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| BARTOLOME DE LAS CASAS [BASIMULACAO DOS VENC!D05 ‘sobre fragmento do manuscrite pintado asteca con! As ilustragies dos capitulos I ¢ IV foram retiradas y buen gobierno, de Filipe Guaman Poma de Preparapiio de texto: Katia de Almeida Rossini ¢ Numinuras Revisio: EDITORA DA UNICAMP (Caixa Postal 6074 (Cidade Universitéria - Baro Geraldo 92939-3157 EDITORA ILUMINURAS LTDA. Rua Oscar Freire, 1233 1426-001 - Sio Paulo - SP iNDICE AGRADECIMENTOS ...... . i INTRODUGAO.... CAPITULO I O processo institucional da conquist trauma da conquista .... e CAPITULO II Esbogo biogréfico .. ||Agao e reagao: on ‘A destruicao das Indias .... ‘A sociedade imaginada .... CAPITULO UL O PENSAMENTO DE LAS CASAS Os antecedentes ios so os donos da Améri Persuadir e no forgar O grande debate CAP{TULO IV AA imagem lascasiana do indio IAs ‘A “melagio" da nova sociedade BIBLIOGRAFIA ... INTRODUGAO Este ensaio € basicamente um estudo acerca do pensamento ¢ agio de frei Bartolomé de Las Casas. Poucas vezes na hist6ria da humanidade, um homem que nunca esteve no cume do poder péde exercer uma influéncia téo dramatica ¢ decisiva no fmago de um dos maiores impérios da Epoca. De fato, todos os processos e eventos da hist6ria da conquista americana, desde a legitimidade do poder de Castela na América até 0 cotidiano das relacdes entre espanhdis € indios, passando pelos problemas da evangelizagao, guerra, escravidao, direito das nagGes, etc., estiveram estreitamente ligados ao pensamento e 4 acdo do dominicano. Nosso interesse por Las Casas centrou-se especialmente na teoria politica que elaborou para a América, sistematizada em seus Glumos tratados. Os conceitos de soberania popular, consenso politico-socs pluralidade de poderes politicos, pacto politico constitufram as bases de sua visio sobre o continente, adiantando-se varios séculos is teorias modernas sobre as telagdes entre o Estado e a sociedade av. ~ Partindo do princfpio de que todos os individuos sao livres por direito natural, a sociedade politica nasceu quando esses individuos, por livre e espontanea vontade, decidiram eleger seus principes, conscientes de que a ordem social era necessdria como conseqiiéncia da divisio geral do trabalho. A eleigdo do principe supde um pacto politico entre governantes e governados, segundo © qual © povo delega a soberania ao rei para que este administre a lei e aordem como presidente ou gerente da coisa publica. O poder do rei sé O equilibrio entre governantes e governados esta fixado pela lei, que, por sua vez, visa o bem da comunidade. Sobre esses princfpios, Las Casas propde uma federagdo entre os 3 \\* Principes americanos e o rei da Espanha, sustentada no consenso dos indios. Mas dentro da federagao, os indios continuariam exercendo sua soberania, liberdade e propriedades. A idéia de escrever o presente ensaio nasceu h4 quando meus alunos do curso de "Hist6ria da América" tiveram a oportunidade de ter em mios a tradugdo portuguesa da Brevissima relacGo da destruigao das Indias. A discussio que esse livro suscitou entre os estudantes originou um primeiro motivo que me estimulou a Tever outros escritos mais importantes do frade, perseguindo uma idéia que tinha sido levantada no decorrer desses debates. Mais que uma idéia, era uma imagem marcante ao longo de toda a Brevissima, a imagem acerca dos indios que chocava qualquer concepedo de individuo ativo e participante numa histéria dramética. Neste sentido, esses estudantes me forneceram uma pista que, sendo modesta em sua aparéncia, permitia por do avesso o Angulo de visio de uma das questdes mais discutidas pela historiografia em torno de Las Casas e da conquista da América. Isto é, a imagem que 0 dominicano tinha transmitido ao mundo sobre o comportamento cruel dos conquistadores. A imagem dos indios era, como se observara na leitura deste ensaio, uma questao muito mais transcendente e crucial, que definia os destinos de uma hist6ria, mesmo que seu autor nao tivesse percebido todo o alcance de sua criagao e os efeitos negativos de sua criatura. Por essa razdo, sou muito grato aqueles estudantes. A imagem acerca dos fndios — sempre pusiliinimes, medrosos e Passivos — colocou uma outra questo, que se desprendia dessa imagem: seria possivel um comportamento to passivo, to destituido de cardter, tao servil, por parte dos amerindios perante a invasio de seus territ6rios? Aresisténcia militar dos indigenas tinha sido curtae o proprio Las Casas a tinha desqualificado em seus escritos, considerando-a um amontoado de guerrinhas sem nenhuma orca. Entretanto, o dominicano manifestou uma profunda admiragao pelos povos americanos e tentou justificara passividade, o medo e até @ covardia deles. Mas nessa tarefa dificil, Las Casas insinuou uma outra idéia que equilibrava ou mesmo desbotava a imagem de indios covardes: a simulagdo, Derrotados militarmente e violentados pela Pritica dos invasores, os {ndios simularam obediéncia, passividade, servi ara salvar a pele e, especialmente, sua cultura. Em outras palavras, a imagem acerca dos indios contém duas vertentes aparentemente contradit6rias, mas que se juntam numa concepgiio surpreendente do proceso hist6rico da conquista. Por um lado, 0s indios aparecem derrotados e conquistados com relativa facilidade, e sua passividade Ihes tira a condi¢ao de sujeitos ativos centrais do processo, ficando assim fundada a idéia de que o processo social do continente, j4 desde o inicio de sua modernidade, foi feito pelas minorias. No entanto, a idéia da simulagdo nos apresenta uma maioria que age por vias diferentes das comuns, que resiste silencio- samente & dominagio e acaba distorcendo o processo como um todo. A nogao de simulagio € usada por nés como uma forma de representacio, tanto do ponto de vista semiolégico, como do angulo da teatralidade. A simulagao inscreve-se numa cadeia seméntica que se iniciacom a representagao, isto €, o signo ocupa o lugar do real, e termina com ‘a simulagdo em que o signo representa, em tltima instancia, uma auséncia. Entao, falar de simulagio é falar também com o outro, significar a diferenca, estabelecer a distancia entre as imagens, as aparéncias, os signos os referentes. / As praticas sociais dos ind{genas dissimulavam uma presenga na memGriadeles, enquanto paraos espanhéis representavam definitiva- | mente uma auséncia. Quer dizer, as tradigdes, costumes e crengas indfgenas eram encobertas, estavam ausentes da perspectiva visual | dos conquistadores. Porém, estavam presentes na consciéncia ¢ no sentir dos amerindios. Nossareflexdo sobre a simulagdo deve muito aostrabalhos de Jean Baudrillard, especialmente Simulacres et Simulation e Liéchange symbolique et la mort. Elias Canetti, em seu livro Massa poder, considerouasimulagio ‘como um processo inscrito entre a imitagao e a metamorfose. Cons- titui uma separagio entre a intengdo € a expresso. E 0 jogo das aparéncias que tem uma fungo: manter alguma coisa oculta. Canetti observa que a simulago se materializa na mascara, que funciona de forma diferente deacordo comarelagdo que elamediatiza: ator e observador; ator e personagem. No caso concreto dos indigenas americanos, o trauma da conquis- tas obrigou a vestira mascara (pritica de simulagdo) para esconder do conquistador aquilo pelo qual estavam sendo perseguidos (costu- tie aya mes, idolatria). O temorera serem desmascarados, temor que manteve vivo © trauma no nivel do inconsciente. De fato, havia observadores Perspicazes, que suspeitavam das aparéncias e das intenc&es dos indigenas. Todavia, o indio foi foreado também a viver a segunda relaczo, que € uma duplicidade dilacerante: ser ator e personagem. Como Personagem, era aquele individuo que nao deveria aparecer, pois isso poderia significar a morte ou, no minimo, a tortura inquisitorial Como ator, era a mascara que ele manipulava, muitas vezes sem consciéncia clara de por que o fazia, e essa mascara estava decorada com signos hispanicos: linguagem, rituais cristios, vestimenta, Essa duplicidade—vivera aparénciadas mascaras, que neste caso significava viver a hist6ria do outro, do conquistador, e, ao mesmo tempo, viver a prépria hist6ria milenar por intermédio da memria, da Pratica encoberta, da crenga travestida — foi o proceso que travou a dindmica da aculturagio. Dessa duplicidade, que de fato se configura num sistema de relagdes de dois pares: ator-observador e ator-personagem, processo epetido ¢ alimentado pelas novas conquistas, pelos fracassos desequilibrios sociais, arranca minha visio do homem latino-amer cano herdeiro dum desenvolvimento etno-histérico iniciado no sécu- lo XVL A idéia da simulagio dos vencidos tem sido usada por nés como uma hip6tese para reinterpretar os discursos da conquista, sejam eles de origem hispanica, sejam de origem indfgena, Desta maneira, podemos recuperar, como formas hist6ricas da resisténcia indfgena invasio, fendmenos sociais como a embriaguez, a indolénci mentira, etc. © que mais chama a atengio em todo esse proceso da conquista americana € a atitude dos indfgenas em relagio ao cristianismo. Documentos diversos atestam que os indios simulavam ser cristios Por meio dos significados das formas, rituais e gestos da nova teligifo, mas no fundo a simulagdo lhes permitia encobrir suas crengas idolétricas, ,__ luta contra a idolatria talvez tenha sido um dos capitulos mais inferessantes da conquista hispanica da América. O esforgo para colonizar 0 imaginério dos indios, seu comportamento gestual, sua a ee Jinguagem, esbarrou num comportamento social dos nativos que sacerdotes e corregedores definiam como insélito, como alguma coisa que nao se entendia. Esses relativos fracassos da colonizagio nio s6 levaram as auto- ridades ao desespero, mas impediram um tranqiiilo processo de aculturagio. A nova sociedade, fundada pelos vencedores, nascia sobre a base de uma insolivel disjungao. A hipotese da simulagao dos vencidos nos permitiu estabelecer a ligagao entre a ago € o pensamento de Las Casas e a agao dos indios, mas por uma via diferente da que foi trilhada pela maior parte dos historiadores lascasianos. Com efeito, no se trata mais de discutir a importincia de Las Casas apenas como defensor dos indios e denun- ciante das atrocidades dos conquistadores. Nessa defesa e dentincia, Las Casas desenvolveu a imagem da "destruigao das Indias", que ndo 86 deu titulo a seu livro mais famoso, mas englobou todo seu pensamento politico sobre a América. Fora o sentido literal da expressiio, ela era produto da preocupagao do frade com o futuro da sociedade que se organizava. "A destruigao das fndias" quis expres- sar, em meio ao estrondo da destruigo material, uma previsdo: anova sociedade comegava anascer distorcida, prenhe de desequilibriose de injustigas, carente dos mais elementares direitos. A conquista, na opiniao de Las Casas, tinha engendrado uma sociedade ao revés. significado que damos a idéia da "destruigao das {ndias" constitui um outro tema de nosso ensaio, que apresenta Las Casas como extraordindrio visionério politico. Mas que também nos permi- tiuinyertero Angulo analitico da relagao entre seu pensamentoeaagio social dos indigenas dentro da sociedade colonial do século XVI. Se © dominicano visualizou uma "sociedade as avessas", nao viu, ou talvez nao tenha querido ver que, além das causas apontadas por ele, havia uma outra que colocava os indios como principais atores: uma agio sub-repticia que, também, distorcia e corroia a sociedade orga- nizada pelos vencedores. Por outro lado, a velada agiio dos indigenas sobre os alicerces da nova sociedade foi reconhecida por Las Casas num outro contexto de seu pensamento sobrea América. A Espanhae seusreisnuncativeram © consenso dos amerindios para governar 0 continente, e sem 0 consenso politico da maioriaesse governo erattiranico. Neste sentido, Las Casas superava seus contemporineos ¢ se adiantava em mais de | um século aos te6ricos do Estado moderno. Se a sok Povo, na comunidade de individuos, quando o principe c Povo nfo alienava a soberania como afirmavam todos 0s te6r século XVI, entre eles Francisco de Vitoria, mas a delegavam de tal forma que 0 poder do rei no estava acima do povo. Ele, o rei, era Tesponsivel por seus atos perante a comunidade. Nada disso aconteceu na América, ¢ era esta uma das causas apontadas por Las Casas para considerar que a sociedade nascia desequilibrada. _ imagem servil dos indios, a simulagao deles ¢ a destruigdo das Indias constituem as trés idéias centrais de nosso trabalho. Acredita- mos que essas idéias nos permitiram descobrir, em certa medida, um Las Casas desconhecido; um Las Casas que no defendeu cegamente todos os indios da América nem condenou todos os espanhdis da Conquista. Sua importéncia ultrapassou os limites de seu tempo e Superou os eventos aos quais habitual mente se costuma relacionar sua uta. Ele se nos aparece, nem mais nem menos, como o primeiro pensador dos destinos da América. Mas também nos permitiram Tecuperar a agao social dos indios, restituindo-Ihes a condigao de sujeitos ativos e centrais num processo que, em sua aparéneia, os mantinha marginalizados. Na realidade, por trés da passividade e servilismo, escondia-se uma outra atitude, um outro processo social; enfim, ocultavam-se sujeitos que agiam e diziam por outras vias, por caminhos que nao eram os comuns. Este processo € a “historia invisivel" da conquista americana, uma hist6ria de individuos que vestiram a roupa e os simbolos dos conquistadores para ocultar-se e poder agir, criando e forgando um processo hist6rico surpreendente e cheio de armadilhas. As conseqiiéncias desse processo oculto tenho denominado de ‘"melacao" da nova sociedade, usando uma expressio grifica e popu- lar. Melagdo corresponderia a expressio emibarrarla (jogar lama), usada em varios paises hispano-americanos para exprimir 0 desejo e agao conseqiiente destinados a estragar uma coisa, a sujd-la. Todavia, 0 estudo a respeito de Las Casas e dos indios nos levou uma leitura atenta dos diversos discursos sobre a conquista elabo- rados no século XVI, que procurou descobrir neles a atitude simula- dora dos vencidos e essa ago mascarada que corrofa os fundamentos da nova sociedade. Se a esse respeito nfo podemos ser conclusivos, acreditamos que o percurso ¢ os resultados de nossa andlise abrem um 18 leque de possibilidades para novas pesquisas. Interrogados sobre a simulagao dos indios, cronistas importantes ‘como Bernardino de Sahagun, Diego Durdn, José de Acosta, Guaman Poma de Ayalae outros nos deram respostas surpreendentes ede uma riqueza incompardvel. Num outro aspecto de nosso ensaio, nossa maior dificuldade residiu na transcrigo para o portugués dos textos dos cronistas do século XVI. Com uma ou duas excecdes, traduzimos todos esses textos tentando conciliar, da melhor forma possivel, o sentido a forma de dizer caracterfsticos dos escritores desse século ao portugues moderno. Nosso desconhecimento do portugués do século XVI nos impediu qualquer tentativa de transcrever esses textos na linguagem portuguesa da época, oque teria sido, sem diivida, omais conveniente. As dificuldades de uma razodvel tradugo residem na prolixidade, nos longos pardgrafos, entrecortados por citacdes e alusGes a fatos os mais diversos, nas longas enumeragies unidas pelo uso repetitivo da conjungao ¢ (polissindeto), enfim, na sintaxe dos cronistas do século XVI Isso € particularmente not6rio nos escritos de Las Casas, Sahagun e Bernal Dfez. As dificuldades aumentam nos cronistas mestigoscomo Guaman Poma, que desenvolveu umaescritacastelhana com oritmoea sintaxe do quichua, além douso freqiiente das palavras nessa lingua e no aimar. © mesmo pode-se dizer de textos maias como 0 Chilam Balam, em que o castelhano usado € densamente hermético. Transcrever todos esses textos num portugués modemoe elegante teria significado perder o ritmo e forma de dizer desses cronistas, ritmo e forma que ndo s6 revelam um estilo, mas, de certa maneira, uma mentalidade e uma postura especial perante acontecimentos inusitados. Optamos ento por manter, até onde era possivel, as caracteristicas desses escritos. 19 CAPITULO III O PENSAMENTO DE LA CASAS Os antecedentes A conquista americana suscitou uma ampla polémica entre os partidérios da evangelizacao como tinico instrumento colonizador iS os que consideravam licito 0 uso de outros recursos. Nos dois casos. surgiram trés problemas que permearam todo o processo de assenta- mento dos colonos no continente: a relagao com 0s infiéis, 0 poder do papa e do rei e a guerra justa contra os indios. Odebate americano sobre estas questdes esteve irremediavelmen- te vinculado ao objetivo mercantil da conquista, tanto ou mais importante que 0 evangelizador, a tal ponto que o proprio Las Casas teve de ceder espaco ao primeiro, como foi demonstrado em seus projetos de colonizagio pacifica. Mercantilismo e evangelizagao foram as duas caras da mesma moeda, e seria impossivel entender o processo da conquista, elimi- nando ou negando a importincia de um deles. Contraditérios em Principio, ambos se complementaram na pritica, sem que os coloni- zadotes tivessem a pretensao de esconder um atras do outro. Porisso que € iniitil qualificar 0 soldado ou 0 eclesiastico de hipécritas, pois Praticaram essa dupla finalidade a luz do dia e sem constrangimento nenhum. Cortés foi um bom exemplo de soldado que acreditava que @riqueza era indispensdvel e a evangelizagio dos indios necessaria. E ele nao s6 acreditou como também praticou isso, Sacerdot Corregedores, visitadores e outras autoridades, segundo Poma de Ayala, fizeram umae outra coisa vistae paciéncia de todo o mundo. A complementagio entre 0 objetivo mereantil e o evangelizador foi um fato caracterfstico da poca moderna, ¢ a finalidade tiltima da Conquista foi a dominagao politica nao sé dos fndios, mas dos 89 Proprios espanhéis que vieram para a América. ee cms nem por suas MER ree een coisas obedecem ao dinheio os fndios orange S obe e os indios evangelizados mento para aleangar 0 ouro", escreveu ele no Tratado comp del imperio soberano. Os trés problemas renovados pela conquista eram de antiga data Foram discutidos na baixa Idade Média por Graciano, Bernardo de Clairvaux, Sao Tomas, Enrique de Susa, Guilherme de Occam, ete Os escritos e opinides destes pensadores foram retomados pelos tedlogos e juristas espanhdis do século XVI, para elu mas te6ricos e praticos suscitados pela conquista. Sem dtivida alguma, 0 pensador medieval mais influente nos tedricos do século XVI foi S40 Tomas de Aquino, especialmente no que se relaciona ao direito natural e de gentes, e as relagdes entre o poder temporal e espiritual. E bem sabido que o pensamento tomista teve uma dupla origem ateologia crista dos primeiros tempos, contida nas Sagradas Escritu- ras, e a filosofia aristotélica, adequada por Tomés as realidades e dogmas do cristianismo. Foi, justamente, a corrente filos6fica que vai de Aristételes a Si0 Tomas a que mais influéncia exerceu nos pensadores do século XVI. Tanto um como o outro eram citados como autoridades quase indiscutiveis em questdes como a escravidio, os direitos dos infiéis, a guerra, a autoridade papal, etc. Como se sabe, 0 pensamento aristotélico foi introduzido na Europa pelos drabes por meio do califado de Cérdova no século XI E difundiu-se amplamente no século seguinte em verses latinas. No inicio, foi visto como ameaga & concepgao agostiniana do mundo. Com efeito, enquanto para Santo Agostinho a sociedade civil nao ers ‘maisqueumactapatransit6ria paraa vida eterna, afilosofiaaristotelica considerava a sociedade civil como uma criagio humana que n° tinha outra finalidade a nao ser o homem, 0 cidadao. O iniciador dos estudos da filosofia aristotélica, desde 1240. 1 ocidente cristéo, foi Alberto Magno, que ensinow na Universidade Paris, tentando harmonizar a teoria do fildsofo com os princtpios ® cristianismo. Seu discfpulo mais brilhante, que ocupou seu Inga" cD Paris, foi Sao Tomés de Aquino. robator lar os proble- 90 Ateori ica de que todas as coisas obedecem ao desenvol- (0 danatureza, que por sua vezter uma propriedadeteleol6gic: isto é, encaminhada para um fim, que é a perfeigao ontoldgica, e de que o homem é um animal politico, cujo progresso, para a justica e 2 idade, depende do curso geral da natureza, serviram de funda- mentoao pensamento lascasiano. Emcontrapartida,aidéiaaristotélica de que alguns homens, por natureza, so seres politicos e outros nao, que divide a humanidade em homens livres e superiores e servos por natura, serviu de fundamento a tedlogos e juristas, como Ginés de Septilveda, para justificar a conquista e servidao dos indigenas. (© natural constitui a esséncia das coisas, é uma propriedade universal, tinica, imutdvel, que ndo se altera nem ao menos pelo pecado. O natural, para Tomas, é comum atodos os homens e confere unidade essencial ao género humano. Nessa idéia Las Casas funda- mentou o prine{pio da igualdade entre todos os homens, independen- temente do grau civilizat6rio. O pecado da idolatria, dos sacrificios humanos nao tiram nem alteram a esséncia humana dos nativos. No desenvolvimento paraum fim tltimo, que €a perfeicao da vida em sociedade, Sio Tomas estabeleceu uma hierarquia das leis: lei eterna, na qual atua 0 préprio Deus; lei divina, que Deus revela a0s homens mediante as escrituras e sobre a qual se funda a Igreja; lei natural, que Deus implanta nos homens para que possam compreen- der seus desfgnios; lei positiva, que os homens ordenam ¢ poem em igor para governar-se. A lei natural esté conectada com a lei eterna ea divina por duas razes: primeira, porque € essencialmente justa racional; segunda, porque exprime a vontade de Deus. Para os dominicanos do século XVI, especialmente Domingo de Soto —e é mais que seguro que Las Casas o seguisse—, alei natural, impressa nos espititos por Deus, era um produto do intelecto, um ditame da razio justa. Veremos mais adiante que Las Casas usoU essa idéia para legitimar a sociedade politica dos indfgenas, nao apenas como algo natural, mas, por ser produto da vontade deles, como um resultado genuinamente humano, pois assim nascem todas as socie= dades politicas, mascarando a perigosa tese de Francisco Vitoria de que a sociedade era criagao da vontade divina, 0 que dava margem para que se considerasse a sociedade dos indios como pré-politica devido a seu desconhecimento de Deus. Um outro aspecto muito debatido no século XVI, em que Tomés a1 icismo, rapido por toda a Europa Ocidental da bai ixa Idade ea te, por meio dos pensadores italiano: Paris com Toms. Mencionamos aqui aqueles que f Casas, parapoderexplicar, mais diane acrgemdesioene oes parecem surpreendentes no dominicano. Entre esses pensadi Remigio de Girolami, dominicano que escreveu um tratado i bem comum. Ptolomeu de Lucca, que escreveu a maior parte da obra inacabada de Tomas, Do governo dos principes. Bartolo de Sassoferrate (1314-1357), talvez o jurista mais brilhante da Itdlia do perfodo quatrocentista. Profundo conhecedor de Aristételes, foi um dos ros pensadores a levantar a questo da soberania popular. Nic Tideschis (1386-1445), considerado por muitos autores como 0 mi canonista da €poca. Enfim, outro filésofo politico que levou e ensinow Arist6teles na Itélia foi Marcilio de Padua ( 1275-1342), que Las Casas no cita em seus escritos, mas devia conhecer por intermédio de Bartolo e Baldo, especialmente no que diz respeito 3 idéia de que o poder residia na comunidade. Alguns estudiosos modernos tém considerado de forma positivao aporte ideolégico dos escolasticos dos séculos XIII e XIV a Renas- cenea italiana, em particular, no que diz respeito as lutas pelas liberdades republicanas dos séculos XV e XVI na Lombardia € Toscana.’ Em termos gerais, no que diz respeito aos dois poderes, relagio especialmen- guns dos quais estudaram em S teses que 1) Quetin Skinner, Los fundamentos del pensamiento politico moderno, El Renacinlen!®, México, FCE,, 1985, p. 169-170, 92 omo Enrique de Susa, mais conhecido Hugo de Sio Victor, Bernardo de » de que o papa tinha os dois poderese que os eis eimperadores, como vigirios da Igreja, recebiam desta 0 poder que exerciam. Em outras palavras, seguindo 0 pensa- mento de Santo Agostinho, os reis ¢ Estado em geral eram instru- mentos da Igreja para realizar a salvagio das almas. (O papa tinha poder sobre cristdos e infiéis, era senhor do orbe. Podia reclamar as propriedades e dominio dos infiéis, declarar-Ihes guerra, pois tudo 0 que possufam o receberam de Deus e, no sendo cristdos, 0 dominio que exerciam era injusto. (Os pensadores jusnatu ; son(1363-1429), oinglés Guilherme de Occam (1290-1350), 0 jurista separagiio dos poderes. Os trés representaram a chamada’ que entendia que 0 Concflio estava acima do poder do papa. Gerson, considerado pelos estudiosos modemos como um teérico que adiantou alguns prinefpios bdsicos do que seria futuramente o Estado moderno, formulou a teoria que permitia fazer uma clara distingo entre a sociedade secular e aeclesidstica, considerando que cada uma, para ser perfeita, devia ser aut6noma ¢ independente. Em sua obra principal, Sobre o poder eclesidstico, Gerson preferiu omitic- se a respeito da idéia tomista de que em certas circunstiincias — espirituais, disse Tomés — a Igreja podia intervir em assuntos temporais. Todavia, se na sociedade eclesidstica o poder residia no Coneilio, na sociedade civil o poder deveria residir numa assembléia represen- tativa dacomunidade. Neste sentido, nenhumsoberanoou governante podia ter mais poder que a comunidade que governava. O poder "deve permanecer em todo o tempo dentro do corpo da comunidade". O estatuto do governante erao de ministro oureitor dacomunidadee ndo de soberano absoluto. ‘Todo governante dligno deste nome deve governar sempre para ‘0 bem da Repiiblica e em conformidade com a lei. Nao esti acima 8 oe dacom forma parte dela, porst bsoluta de promover o bei govemo, OtedlogoinglésG pelo papa Joao > inda mais rad hipstese alguma, qualquer intervenco do p tais. Comentando 0 rigor da lei mosaica, con APA Nas questies nelui qu no impoe a servidio aos fiéis, mas, a liberdade: Destas e de outras intimeras afirmagdes da lei padres, conclui-se com evidéncia que a lei cristi servidio como a mosaica. Contudo, a lei de Cristo ser de todo horrorosa, ¢ muito maior que a Preceito e ordenaciio de Cristo, tivesse tal plenitude d fosse permitido por direito, tantono temporal como no espirit excecdo, tudo o que nio se opde & lei divina e ao direito natural. Se assim fosse, todos os cristiios, tanto os imperadores como os reis ¢ seus stiditos, seriam escravos do papa, no mais estrito sentido do termo...” Cabe destacar, seguindo Skinner, que no século XVI, as idéias de Gerson, Occam e Marcilio de Padua foram ressuscitadas por John Maior e Almain, professores na Sorbonne, que desenvolveram a tese sobre a soberania popular como tinica fonte do poder dos reis. Alids, Maior € freqiientemente citado por Las Casas. Também € necessério assinalar que a baixa Idade Média viu florescer pensadores que limitaram 0 poder do imperador em relagio as comunidades. Talvez 0 mais destacado tenha sido o italiano Bartolo de Sassoferrato, jurisconsultoe analista da filosofia aristotélica Foi o te6rico que deu fundamentos & independéncia e a liberdade das cidades italianas da Lombardia e Toscana em relagao as pretensoes do Sacro Império Romano. Intérprete do direito romano, forneceu uma defesa juridica as repablicas em suas lutas pela independéncia contra © império. A tese central de Bartolo, desenvolvida depois por seu principal 2) Ibidem, p. 123. 4 3) Breviléquio sobre o principado tirdnico, Pets6polis, Ed, Vozes, 1988, p. 48-4 94 © nico dominus mundi, mas 6es do mundo nao Ihe obedecem, nas. Atgumentando que a lei deve cidades italianas exercem de iure uma soberania independente, seu proprio império. Cada rei, dentro de seu préprio reino, equivale em autoridade ao imperador. Por outro lado, Bartolo desenvolveu a tese de que a sociedade ¢ livre quando escolhe seus governantes; 0 povo eleitor € 0 verdadeiro e tinico soberano.* adequar-se aos fatos, entai Veremos mais adiante que de alguma forma, indireta ou m Las Casas compartilhou a idéia da pluralidade de soberanias em sua concep¢ao geral das relagdes entre os reis de Castela e os reinos indfgenas. Todavia, os jusnaturalistas, seguindo Tomés, defenderam a l timidade das propriedades e o dominio dos infi natural. Um outro tema discutido amplamente foi a chamada “guerra Justa". O texto mais importante, e que serviu de base para as discus- sdes, foi o decreto de Graciano, monge italiano, que compilou as decretais dos papas, na primeira metade do século XII. O texto de Graciano mostrou que a guerranio estava proibida no Antigo nem no Novo Testamento que era justa quando reparava uma injustica ocasionada pelos inimigos. Tinha sido 0 caso dos sarracenos que oprimiam os cristios. A eoriatomistasobrea guerrabaseava-se no trabalho de Graciano. Eos pensadores medievais, assim como os espanhéis do século XVI, aproximavam-se ou distanciavam-se do tomismo de acordocom asua Postura teocrética ou jusnaturalista. Em termos gerais, os prineipios basicos que regulavam a guerra eram: a injiria prévia por parte dos Infigis, a posse injusta de dominios e propriedades e quando os infiis, Com seus atos, atentavam contra a paz. Toda teoria da guerra justa estaya baseada nesses trés pontos. © renovado debate dessas questdes, pelos juristas © teslogos ®spanhéis do século XVI, acabou modificando profundamente a ——— 4) Skinner, op. cit, p.29a32, 95 Concepeao sociopolitica dos direitos individua do em virios séculos Se soc as transformagées politi deram origem ao conceito modemo sobre Entretanto, a contribuigdo desses pensadores estay debate geral sobre o homem, a sociedade e a rel 4 primeira metade do século XVI, com os apo: Civicos € cristAos e os luteranos. Ao rel: Mento escolistico ortodoxo desde os fins do século XV suced Tenascimento da teoria tomista que cul Trento, em 1545. Nesse Tenascimento, cor ma, as discusses foram dominadas pelos domi notadamente por Francisco de Vitoria e Domingo icoeconi micas q a socied: : de © 0 homem, tes dos hum: anistas lative esquecimento do pens, iicanos espanhéis, t de Soto. A ofensiva dos contra-reformadores foi dirigida aos aos humanistas, mesmo aos cristios como Erasmo. Na critica 20s Tuteranosinteressao que diz respeito a sociedade politica. Segundo os reformadores, a sociedade politica surge diretamente da justica e graga divina de tal forma que a religiosidade do goverante era a condi¢ao de sua autoridade. O necessario corolério que se desprendia dessa tese era que 0 poder civil nao podia permanecer em mios de governantes fmpios e que as ordens de um principe nao-cristio no deviam ser obedecidas.* O iniciador da ofensiva contra os luteranos foi Vitoria, em 1530, quando considerou que negara capacidade dos barbaros de organizar- Se politicamente era aceitar a tese herética dos luteranos de que 0 dominio politico s6 podia estar fundado na graca divina, na vontade do Deus cristéo que os indios da América no conheciam. O que legitimava a sociedade politica dos nativos era a lei natural. Pela mesma razdo, Vitoria condenou, em Trento, a tese de Ginés de Sepiilveda de que a sociedade politica, para ser legitima, devia estar fundada sempre na religiosidade crista. O tema donascimento e organizagio da sociedade politicainteres- sou profundamente aos tomistas do século XVI, nao apenas para rejeitaro luteranismo ea "razdo do Estado" de Maquiavel, tese, als, considerada atentat6ria & moral crist@, mas também pelos problemas Jevantados pela descoberta das sociedades americanas. Para os tomistas espanhdis, como Vitoria, Soto, Diego de ‘S)Nestas qustdes,seguimos de pert o trabalho de Skinner, citado, 96 Molina, Francisco Sudrez.€ outros, era necessério demonstrar que a sociedade politica era uma criagao dos préprios homens, capazes de aplicar a lei natural intrinseca a eles mesmos. O argumento inicial foi considerar que, antes da criagio da sociedade politica, os homens tinham vivido num "estado de nature- za" em que todos eram livres, iguaise independentes. Era a sociedade pré-politica, mas nao pré-social, pois nao viviam esparsos como pretenderam os estéicos, Colocada assim a questio, eranecessério explicarem que circuns- tancias e por que motivos os homens, sendo livres, iguais e indepen- dentes, decidiram num momento qualquer organizar-se politicamen- te, elaborar leis positivas, escolher governantes, renunciando & sua liberdade. Nesses termos, a questo foi colocada por Suérez, um século antes que Locke a levantasse nos mesmos termos e antes que fosse discutida por Rousseau no século XVII Vitoria tinha discutido essa questo em seu relectio sobre El poder civil, chegando & conclusto de que nenhuma sociedade poderia sobreviver sem uma ordenacdo e governo, pois os homens seguiriam sua propria vontade e prazer em diregGes diversas. Mas, a0 mesmo tempo, o dominicano argumentou que a criagao da sociedade politica obedecia, também, a uma "forga providencial”, resultante da vontade de Deus. Em tiltima instancia, os homens se organizavam politica- mente por vontade divina. abe destacarqueessatese de Vitoriafoi criticadapelos jesuitas, pois no se afastava da heresia Juterana ou, no mfnimo, era confusa. Suiirez, em seu livro De las leyes ydel Dias legislador, publicadoem 1612, e Molina, com seus Seis livros de la justicia y del derecho, publicado entre 1593 e 1600, desenvolveram a tese de que a sociedade politica era uma criagdo genuinamente humana, baseada na lei natural, € de que s6 por intermédio desta vinculava-se 3 lei divina. Avangar mais um passo niio era dificil. Se a eriagio da sociedade Politica era resultado da vontade dos homens, o governo e as leis Positivas eram produto do consenso desses mesmos homens. A idéia do consenso foi analisada e aceita pelos dominicanos & Jesuitas para explicar a passagem da sociedade natural 3 sociedade politica, embora, segundo estudiosos modemos, como Skinner, no 97 tenha sido usada como dominio, das leis e do principe. Apenas, em certos caso como a cobranga de impostos, Molina ¢ Sudirez consideraram neces- sirio © consenso da comunidade. Mesmo para Suarez, que foi 0 teGrico mais avangado nessa questo, nao tinha cabimento a idéia de que 0 povo delega o poder ao principe, pelo contritio, 0 pov a soberania, 0 que transforma o rei num poder absoluto, poder popular. Em todo 0 caso, 0 que fica claro € que, para esses pensadores, 0 poder do principe nio era de origem divina, nem podia transmi por herana. A origem do poder estava na comunidade Veremos, mais adiante, que o pensamento politico de Las Casas se nutriu nessas teorias, as da baixa Idade Média, como as formuladas na primeira metade do século XVI. Nao conheceu as teotias dos jesuitas, pois elas foram formuladas apés sua morte. Sem embargo, ‘suas idéias sobre o nascimento da sociedade politicae, especialmente, sobre o consenso como férmula legitimadora do dominio superaram © pensamento de Vitoria e Suarez. Em resumo, os pensadores espanhéis em geral, e os da escola de Salamanca em particular, deram uma contribuigao indiscutivel ao conceito de igualdade de direitos e deveres entre os homens; a idéia da liberdade das pessoas para mobilizarem-se entre os diferentes territ6rios do mundo; ao conceito de liberdade politica dos povos; a0 princfpio da origem popular do poder real. Ohistoriadorespanhol, Queralté Moreno, sintetizou bemas linhas gerais de pensamento da escola de Salamanca: 1. Todos os homens so especificamente iguais por serem criatu- ras de Deus. Os direitos e deveres naturais dos homens sio indepen- dentes de sua cultura, religido, core regime politico. Todos 0s direitos e deveres sio inerentes ¢ consubstanciais & natureza humana, de 4 qual nao hd desigualdade entre cristdos ¢ infiéis. 2. O homem € um cidadao do mundo ¢ em nenhum lugar deve ser considerado estrangeiro; pode imigrar e estabelecer-se em outros territ6rios, portanto os indios podem vir A Espanha ¢ os espanhéis it para América. 3, A liberdade e independéncia dos povos é comum a todos. OS infiéis sao tao livres e independentes como os cristdos. Eos indios n40 © perderam nenhum direito com a chegada dos espanhéis. - 98 4, A conquista prévia n‘io é lfcita, nem ao menos para propagar a {6 crista. A evangelizagao teré de fazer-se com métodos pacificos © no se pode forcar os {ndios a aceitarem a fé. 5, O papa tem a suprema potestade espiritual, ¢ sua missio estende-sea todo o universo, mas nao tem poder temporal. O papaniio infiéis, mas pode enviar predicadores. O papa is da Espanha, mas sim encomendar- tem autoridade sobre o: nao pode doar a América aos hes a obra missional. 6. Asguerras feitas sem motivos justos ndoconferemnenhum direito 7, No governo das Indias, deve procurar-se o bem dos stiditos. O rei & para 0 povo € nao ao contrario.” Entre os pensadores de Salamanca existiam diferencas de grauem relago a certas questdes, mas em geral todos eles aceitaram o princfpio de que a evangelizacao devia ser 0 objetivo principal na colonizagao americana. Para os partiddrios da evangelizaco pura e simples existiam dois momentos diferentes: o antincio da fé e a conversio. Para Vitoria, era vidvel usar a forga quando os barbaros impediam os espanhéis de anunciar livre mente o Evangelho, mas rejeitava.o uso da mesma para obrigar os indios a aceitarem a conversao: "... ainda que a fé tivessse sido anunciada aos bérbaros de forma razodvel ¢ suficiente, e eles ndo tenham querido aceité-la, nao hé razdo suficiente para fazer-Ihes a guerra e priva-los de seus bens” Diferentemente, Soto defendeu aidéia de que a vontade dos infigis devia ser respeitada nos dois momentos, isto é, se no quisessem escutar os predicadores, estes deviam retirar-se, e nem sequer 0 papa tinha direitos para obrigé-los a escutar 0 Evangelho. O cardeal Cayetano, dominicano morto em 1533, foi partidiirio da colonizagio pacifica por intermédio da evangelizagio. A condigio de infiéis no autorizava a guerra contra eles, nem era causa para privé-los de seus domjnios. Colocou diividas a justiga na conquista. Outro pensadorimportante, partidirio da colonizacao pacifica, for Luis Vives. Las Casas situou-se dentro dessa corrente ¢ subordinow toda ‘6) Ramen Jesus Queralt6 Moreno, El pensamientoflosifico-pelitice de Bartolomé de Las Casas, Sevilha, Escuela de Estudios Hispano-Americanos, 1976, p. 52 seg. D Che por Zavala, Las insttuciones jriieas. 9. Sit, p50. dominagao politica sobre os indios ao fato de aceitarem voluntari mente a conversio. Os partidarios do uso da forga, ou da sujeigdo politica prévia, como condigao necessiria para evangelizar, formayam a maioria. Aqui nio 86 se enquadravam tedlogos e juristas, mas autoridades e colonizado- res residentes na América. Entre eles, temos figuras importantes como 0 jesuita José de Acosta, que considerava a sujei¢Zo politica prévia necessaria nos casos de povos pouco civilizados, embora admitisse que nos casos opostos, talvez a evangelizagao pudesse ser feita sem recorrer & forga. E também os franciscanos Toribio de Benavente e Joao Focher, este ultimo professornocolégiode Tlatelolco, 0 jurista e tedlogo Joao Ginés de Sepiilveda. Obispo do México, Vasco de Quiroga, adotou uma posigio interme- didria, isto é, a colonizagio devia ser pacifica, mas era necessério dominar politicamente os indios para evangelizé-los melhor. OEstado adotou uma posigio conciliat6ria entre os dois extremos A finalidade espiritual da conquista foi consagrada na Recopilagdo das leis das Indias. Nas ordenangas de novas descobertas e povoamento de Felipe Il, de 1573, estabeleceu-se como principio geral 0 respeito a vontade indfgena na aceitagao da f6, embora o Estado se reservasse 0 direito de dar protegao aos predicadores. Os indios sao os donos da América No Tratado comprobatério del imperio soberano, Las Casas escreveu que o fundamento do cristianismo rejeitava a forga como instrumento de expansiio dafé: 0 Evangelho s6 podia serrecebidopela livreeespontanea vontade dosinfiéis. A descobertando davanenhum direito aos reis de Castela nem & Igreja. Os reis indigenas eram os soberanos € os fndios os donos da América. O titulo dos reis de Castela de senhorio universal e supremo estava fundado na prédica do Evangelho e conversio dos indios. Foi este princfpio que permitiu a Igreja ceder-Ihes esse direito. Mas, de modo algum, esse fato eliminava os direitos soberanos e a liberdade dos nativos, nem mesmo a propriedade das terras e fazendas. Em 1535, Las Casas estava plenamente convicto de que a vnica 100 que justficava e dava fundamento a0 dom ‘América era a prédica da fé: io dos reis espanhei Beste é,senhor, oprimeiro passoeaportadeentradanestasterras primeiro, que estas gentes aceitem Deus pela f€ e por seu Deus © depoisaorei por senhor. Poisacausa finale o fundamen majestade, como rei de Castela, para ter agio e ti a prédica da £6." taldesua O nestas terras, 6 Para Las Casas, 0 papa tinha jurisdicdo sobre os infigis, mas no damaneira que a tinha sobre os ctistaos. Sobre estes, a jurisdiczo era tida em ato, podendo ser exercida a qualquer momento. No caso infiéis, a jurisdigdo era in habi consentimento deles. No debate de 1550, Septilvedao acusou de negaro poder temporal do papa sobre os infiéis. Las Casas respondeu que Sepilveda nao entendia que os fndios eram stiditos em potencial da Igreja, razio por que no se podia usar a forga contra eles. O papa tinha autoridade para anunciar a fé, mas no podia usar nenhum instrumento que contrari- asse a vontade dos indigenas. © poder dos reis de Castela na América estava fundado na concesstio papal, o que signficava que o poder espiritualtinha mais valor porque se originaya em Deus. O poder temporal aperfeigoava- see atingia seu verdadeiro sentido pela aprovacao papal, mas stondo queria dizer que esse poder tivesse origem no papa, pois era de direito hatural e estava fundado no povo. Apenas, ¢ indiretamente, tomaya- semais perfeito quando realizava. finalidade espiritual, neste caso €specifico, a conversao do gentio americano: isto é, passava pela vontade e Qualquer poder temporal deve subordinar-se ao espiritual quan- doa finalidade é espiritual, e € conveniente que aquele tome desteas leisenormas para rdenarseuregime,demodoaconseauirooist%0 spiritual e poder vencer qualquer obsticulo que poss impedir consecugio,” ae ®)*Canaaun 5 . as, carts.» op. cit. 67. ersonaje de la corte”, in Opiisculas, cartas..» agit. ) Algunosprincipios que deben servic de punto de pris in Tadeo 1267. No Tratado comprobatrio, segundo mas eto To yao finalidade espiritual da onquista,considerouque 0 poset! os Poder do papa. Tratados, Vv. 2, p. 949 © S¢8: ——— A aceitagao volun era 0 requisito bisico e prévio para que se pudesse exercer 1 sobre eles 0 dominio Igreja, dominio este que também passava pelo consenso dos indios. Uma vez cristianizados, por ficar dentro daesfera da Igreja, os indios ficariam sob o poder politico do rei espanhol. Assim o afirmou na proposicao XIX: Todos os reise senhores naturais, cidad: munidades e povos daquelas {ndias so obrigados a reconhecer os reis de Castela como universais e soberanos senhores e imperadores da forma dita, depois deterrecebido, porsua propria’ aféeosacro batismo, e se, antes que o recebam, nao o fazem e nem querem fazé- Jo, no podem ser punidos por nenhum juiz ou justiga."” O contrério, quer dizer, estabelecer o dominio politico para logo propagar a fé, ndo era possivel para Las Casas, porque nao existiam razoes plausiveis de qualquer natureza que justificassem esse ato, nem por parte dos indios, nem por parte dos cristios. Por que os principes infiéis e seus povos aceitariam 0 dominio politico dos cristaos?, pergun- tou-se Las Casas em Del tinico modo, para logo afirmar que ninguém pede, voluntariamente, para ser dominado politicamente. Entio, 0 dominio politico s6 poderia ser imposto pela guerra. Todavia, se os principes indfgenas tomassem a decisio de aceitar 0 senhorio dos castelhanos sem consentimento de seus povos, estes nao teriam o direito, por lei natural, de negar-lhes e privé-los de sua real ignidade e, ainda, matd-los? E se os stiditos, sem consultar seus reis, aceitassem a soberania do rei cristo, nao incorreriam em trai¢ao?" Las Casas fechava todos os caminhos para a colonizacio, pois todos eles, com excegio da evangelizagio, contestavam o direito natural e, o que era pior, levavam 2 guerra absolutamente injusta. S6 a evangelizagao tornava justa a colonizagao; ela era capaz de estabe- lecer um dominio que fosse resultante do consenso dos povos ameri- canos, porque estava revestida de métodos sutis, suaves, delicados, 10) Treinta proposiciones muy juridicas, in Tratados,v. 1, p. 483. 11) Historia de las Indias, op. cit. v. 3, L. Il, c. LVI, p. 28, 102 {quase impalpaveis, e respeitava o dir pessoas livres e soberanas natural dos indfgenas como Quaisquer nagGes e povos, por infiéis que sejam, possuidores de terras e reinos independentes, que habitam desde 0 principio, sio povos livres, que nao reconhecem fora de si nenhum superior, exceto (08 seus préprios, e este superior ou superiores tm a mesma plena potestade e os mesmos direitos de principe supremo em seus reinos, que os que agora possui o imperador em seu império.” Este texto lembra a tese de Bartolo sobre a pluralidade de autori- dades politicas soberanas, que comentamos pouco acima. O impera- dor € soberano do mundo, mas o fato relevante é que na América os reis indigenas tém tanta autoridade em seus reinos, como o imperador no seu. O império nao invalidava a soberania dos fndios, nem tirava sua liberdade e propriedades. Queremos crer que Las Casas usou a idéia da pluralidade de autoridades soberanas, imaginando uma espécie de federagao entre 0 reino espanhol e os reinos americanos. Cabia ao rei da Espanha 0 poder méximo e central, por forga da concessio papal; os principes indfgenas reconheciam essa autoridade, dominus mundi, pagandoum tributo, mas mantinham autonomia para governar seus reinos. Os indios s6 deviam pagar tributo a seus principes diretos.” Os reis de Castela nao tinham direitos para ceder em usufruto 0 trabalho pessoal dos indios aos conquistadores. Qualquer jurisdiga0 sobre os indios é um direito dos reis indigenas."* reicristdo, por seu universal senhorio, pode explorar as minas americanas com trabalhadores espanhdis. Em nenhum caso, os principes, senhores e stiditos americanos podem ser privados de seus senhorios, dignidade e bens devido a0 pecado da idolatria, sacriffcios humanos e outros mais graves, pois 0 pecado nio elimina o direito natural em que se funda a soberania e liberdade das nagdes."* ‘A relagio federativa entre o reino cristo e os reinos americanos, 12) Algunos prineipios... op. ci 13) Historia de fas Indias, op. 14) Veinte remedios para refor in Tratados, v.2, p. 1255. XI, p. 468. fundadanaigualdad da num solene tratado que ambas as parte Como ji foi assinalado acima, s ‘em compensago, os beneficios desse reconhecimento eram maiores que as perdas. O rei cristo, cumprindo a missio evangelizador: defeituosos os governos americanos. A autoridade do principe cristZo "conceder-Ihes-ia mais liberdade do que eles tinham". Sem embargo, nada semelhante aconteceu na América, ¢ Las Casas talvez 0 soubesse, mas nem por isso desistiu de lutar contra tendéncia da hist6ria que o sobrepujou amplamente, Nao teve receios €, ao que tudo indica, ndo se sentiu tocado pelo fracasso. Sua conviceao, sua postura honesta e coerente foram mais fortes que a rentincia, 0 cansaco, o abandono de uma realidade americana profun- damente tragicae dolorosa. Quatro anos antes de sua morte, condenou com veeméncia a conquista e desqualificou a autoridade do rei da Espanha para governar a América, por falta de fundamentos juridicos e consensuais de parte dos povos americanos: Nenhum ei, senhor, povo ou pessoa privada ou particular de todo aquele mundo das Indias, desde o primeiro dia de sua descoberta até © dia de hoje, 30 de agosto de 1562, reconheceu nem aceitou de maneira verdadeira, livre e juridica, anossos inclitos reis da Espanha, como senhores e superiores, nem aos delegados, caudilhos ou capi- ties enviados em nome do rei, e a obediéncia que até hoje Ihes tm prestado e agora prestam, é e sempre foi involuntaria e coagida.” A Espanha nio teve consenso popular para governar a América O texto que acabamos de transcrever sugere uma das quest6es 16) Los tesoros del Peri, Madsi, Imprenta e Editora Macstre, 1953, p. 120 ¢ seg ‘Queralté Moreno considera proposta de Las Casas como umtratado de diteito ‘internacional. Preferimos aidéia de umestado federativo, pois ofrade admitiu a sujeigio da América a0 Estado espanhol. 17) Los tesoros del Peri, p. 55. 104 MI mais debatidas pelos pensadores espanh6is do século XVI, € que j4 tivemos oportunidade de comentar anteriormente, isto é, o principio do consenso popular como elemento explicativo da transiga0 da ica,ecomo preceitolegitimador do poder. Temos visto que, na opiniao dos estudiosos modernos, nem ‘0s dominicanos nemos jesuitas desse século desenvolveram 0 concei- to como legitimador do governo, do dominio € das leis. Nao obstante, o texto lascasiano, transcrito acima, avangou a idéia de que 0 dominio sobre a América nao era legitimo por ndo estar fundado no consenso dos povos americanos; a obediéncia foi imposta pela fora; o poder do rei espanhol nao estava fundado no direito, na livre vontade dos indfgenas. Num outro texto, Las Casas foi inda mais transparente: Quando um povo elegeu seus principes ou seu rei, nao perdeu sua liberdade nem renunciou ou concedeu poder para que (ele) possa oneri-lo, coagi-lo, ordené-lo, impondo-Ihe cargas que prejudiquem © povo ou a comunidade politica."* A idéia do consenso, como legitimador do poder, foi derivada do principio da soberania popular, que Las Casas aceitou sem as limitagdes impostas por Vitoria e Suarez. Na verdade, os dois pensadores ndo conseguiram afastar-se da idéia tomista de que o povo, quando elege o soberano, aliena a soberania, de tal forma que © goverante deva ter um poder maior que aquele da comunidade. Sudrez chegou a dizer que "quando uma comunidade transfere seu poder ao principe, este, entio, pode fazer uso desse poder como proprietario dele", quer dizer, o poder do principe estava acima da sociedade civil. O rei tinha poder absoluto. Contrariamente, Las Casas preferiu seguiras teses de Bartolo, que 05 tomistas do século XVI consideravam subyersivas, isto é, 0 Povo no aliena a soberania, apenas a delega, de tal forma que o rei nao estava acima da comunidade, nem era proprietirio do poder. A este respeito, o frade nao péde ser mais claro € consciente quando escreveu: 18) De regia potestade, O derecho de autodeterminacién. Ed. critica bilingle por Luciano Pereiia et alli, Consejo Superior de Investigaciones Cieatificas. Madri, 1969, p. 37. 105 Quem esté governado por outro, esta submetido jurisdicionalmente; mas, quem tem jurisdigio nfo tem sob seu poder todos aqueles sobre os quais exerce a jurisdic. A razio consiste em que todo govern: n poder de coagio sobre os stiditos dealguma ‘maneira, mas niio exerce sua potestade coativa sobre todos porigual pois tem sobre os stiditos um poder que nio € dele préy da lei; além disso, est subordinado ao bem comum. poder nao é propriedade do rei, o poder pertence a0 povo, ea delegacdo nfo limita a liberdade dos individuos, nem dé direitos a0 governante para impor cargas e obrigagdes que prejudiquem a comu- nidade civil, simplesmente, porque 0 poder est4 insculpido na le identifica-se comela, é a lei mesma A importancia que Las Casas dava a lei transformou-se no fundamento de toda sua concepgao politica da sociedade. Para ele, a lei se identificava com a justiga, idéia defendida por Soto, para ‘quema justica devia definir-se em fungao do ius, enquanto este devia ser interpretado como o objeto da justiga. Em outras palavras, para Soto e Las Casas, 0 ius era igual a lei. Segundo esta interpretagio, 0 ponto de equilibrio entre o poder do principe, representante da dignidade real, e o povo, fonte do poder, era alei. Las Casas pensava que, em tiltima instancia, a lei era a maior potestade e os homens estavam submetidos a ela porque, justamente, a lei era produto da vontade coletiva. No tratado De regia potestade, Las Casas escreveu: Toda autoridade piiblica, rei ou governante, de qualquer reino ou ‘comunidade politica, por soberano que seja, nao tem liberdade nem poder para mandar nos cidadiios arbitrariamente e ao capricho de sua vontade, sendio deacordo comas leis da comunidade politica. E assim ‘que as leis devem ser promulgadas, para promover o bem-estar de todos os cidadios e nunca em prejuizo do povo. Devem ajustar-se a0 interesse puiblico da comunidade, e nao ao contrrio, a comunidade, as leis. Portanto, ninguém tem poder para estabelecer coisa alguma que prejudique 0 povo. O rei ou governante nio manda sobre os stiditos na qualidade de homem, sendo como ministro da lei. Assim, nao € dominador, mas administrador do povo por meio das leis. 19) Ibidem, p. 37. 106 Levam 0 titulo de reis, porque cumprem as leis em consciéncia, mandando 0 que € justo e proibindo 0 que € injusto; e, assim, os cidadaos sio livres porque nao obedecem a um homem, senio 4 lei. Pouco ant os reis foram definidos da seguinte forma: Conclui-se que 0s reis e govemnantes nio sio, propriamente dito, senhores dos reinos, sendo presidentes, gerentes e administradores dos interesses piblicos.” Esta passagem lembra Gerson, autor freqiientemente citado por Las Casas. Entretanto, € necessério reiterar que para Sdo Tomas e Francisco de Vitoria, o rei nio estava obrigado a obedecer & lei. A outra idéia importante no pensamento politico lascasiano € a finalidade e 0 sentido da sociedade politica. Qual era 0 objetivo que ‘0s homens procuravam, quando decidiram organizar-se politicamen- te? A resposta de Las Casas a essa questo foi o bem comum. A sociedade existe quando é capaz de equilibrar os deveres e direitos individuais com o bem da comunidade como um todo. Mas bem ‘comum nao é, no pensamento lascasiano, uma abstraco; pelo contra- rio, ele tem uma dimensio hist6rica concreta, por estar na origem da transigdo da sociedade pré-politica a sociedade politica —os homens compreenderam que ndo podiam viver dispersos —, mas também pelo fato relevante de que os homens entenderamobemcomum como anecessidade de dividir as tarefas produtivas, e nessa divisio geral do trabalho Las Casas inclufa a escolha de indivfduos para governar a comunidade: "porque um homem s6 nao pode ser, ao mesmo tempo, lavrador, sapateiro, ferreiro, alfaiate, pedreiro, carpinteiro, médico, * Neste sentido, Las Casas superou amplamente o mais distinguido e célebre pensador de sua época, Vitoria. Aidéiado bem comum, como finalidade de governo edo convivio social, e sem abandonar a fonte aristotélica, provavelmente a tomou de Remigio de Girolami, pensador do século XIV, ao qual cita com freqiiéncia, e que escreveu um livro intitulado O bem comum. 20) Ibidem, p, 50€ 38 21) Tratado comprobat6rio..., in Tratados, v. 2, p. 1063. 107 Em Algunosprinc discute 0 pacto pr delega a soberania m deviaseropo © poder no era prox do consenso ¢ da eleigio, e Vendo os homens que no podiam viver chef, eles elegeram, de mituo acordo ou pacto ‘um ou alguns para que dirigissem e governasse ‘ecuidassem, principalmente, do bem n.S6d poreleigio do povo, teve origem qualquer domfni So dos reis sobre os homens em todo o mundo ee dominio que, de outro modo, teria sido injusto € Todo chefe espiritual ou temporal de qualqi acordo com sua natureza [...] pelo tanto, sua autoridade € tudo o um dos trabalhos mais importantes € o de frei Diego Valadés, Retdrica publicado na italiaem 1579. ComoLas Casas, Valadés consideravaque 10 do Evangelho era uma tarefa extremamente delicada, que dependia das habilidades do predicador. A arte orat6ria era fundamental. Além disso, Valadés, seguindo a experiéncia dos franciscanos, propunha todo um sistema figurativo paraensinar, deacordo coma idéia de que primeiro se aprende peloolhar. México, FE, 1989, p.49a1 Joao de Zumirraga, Toribio de Benavente, ete., que lu vigorosamente pela evangelizagiio, mas niio chegaram a question dominio politico dos reis da Espanha. E Respondendo aos que duvidavam da capacidade dos indios para compreender o Evangelho, Las Casas todavia teve folego para discu tir e demonstrar detathadamente que a fé em Cristo, a doutrina promulgada pelos apdstolos, predicada e observada pela Igreja, era uma s6, de tal modo que 0 ensino s6 podia ser tinico através dos tempos e no podia modificar-se. Todos os homens, porque sio racionais, tinham as condigdes para receber a f6, "no se encontra nenhuma diferenca ou especificidade em nenhum povo em relacio aos outros”; 0 Evangelho devia serensinado "sem diferengas de seitas, de erros ou corrupgao dos costumes”. Las Casas almejava uma colonizagio baseada no consenso dos nativos, mas esse consenso, tinico capaz de legitimar a colonizacio, se conseguiria com métodos sutis, suaves, quase impalpiveis, Era necessério que 0s povos americanos percebessem na nova religiio e por intermédio dela o novo dominio como algo doce, brando, delica- do, para que a amassem e desejassem. Para o homem de Chiapas, a guerra, a violéncia, a repressio criavam obstéculos intransponiveis & propagacao da £6, niio apenas porque esses métodos produziam nos espiritos o sentimento de vinganga, mas também porque matavam 0 interesse, 0 esforco, atengdo pelas palavras dos predicadores. a Assim pois, com as maldades truculentas e as calamidades que Jevam consigo as guerras, sto causa da ira, do 6dio, do rancor, da tristeza, da dor, do medo, do horror, do desespero e de outras mil perturbagdes, como seria possfvel que a raziio discorra, que o enten- dimento julgue e que a vontade se regozige nas coisas que os infiéis ‘ouvem e se Ihes propdem sobre a fé e a religiio? O grande debate ‘Com essas teorias politicas, longamente elaboradas no siléncio conventual ena eletrizante vivéncia americana, Las Casas enfrentou Jodo Ginés de Sepiilveda em Valladolid, quando 0 Conselho das Cl {ndias eo rei aceitaram escutar as d da condigao dos nativos da América A finalidade do debate era examinar os pr6s ¢ os contras relativos a racionalidade dos {ndios, quer dizer, se estes eram mais ou menos racionais que os espanhéis. E claro que esse estranho objeto de controvérsia implicava avaliar o grau civilizat6rio em geral, organi- zagio politica e social, vida religiosa, habitos e costumes, existéncia de leis, etc. Como ja 0 temos examinado, o debate sobre o gentio americano teve inicio no momento mesmo da descoberta, e desde entdo, para a maioria dos espanhdis, 0s fndios estavam mais préximos dos m: que dos homens. Até 1550, ano que deu infcio ao debate de Valladolid, tinha-se acumulado uma farta quantidade de opinides sobre os fndios em sua maior parte desfavordveis. As Décadas del Nuevo Mundo de Pedro Martir de Angleria ea Historia generalde Oviedo, pelo menos em sua primeira parte, eram bastante conhecidas. Nio obstante a moderacao de Martir de Anglerfa, suas famosas Décadas transmitiram algumas idéias muito negativas sobre os indios, como aquela sobre os caribes que, devido a sua antropofagia, tinham despovoado a maior parte das ilhas.” Gonzalo Fernandez. de Oviedo, como cronista oficial da conquis- ta, contribuiu, de maneira decisiva, para formar uma opinido muito depreciativa sobre os indios entre as pessoas mais ilustres da Corte. A Historia general est cheia de frases e descrigdes negativas sobre a Personalidade e os costumes indfgenas, e em suas primeiras paginas estampou estas imagens: versées que circulavam acerca acacos -- esta gente, por natureza, € ociosa ¢ viciada, de pouco trabalho, melane6licos ¢ covardes, vildes e mal inclinados, mentirosos e de Pouca memsria, e de nenhuma perseveranca. Muitos deles, por assatempo, se mataram com peconha para no trabalhar, ¢ outros se enforcaram com suas proprias mos [..) __ E mesmo reconhecendo que a mortalidade indigena foi conseqiign- Cia do excesso de trabalho e maus-tratos, acaba justificando-acomo um een ean 32) Décadas del Nuevo Mundo, Buenos Aires, Ed. Bajel, 1944, Década Il c. Hp. 245. 7 castigo de Deus devido aos pecados abominiveis de gentes tio selvagens e bestiais.” A consulta feita pelos jerdnimos na Espanhola, em 1517, sobre se 0s indios tinham capacidade para viver livres, foi respondida vamente por todos os colonos consultados. A resposta d segunda pergunta: quais sio seus costumes?, teve o seguinte teor: "sio incli- nadosa muitos vicios, sdo preguigosos e vadios, inimigos do trabalho, amigos de andar pelos montes comendo aranhas e outras imundicies que desejam mais do que os mantimentos que os espanhéis Ihes dio; e bebem ervas para jogar fora o que comem’. Mais chocante foi a relagao de frei Tomas Ortiz, de 1525, sobre os indios da Terra Firme, pois tratava-se da opiniio dum respeitado sacerdote dominicano. A viruléncia da carta é demolido: (Comem came humanana Terra Firme, sio sodomitas muito mais ‘que qualquer outra geraedo, no existe nenhuma justiga entre eles, andam nus, no tm amor nem vergonha, sio estipidos aloucados. Naorespeitama verdade se no em proveito proprio, sio inconstan- tes, ndo sabem o que € um conselho, so ingratos e amigos de mexericos. Se precisam embebedar-se, bebem vinhos de diversas ervase frutos e gros, como cerveja e cidras, e fazem fumos de outras ervas para embebedar-se [...] So bestiais e fazem questo de ser abomindveis nos vicios, 0s mogos nao tm nenhuma obediéncia nem cortesia com os velhos, nem os filhos com os pais. Nio sto capazes de doutrina nem castigo, sio traidores, cruéis e vingativos, nunca perdoam, so inimigos de religiio. Sio vadios, adrdes, de jufzo muito baixo, ndo guardam f€ nem ordem. Nao ‘guardam lealdade os maridos com suas mulheres, nem as mulheres ‘com os maridos. Sao feiticeiros e agourciros, covardes como lebres. ‘Sao sujos, comem piolhos e aranhas e vermes crus no lugar em que 8 achem, nio tém arte nem jeito de homens. ‘Quando aprendem as coisas da fé, dizem que essas coisas sio para Castela, que para eles no valem nada, e que nio querem mudar os costumes, no tém barbas e, se alguma Ihes cresce, raspam. Com os doentes nao tém piedade nenhuma, se o doente est grave, mesmo 33) Historia general y natural... op. cit, v. 1, L,I, ¢. VI, p-67. 34) "Informacion sobre la capacidad y libertad de los indios de laisla Espaiiola’ de Indias y el dr Sepiilveda, Caracas, Biblioteca de la Academia Nacional de la Historia, 1962, documento n° 5, p. 34. 118 sendo parente ou vizinho, o abandonam ou o levam a0s montes a morrer, deixando junto dele um pouco de pio e 4gua; quanto mais crescidos, sio piores; até dez ou doze anos, parece que puderam ter alguma educagio e virtude, mas depois tornam-se como bestas brutas. Enfim, digo que nunca criou Deus gente tao viciosa e bestial, sem nada de bondade ¢ ordem.”* Em 1512 e 1542, como foi comentado num capitulo anterior, 05 conselheiros do rei, juristas e tedlogos, discutiram acaloradamente a condigo social e politica dos indigenas. Sobre as leis de 1512, Las Casas manifestou um sulfuroso reproche, pois em sua opiniao os fndios eram tratados como verdadeiros animais. Apesar dessas imagens tionegativase até pitorescas, osindigenistas somaram um triunfo decisivo a sua causa, a opinio favordvel do papa Paulo III. Em 1537, o papa expediu um breve em que se reconhecia aliberdade e a capacidade dos indios para receber o Evangelho [.-] € querendo prover nestas coisas um remédio conveniente, com autoridades apostéticas [...] determinamos e declaramos, que os ditos indios ¢ todas as demais gentes que daqui em diante viessem 20 onhecimento dos cristios, mesmo estando fora da fé de Cristo, no estio privadas, nem devem sé-lo, de sua liberdade, nem do dominio de seus bens, eniodevem serreduzidas’servidio, declarando que osditos {indios eas demais gentes devem seratraidase convidadas’fé de Cristo, ‘com a prédica da palavra divina e com 0 exemplo da boa vida. A esses antecedentes hist6ricos que envolveram a luta entre os defensores ¢ os acusadores dos indios, € necessario acrescentar ainda © agitado ambiente politico de 1550 em Valladolid, burbulhante de intrigas palacianas e intenso trafego de influéncias. Representantes dos encomendeiros e de todos aqueles que tinham interesse na América —advogados, teslogos, doutores, juristas, sacerdotes, auto- Tidades, cortesdos em geral —, circularam agitadamente pelos corre- dores da Corte, por mosteiros e casas de pessoas importantes € influentes. A questao sobre os fndios, de cujo resultado dependia a ——— Eee 35) Tomamos carta em Pedro Marticde Anglerfa, Décadas...op.cit, Década VII, L.1V, ©. If, p, 519, Também foi transcrita por Francisco Lopez de Gomara, Historia ‘general de las Indias, Venezuela, Biblioteca Ayacucho, 1976,<. CCXVII,p.310. 119 fortuna de muitos, seria discutida por aos Casas, suficientementeconhecidoe temido,e nce nine s 75 anista de formacio completa. E ro, er cones cm ajo Colegio de So Clemente de Bolonh eau atee especialmente, filosofia na Universidade de Bolo- sha, com o mais destaeado comentarista da flosofiaaristotlica na Ttdlia, Pietro Pomponazzi, e, sob a influéncia deste, € mais que provével que conhecesse 0 pensamento de outros importantes humanistas italianos do século anterior, como Marsilio Ficino e Pico della Mirandola, fundadores em Florenga de uma academia de estu- dosplaténicos;oschamados: humanistas cfvicos como Brunie Alberti; enfim, o comentador grego de Aristételes, Alexandre de Afrodisia. Nos oito anos que Septilveda passou na Italia (1515- 1523) permi- tiram-Ihe estabelecer relagdes com pessoas importantes no Ambito politico e intelectual — Julio de Médicis, que logo seria o papa Clemente VIL, Adriano, também papa, Alberto Pio, principe de Capri protetor de Pomponazzi. A obraescrita por Sepulveda foi profusae variada. Até 1550, tinha escrito trabalhos de filosofia, teologia e direito, em sua maior parte publicados em Roma, Bolonhae Paris. Entre os primeiros, destacam- se as tradugGes e comentarios da obra de Aristotel Comentario de Alexandro de Afrodisia 4 Metafisica de Aristételes, Roma, 1527; Meteorologia, Paris, 1532; A polftica, Paris, 1548. Entre os trabalhos de teologia, sobressai 0 livro Sobre o destino e o livre arbitrio, Roma, 1526, escrito contra Lutero. Entre as obras juridicas, o Demécrates primeiro, Roma, 1535, que trata sobre a arte militar eo cristianismo; e 0 Demécrates segundo ou Das causas justas da guerra contra os indios. Finalmente, entre os trabalhos de historia, destaca-se a Historia de Carlos V, Historia de Felipe Ile a Historia del Nuevo Mundo, todos 0s tr€s publicados s6 a partir de fins do século XVIII." 36) Ver Antonio Ramirez de Vergere, Inodusio & Historia del Nuevo Mundo de Ginés de Sepilveda, Made, Alianza Editorial, 1987. Para um estudo do pensamento de Sepilveda, Manvel Garca-Pelayo, Esudio preliminaral Tratado sobre las justas ‘causas de la guerra contra los indios, México, F.C.E., 1987. 120 as como Septil veda chegaram ao debate de Valladolid com uma derrota recente. O Confessiondrio do primeiro, do qual Nio obstante, a frustragao de Las Casas foi menor, pois o Confes- iondrio tinha circulado em seu bispado de Chiapas. Em troca, Septilveda nao conseguiu imprimir seu livro ¢ ainda amargou parecer dos teslogos que nao recomendaram a obra por consideré-la atentat6ria aos interesses americanos. Esse parecer, de alguma forma devia-se as diligéncias pessoais do préprio Las Casas Um ano antes do inicio do debate, os defensores dos indios obtiveram uma ajuda circunstancial de enorme importincia emoc’ onal e politica que tirou das mos do grupo liderado por Sepélveda uma testemunha poderosa, nao apenas porque suas opiniGes tinham sido frontalmente contrérias aos indios, mas também por ser dominicano prestigioso. Com efeito, frei Domingo de Betanzos, em tempos passados cultivou amizade com Las Casas e 0 tinha aconselhado a ingressar na ordem dominica logo do fracasso de Cumané, tinha-se transformado, no México, e por influéncia de frei Tomés Ortiz, num critico azedo da irracionalidade dos indios. No obstante, logo de seu regresso Espanha e no Ieito de morte em Valladolid, 1549, decidiu desdizer-se de suas antigas opinides, negando entdo que os indios fossem bestiais, e reconheceu que os conquista- dores, por sua cobiga, tinham feito grandes matangas na América.” A controvérsia de Valladolid se realizou em duas sessdes, agosto esetembro de 1550, e maio de 1551. A congregacio esteve formada Por catorze jufzes, entre tedlogos, juristas e letrados. Entre os tedlo- 80s, trés eram dominicanos e um franciscano. Na primeira sesso Septilveda falou trés horas e Las Casas, cinco dias. Para sua exposicdo, Sepiilveda preparou um texto em latim, intitulado Apologia, que, traduzido para o castelhano, tem 44 paginas © que era, de certa forma, um resumo apressado do Demécrates Alter. Las Casas preparou sua Apologia também em latim, com 253 fen elnctieT a e 37) "Retractacién de Fr. Domingo de B documento 14, p. 184-192, 70", O.P., in Tratado de Indi op. cit, paginas, quecontémapartetericadeseupensamento;eaApologética historia de las Indias, um monumental tratado etnoldgico com 257 capitulos e pouco menos de oitocentas paginas, que contém a argu- ‘mentag3o histérica. Esse enorme material, nfo apenas explica os cinco dias de exposigao na primeira sessio, mas evidencia que o dominicano foi para o debate disposto nao 6 a convencer o tribunal, ‘mas para arrasar com seu contendor, ‘Angel Losada, tradutor das duas apologias, dividiu a polémica em duas partes: uma de fato, colocada pela seguinte questo: eram os indios tio barbaros einferiores ao ponto de sernecesséria a guerra para tird-los desse estado? A outra questio era de direito: era just, em si, a guerra contra os fndios como meio de propagar o cristianismo na América? ‘Aessas duas questdes, Sepillveda respondeu que sim, enquanto Las Casas foi enftico na negativa. : : ‘Como j4 o examinamos num capitulo anterior, os historiadores da controvérsia esto divididos em relacdo a qual dos dois debatedores coube a vit6ria. Menéndez Pidal considerou que Septilveda se saiu melhor porque sua tese foi expressamente aprovada pelo franciscano frei Bernardino de Arévola, ao passo que os outros trés tedlogos dominicanos se abstiveram de dar qualquer parecer. Losada, sem ser to enfético como Pidal, admite, um pouco nas, entrelinhas, um relativo triunfo de Sepiilveda. Edmundo O'Gorman, em seu estudo preliminar & Apologética historia, na edigio mexicana de 1967, considera que sob o ponto de vista l6gico, as teses de Las Casas eram muito mais consistentes, pois seo indio era considerado humano, eninguém discutiu isso, entioera racional. A pretensio de Sepilveda de consideré-lo menos racional no tinha fundamento légico aceitvel, porque a racionalidade universal. Para Manuel Giménez Feméndez, em seu estudo prelimiar aos Tratados de Las Casas, o triunfo deste ficou evidenciado, pelo menos na primeira fase do debate, de acordo com um memorando do Conselho das {ndias de 1551, em que se rejeitava a guerra como instrumento prévio & evangelizagio, 138) Apologia, Joio Ginés de Sepulveda y Fr. Bartolomé de Las Casas. Tradugio castelhana Jatinos, Introdugio, Notas e {indice por Angel Losada, Mads, Ed O mesmo se pode dizer de Zavala, que considerou que a tese de Sepiilveda nao conseguiu resolver a contradigao entre o direito de gentes, no qual fundamentava a guerra contra os indios, ¢ o direito natural que estabelecia a liberdade natural de todos os homens, de tal ‘maneira que viu-se na necessidade de recorrer ao artificio de invocar um desses direitos para certas situagées, esquecendo o outro. Porseu lado, Hanke ¢favordvelaLas Casas. Pensa que proibicdo para publicar o Demécrates constitui uma clara derrota das teses de Septilveda. Em troca, Las Casas conseguiu publicar, em 1552, a Brevissima relagao. Acrescenta que sob a influéncia do pensamento Jascasiano, a colonizagio das Filipinas desde 1570 teve um cardter marcadamente pacifico, e conclui: "Por nao terem triunfado as idéias de Septilveda, deu-se um passo mais, penoso e inseguro, no caminho da justiga para todas as racas num mundo de miiltiplas racas” Paranés, 0 triunfo de um ou de outro atrelava-se &s conseqiiéncias que as duas teses pudessem ter sobre a realidade dos fatos americanos, mas, neste caso, os fatos antecederam as doutrinas. As teses de Septilveda foram, nem mais nem menos, produto e consagracio, a posteriori, dos fatos da conquista, A guerra contra os fndios foi uma realidade, bem antes do debate de Valladolid, como também a imposi¢ao forgada do Evangelho, e a liberdade dos nativos nunca foi respeitada. Sepilveda foi o idedlogo indiscutivel da realidade da conquista e neste papel, sumamente ingrato, dificilmente encontraria simpatias, por exemplo, entre os intelectuais modemnos. Sob o mesmo ponto de vista, as teses deLas Casas, praticadas por ele mesmo bem antes do debate, exerceram alguma influéncia sobre arealidade americana, contribuindo para formar uma certa opiniao entre as autoridades da Corte, e, de alguma forma, conscientizaram ealertaram 0s colonizadores que o tratamento dado aos indios devia modificar-se, até por uma questo de estratégia politica. Mas, convenhamos, nao evitaram a matanga, nem a encomenda, nem Conseguiram que os indios respirassem uma ténue atmosfera de liberdade. Agora, sob o angulo das préprias idéias defendidas, da transcendéncia delas, as de Septlveda s6 tinham sentido dentro do Contexto em que foram formuladas, e seu valor se esgota na curta duracao desse contexto. Realistas como eram, seriam ultrapassadas pela prépria marcha da historia, pois a realidade muda, as idéias, 123 neste caso especifico, ficaram enclausuradas na escrita dos livros. Neste sentido, Sepilveda foi um pensador preso a sua época, a0 jimediatismo das circunstancias hist6ricas de seu tempo, preocupado muito mais com seu presente, pletérico de realidades concretas, que com qualquer consideragao futurista. E que foi representante da burguesia nascente, do mercantilismo, como muitos o tém sugerido, talvez; mas sem que tivesse consciéncia disso. Por sua vez, as idéias de Las Casas, contririas a0 movimento histérico que abateu-se sobre a América, tiveram a transcendéncia universal que antecipava o futuro, Se na curta duragao de seu tempo suas idéias perdiam paraas teses de seu rival, pois eram despedagadas pela prépria realidade dos fatos, na longa duragio se revelariam niio apenas grandiosas e sublimes como também antecipadoras do curso que a hist6ria da humanidade tomaria. A justiga, as liberdades, os direitos individuais, a soberania dos povos para governar-se, 0 con- senso da maioria para legitimar 0 poder sao valores que dio as teses Jascasianas atualidade e a qualidade de um patrimOnio perene na hist6ria das idéias. A visio mesquinha de Septilveda ¢ arrasada pela visio universalista de Las Casas. Aqui, 0 tltimo desponta como um gigante, enquanto 0 primeiro, como um ando. Do ponto de vista da polémica propriamente dita, isto é, da forma como ela se desenvolveu, ndo cabe a menor diivida para o estudioso contemporaneo de que Las Casas foi coroado pelo triunfo. De longe ‘mostrou-se como um polemista habilidoso, contundente, convicto, agressivo, perspicaz ¢ inteligente, para colocar seus argumentos & destruir os de Sepiilveda. O caudal de suas informagGes foi imensa- ‘mente maioreaerudigdo, transbordante; aironia, as frases de efeito, a forma do discurso nao tém paralelo na hist6ria dos mais notveis debates. Por seu lado, Ginés de Septilveda cometeu 0 erro, em nossa opinido, de ter sido demasiado sintético e s6brio no uso das palavras e das idéias. Ao longo de toda a polémica, manteve-se sempre frio, académico, objetivo, quase impessoal. Seus argumentos, estiveram fundados numa série de autoridades importantes, masa parte hist6rica baseava-se na Historia general de Oviedo, contra 0 qual Las Casas esgrimiu o forte argumento de que o cronista mentia por interesses pessoais, pois era encomendeiro. Se, no decurso da discussao, Las Casas nem sempre conseguit 124 destruir certos argumentos de Sepéilveda, como a acusagdo de que os {ndios sacrificavam vidas humanas e comiam partes das vitimas entio apelou para as frases dirigidas ao prOprio adversério, como se oestivesse enfrentando fisicamente, olhando-o cara acara, acusando- 0 com o dedo em riste. " Quando os argumentos esgotavam-se eas idéias esvaziavam-se,a ironia eo sarcasmo lascasiano preenchiam os varios. Para desmora- lizaro segundo e terceiro argumentos de Sepiilveda, sobre a idolatria € 05 sacrificios humanos, 0 frade elaborou frases do tipo: "o doutor Sepiilveda, com temeréria presungao, afirma isto e aquilo"; ou "Septilveda usa em seu favor um texto de tal autoridade que inverte e adultera"; ou bem, "devemos aceitar isto e aquilo s6 pelo poderoso motivo de que esta é a opiniao de Sepilveda?”. "Depravou, mentiu nao entendeu a doutrina" de fulano ou sicrano foram expressdes freqiientes do discurso lascasiano. A forma de argitir de Las Casas deixa a impressio de que ele se preparou para discutir, frente a frente, com Sepilveda,earrasé-lo nao 56 com as palavras e as idéias, mas também com os gestos, ora irasciveis, ora paternais; meditativos, como se estivesse orando violentos como se estivesse entrando numa luta corpo-a-corpo. Nao deixou nunca de dirigir-se a Sepdlveda como seu interlocutor fisica- mente presente, e como interlocutores tratou a todas as autoridades invocadas pelo "reverendo doutor”, tratamento irénico seguido de epitetos de "ignorante”, “edndido” e "cheio de soberba”. Entretanto, € necessério registrar que Las Casas teve a vantage deterlido aApologia de Sepilveda; em troca, este nao teve acesso 20s trabalhos preparados pelo frade. Os dois pontos mais importantes da controvérsia referiam-se & condigao de barbarie dos indios e & questo da guerra como meca- nismo prévio & evangelizacio. A afirmativa de Sepiilveda, em relacdo a essas duas questées, constituem seu primeiro e quarto argumentos. Vejamos como se desenvolveu a primeira questio, imaginando os debatedores frente a frente. Para isto, temos sintetizado os argumen- tos, as réplicas e tréplicas, de um e de outro, selecionando partes, 2s vezes textuais, das obras de Septilveda, Apologia e Demécrates, e de Las Casas, Apologiae Apologética historia, acrescidos dos argumen- tos e contra-argumentos transcritos no tratado intitulado Aqui se 125 versia.” Dé yentos, a forma e ritmo de contiene una disputa 0 cont observar © contetido dos argu discurso. Primeira questio: 0s fndios so barbaros e devem ser submetidos pela guerra? ‘Com a palavra o doutor Juan Ginés de Septilveda: forma, seri possiv ida Ilustrissimos e muito magnificos senhores. Eu considero que os indios devem ser reduzidos a0 domfnio dos cristios <« porque So, ou a0 menos eram antes de cair sob o dominio dos cristios, todos birbaros em seus costumes ¢ a maior parte por natureza, sem letras nem prudéncia, e contaminados com muitos vicios bérbaros[..] Se rejeitam a autoridade de pessoas mais huma- nas, mais prudentes, como nés cristios, podem ser obrigados a aceité- la pelas armas. (Apologia, p. 61) Eu penso que isto € verdadeiro, baseado nos santos padres Tomas naalma, a parte racional é a que impera e preside, ea parte irracional std submetida e Ihe obedece; e tudo isto por decreto e lei divina e natural que manda que 0 mais perfeito e poderoso domine sobre 0 imperfeito e desigual. (Demécrates, p. 83) A esta lei esto submetidos os homens ¢ os animais. Por isso, as feras se amansam e sujeitam-se ao império do homem, Por isso, 0 vardo impera sobre a mulher, o homem adulto sobre a crianga, 0 pai sobre seus filhos, quer dizer, 5 mais poderosos e mais perfeitos sobre ‘os mais débeis eimperfeitos, Isso mesmo se verifica entre os homens; alguns, por natureza, so senhores, outros, por natureza, so servos. Os que excediem em prudéncia e em génio aos demais, ainda que no em forga corporal, sio por natureza senhores; pelo contririo, os tardios € preguigosos de entendimento, mesmo que tenham forcas corporais para cumprir todas as obrigagdes necessérias, so por Tatureza servos, e€justoetitil que 0 sejam, pois esté sancionado pela lei divina. Porque esté escrito no livro dos Provérbios: aquele que € néscio servir4 ao sébio. (Demécrates, p. 85) Se os que nasceram para obedecer rejeitassem a servidio, deviam ser submetidos pela guerra que é justa por natureza. "Isto disse Aristételes, e com ele concorda Santo Agostinho em sua carta 4 Vincencio". (Demédcrates, p. 87) Ti e Agostinho, e em Aristételes. Devemos recordar que 0 dominio ¢ potestade nao € de um género 86, mas de muitos, porque de um modo, € como uma espécie de direito, 0 pai manda nos filhos, de outro o marido em sua mulher, de outro o senhor em seus servos, de outro o magistrado nos cidadves, comoutro orei em seus povos eem todos os mortais que esto sujeitos a seu império, esendo todas estas potestades to diversas, todas elas, ‘quando esto fundadas em reta razio, tém sua base no direito natural; ‘emesmo que se apresentem diferentes, se reduzem, como ensinam os sdbios, a um principio s6, a saber: que o perfeito deve imperar e dominar sobre 0 imperfeito, o excelente sobre seu contririo [..] E assim vemos que nas coisas nanimadas, aforma mais perfeita preside edomina, ea matéria obedece ao império daquela; e isto é mais claro manifesto nos animais, onde a alma tem 0 dominio, e € como a senhora,e ocorpoesté submetido, e€comoo servo. Domesmomodo, 39) Tratados de Fr. Bartolomé de Las Casas... op. cit. 1. Osantecedentese detalhes do

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