto de desiaque na cana em que o duque de Braganca escreveu 20 rei Filipe Il insurgindo-se contra algumes das Aisposigdes tomadas na Lei das Contesis de 1597. Sugerira o rei que os seahores de tulos acrezcentassem na assinatura o logar da tea de onde tinham 0 tuo. ‘Como era contrério &pritca seguida pelos daques de Braganga, este clarficou que sconforme a isto 0 Duque nio determina fazer mudanga no Seu sinal, nem ha que fas nisto contra a Ley», Antnio Castano de Sousa, Provas da Hisiria Genealégica da Casa Real Portuguesa, Coimbra, Allndids ~ Livraria Editor, tv, Pp. 371 {doravante citado apenas como Prov...) Aniétio Caetano de Souss, Provas... 1. Pt p. AOL * Chagio in Maria do Rosétio de §. . B. de Azevedo Cruz, As Regéncias na Menoridade de D. Sebasrido. Elementas para uma Histéria Exratual vol, Lisboa, INICM, 1992. p. 300. 18 ‘Quadro Genealégico | Casa de Braganga - Séculos XVUXVIT Is ‘Mas veremos melhor estas quest6es a propésito das querelas sobre tratamentos e precedéncias. Note-se que a preservacdo desse estatuto de preeminéncia social implicava uma permanente atenco & evolugio e & forga dos contextos politicos, sociais e simbélicos. Quaisquer inovagdes nos modelos organizativos e de representagio da Casa Real, nas formas de gestio e de administrago dos recursos pela monarquia deveriam (tinham de) ‘ser acompanhados no tempo e na escala possivel pela Casa de Braganga, ‘sob pena de aceitar o alargamento da distancia entre a Casa e a Coroa ever encurtadas as distingdes que a separavam da principal nobreza do Reino. O papel da analogia, propria da I6gica da semelhanga aristotélica, conceito que para Foucault € caracterizador da cultura ocidental até finais do século xvi", também desempenha um papel fulcral no sistema de representagdes brigantino. A pa i sistema de simbolos politicos da monarquia criava imagens de _randiosidade e opuléncia que eram interiorizadas ¢ depois reproduzidas como valor da Casa!!, Ou seja, a convicgdo da hierarquia das seme- Thangas colaboraria t2o eficazmente na reprodugdo da diferenga so- cial, quanto os seus efectivos suportes materiais (titulos, privilégios € poderes de «mando», por exemplo). ‘Uma anilise suméria do tipo de mercés e de distingdes usufrufdo pelos Braganga comprova 0 carécter invulgar de tio grande concen- tragto de privilégios e de direitos excepcionais numa s6 casa senho- rial. Mesmo do ponto de vista da histéria comparada talvez seja dificil encontrar uma outra casa senhorial que, para 0 mesmo perfodo cro- nolégico, proporcionalmente & dimensio do reino e face a0 quadro juridico vigente, dispusesse de to amplas e quase régias prerroga vas. Um dos aspectos mais interessantes desta situag3o peculiar refe- re-se & pacifica e sempre negociada coexisténcia que ao longo dos séculos xvi e xvil a Coroa manteve com a Casa, sobretudo se atender- mos ao facto de, em outras monarquias, casas ¢ linhagens com muito menor quantidade e qualidade de poder terem entrado em colisdo com ‘05 respectivos soberanos. W Michel Foucault, As Polavras e as Coisas. Uma Arqueologia das Ci Humanas, Lisboa, Edges 70, 1991 (edigdo original de 1966), maxime, pp. 73-89. ' Exemplos particularmente evidentes si0 0s privilégios de nobilitagio © 0 dopgio dos usos cerimoniais da Casa Real. Como se ver, embora nfo se consi estabelecer com exactidio a origem desses privilégios, nio havia qualquer discussi0 sobre a legitimidade do seu uso. 20 Estratégias matrimoniais da Casa de Braganga As escolhas matrimoniais e 0 destino que os duques de Braganca encontraram para 0s seus diversos descendentes merece uma atengio particular. Nelas s¢ depositam e se expressam as estratégias de alian- ga que os duques aceitavam fazer e, por exclusio, todas aquelas que Tecusavam. Uma andlise suméria entre as opgdes de casamento no século xv e no século xvi e xvii confirma 0 que se disse anteriormente sobre as estratégias reprodutivas da Casa. Enquanto na centéria de quatrocentos se procurou quase sistematicamente casar todos os des- cendentes da Casa - 0 que no apresentou qualquer excepgo para os vardes'? -, nos séculos xvi e xvit oS investimentos matrimoniais re- uziram-se significativamente — dos vinte e quatro filhos que chega- ram a idades ndbeis e exceptuando os cinco sucessores, $6 oito casa- ram. Qs celibatérios foram encaminhados para carreiras eclesidsticas (Cinco) ov nao tomaram qualquer estado (seis, dos quais cinco eram vardes). Esta alteragdo na intensidade de recurso a0 matriménio correspondeu igualmente & substituiggo de uma I6gica linhagistica por uma légica de “casa”, Ao alargamento dos recursos detidos pela linhagem (acu- mulugao de recursos jurisdicionais pelo casamento de tilhos com sucessoras de casas titulares com amplos senhorios, mas também diversificagao de aliangas entre a grande nobreza do Reino), sucedeu- -se uma légica de distingdo social que € comprovavel pelo tipo de selecgao de cénjuges para os primogénitos. Se excluirmos 0s dois casos das segundas niipcias dos 4.° e 5.° duques de Braganga, que parecem obedecer mais a inclinagdes pessoais que a qualquer estra- tégia reprodutiva, verificamos que nos cinco casamentos restantes a " Mafalda Soares da Cunha, Linhagem, Paremesco e Poder. A Casa de Braganca (1384-1483), Lisboa, Fundaglo da Casa de Braganga, 1990, pp. 23-56. "9 Sobre a definigio dot conceitoe de linhagem e weaza> ver respectivamente, Bemardo Vasconcelos ¢ Sousa. Os Pimentéis. Percursos de wna Linhagem Medieval Portuguesa (Séculos XIII-XIV), Lisboa, FCSH-UNL, 1995 (disser. de doutoramento, mimeo), pp. 366-369 e bibliografia ‘Poder Senhorial, Estatuto Nobiliérquico e Aristocracia», Histéria de Portugal, di. José Matioso, vol 1%, O Antigo Regime (1620-1807), coord. A. M. Hespanha, Lisbos, Cireulo de Lei- tores, 1993, p. 365. gIDAn an ay ‘Casa optou ou por aliangas com Grandes de Castela, ou dentro da sua propria linhagem ou ainda na Casa Real. Este padrio de escolha ‘reproduziu-se de modo bastante similar com os demais descendentes. os oito casamentos concertados, quatro incidiram em casas de titu- lares castelhanos, dois com a casa dos marqueses de Ferreira (do ‘mesmo grupo linhagistico que os Braganca), um com a dos marqueses ila Real (com quem a Casa tinha também tradigdo de aliangas € um com a familia real (cf. Quadro Geneal6gico 1). Quer isto dizer que se percebe existir uma estratégia clara que visava evitar aliangas com a nobreza portuguesa. Quando tal ocorreu seleccionou-se a casa mais antiga de melhor linhagem ~ Vila Real ~ ou entio reforgaram-se lagos com a propria parentela ~ Ferreira/Ten- nigal. Casar fora, em Castela, era a estratégia da monarquia ¢ também. a que se afigurou mais conveniente para a Casa de Braganca. Evita- vam-se excessos de proximidade e de familiaridade com a nobreza do- reino e conseguiam-se unides socialmente aceitiveis, 0 que dificil- mente ocorreria entre 0 mercado matrimonial dos titulares portugue~ ses. Dizia 0 duque D. Jaime «bem visto tinha quo poucos casamentos. neste reino havia para elles {seus filhos}»"* Internamente a melhor opgo era mesmo casamento com mem- bros da familia real. Tal ocorrera no século anterior e voltou a repetir- -Se no século xvi. © prego de tais unides era alto, mas servia as estratégias simbélicas da Casa de Braganga, e parece que também as. apeténcias matrimoniais da Casa Real. Este breve apontamento esboga tendéncias de actuagao que, natu- ralmente, escondem os diversos interesses conjunturais que a nego- iago de cada uma destas unides suscitava, Embora na economia. deste discurso ndo se justifique 0 aprofundamento do nivel de andlise, julgamos pertinente apresentar dois exemplos ilustrativos do tipo de problemas € de interesses envolvidos nos acordos matrimoniais. Um sera o do acerto do casamento de D. Isabel, filha do duque D. Jaime, com o infante D. Duarte. © outro, as negociagdes matrimoniais ime- ddiatamente posteriores a 1580, com particular destaque para o caso de: D. Teodésio IL. Carta ducal de 1630, Fermando Palha, 0 Casamento do Infante D. Duarte com D. Isabel, Lisboa, Imprensa Nacional, 1881, p. 35. 22 A hipétese de unir D. Isabel a um dos filhos mais novos de D. ‘Manuel parece ter colhido o duque D. Jaime de surpresa. A proposta. terd nascido de D. Jodo III e o medianeiro foi o conde da Castanheira. Aparentemente a decisdo final dependia do montante do dote que 0 duque poderia disponibilizar. A primeira proposta de D. Jaime terd desagradado a0 monarca, mas a rejeigdo agravou o duque que sentiu ‘que 0 processo de decisao nao visava 0 acrescentamento da sua honra, ‘mas 0 servigo directo da Coroa. A carta que, por isso, escreven a0 ‘monarca, em 1530, constitui um documento extraordinariamente ex- pressivo quer do que o duque entendia deverem ser as relagdes. da Coroa para com a sua Casa, quer do que se jogava nas aliangas matrimoniais'® Muito sinteticamente dir-se-ia que D. Jaime adoptare uma posigo aproximada da do seu antepassado Nuno Alvares Pereira a propésito do concerto de casamento da sua tinica filha D. Beatriz. 0 Condestavel rejeitara a proposta de unido com 0 herdeiro do trono que sabia con- duzir extingio da sua recém-constitufda Casa. D. Jaime néo se restava a sacrificar significativamente a sua em prol da renovagdo dos lagos com a famflia real. Dizia-o, de resto, aberta e arrogante- ‘mente «e se vossa alteza bem olhou que eu respondi a D. Antonio, quando me da vossa parte fallou, bem devéra de ver que eu nao havia de dar a minha filha cousa que me houvesse de desfazer nem destruir, Porque eu the disse logo, “que eu queria ainda mér bem a mim que ‘a meus filhos, ap6s mim a minha casa mais que a elles, e por isso no havia de fazer cousa que desfizesse em meu filho herdeiro e na casa que Ihe havia de ficar, ¢ porque tinha esta tengo estava bem fora de desejar para minha filha marido a que eu houvesse de beijar a mao, € que queria antes casa-la com um homem qua m’a beijasse a mim para o ter em minha casa para me aproveitar e servir ¢'elle, e faria Conta de Ihe buscar de comer como hei de buscar para es:outros filhos machos..."»'6, © maior ressentimento advinha, parece, da compara- ‘do que 0 rei teria feito a propésito do montante do dote explicitado: «Vossa alteza me rechagou tudo, despresando-o tanto que me ' Esta carta est transeritaintegralmente em Fernando Palha, O Casamento do Infante D. Duarte com D. Isabel, pp. 26-35. '€Femando Palha, O Casamento do Infante D. Duarte com D. Isabel, p. 27. 23 comparastes com Jodo da Guarda, ¢ com a filha de Ruy de Mello, com a filha de D. Francisco de Almeida, viiva de outro marido», acrescentando que «0s casamentos que agora sdo grandes sto de villios ou christios novos que por remir sua villania ou judearia quando ‘querem haver pessoas de differente estado que so tio baixos que se: ‘querem vender por dinheiro, estes taes os compram, ou de pessoas ‘que vem da India ricos de roubar vossa alteza, que assim como the usta pouco a ganhar, tem em pouca conta de o dar». Inventariava de seguida os dotes concedidos nos diversos casamentos de infantas no- século xv para comprovar a justeza do que oferecera a0 monarca. ‘Aduzia de seguida os méritos e a estima internacional que a sua Casa. detinha através de uma listagem de propostas de casamento que the haviam sido feites a ele, D. Jaime, quando negociava a sua primeira unio ~ as realizadas pelo imperador Maximiliano e pelo soberano inglés -, justificando a decisio a que se chegara pelo interesse de D. Manuel em atrair 0 duque de Medina Sidénia para a sua érbita motivado pela questiio de Gibraltar (we comtudo el-rei meu senhor L..-] por haver logo em breve 0 dinheiro de meu casamento e o duque ‘meu Sogro por servidor, que n’ella the podia muito servir concluiu 0 ‘meu casamento [...]»). A negociagio ndo ficou por aqui. Interrompeu-se com as delongas do soberano, reatando 0 duque outras oportunidades. Uma delas era, ‘com o conde de Benavente"”, outra com 0 conde de Oranha. Mas 0. necessério assentimento régio para esses acordos nio foi dado. Pro- telou-se, assim, a questo até depois da morte de D. Jaime. Com D. Teodésio I veio por fim, mas niio imediatamente, o acordo. E este ‘correspondia bem & medida das expectativas do rei ¢ ndo da Casa: largava-se 0 ducado de Guimaries e uma série de outras rendas. O casamento ocorreu em 1636, em Vila Vigosa; a contrapartida ime- diata que a Casa dele retirou foram as soberbas festas, realizadas com a pompa ¢ circunstdincia que se conhece"®, Em 1580, a proposta que encabecava as contrapartidas pedidas pela rentincia dos direitos sucessérios era a de casar a filha mais velha. Carta ducal datada de Evora, 1633, 0 Condestivel de Casela sobre 0 casa- ‘mento de D. Isabel com o conde de Benavente, BNM, Ms. 638, n. 50. fl. 123. M BNL, 6d. 1544, BNL, c6d. 484 e Anténio Cactano de Sousa, HGCRP. 24 da duquesa com o Principe herdeiro de Castela. Como dote nao se oferecia se ndo 0 direito de D. Catarina ao trono. Como bem enten- deram os conselheiros de Filipe Il, tal proposta traria grandes vanta- gens & Casa de Braganga, mas muitos inconvenientes & monarquia, uma vez que faria 0 duque de Barcelos cunhado do rei de Espanha, situago que desgostaria nao s6 os castelhanos, como também a pré- pria nobreza portuguesa uma vez que «a grandeza e vanidad de la casa de Berganga les es odiosissima y cregiendola por este camino se les haria intolerable»'®. Embora irrealizdvel, s6.0 equacionar dessa hipé- {ese revela com bastante clareza a intuito de criar junto da Coroa castelhana uma situagdo paralela Aquela que a Casa de Braganga Construfra com os reis portugueses. Ou seja, entretecer uma rede de parentesco com a familia real que a colocasse numa posigo de indis- Ccutivel preeminéncia face aos Grandes de Castela. Neste contexto, compreende-se que a oferta matrimonial que, anos mais tarde, a du- quesa D. Catarina recebeu de Filipe II ndo servisse os interesses da Casa. O risco de um dote que cercearia os proventos do ducado nao ‘compensava a honra da unio, tanto mais que qualquer possibilidade de descendéncia estava fora de causa. Os sucessivos e fracassados arranjos matrimoniais de D. Teodésio II a0 longo das duas ultimas décadas do século xvi foram, em grande parte, fruto do excesso de vantagens que a Casa procurara anterior- ‘mente. Surgira a hipétese de o casar com a filha do arquiduque Carlos (duque de Estiria ¢ Carnfola) em 1593, que se gorou pelo facto de Filipe 1 pensar casar 0 principe herdeiro nessa mesma casa e no querer que o rei de Espanha ficasse cunhado do Braganca®, Em 1598 levantou-se a possibilidade do cons6rcio com Maria de Médicis, her- deira do grio-duque da Toscania, que acabou por ndo se concretizar, Porque esta veio a casar com o rei de Franga?!. Eram, todas elas, aliangas possfveis para casas reais; excessivas para a casa de um vassalo da Coroa, Filipe III acabou por sugerir a unio com a filha do Condestavel de Castela, 0 3.° duque de Frias. Pese embora a flagrante "9 Carta do conde de Ponalegre in Queirds Velloso, O Interregno dos Governa- ores... p. 239. 2 Anténio Ceetano de Sousa, HGCRP, t. vi, pp. 194-198. 1 Anténio Coetano de Sousa, HGCRP, t. vi pp. 204-208, 25 discrepancia face 8s anteriores propostas, esta solugio foi levada avante, © duque de Braganca contava jé 32 anos ¢ era fundamental que tomasse estado € assegurasse a sucesso da Casa. As capitulegbes ‘matrimoniais tiveram lugar em 1602. ‘A atengao com que os monarcas castelhanos seguiram 0s poste- riores acertos de casamento dos membros da Casa de Braganga entronca-se no mesmo tipo de preocupagdes. Importava-Ihes que estruturassem e reforgassem os lagos com a nobreza castelhana ¢ ndo que criassem aliangas exteriores. Essa era a l6gica que os cronistas da Casa, nomeadamente Ant6nio Caetano de Sousa, emprestaram & po- Itica dos Austria para com a Casa de Braganca e que se havia j& consubstanciado nos acordos de casamento de D. Serafina com 0 Duque de Escalona e Marqués de Vilhena (1593) e de D. Duarte com ‘a sucessora do condado de Oropesa (1596), Independentemente das circunstincias especificas em que se rea- lizou cada um dos concertos matrimoniais ¢ dos eventuais interesses: que a Coroa neles teria projectado, 0 que importa efectivamente su- blinhar — € nao decorre linearmente da intervengdo concreta dos: ‘monarcas castelhanos apés 1580 — é a estratégia de distingdo e de distanciagao face a0 conjunto da nobreza que elas sempre reveleram. Deve-se ainda destacar que as sucessivas intercepgdes de trajectérias. com a familia real que a Coroa portuguesa admitiu no se repetiram fem qualquer outra casa senhorial portuguesa. Concessao de nobreza ‘Todos 0s cronistas da Casa foram undnimes em destacar a excep cional prerrogativa brigantina de poder conferir nobreza e da equiva- lencia existente entre 0s foros, as moradias € os cargos palatinos da. Casa de Braganga e os da Casa Real. Divergiram quanto as causas e 3 Aménio Caetano de Sousa, HGCRP, «6, pp. 3 € ss. 230 casamento do infante D. Fernando com a sucessora da Casa de Maralva, 10 inicio do século xv, teve, como se sabe, intuitos claros de anexagio dessa Cas. 20 patriménio régio. € nio a criagio de redes de alianga como ocorreu cam os Broganga, 26 quanto 20 momento da sua introdugio. Segundo Francisco Morais Sardinha, a concessio de tal privilégio seria quase coincidente com a formago da Casa Ducal, datando-a do tempo do 1.° duque, D. Afon- 30%, enquanto D. Tomas Caetano de Bem explicou a adopgio deste «estilo» como uma mercé que acompanhou a alianga matrimonial entre D. Joao I, 6.° duque de Braganga, e D. Catarina, membro da familia real"5, Outros hé que o situaram no tempo em que 0 4.° duque, D. Jaime, por ter sido jurado herdeiro do trono de Portugal, se apro- priara de um conjunto amplo de prerrogativas reais, Embora com espessura temporal diferenciada, os sentidos que os ‘motivos escolhidos apontam sao similares. Indiciam a apropriagao de ins{gnias régias, cuja concesséo s6 pode ser explicada por contextos de traject6rias tangentes entre a Casa e a realeza. Exploram e subl ‘ham, para mais, a imagem de grande proximidade com a dinastia reinante, construindo-the uma identidade magnificente, quase real. Era um jogo de semelhangas cuja realidade se aceitava. A Casa de Braganga retirava dele inequivocas vantagens; uma delas foi ter con- seguido impor critérios de consideragao social sobre o prestigio asso- ciado ao seu servigo aproximados do servigo na Casa Real. Um dos mais significativos efeitos desse fenémeno foi o reforco da capacidade de atrair clientelas € de consolidar honradamente esas mesmas de- pendéncias pessoais. Significa isto que as possibitidades de nobilitagao, de acrescentamento de foro nobilidrquico e, sobretudo, o relevo soci conferido aos servigos de &mbito doméstico the permitiram manter uma «familia» onde se inclufam membros de importantes linhagens fidalgas do Reino. Estas caracteristicas da composigo social dos seus cortestios conferiam, por seu turno, consisténcia a0 modelo de eti- > BNL, C6d. 107 ~ Francisco de Morais Sardinha, Antiguissimo Parnasso 1a- vanente achado, ¢ descuberto em Villa-Vigosa de que he Apollo o Excellentissino Princepe D. Theodosio 2.° deste nome... E assi dos varbes illusirs que nella rascerdo. « florecerdo em armas em letras e poesia, com outras mulias cousas a ‘propasito no discurco deste livro (1618), . 49. 3 BNL, Ms. 4. n° 1, fl 113%. 2CF. Francisco Manuel de Melo, D. Teodasio... pp. 119-120; Amtéaio de Oliveira Cadomega, Descricdo de Vila Vigosa, introd. de Heior Gomes Teixeira, Lisboa, IN/CM, 1982, p. 52, e Alvaro Ferreira de Vera, Origem da Nobreza Politica Blasées de armas. appelides, cargos. & ttulos nobres, Lisboa, Mathias Rodriguez, 163, 24. a7 ‘queta adoptado pela corte ducal, que como foi sublinhado pelos seus ‘eronistas seguia 0 «estilo» cerimonial dos Austrias®”. A atengao que os duques emprestaram & actualizagio dos signos de representagdo do poder explica, igualmente, a preocupagdo em criar uma capela privativa dotada de privilégios que pouco a diferen- ciavam da propria capela real (cf. cap. n). Se a decisio de D. Jaime de incorporar um espago para a celebragio do sagrado no interior do novo edificio palaciano nao apresenta singularidade particular, 0 es- forgo constante para ampliar os privilégios ¢ a dignidade cerimonial do culto®® deve ser compreendido como parte integrante do jogo de similitudes com a Casa Real. Hébitos ¢ comendas da Ordem de Cristo A possibilidade de apresentagdo de comendas da Ordem de Cristo constitufa um elemento fundamental na hierarquia de prestigio social da época. Evidenciava, desde logo, o poder para alargar e insti- tucionalizar 0s recursos distributveis e, como se verd®, constituiu um ‘outro t6pico demonstrativo da sua notével capacidade ce adaptagao. 40s novos contextos sociais e simbélicos de exercicio da liberalidade. Relembremos que a aquisigao deste direito sucede de perto a criagio. 77 «A Serenissima Casa de Bragansa, para em tudo ser singuler,¢ superior a todas, as que no logravlo as distingoens de Soberania, até a0 Ceremonial practicado- nna Sua Cone, ostentava a Sua elevada grandeza. Como Soberana na Sua origem, 0 Seo Tract em tudo poesia, ea Rea. [.}€ o Seo Pago, nio s}em tudo era sumptuoso, « magnifico: mas Servido a mesma sone, que a Res! Caza, Toms Cacao de Bem, BNL, Ms. 4, n° 1, A 103 eat Para que tl fosse possvel, os duques de Braganga tveram de crar mec de pes consans em Rom ~agones oa cs pone coma in teva ~ no sentido de aquirr as necesaras autrizagées canénicas.O esfreo foi bem sucedido, uma vez que a Casa Ducal foi socessivamente obiende brevese bus ‘apais que the asseguravam amplos peivilégios de cult e engrandecimento do ritual 4g, fialmen, cbterem paridade, em matéria de autonomia e digndade, com as. igrejas catedris eas colegiadas € isengdo do ordindro territorial. Vero estudo de José Augusto Alegria, Histria da Capelae dos Santos Res de Vila Vigosa, Lisboa, FundagSoCaleuste Gulbenkian, 1983, ¢adocamentago vansciaem Antinio Caetano e Sousa, Provas.n W. CE infra, cap. 1, porto 2. 28 ddas comendas novas por D. Manuel e antecede 0 seu controlo directo, s¢ eficazmente garantido depois da unidio dos mestrados das ordens &Coroa em 1551. Recorde-se ainda que a linhagem rival da Casa de Braganga (os Lencasire da futura Casa de Aveiro) superintendia, desde finais do século xv, as ordens de Santiago e de Avis através da acumulagio dos mestrados dessas duas milicias em D. Jorge de Lencastre, filho bastardo de D. Jodo II. A possibilidade de os Braganga também obterem algum controlo sobre os recursos das ordens ate- rnuava essa vantagem comparativa, 0 que nao deixava de ser fulcral ara a demarcagao do espago social pretendido para a sua Casa. facto de, em 1580, D. Catarina ter pedido a Filipe II os direitos de padroado e de apresentagio em vinte outras comendas das ordens de Avis e de Cristo, ¢ de ter, igualmente, pretendido isengio do con- trolo das qualidades de sangue dos candidatos por si apresentados na ‘Mesa da Consciéncia ¢ Ordens® demonstra bem a importincia que este recurso assumia na economia da liberalidade ducal. Embora desconhegamos casos concretos de indeferimento destas apresenta- es brigantinas, o que aparenta significar que, em termos priticos, 0 consentimento era quase técito, simbolicamente a questio revestia-se de grande importincia. Se 0 pedido fosse aceite ser-Ihes-ia reconhe- cido paridade com a propria Coroa em matéria de escolha dos futuros cavaleiros, o que Ihes facultaria um outro mecanismo de concorréncia directa com a monarquia ¢ de distanciamento das demais casas senho- riais. Diga-se, no entanto, que mesmo os privilégios de apresentacio j@ detidos nao tinham equivaléncia em qualquer outra casa senhorial ‘europeia, Formas de tratamento, precedéncias ¢ auséncia da corte régia Alguns dos tépicos anunciados neste titulo serdo objecto de andlise mais pormenorizada no decurso deste trabalho}!, Por isso, importa apenas desenvolver, agora, 0s dominios em que a Casa mobilizou 2 Queirés Velloso, O Imerregno dos Governadores... p. 260 31 CL, sobretudo, cap. 1, ponto 2 29 esforgo, atengdo ¢ influéncia para obter primazia na partilha € na apropriagdo dos signos de distinglo social. Referimo-nos concreta- ‘mente &s numerosas variantes das polémicas de precedéncias e de formas de tratamento que opuseram, intermitentemente, os duques de Braganga aos de Aveiro ¢ a D. Anténio, Prior do Crato, e os seus irmaos € parentes a outros tantos grandes senhores do reino. No que este tema fosse um exclusivo do topo da hierarquia nobilidrquica, Afligiu, de forma generalizada, todos aqueles que nham, ou sentiam que tinham, direitos e deveres de representagio. Defender precedéncias era preservar ~ ou conquistar — determinadas posiges na hierarquia social. Em dltima andlise, tratava-se da defesa da ©.cas0 de Francisco Caminha que em 1519 recebew a capitania da nau Santo AntGni> « por isso fa india (Registo da Casa da India, vol, p. 11). Outas situagdes podem igualmente ser detectadas erire os descendentes do conde de Faro que servi . Teodésio Il (cf. igualmente cap.) e ainda 0 caso de Nicolau da Veiga (outr comendador da Casa) que recebera por carta patente de 23 de Maryo de 1583 ircito a servi os offcios de feitor, aleaide-mor ¢ vedor das obras da fortaleza de ‘Mosambique na vagante dos providos antes de Janeiro desse ano de 1585. 0 que $6 se velo a verificar em 1644, IAN/TT, Chancelaria de D. Jodo IV.L. 11. fls.21ve 22. ‘© Era 0 caso dos Gama, dos Pereira e dos Castro, por exemplo. E também de alguns Sousa, principalmente os que perienciam a0 grupo linhagistico do governador Martim Afonso de Sousa (anterormente eriado da Casa de Braganga). uma ver que foram objecto do seu generos0 patrocinio, Cr. Sanjay Subramanyam. O Império Asidtico Portugués, 1500-1700. Uma Histéria Politica e Econdnica, Lisboa. Difel, 1995 (ed, original de 1993), 9p. 125-136, 39 cestratégias de reprodugio das redes clientelares brigantinas nem da ‘Casa de Braganga. Fica, porém, a chamada de atengio para esta co- nexdo que se deixa para esclarecer noutra oportunidad Relagées de poder e redes sociais Esta contextualizagio da Casa de Braganga sugere que 0 espago senhorial brigantino se constitufa no centro indiscutivel do exercicio € da afirmagio do poder da Casa. Mas, @ nosso ver, esse espaco, enquanto sistema de dominagdo politica, deve acima de tudo ser to- ‘mado como um lugar de organizagio de relagdes de poder. A estruturagao e reprodugdo dessas relagées implicava a existéncia de conjuntos de regras, de normas € de procedimentos que definiam ‘© enquadramento formal do exercicio do poder senhorial. Nao 0 es- gotam, porém. Este existia - e persistia — porque também ofereci solugdes e dava respostas concretas € funcionais a necessidades de individuos, de grupos, de redes sociais que se estruturavam em torno desse lugar institucional que era a Casa de Braganca. Ou seja, enfren- tamos um sistema de interdependéncias, de imbricagio de interesses cruzados. Esta I6gica de abordagem obriga necessariamente a deslocar 0 sujeito de andlise ~ a Casa de Braganga e 0 exercicio do poder - de uma perspectiva institucionalista tradicional para uma abordagem essencialmente relacional®, As implicagées sdo mltiplas, quer pela negativa ~ o que se excluiré da anélise ou de como se conformaré essa mesma andlise ~, quer pela positiva -, 0 que se considerara ser a uunidade central de investigagao € de anélise. Tim quase exaustivo invenéro dos tépcos « da bbliografahistoriogréfica, sobseiud® expanhola, sobre poder ¢ rees sociis pode encontrr-se em José Uiiacor Seunea, «Comunidad, Red Social y Elites. Un Andlss de ly Verebraci Social en £1 Amigue Réginen» in Elites, Poder y Red Social. Las Bles del Pas co y Navarra en la Edad Moderna, dir 3. M, imizcoz Beunza, Ed. Universidad Ge} Pas Vasco. 1996, pp. 1350. O tema 6, no entanto, devedor principal da literatura SSesoiica sobre «netrorkanalyssy, cf bibliografiacitada no capitulo, pont 8 Ef Jacques Revel. uL'astitution et le Socal» in Les Formes de IExpérience. Une Aue Histoire Sociale. Paris, Albin Michel, 1995, pp. 63- “$5, sabremdo as defnigies (op. 64-6). Assim, este trabalho marginalizaré o estudo exaustivo ou mesmo sistemético das diferentes modalidades de enquadramento formal do exercicio do poder senhorial brigantino. Concretizando um pouco diriamos que os diferentes dispositivos e instrumentos de coacgio de organizagio do poder serio analisados, por um ladu, enquanto limites ou balizas das acgdes socialmente aceitdveis dos individuos € dos grupos de individuos e no como objecto em si mesmos e, por outro lado, serdo tomados como produtores de praticas de comunica- -administrativa, geradoras, elas préprias, de formas espe- cfficas de inter-relagdo entre a casa ¢ os seus agentes e entre estes € ‘a populagao do senhorio. Quer isto dizer que - ¢ a mero titulo exemplificativo do tipo de exclusbes realizado ~ se eliminou qualquer tentativa de reconstituigo exaustiva, quer do aparelho judicial da Casa, quer das estruturas de Tecrutamento militar ou de exploragdo econémica do senhorio. Efec- tuaram-se sondagens no que eram as diferentes éreas de intervengao formal da Casa e nos respectivos aparethos de controlo senhorial com a intengo exclusiva de aprender as légicas e as modalidades de comunicagao. A prépria organizacdo do texto explorard, por isso, os diferentes niveis em que essa comunicagio se processava fosse no interior da corte de Vila Vigosa, fosse entre 0 centro do senhorio e as suas periferias, ou ainda entre os aparelhos administrativos régios e senhoriais. Este nfvel de andlise revela, assim, que as relagdes buro- créticas eram uma cobertura formal — com as suas fungSes proprias de fixagio de cédigos, regras e valores — para determinados processos de organizagio das relagdes sociais. Por isso, pretendeu-se conhecer os diversos modos de apropriagao social da vasta gama de recursos senhoriais brigantinos e as suas implicagdes nos sistemas reprodutivos dos diversos esccldes hierér- quicos das clientelas da Casa de Braganga. Foi, de resto, esse 0 projecto que orientou toda a investigagio realizada € esse 0 objectivo subjacente & organizagao dos dados empfricos. Utilizou-se, por isso, 0 método prosopogrifice’. A mera © Ct o texto clissico de Lawrence Stone, «Prosopography in The Past and the Present, Londres, 1981, pp. 45-73. A bibliografia sobre esta léenica ¢ metodologia 4e anélie é hoje muito extensa e abrange desde trabalhos que expleram as possi- bitidades de tratamento informético das bases de dados prosopogrificas (cl. por exemplo, Medieval Lives and the Historian, Studies in Medieval Prosopography. al acumulagao de informagao relativa as diversas traject6rias individuais, foi ultrapassada pelo esforgo de reconstituicao dos grupos de paren- telas e de apreensio das formas e da natureza das relagbes interpessoais. A recriagdo dos grupos de pertenga foi, assim, efectuada com base na prévia identificagao do tipo de lagos que existiam entre os diferentes individuos. Pretendia-se, pois, superar o nivel de andlise puramente {quantitativa € estatfstica dos atributos dos varios membros da rede de dependentes € aproximarmo-nos do tipo de conexdes estabelecidas entre 0s actores € entre os actores € os grupos em que se integravam. Este percurso analitico teve como consequéncia confrontarmo-nos. ‘com um universo extraordinariamente plural. Conjuntos de interesses €¢ de solidariedades traduzidos em escolhas, em opg6es civersificadas, dependentes em grande medida do lugar que cada um ocupava na sociedade ¢, mais restritivamente, na rede. Mas revelavam, igualmen- te, as intencionalidades, motivagdes e até as possibilidades de elabo- ago de célculos estratégicos face &s oportunidades dispontveis € aos contextos em que se inseriam. Sdo essas as razOes pelas quais € possfvel detectar regularidades de escolha com tendéncias diferencia- das entre os vérios grupos de status por nés construidos, mas também (© motivo pelo qual se encontra uma grande variedade de composi¢a0 das hipéteses € das opgdes na criagio das respectivas traject6rias, (individuais e familiares). Um outro produto desta abordagem foi a percepgdo clara da mul- tiplicidade de redes que coexistiam no interior da rede brigantina. Esses agregados de interesses colidiam pontualmente entre si € com as estratégias delineadas pela prépria Casa. No entanto, no detecta- ‘mos concertag3o € confrontos organizados de posigdes. O que se explica, antes de mais, pelo facto de a propria Casa de Braganga ter Neithard Bulst e Jean-Philipe Genet (eds.), Western Michigan University, Michigan, 1986), a estudos com problematicas concretas do dominio da histéria politica ov da historia social que assentam na construgio de trajectéras colectivas de certs tipos de actores sociais ou ainda os diferentes niveis de anticulagdo com a biografia, a genealogia ou a propria hist6ria da famfia (cf, por todos, Giovanni Levi, «Les Usages de la Biographie», Analles ESC, 1989, n.° 6, pp. 1325-1336). Este sunto Dibliografico muito generalizado nas diversas historiografias produzis, recentemente, balangos que s3o também reflexdes crftcas e propostas de reperspectivagSo sobre at ‘uilizagdes deste méiodo para a histéria social (cf. as observagses e bibliografia, apresentada por J. Revel, «L'Institution et le Social.»). a capacidade para gerir e negociar quase permanentemente a distribui- 80 dos seus recursos. Quando tal ndo ocorria a contento das partes surgiam rupturas que resultavam no afastamento, momenténeo ou definitivo, da Casa. O que efectivamente aconteceu, particularmente, 20 nivel do topo da hierarquia da criadagem brigantina. A par com uma notével estabitidade de alguns grupos linhagisticos, detectam-se algumas conjunturas de renovagées, sobretudo apés Alcécer Quibir e com 0 duque D. Jodo Il (1630-1640). Noutros casos as redes interceptavam se, emergindo individuos, ‘grupos de individuos ou de parentelas que actuavam como «pontes» de comunicagio® entre esses diversos grupos; entre 0s individuos ou 05 grupos e as estruturas administrativas da Casa de Braganga; entre 05 individuos e o duque. Eram mediadores de relagdes que permitiam ultrapassar — ou (80-86 criar fluxos de comunicago que encurtavam as distincias geogréficas € sociais. Este conjunto de constatagGes levou-nos a equacionar a questo da ‘operacionalidade do estabelecimento de fronteiras entre os dominios formais e informais de exercicio do poder na época moderna. Do onto de vista da andlise, 0s dados disponiveis oferecem algumas Rita Costa Gomes, A Core dos Reis Portugueses..« pp. 11-37 * 0 wabalho de Rita Costa Gomes preocupa-se essencialmente com a ligardo- centre cone ¢ realeza, numa linha de anslise inspirada sobretudo nas correntes anvo- poligicas onde a prépria autora destaca os contribuios de Arthur Hocar, Luc de Heusch ¢ Clifford Geertz, Cf. A Corte dos Reis Portugueses... ntroduo. * Owo Brunner, Terra e Potere. Sruture Pre-staduali e Pre-modeme nella Storia Costitucionalidell’Austria Medievali, Giuffré Editore, 1983; Cesare Mozzarelli (ed), «Familia» del Principe e Famiglia Arisocratica, 2 vols. Roma, Bulzoni, 1988; ‘A.M. Hespanha, «Para uma Teoria da HistériaInstitucional do Antigo Regime» in Poder e Instwwigbes na Europa de Amigo Regime. Colectinea de Tettos, ed. A. M. Hespanha, Lisboa, Fundagio Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 9-89, e mais aprofundado fem La Conte» in La Gracia de! Derecho. Economia de la Cultura en la Edad ‘Moderna, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pp. 177-202 e Daniela Frigo, «"Disciplina Rei Familiarize”: a Economia como Modelo Adminisirativo de ‘Ancien Régime» in Penélope. Fazer e Desfacer a Histria, n° 6, 1991, pp. 47-42. © A.M, Hespanh, em «La Conte» in La Gracia del Derecho... p- 183. a7 J.J. Anélise seméntica dos titulos dos moradores da casa 1.1.1, © «séquito» ¢ @ economia do servigo feudal. Cavaleiros, esevdeiros fidalgos Na andlise dos processos de constituigdo da corte, parece-nos que Rita Costa Gomes dedicou menos atengao, do que a que eventualmen- te seria necesséria, as ligagSes entre o servigo militar, a ordem da cavalaria e 0 servigo na corte e, portanto, a singularidade dessas re- lagOes interpessoais que se estabeleciam entre 0 rei, ov 0 senhor, € 0s ‘membros dos seus exércitos. Essa genealogia pode ser tragada a partir dos vestigios objectivos que constituem as designagdes dos graus de nobreza das categorias nobilidrquicas dos moradores da Casa Real (e das casas senhoriais): cavaleiro, escudeiro ¢ fidalgo. ‘A hist6ria dos nomes destes foros que designam parte dos mora- dores da Casa Real revela, desde logo, légicas de formagio e proces- sos de construgdo da identidade do grupo nobilidrquico. «Defensores» ou «bellatores> designavam os que combatiam, tendo como misao essencial a defesa do Reino ¢ das gentes. Constitufam uma das trés ‘ordens do imaginério trifuncional da organizagao da sociedade esta- belecido, segundo explicou G. Duby incorporando os estudos pionei- ros de G. Dumézil, desde 0 século 1x, € vulgarizado a partir do século xii em Franga; na opiniao de J. Mattoso, teria tido uma difusdo mais, tardia em Portugal, acompanhando um processo de reordenacao social promovido pela monarquia, s6 possivel apés 0 apaziguamento dos confrontos armados da Reconquista’. A imposigao deste modelo trinitério — que obrigava a uma clara separagao das fungSes sociais ~ implicou a fixagio de privilégios, atributos e cédigos de conduta especificos para as diferentes ordens. A cavalaria ¢ a prética do ideario cavaleiresco teriam constituido, segundo muitos medievistas, um dos mais importantes sinais distintivos de pertenca ao grupo nobre. Cavaleiro e escudeiro eram indubitavelmente formas de classifica- ‘slo estabelecidas 20 interior do grupo dos «defensores». Representa- vam, também, formas de identificagdo que tinham subjacentes moda- lidades distintas de participagdo militar que, em Portugal, remontavam pelo menos ao periodo da Reconquista. A diferenciag’o nos papéis 7 José Mattoso, entificagdo de um Pats. Ensaio sobre as origens de Portugal 1096-1325, vol, Opesicdo, 2-* ed. Lisboa, Editorial Estampa, 1985, pp. 126-127. 4 guerreiros correspondiam exigéncias de atributos ¢ qualidades tanto de natureza moral como social € econémica, que contribufam para ‘outorgar maior ou menor honra e dignidade aos tftulos, demarcando ‘assim espagos sociais diversificados. Estes sentidos foram sistemati- zados e fixados em diferentes momentos. Um dos textos mais impor- tantes, pela permanéncia ¢ influéncia em toda a legislacio e costumes ibéricos subsequentes, foi, com certeza, as Sete Partidast. A genealogia do conceito de cavaleiro af imprimida remonta & Antiguidade Classica, quando as unidades de defesa armada se ape- lidavam cavalatia e 0 cavaleiro era escolhido de entre mil homens (0 que originaria 0 termo latino «militia»), ou seja o melhor de entre mil. Melhor, pela conjugagio de atributos essencialmente fisicos «omes duros ¢ fuertes, ¢ escogidos, para softir trabajo e mal: trabajando, e lazrando, por pro de todos comunalmente>. Distinguia-se, depois, esta assergio do uso particular que dela se fazia em Espanha: embora Tetomasse a exigéncia de qualidades fisicas excepcionais, integrava ja caracteristicas de natureza moral, expressas pelo conceito difuso de honra?, que seria espelhada pela dignidade da montada «bien assi, como los que anda a cauallo, van mas horradamente que en outra * Cf, estudo introdutério de José de Azevedo Ferreira & edie da primeira Panta. Alphonse X Primeyra Partida. Edition et Enude. Braga, INIC, 1980, maxim Exemplos concretos dos podem, entre ‘utros ser apresentados, para oséculo xv, na apropriagto que as Ondenacdes Afonsinas {fazem deste corpo doutrinal; mais difusamente, na cépia avulsa de partes dessa obra, em particular da Segunda Partida, consiantes de um texto que Anténio Caetano de Sousa ape is mBres da Casa Real, ¢ Reyno, do tempo del Rey D. Afonso V...» e que foi wasladado, em 1646, de um livro enca ‘demnado assinado na primeira e shtima folhas por Pedro de Mari, escrivio ds Torre ‘do Tombo, a pedido de D. Gregério de Castelo Branco, conde de Vila Nova de PPortimto e guarda-mor de D. Joto TV (Provas... tml Pt, pp. 382-502); ov ainda tos textos de Alvaro Ferreira de Vera, Origem da Nobresa Politica, Blasoes de ‘armas, appellides, cargos, & ritulas nobres. Lisboa, Mathias Rodriguez, 1631 e de Joto Pinto Ribeiro, «Sobre os Titulos da Nobreza de Portugal, & seus Privilegios» in Obras Varias... Coimbra, 1730. Ou seja, tratou-se de um processo de incorpo- ‘aglo de conceitos ¢ valores associados a cargos e ttulos militares e domésticos medievais que contaminaram as préticas organizativas da Casa Real até 8 segunda metade do século xv. Cf. ainda o estudo de Anténio M. Hespanha, «A Nobreza nos ‘Tratados Juridicos dos Séculos xvi a xvun», Penélope. Fazer e Desfacer a Historia, ‘a? 12, 1993, maximne, pp. 28-31. ° Cf. a temtativa de dilucidar os contetidos, emergéncia e formas de dfwsto desie conceito em José Matioso, Idemificagdo de um Pats... pp. 130-132. 49 bestia. Otrosi los que son escogidos para caualleros, son mas honrrados, que todos los otros defensores»!® Explicava 0 autor, na lei seguinte, as razdes subjacentes & mudanca operada no primitivo critério de selecgo: 0s antigos haviam procu- rado quem tivesse capacidade de suportar grandes sofrimentos, esti- vesse habituado a ferir € a matar e fosse cruel. Este tipo de requisitos ‘compaginava-se com muitos dos que exerciam actividades mecinicas (ferreiros, pedreircs, carniceiros, etc.) e dispunham de destreza e forga bruta, mas revelavam-se insuficientes em combate. Faltavam-hes quatro qualidades morais principais (cordura, fortaleza, mesura e justica) susceptiveis de garantir sentido de responsabilidade e gerar confianca, ‘© que s6 se admitia ser posstvel para quem tivesse enrafzado 0 sen- timento de «verguega». Sentimento esse que deveria ser «natural», 0 {que s6 ocorria a quem pertencesse a boas linhagens e tivesse, portanto, algo a perder com: a pritica de actos ignominiosos, como seja fugir ‘no campo de batalha. Estes homens poderiam ser encontrados em «cbuenos logares, e con algo, que quiere tito dezir en leguaje de Espafia como bien: por esso los Ilamaram fijos dalgo, que muestra tanto como fijos de bien»''. Estava, assim, encontrado o conceito de fidalguia que, doravante, tenderia a delimitar 0 universo de recrutamento dos cavaleiros. As qualidades interiores exigidas ao perfeito cavaleiro ultrapassa- vam, porém, essas virtudes essenciais. Devia ainda ser entendido, sabedor, de bons costumes, ardiloso habilidoso (expressos nas Par- tidas pelos epitetas «arteloso» e «mafioso»), além de leal!?. Preten- dia-se que estes atributos constituissem o modelo de comportamento global de um grupo determinado (nobreza) ¢, como tal, excediam largamente 0s preceitos a respeitar no teatro de guerra"? . Deviam, por isso mesmo, ter correspondéncia em signos exteriores visiveis que "® Segunda Partida, Tit. xxi, Ley . A maior parte das consideragdes tecidas sobre os cavaleiros ¢ acavalaria€ retomada, muitas vezes integralmente, no jScitado texto transerito por Anténio Caetano de Sousa, Provas... it Pl pB- 422-430. "Segunda Partda, Tit. xx, Ley v. "Segunda Paria, Tit. xx, Leys v- "A literatura historiogréfica sobre este tems é, de resto, abundantee dissuasora de maioresincursbes reste t6pico. Para a compreensio dos fundamentos ideokégicos do idedrio da cavalaia cf. Jean Flori, L'déologie du Glaive. Préhisioire de la ‘Chevalerie, Genebra, Droz, 1983 € a obra de G. Duby. 50 | | | permitissem o seu reconhecimento e diferenciago imediatos. O mesmo € dizer que tinham de se apresentar de forma limpa, trajando vestes € armas condignas, residindo aqui um dos sentidos do ritual de investidura na cavalaria que era exigido ao escudeiro (0 banho, 0 uso dos melhores trajes e a vigilia representavam ritos de limpeza tanto do corpo como da alma)! © grau de escudeiro de boa linhagem era, assim, tomado como a via de iniciagdo na ordem da cavalaria. Como o préprio nome revela, era ele quem transportava 0 escudo do cavaleiro ¢ 0 auxiliava em combate. A histéria do termo, & semelhanga com 0 que ocorreu com a de cavaleiro, nem sempre implicou a pertenga a grupos nobres. Quando os cavaleiros-vilios ainda eram instrumentos indispenséveis na luta contra 0s infiéis, o cargo de escudeiro também era socialmente menos selective, © processo de delimitagao do acesso a cavalaria!S foi acompanhado pelo relativo fecho desta categoria, passando a iden- tificar os jovens de linhagem em fase de instrugdo e aprendizagem das actividades militares, sob a dependéncia de um senhor, ow mesmo do reilé, Destaquem-se agora apenas dois t6picos: um que visa acentuar a importincia deste discurso ideolégico na corstrugdo da identidade de lum grupo social, o que significa excluir logo a partida, a cavalaria- -vild. Se os meios ¢ instrumentos utilizados em combate eram seme- thantes aos dos cavaleiros, faltavam-Ihes os valores morais que, nestes ‘ilimos, eram garantidos pelo reconhecimento da bondade do seu lugar de origem (em que 0 biolbgico se confundia com o espaco fisico). Os ritos e ceriménias de investidura na ordem da cavalaria assinalavam a entrada no grupo nobiliérquico, revelando-se um pode- +050 elemento de diferenciagao social ao contribuir para cimentar um modelo ideolégico especifico. E, como vimos, 0 contexto politico “militar ibérico tornava esta distingdo particularmente relevante. 4 Segunda Partida, Tit. xxi, Ley. xm '5 Cf em José Mattoso a cronologia e processos de diferenciagio entre a cava laria-ilé € a ordem da nobreza, Ricos-Homens, Infangdes e Cavaleiros. A Nobreza ‘Medieval Portuguesa nos Séeuios XI e Xi. 2* ed., Lisboa, Guimaries Edivores, 1985, pp. 173 ¢ ss. ' Cl. José Matoso, Idemificasdo de um Pats... pp. 136-138 ¢ 229-232 e Gastio ‘de Mello de Mattos, «Escudeiro» in Diciondrio de Histéria de Portugal, 2" ed., Ponto, Iniciaivas Edioriais, 1975, vol.n, pp. 430-431, st © segundo ponto refere-se a0 cédigo de valores do idedrio cavaleiresco. O atributo que mais directamente se prende com a dig- nidade social do cavaleiro € a lealdade. As razbes que nas Sete Par- tidas se apontam para explicar a relevancia desta qualidade sio trés. ‘A primeira articula-se direetamente com 0 entendimento: 26 quem tinha essa capacidade podia ter discernimento suficiente para bem defender e guardar e, portanto, evitar erros no que respeita & escolha dos objectos da sua acco. Assim, resguardar-se-iam do erro maior que seria incorrer em deslealdade «amar a los que ouiessem a querer mal. E desamar a los que ouiessem de querer bien". As duas seguin- tes so associadas & preservacio das qualidades de origem «guardar horra de su linaje» e «nd fazer ellos cosa porque cay en verguenga cen lo que caerid, mas que por otra cosa, si leales 10 fuesse>!®, Este conjunto de qualidades tornava-os particularmente aptos para servirem um senhor, fosse ele o rei ou qualquer outro grande aristo- crata. Servigo incondicional que implicava lealdade ¢ obediéncia ‘que poderia conduzir & prépria morte na salvaguarda da vida do sew senhor ou na preservagio e acrescentamento da sua honra e bens. (O mesmo cesvelo era exigido «a guardar todas cosas, que derechamente les era dadas en encomienda, defendiendo las assi como suyo»!®. Em troca receberiam honra que se expressava num amplo leque de privi- légios juridicos e simb6licos e em bens materiais. Nos séculos xvi e xvit estes vocdbulos perderam forga seméntica até parte do relevo social anterior. A difusdo social dessas distingdes € a distorsdo dos valores tradicionais de acesso & cavalaria foram talvez 0s principais motivos. Ant6nio Rodrigues, rei de armas de D. Manuel, denunciou esse desvirtuamento, responsabilizando os prin- cipes nesse processo: «E deixo ao juizo de todos 0 pequeno carreguo- que 0s principes della tem Eassy fazem mudados pella mayor parte aquelles prepositos com os quaes a caualaria foy comegada emtonces. se buscauiaem 0 cavalleiro virtude aguora he buscada a caualaria pera nom .s. Entonces afim de omrra aguora pera Roubar seu nome, ‘entomees pera defemder a Repubrica aguora soo pera néo a Rayalla, entomces 0s vertuosos buscauio aguora os muy vis a buscam por aproueytar se de soo seu nome ja os costumes da cauallaria em Roubo Segunda Partida, Tit. x0, Ley v Segunda Partida, Th. xxt, Ley 0. 9 Segundo Partida, Tit. xxi, Ley xx. 52 E em tirania so tomados E ja ndo curamos quamto virtuoso he © caualleiro mas quamto avoméoso seia de Riquezas»?, ‘A componente ritual (j4 simplificada), assim como a ideologia de servigo guerreiro, foram gradualmente assimiladas, € monopolizadas, pelas ordens religioso-militares que se transformaram nos virtuais depositérios directos dos cédigos de comportamento da cavalaria medieval. De qualquer modo, as designagées de cavaleiro (quer fos- sem das ordens militares ou dos foros da Casa Real, dos infantes ou da de Braganga) ¢ de escudeiro continuaram sempre a evocar digni- dade de nobreza. E como a identidade do grupo nobilidrquico fora em larga medida construfda sobre 0 idedrio cavaleiresco medieval, a maior parte dos valores, deveres € privilégios do bom cavaleiro jé estavam incorporados ¢ assimilados constituindo-se em componente essencial do patriménio cultural da ordem da nobreza. E, no fundo, a melhor prova da sua completa interiorizagao reside nas criticas realizadas a0 que se considerava ser a abertura descriteriada do grupo. Aquele feixe de atributos e qualidades, embora importante en- quanto referente na modelizagio das relagies no interior do grupo, ‘io pode, todavia, ser entendido como factor explicativo tinico dos comportamentos ¢ das relagdes de dependéncia entre os nobres ou entre os nobres ¢ a Coroa; criava expectativas comportamentais nos diferentes niveis hierdrquicos e regulava de alguma forma a interacg0 entre essas categoria, mas as priticas demonstravam que o sistema social era jé substancialmente mais flexivel. O termo fidalgo abre um outro conjunto de significados que, como 44 vimos, ¢ parcialmente complementar com os anteriores. A diversi- dade de origens etimolégicas, ¢ logo de sentidos, que Sebastién de Covarrubias rastreou”', revela, além da complexidade semantica dessa designagio, as dividas que no século xvi! existiam quanto & legitimi dade do seu uso. O texto das Partidas € a este propésito p: ‘mente importante dado que sobre ele glosaram e se apoiaram diree- tamente muitos dos que pretendiam, j nos séculos xvi e xvn discutir = ou tdo-s6 esclarecer ~ as tipologias classificativas da ordem nobi ligrquica. > Anténio Rodrigues, Tratado Geral de Nobreza, apresentado por Afonso Domelas, Porto, Biblioteca Publica Municipal, 1931, p. 58. ™ Sebastién de Covarrubias, shidalgo», Tesoro de la Lengua Castethana o Espafiola, Barcelona, Ed. Alta Full, 1993, pp. 590-591. 53 A j4 citada definigao de fidalguia feita nas Sete Partidas e retoma- da na integra, no século xvi, por Jodo Pinto Ribeiro no discurso «Sobre os titulos da nobreza de Portugal...»”2, pode acrescentar-se que «fidalguia [...] es nobleza que viene a los omes por linaje». Passos antes, porém, o autor medievo sugerira outros dois processos de aqui- sigdo de nobreza (gentileza) ~ saber € bondade de costumes mat ras®* — abrindo assim caminho para fundamentar futuras discussdes ‘em tomo da legitimidade das vias de abertura do grupo nobilidrquico a outras categoriais sociais?®. Nao deixa porém de ser elucidativo que uma das propostas etimolégicas avangada por Covarrubias remeta directamente para 0 conceito de fidelidade, incorporando os atributos e valores do cava- leiro expressos nas Partidas: «El fidalgo se dixo derechamente a fide, y el algo terminacién deste nombre non es nada, segin la opinién de muchos. De ninguna cosa se aprecia tanto el hombre de bien y noble, ‘como de guadar fee y palabra y ser fiel a quien deve»**, A linhagem era, no entanto, sublinhada como a forma preferencial de demonstrat fidalguia, pelo que era imprescindivel, a quem se rei- vindicava como tal, saber identificar, no mfnimo, trés geragbes ante- riores (pai, avo ¢ bisavé). A fim de prevenir abusos na apropriaglo indevida desse estatuto social, impunha-se um arco cronol6gico de acordo com o que se entendia serem os limites da meméria oral, visto que de «aquel tiempo adelate, no se pueden acordar los omes». Con- siderava-se que o sangue garantia a transmissio das qualidades dos antepassados, o que, embora reduzindo as probabilidades, néo retirava a possibilidade da perda da dignidade fidalga. A responsabilidade, também a obrigagio, de manter 0 nivel das qualidades herdadas era ® Joo Pinto Ribeiro, «Sobre os Titulos da Nobreza...n, p. 122. 2 Segunda Partida, Ti. xxi, Ley © Segunda Paria, Ti. xxi, Ley. CE. a5 reflexBes elaboradas por A. M. Hespanha, a parr deste mesmo texto, sobre a importincia do critéio linhagisico tna definigio de nobreza («A Nobreza nos Tratados Juridicos...», p. 29), € sobre a iscusséo e a diversa apropriagto que os autores Fazem das autoridades sobre as P. 32-34). 3 Cf. aestepropésito as mulagbes detectadas no conceito tradicional de nobreza. a resenha da polémica que esse fenémeno gerou a partir da segunda metade do- ‘em Nuno G. Monteiro, © Crepisculo dos Grandes... pp. 21-26. algo», Tesoro de la Lengua Castelhana.... p. 590. 4 | | sempre atribuida a cada fidalgo através da ideia expressa de os erros € de os maus comportamentos se repercutirem nao 6 sobre o proprio € respectiva descendéncia, como também sobre todos os seus antepas- sados. Assim, «E porende dee mucho guardar los que hi derecho en ella que nd Ia dafien, ni la menguen. Ca pues que el linaje faze que Ja ayan los omes assi como herencia, non deue querer el fidalgo que el aya de ser de tan mala ventura. que lo que en otros se comengo heredaron, mengue, 0 se acabe enel»””, ‘A importancia do conhecimento das origens traduzia-se quer no uso de determinados apelidos e armas identificadores do grupo fami- liar quer na designaczo de fidalgos de solar por que passaram a ser diferenciados os «verdadeiros» fidalgos. E que qualquer destes dois sinais de identificagao — no duplo sentido biolbgico e espacial ~ re- metia para um mesmo referente: a localidade, se no de nascimento, pelo menos de residéncia e de exercicio de direitos politicos e eco- ‘némicos, que nos tempos mais recuados eram normalmente associa- dos a direitos de jurisdigso completos. alargamento do espago de atraccdo social e de intervengao po- Iitica da Casa Real que se verificou nos finais da Idade Média con- duziu & necessidade de conhecer aqueles que nela participavam e as formas ¢ as modalidades em que o faziam. As possibilidades de iden- tificago no eram muitas: circunscreviam-se ou 20 estatuto social de cada um ou as fungdes ou cargos desempenhados. E assim que os foros nobilidrquicos constam como designagées maioritérias nas listas de matriculas dos moradores da Casa Real. Hum razoavel consenso historiogréfico em torno da ideia da institucionalizago destes registos ter ocorrido com D. Afonso V, o que nio significa, naturalmente, que © conceito de morador tenha sido criado nessa altura’®, Os diversos autores que reflectiram sobre 0(s) conceito(s) de nobreza acordaram também na ideia de os foros inscritos nos ditos livros régios de matricula ‘do terem uma correspondéncia evidente com a fidalguia de linhagem ‘ou de solar conhecido. Nos casos em que tal ndo se verificava, esse registo representava a concessio do estatuto de nobreza ou o reconhe- wento de fidalguia por parte da monarquia, ou de quem, por ela, "3 Segunda Pantda, Tix, Ley % Rita Costa Gomes. A Corte dos Reis de Pormugal...p. 182 e notas fnsis. 55

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