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K. LANGER SUE Ei ama GUL) estudos estudos estudos Z * EDITORA PERSPECTIVA =S>"" RR Awe EDITORA PERSPECTIVA Préximo lancamento A Politica e 0 Conhecimento Sociolégico F. G. Castles A contribuigio de Susanne Langer para a Teoria do Conhecimento a Estética é reconhecidamente uma das mais importantes do pensamento contemporineo. Desenvolvendo principalmente as propostas filosdficas de Whitehead e Cassirer, escreveu uma obra, Filosofia em Nova Chave, que marcou fundo as pesquisas sobre o papel da estrutura simbélica nos varios dominios da atividade e criatividade hu Sentimento ¢ Forma leva a frente e as ultimas conseqiiéncias a tarefa anteriormente esbocada por via analitica. Agora, Susanne Langer propie-se a copeciticar no sentido mais rigoroso o significado de conceitos como Expressiio, Criacio, Simbolo, Importe, Intuicao, Vitalidade e Forma Organica, de modo a esclarecer a natureza da Arte € sua relagao com 0 sentimento, a autonomia relativa das varias artes e sua unidade fundamental na propria “‘Arte”’, as fungdes do tema ¢ do meio, os problemas epistemologicos da ‘‘verdade”’ e “comunicagao’’ artisticas. Muitos outros problemas siio analisados: pi desempenho € ‘‘criacio”’, “‘recriagdo”’ ou ‘mera habilidade’”’, se 0 teatro ¢ literatura ou niio, por que a danca alcanga 0 zénite de desenvolvimento no estadio primitivo de uma cultura em que outras artes apenas comecam a despontar no horizonte étnico, Todos estes aspectos decorrem evidentemente de questées centrais e, como estas, sio abordadas em sua plenitude. Assim, pode-se descrever 0 propésito rincipal de Sentimento ¢ Forma como o de estabelecer uma infra-estrutura intelectual para estudos filoséficos gerais ou pormenorizados, com respeito a Arte. or exemplo, se 0 Colegio Estudos Dirigida por J. Guinsburg WI tonllenyae ‘Tradugho: Ana _M, Goldberger Coelho e Pade LM Minto” Martins Filho. Susanne K. Langer SENTIMENTO E FORMA Uma Teoria da Arte desenvolvida a partir de Filosofia em Nova Chave Wy, =e 2 EDITORAPERSPEC GF, 2 TIVA Zi Titulo do original Feeling and Form Copyright © 1953, by Charles Scribner’s Sons A meméria de Kenst’ Cassirer Pan Oe ea eee ‘ Maal tty Antinie U4 (an aul imal | epotrme a ia alte Sumario Introdugaio Parte I: O Si{MBOLO DA ARTE . A Medida das Idéias .........0....00 esse sees Filosofia, o estudo de conceitos basicos — doutrinas rivais, um sinal de conceitos inadequados — a teoria da arte, cheia de confusées — seus problemas bAsicos, nao formulados — “falécia da abstragio ébvia” — metodologia e método — generalidades e generalizagdes — requisitos do pensamento filosético — principio de generalizagéo — princfpio de fe- cundidade — fung&o de um problema central — problema da criag%o artistica — emergéncia sistematica de conceitos gerais e problemas especiais — dificuldades e promessas deste empreendimento, . Paradoxos Idéias-chave na estética, heterogéneas — cada uma d& ori- gem a um tipo especial de teoria — complicacdo posterior devida a dois pontos de vista — expressio e impressio — tendéncia das teorias a serem paradoxais — “polaridade” de sentimento e forma — sentimentos na arte, nao senti- tidos — paradoxo do “sentimento objetivo” Baensch, e © sentimento como qualidade — suas distingdes — a velha questéo da “Forma Significante”. 13 VI SUMARIO 3. O Simbolo do Sentimento .......0.....sceeeeeeeee Varios sentidos de “expressio” — todos os tipos encontra- dos na arte — a maioria de tais tipos, nfo peculiares A arte — sumério da teoria especial da misica em Filosofia em Nova Chave — misica, uma expressfio simbélica do senti- mento — sumério da teoria semantica — formas articula- das — import vital — significado de “forma significan- te” em miisica — Clive Bell ¢ a arte plastica — Bell, ¢ a “emogio estética” — “atitude estética” — fonte do conceito — supostas dificuldades da atitude — critica da aborda- gem psicolégica — o sfmbolo da arte — técnica — defini- gio de “arte”. Parte I: A ELABORACAO DO SIMBOLO 4. Semelhanga ........ 6. .ceeeee eee ees “Atitude estética” provocada pela obra — ilusio — ima- gens — o carter virtual destas — semelhanga — Schiller, ea funcgio de Schein — abstragao da forma — forma e contetido — significagéo, como o contetido das formas ar- tisticas — Prall, e as formas sensoriais — sobre o senti- mento na arte — limitagio de seus princfpios — criagio de formas virtuais — a inteng&o como légica da visio ar- tistica — relagaio com o sentimento — movimento e cres- cimento — “forma viva” — criagio. 5, Espaco Virtual Motivos — nfo obras, mas engenhos — formatos sugestivos — forma e representaciio — a pura decoracio expressiva — representagio como motivo — articulacaio visual, o objetivo de toda arte plastica — conformagio do espacgo — espago real e espago virtual — ilusio priméria da arte plastica — seu cardter auténomo — Hildebrand, e 0 “espago perceptive” — “processo arquiteténico” — o plano da pin- tura — terceira dimenséo — “forma real” e “forma percep- tiva” — unidade do espago perceptivo — valores visuais — imitagio e criagio — o espacgo tornado visivel — “vic em obras de arte — expresso de sentimento vital — na- tureza da “expressividade” lusdo priméria, a criagfo ba- sica — elementos e materiais — modos, 6. Os Modos do Espaco Virtual “Cena” virtual — falsa a generalizagio de Hildebrand — forma organica da escultura — “volume cinético” — espa- go subjetivo objetificado — arquitetura e espaco virtual — arranjo e criagio — “dominio étnico” — articulagao organica do lugar — relagio entre escultura e arquitetura — autonomia e unidade das artes. 7. A Imagem de Tempo Interesse nos materiais — teorias do som e audig¢aio — nao teoria musical — respostas nervosas — vibragées — ele- mentos musicais sio formas audiveis — ilusério, seu mo- vimento — ilusdo primdria 6 o tempo virtual — diferenga do “tempo do relégio” — niio unidimensional — a passa- 47 B 91 111 12. . Poderes Virtuais SUMARIO gem, nio uma sucessiio de “cstados” — tensdes incomen- surdveis — tempo musical e pura duragio — a falha de Bergson — misica e a durée réelle de Bergson — misicos, seus criticos realmente construtivos — sem fundamento o temor da “espacializagio” — “espacgo musical” — para- Telos com concepgées de espaco plasticas — outros pro- blemas. A Matriz Musical ... Composigao e apresentagéo — todo organico, a concepgao essencial — “forma dominante” e composic¢io — nao a mesma coisa que a Urlinie — princfpios da arte e princi- pais recursos — muitos tipos de musica — definigo de ritmo — maior ritmo, a “forma dominante” — objetividade da matriz musical. . A Obra Viva ...... cece eee ee tereeeesoeeerresesctens Ambigilidade de “a pega” — audicgao interior e audigio fi- sica — poesia e mdsica néo comparaveis em termos simples — fatores essenciais na audi¢ao fisica — na audicao interior — composig&o incompleta — execugdo, seu acabamento — controlado pela matriz musical — ato de expressar — ex- pressio artistica e auto-expressio — sentimento real pela pega — pathos da voz — formalizagio — imaginacio mu- sical versus “mera técnica” — poder de ouvir — desenvol- vido pela pratica — radio e discos — vantagens e perigos. . O Principio de Assimilagio ........... cece eee eee eeee Palavras e musica — teoria e pratica freqiientemente em desacordo — palavras tornam-se elementos musicais — mas néo meros sons — “superficie estética”, nao a forma perceptiva — a forma “incorpora” materiais estranhos — formas poéticas cindidas — miisica incorpora o teatro — Staiger, sobre Wagner e Gluck — misica sugestiva — princfpios hermenéuticos como motivos — irrelevancia das associagées — o devaneio “incorpora” a musica — é pos- sivel que outras artes fagam o mesmo, A estética da danga apresenta dificuldades especiais — a danga como uma arte musical — opinides e evidéncia em contrario — a danga como arte independente — Nover- re — como arte dramatica — objegdes — a danga, uma arte independente — o gesto, sua abstragio basica — natureza complexa do gesto — subjetivo e objetivo — gestos reais como material — gesto virtual — forgas vitais — forcas da danga como poderes virtuais — os dangarinos e a auto- expressio — a pratica desmente a teoria — sentimento imaginado — semelhanga de auto-expressio — confusio de aspectos reais e virtuais — personagens da danca co- mo seres virtuais — Scheingefiihle — andlise dos proble- mas envolvidos — afirmacées miticas resolvidas — valor da teoria. O Circulo M&gico ......cce ssc scene cece ee eeenere Concepgiio primitiva dos Poderes — o Mundo do Espirito — Cassirer e a “consciéncia mitica” — senso de poder objetificado na danca — evolugdo pré-histérica da danga — Vit 127 139 155 177 197 Vu SUMARIO 13. 14, . Meméria Virtual ........ peeeeeeeee - Curt Sachs e tipos de mente — formas naturais como motivos — o que é criado — ilusio de libertagaio de forgas reais — balé — a danga como aparigio — o dangarino e seu “mundo” — a misica como elemento da danga — espago e tempo balético — efeito da audiéncia passiva — efeitos da secularizagao — entretenimento — efeito da danga na musica — confuséo de pensamento e clareza de intuic&o nos dangarinos — a danga como arte pura. Poesis .....cseececceteenes teen cece nee ee ee eneee A literatura chamada de. arte mas tratada como afirmagio — discurso, seu material — maneiras de dizer coisas — critica e paréfrase — I, A. Richards e compreender a poesia — dizer e criar — a iluséo poética feita pelo dis- curso — vida virtual — toda arte literdria, poética — dois sentidos de “vida” — semelhanga de eventos — forma sub- jetiva — eventos, a abstracio bésica — filosofia na poesia — ficgao e fato — dialeto. — Tillyard e a poesia “direta” e “obliqua” — faldcia dos “significados mais profundos” — poesia nenhuma é afirmacao — legftimos os temas morais — leis da légica e da imaginagio — arte e vida. Vida ¢ Sua Imagem ..........0.seeee eee eeeeeene rene A imaginagaio como desvio da razio — Cassirer, a lingua- gem e a imaginacgéo — Barfield e a linguagem e mito — Freud e os simbolos nao-discursivos — “significados” p: canaliticos, nfo significagéo artistica — significagdo artist ca nao escondida — o estudo de Freud sobre a “légica” nao-discursiva — principio da sobredeterminagio — da ambivaléncia — da auséncia de negativas — da condensa- gio — “obra de sonho” e obra de arte — escolas e Te- cursos poéticos — o ideal da “poesia pura” — a poesia definida como uma experiéncia — como um tipo de lin- guagem — impropriedade de tais tratamentos — a poesia como semelhanga de eventos admite todas as obras poé- ticas — toda poesia boa é “pura” — a realidade de sua significagéo — fontes na vida real — nenhum tema é tabu — transformagio de fato — prosa, uma forma poé- tica. Poesia lirica, 0 caso mais patente de linguagem criativa — niio uma arte de destaque — 0 tempo presente da Ifrica — narrativa, um dos principais recursos literérios — mudanga para o tempo perfeito — forma fechada do passa- do — meméria virtual — caprichos aparentes de tempo (@m_ fungées criativas tempos misturados nas baladas mito ¢ lenda, materiais literérios — nenhuma composi- yen Kom nutoria pessoal — poesia, nao necessariamente ural cnpucidade de ler e escrever e as artes poéticas. Aa Chandos Formas Literérias .,. Cunvengoon poéticas — formas literérias originam-se de fevtitaim oxpecliix — nenhum “valor” liter4rio absolute — {acihan # popdasitos criativos — meios vigorosos tornam AH ee pT Tho técnica da balada — romance — o vere (iin as dlapensivel — ficgéo em prosa — novela, HH CON fener freqlientemente encarada como co- 217 245 269 291 17. 18. 19. SUMARIO mentirio, nfio como arte — ilusfio de “vida sentida” — est6ria e contador de estérias — criagio de personagens — Clive Bell e Proust — ilusdes secunddrias na literatura — 0 fato como o “modelo” — nio-ficgdo como arte apli- cada — explorag&io da forma discursiva como motivo — especializagao de formas — o épico como matriz de todas as formas literdrias. A Ilusio Dramatica Drama € poesia, mas nfo “literatura” — abstragao Dasica, © ato — modo da meméria e modo do Destino — futuro virtual — Morgan e a “forma em suspenso” — inteireza da ag&io dramatica — forma org&nica 4 — situagio — “lo- calizagio” versus “ambiente” — drama, uma arte de cola- boragao — o poeta fornece os discursos — discurso como a culminagéo da aco — deve ser representada — sentimen- to real e ficticio — teoria do faz-de-conta dramatico — Bullough e a “DistAncia psfquica” — o drama como ritual — como divertimento — como obra-de-todas-as-artes — teoria hindu — desmentida pelas prdticas teatrais hindus — o drama como dancga — o drama “incorpora” a danga — Rasa — o drama oriental representa objetos fisicos — todos os elementos do drama so poéticos. As Grandes Formas Dramiticas: O Ritmo Cémico .... Moralismo na teoria dramatica — comédia como critica social — trégico ¢ cémico como pontos de vista — na realidade, estruturas diferentes — senso universal de vida — vida e morte — o ritmo cémico — o destino como Fortuna — o ritmo trégico — 0 destino como Fado — a comédia séria — a “Divina Comédia” — a Nataka — pecas herédicas — comédia e humor — teorias do riso — todas ignoram a “Distancia psiquica” — o humor, um elemento estrutural da comédia — o buféo — o humor como esplendor do drama — muitas fontes da comédia — resposta da audiéncia, nfo um riso comum — o ritmo da vida universal. As Grandes Formas Dramiticas: O Ritmo Tragico .... O ritmo trégico — potencialidade ¢ realizagio — a vida com uma agao total — Fado — tragédia nao é conhecida em todas as partes — “forma dominante” da a¢éo — vida condensada — o “erro tragico” — a tragédia néo ilustra o Fado, mas cria sua imagem — elementos cémicos — subestrutura cémica — fungao do espetaculo — mero espe- t&culo — o drama, nao uma arte hibrida — sua real re- lagao com a vida. Parte III: © PODER DO SiMBOLO Expressividade ....... sees eeeeeeeeeeee siiveuine eres Simbolo da arte, nio um simbolismo — questdes centrais na filosofia da arte — projegdes nao-temporais do senti- mento — vida de sentimento — todos os padrées vitais so organicos — idéias associadas podem variar — in- tuitiva a percepgfo da significagio — Bergson e a intuigdo 1X 319 339 365 383 x SUMARIO — Croce ¢ a intuicio e expressio — conseqiiéncias de sua teoria — Cassirer e a abstracio e insight — o simbolo de arte nio “faz referéncias” ou “comunica” — Collingwood e a arte como “linguagem” — e a sinceridade e corrupgio — ea irrelevancia da técnica — critica de seu livro — te- mor da teoria do simbolo — perigos e vigor de tal teoria — arte e oficio — arte e personalidade — o empreendimen- to do artista. 21. A Obra e Seu Pablico .. Artista e piiblico — objetividade — o esp problemas da percepgao da arte — siguifieagso attistica, nao comentério — sempre sustentada no simbolo — rela- cio de quem percebe nfo com o artista, mas com a obra — natureza real da “emogio estética” — beleza — pri- mazia da responsividade — liberdade e frustracdo da res- posta — antecipagio de forma — efeito da arte na vida — educagfo do sentimento — arte e religiio — efeitos da secularizagio — entretenimento — nao o mesmo que diver- timento — critica de arte — talento e génio — “tempera- mento artistico” — a arte como heranga cultural. Apéndice Uma Nota Sobre o Filme ...........seeeeseceneeees 427 Filme nao é teatro — nfo é pantomima — nao é uma arte plastica — “incorpora” todos os materiais — € um modo poético separado — “presente virtual”, 0 modo do sonho — abstragdo basica € o “carater de ser dado” — camara mével — cardter criativo do filme. Bibliografia 433 Introducao Em Filosofia em Nova Chave* foi dito que a teoria do simbolismo ali desenvolvida deveria levar a uma critica da arte tio séria e de alcance tao amplo quanto a critica da ciéncia que se origina da andlise do simbolismo discursivo. Sentimento e Forma propée-se realizar essa promessa, ser essa critica da arte. Uma vez que essa filosofia da arte apéia-se diretamen- te na teoria semntica acima mencionada, o presente livro nao pode sendo pressupor o conhecimento do anterior pelo leitor; cle tem, de fato, a natureza de uma continuacdo. Prefe- tiria té-lo feito independente do primeiro, mas seu préprio tema é téo vasto — apesar da forma esquematizada que assu- miu algumas vezes — que, para repetir os tépicos relevantes ou, mesmo, os mais essenciais do livro anterior, seriam necessdrios dois volumes, sendo que o primeiro, é claro, teria praticamente repetido o trabalho que ja existe. Assim, devo pedir ao leitor que considere Sentimento e Forma como, efetivamente, o segundo volume do estudo sobre sim- bolismo que se iniciou com Filosofia em Nova Chave. Um livro, tal como um ser humano, nao pode fazer tudo; no pode responder, numas poucas centenas de pé- ginas, todas as perguntas que o Filhote de Elefante, em * Publicado por esta editora, na coleciio Debates, n.° 33. xiL INTRODUCAO sua curiosidade insacidvel, poderia resolver fazer. Assim, posso muito bem afirmar imediatamente o que este livro n4o tenta fazer. Nao oferece critérios para julgar “obras-pri- mas”, nem mesmo para julgar obras menores de um certo sucesso em cOmparacgao com obras menores mal sucedidas — pinturas, poemas, pecas musicais, dangas, ou quaisquer ou- tras. Nao estabelece cAnones de gosto. Nao prediz o que € possivel ou impossivel dentro dos limites de qualquer arte, quais os materiais que podem ser empregados nela, quais os temas que lhe seraéo adequados, etc. N&o auxiliaré nin- guém a ter uma concepgdo artistica, nem o ensinaré como concretiz4-la em meio algum. Todas essas normas e regras parecem-me estar fora do campo do filésofo. O préprio da filosofia é esclarecer e organizar conceitos, dar significados de- finidos e satisfatérios aos termos que empregamos ao falar de qualquer assunto (neste caso, de arte); é como disse Charles Peirce, “tornar claras nossas idéias.” Este livro tampouco coordena teorias da arte com pers- pectivas metafisicas, “hipdéteses mundiais” no dizer de Stephen Pepper. Essa meta nao esta fora da filosofia, mas est4 além do alcance de meu presente estudo filoséfico. Dentro dos limites por mim tragados, posso desenvolver apenas uma teoria da arte, e ndo construir a “hipétese mundial” que po- deria abrangé-la — sem falar de comparar um sistema con- ceitual assim téo vasto com qualquer outro sistema alterna- tivo. Além do mais, existem limitagdes que tenho de aceitar simplesmente com o fim de que minhas prdprias idéias e sua apresentagdo continuem manejaveis. A primeira limitagao & nao rebater explicitamente as muitas teorias, classicas ou correntes, que contradizem a minha em pontos cruciais. Se eu fosse seguir toda refutagdo de outras doutrinas que implica minha linha de argumentagdo, esta ficaria perdida num emaranhado de controvérsias. Conseqiientemente, evi- tei as polémicas tanto quanto possivel (embora nao de todo, evidentemente) © apresentei para discusséo principalmente aquclas idéias de meus colegas e predecessores, baseada na quais posso construir algo, dirigindo criticas contra o que me parecem ser suas limitagdes ou erros. Além disso, tanto quanto foi possivel, releguei os materiais comparativos as notus de rodapé. Isso provoca muitas anotagdes (especial- mente nos capitulos sobre poesia, ficgao e teatro, assuntos tradicionalmente estudados por eruditos, de forma que a literatura erflica sobre eles € enorme), mas permite que o texto prossiga, sem embaragos de quaisquer arabescos de INTRODUCAO XUL saber eclético, e tao diretamente quanto possivel, com o desenvolvimento de seu préprio tema principal. As notas de rodapé tornaram-se assim mais do que meras referéncias a citagdes corroborativas do afirmado, e sao destinadas ao Icitor comum, bem como ao estudioso especializado; abando- nei, portanto, o costume estrito de deixar as citagdes de autores estrangeiros na lingua original e traduzi todas essas Ppassagens para o inglés, tanto nas notas quanto no texto. Portanto, quando nao se menciona nenhum tradutor de um trabalho com titulo em outra lingua, a traducgdo é minha. Finalmente, nada neste livro 6 tratado exaustivamente. Todo assunto, nele, exige posterior andlise, pesquisa, inven- cio. Isso ocorre porque é essencialmene um trabalho de exploracgéo, que — como Whitehead uma vez disse, referin- do-se ao pragmatismo de William James — “levanta princi- palmente uma porgdo de lebres para que as pessoas cacem”. O que Sentimento e Forma propée-se fazer é especificar os significados das palavras: expressio, criagéo, simbolo, significagéo (import), intuigao, vitalidade, e forma organica, de tal modo que possamos entender, em seus termos, a na- tureza da arte e sua relacéo com o sentimento, a autonomia relativa das varias artes e sua unidade fundamental na pré- pria “Arte”, as fungdes do tema e do meio, os problemas epistemolégicos da “verdade” e “comunicagao” artisticas. Muitos outros problemas — por exemplo, se o desempenho & “criagéo”, “recriagéo” ou “mera habilidade”, se o tetatro 6 “literatura” ou néo, por que a danga muitas vezes alcanca © zénite de seu desenvolvimento no estddio primitive de uma cultura onde outras artes estéo apenas surgindo em seu horizonte étnico, para mencionar apenas alguns — decorrem dos problemas centrais e, como estes, assumem uma forma que permite respondé-los. O propésito principal do livro, portanto, pode ser descrito como sendo a construgéo de uma infra-estrutura intelectual para estudos filos6ficos, gerais ou detalhados, relacionados com a arte. Ha certas dificuldades peculiares a este empreendimen- to, algumas das quais de natureza prdtica e outras de nature- za semantica. Em primeiro lugar, a filosofia da arte deve- tia, creio, comegar no estidio, niéo na galeria, auditdério ou biblioteca. Da mesma forma como a filosofia da ciéncia exigiu, para seu desenvolvimento adequado, o ponto de vista dos cientistas, néo o de homens como Comte, Buechner, Spencer e Haeckel, que viam a “ciéncia” como um todo, mas sem nenhuma concepgo de seus problemas reais e XIV INTRODUCAO conceitos operacionais, assim a filosofia da arte exige o ponto de vista do artista para pér a prova a forca de seus conceitos e evitar generalizagées vazias ou ingénuas. O filésofo deve conhecer as artes, por assim dizer, “de dentro”. Mas ninguém pode conhecer todas as artes dessa forma. Isso acarreta uma quantidade 4rdua de estudo nado-académi- co, Seus professores, além do mais, s4o artistas, e estes falam sua prépria linguagem, que resiste amplamente a uma tradugdo para o vocabulério mais cuidadoso, literal, da filo- sofia. E provdvel que isso deixe impaciente o filésofo. Mas, de fato, é impossivel falar sobre arte sem adotar, numa certa medida, a linguagem dos artistas. A razaio pela qual eles falam como o fazem nao é inteiramente (embora seja parcialmente) porque carecam de um treinamento no dis- curso e sejam populares em sua fala; nem eles aceitam, de- sencaminhados por “maus habitos de fala”, uma visio do homem do tipo “fantasma na mAquina”, como sustenta Gilbert Ryle. Seu vocabuldrio é metaférico porque precisa ter plasticidade e¢ forca a fim de permitir-lhes exprimir seus pensamentos sérios e freqiientemente diffceis. Nao podem encarar a arte como sendo “meramente” este ou aquele fenémeno facilmente compreensivel; estio por demais interessados nela para fazerem concessdes a linguagem. O critico que despreza sua fala poética provavelmente esta- r4 sendo superficial ao examind-la, e lhes atribuird idéias que nao defendem, em vez de descobrir 0 que realmente pensam e conhecem. Mas nao basta aprender a linguagem dos estidios; sua tarefa como filésofo, afinal, é empregar o que sabe para construir uma teoria, nado um “mito operacional”. EB, quando ele se dirige a seus préprios colegas, encontra uma nova dificuldade semantica: em vez de interpretar as metdforas dos artistas, agora tem de lutar contra as excentricidades do uso profissional. Palavras empregadas por ele com toda sobriedade e exatidiéo podem ser usadas em sentidos intei- ramente diferentes por escritores tio sérios quanto ele. Considere-se, por exemplo, uma palavra em torno da qual todo este livro est4 construido: “simbolo”. Cecil Day Lewis, em seu excelente livro The Poetic Image, atribui-lhe sempre o significado daquilo que chamei de “simbolo atri- ‘buido”, um signo com um significado literal fixado por con- -vengéo; Collingwood vai ainda mais longe e limita o termo a signos escolhidos propositalmente, tais como os simbolos da légica simbélica. Depois ele estende o termo “lingua- gem” a fim de cobrir tudo o que eu chamaria de “simbolos”, INTRODUCAO. XV incluindo {cones religiosos, ritos e obras de arte. Albert Cook, por outro lado, opée “simbolo” a “‘conceito”; por este, entende o que Day Lewis significa com “‘simbolo’, mais tudo © que ele (Cook) condena como “mecénico”, tal como a comédia de Rabelais. Fala da “infinita sugestividade do wimbolo”?, Evidentemente, “simbolo” significa algo vaga- mente honroso, mas no sei o qué. David Daiches tem ainda outro uso e, de fato, uma definig&io: “Como usado uqui”, diz ele em A Study of Literature, “ele (‘simbolo’) simplesmente significa uma expressio que sugere mais do que diz”3, Mas logo depois restringe seu sentido de maneira muito radical: “Um sfmbolo é algo em que os homens sen- s{veis reconhecem seu destino potencial...”*. Aqui o signifi- cndo de “simbolo” pode ser ou nao o mesmo que Cook tem em mente. ‘Tudo o que os pobres filésofos podem fazer é definir suas palavras e confiar em que o leitor tenha a definigio em mente. Freqiientemente, entretanto, o leitor nao est4 pronto pura aceitar uma definigéo — especialmente se esta, de algum modo, for pouco usual — até ver o que o autor pretende com ela, até ver por que a palayra deve ser assim definida; e pode ser que isso ocorra quando a leitura do livro j4 esteja bem adiantada. Minha prépria definigao de “simbolo” ocorre, exatamente por essa razio, no Cap. 20; ¢ como ele se acha realmente muito longe, talvez seja melhor exp6-la aqui, com a promessa de que o livro a elucidaré e justificara: Simbolo é qualquer artificio gragas ao qual po- demos fazer uma abstracao. Quase todas as palavras-chave num discurso filo- s6fico sofrem da ampla variedade de significados que lhes foram atribufdos na literatura anterior. Assim, Eisenstein, em The Film Sense, usa “representagéo” para o que geral- mente chamamos de “imagem”, e “imagem” para algo nao ne- cessariamente concreto — o que eu chamaria de “impressio”. Porém sua palavra “imagem” tem algo em comum com “imagem poética” de Day Lewis; além disso, cumpre dizer oO seguinte em seu favor: ambos sabiam, e nos dao a sa- ber, o que querem dizer com ela. Um termo mais dificil, e de fundamental importancia neste livro, é “ilusio”. Ele é geralmente confundido com “delusio”, motivo pelo qual fazer-Ihe mengao em conexao 1. Uma discussio bastante completa do trabalho de Collingwood 6 apresentada mais adiante, no Cap. 20, 2. The Dark Voyage and the Golden Mean, p. 173. 3. Ibid, p. 36. 4. Loe,’ cit., infra. XVI INTRODUCAO com a arte geralmente desperta protestos imediatos, como se a gente houvesse sugerido que a arte é “mera delusao”. Mas a iluséo como ocorre na arte nada tem a ver com a de- lusdo, nem mesmo com o auto-engano ou com a simulagdo. Além das dificuldades apresentadas para a teoria da arte em geral pela boa ou ma reputacéo de palavras, o que interfere com o significado estrito delas, e até mesmo pela variedade de seus significados definidos na literatu- ra, cada arte tem seu incubo especial de idéias erradas na- turais. A misica sofre mais do que qualquer outra arte pelo fato de ter marcantes efeitos somaticos que, com fre- qiiéncia excessiva, sio tomados por sua virtude essencial. A aflicgéo da literatura é sua relagio com o fato, com a verdade da proposicio; do teatro, sua proximidade com as questGes morais; da danga, o elemento pessoal, o interesse sensual; da pintura e escultura, o pseudoproblema da “imi- tagao”; da arquitetura, o fato ébvio de sua utilidade. Lutei contra todos esses aspectos o melhor que pude; no fim, entretanto, espero que nao sejam as refutagdes diretas, mas sim a prépria teoria, a idéia sistematica inteira que ira dis- persar os preconceitos especiais, bem como os gerais. Pelo final do livro, poder-se-ia muito bem esperar que as idéias desenvolvidas em relagio a alguma arte conside- tada isolamente fossem generalizadas e transportadas para as outras artes. Muitas vezes o leitor poder fazé-lo, e ficara pensando por que deixei de fazé-lo. A razio é que, quando eu efetuar um relacionamento entre as artes e demonstrar sua unidade fundamental, fa-la~-ei de maneira sistemdtica; ser4 um outro livro. Nada neste ensaio, portanto, est4 terminado, nem po- deria a teoria da arte jamais estar terminada. Pode ser que haja novas artes no futuro; poder4 haver com certeza novos modos de qualquer arte; nossa prépria época assistiu ao nascimento do cinema, que nao é apenas um novo meio, mas é um novo modo (ver o apéndice, “Uma Nota sobre o Filme”). Mas, assim como Filosofia em Nova Chave era uma promessa de uma filosofia da arte, este livro, espero confiantemente, é um comego de algo passfvel de continuagdes infinitas. Provavelmente nao seria nem um comego — nio seria absolutamente nada — ni fosse o apoio constante de varios amigos que me auxiliaram. Por quase quatro anos gozei, gragas ao patrocinio da Universidade de Columbia, do auxilio da Fundagdo Rockefeller, que aliviou minha carga de ensino, de modo que pudesse dedicar-me 4 pesquisa e INTRODUCAO XVI quo me deu, também, parte do tempo, um assistente ines- timfvel. Agradeco a ambas, 4 Fundagio e a Universidade, de todo coragio. Os agradecimentos que devo Aquele assis-" tonte, Eugene T. Gadol, nao podem ser dados facilmente; ulém de colocar 4 minha disposig&o seus conhecimentos es- pecinlizados sobre 0 teatro, ele esteve associado com o tra- hulho quase que constantemente e, de fato, foi minha mao dircita, Além do mais, quero expressar minha gratidéo especial a Helen Sewell, que me deu o ponto de vista do urlista a respeito muitas coisas, e leu e releu o manuscrito; d luz de suas criticas vigorosas e francas, o Cap. 5 foi quase que totalmente reescrito, e os defeitos que ainda retém devem-se ao fato de que ela nfo o escreveu. Também devo ugradccer a Katrina Fischer pela assisténcia 4 pesquisa que me proporcionou no Cap. 18 e 4 minha irma, Ilse Dunbar, pelo auxilio com as muitas tradugdes de fontes francesas e alemis; a Alice Dunbar pelos conselhos de escultor e por sua ajuda de Ultima hora a fim de preparar 0 manuscrito para o prelo; e a Kurt Appelbaum por ler quase que o trabalho intei- to ec por beneficiar-me com as bem ponderadas reflexdes de um misico. Meu débito para com varios de meus antigos alu- nos esté, penso, suficientemente claro no texto. Mas devo acrescentar uma palavra de apreco ao espfrito de cooperagéo com que o pessoal de Charles Scribner’s Sons, especialmente o Sr. Burroughs Mitchell, permitiu que este volume tomasse forma de acordo com as minhas esperangas. Um livro que entra no mundo com uma carga t&o pesa- da de gratidio € quase um empreendimento comunitdrio. Espero que a comunidade de artistas, amantes da arte e es- tudiosos o receba com interesse continuo e o mantenha vivo através de criticas sérias. S.K.L. Hurley, N. Y. Parfe |: 0 SIMBOLO DA ARTE 1. A Medida das Idéias A filosofia € uma textura de idéias. Nao 6, como a ciéncia, um corpo de proposicgées gerais que expressam fatos descobertos, nem um conjunto de “verdades morais” apren- didas por algum meio que nao o da descoberta fatual. A filosofia € um levantamento das idéias em cujos termos se exprimem fatos e leis, crengas, m4ximas e hipéteses — é, em suma, o estudo da estrutura conceitual em que sao feitas todas as nossas proposigdes, verdadeiras ou falsas. Lida fundamentalmente com significados — com o sentido do que dizemos. Se os termos de nosso discurso foram incompativeis ou confusos, toda a especulacao intelectual a que pertencem fica invalidada, e neste caso nossas su- postas crengas nao sao falsas, mas sim esptirias. O indicio comum de confuséo em nossas idéias bAsi- cas referentes a qualquer tépico é a persisténcia de doutri- nas Tivais, todas muitas vezes refutadas, porém ainda nao abandonadas. Num sistema. de pensamento que é fundamen- talmente claro, mesmo que nao o seja inteiramente, as no- vas teorias geralmente tornam obsoletas as antigas. Num campo onde os conceitos basicos nao sao claros, enfoques e terminologias conflitantes continuam, lado a lado, a recru- tar adesdes. Este é notoriamente o caso no campo da critica de arte. Todo juizo cuidadosamente elaborado baseia-se, evidente- 4 SENTIMENTO E FORMA mente, em algum tipo de base teérica, porém os maiores conhecedores deste campo na verdade nao conseguem de- senvolver uma teoria interessante que preste contas de suas descobertas. As reflexGes filoséficas sobre a arte consti- tuem uma literatura vasta e fascinante que abrange desde tratados eruditos até as belas-letras em seu estado mais puro — ensaios, aforismos, memérias, até mesmo poesia. Assen- tou-se, neste saber acumulado, uma profusaio de doutrinas, constituindo algumas o melhor de uma longa tradigio, en- quanto outras, insights (introvisdes) geniais, sao bem no- vas, assistematicas porém profundas, todas numa exuberan- cia confusa que obscurece as conexGes naturais de uma com as outras, com a histéria e com a vida real das artes criativas. As préprias artes, entretanto, demonstram uma unidade e uma légica notaveis, e parecem apresentar um bom cam- po para o pensamento sistematico. Por que a confuséo? Por que as teorias desconexas, o perigo constantemente alega- do de perder-se contatos com a realidade, os numerosos pri- meiros passos filos6ficos que ainda deixam de tornar-se estru- turas intelectuais organicas? Uma teoria da arte verdadeira- mente esclarecedora deveria erigir-se a partir de importantes introvis6es artisticas e desenvolver-se de modo natural por etapas, tal como os grandes edificios do pensamento — mate- matica, légica, ciéncia, teologia, direito, hist6ria — evoluem de raizes perenes até niveis cada vez mais elevados de suas préprias implicagdes. Por que nao ha uma teoria sistematica similar para a arte? Penso que a explicagao para isso esté em que os pon- tos centrais na apreciagaéo e compreensdo da arte, por mais claros que possam ser na pratica, néo foram filosoficamente analisados e reconhecidos como aquilo que eles realmente sao. Uma disciplina sistem4tica torna-se organizada apenas a medida que seus problemas-chave s4o formulados, e fre- qiientemente esses problemas, cuja solugao iria requerer e gerar uma terminologia eficiente e um principio operacional, sao obscurecidos pela ocorréncia de perguntas dbvias, colo- cadas imediatamente pelo bom senso e consideradas “bAsi- cas” por serem dbvias. Tais perguntas sao: Quais sao os materiais da arte? O que é mais importante, forma ou con- tetido? O que é o Belo? Quais so os c4nones de composigao0? Como uma grande obra de arte afeta o contemplador? Muitas delas tém sido debatidas por centenas de anos, mas no mo- mento em que chegamos a uma conclusio quanto as respos- tas, a teoria nao avanga mais. Adotamos uma posigao e detemo-nos nela. A MEDIDA DAS IDEIAS 5 Todas cssas perguntas sao bastante legitimas, e o pro- pésito de uma filosofia da arte é respondé-las. Mas como pontos de partida de uma teoria elas séo nocivas, porque silo produtos do “bom senso” e conseqiientemente impingem om nosso pensamento o vocabulario e toda a estrutura con- ccitual do bom senso. E com esse instrumental nao pode- mos pensar além do lugar-comum. HA certos mal-entendidos a respeito do pensamento filoséfico que se originaram, bastante estranhamente, da prépria preocupagdo de filésofos modernos com o método, da aceitagio de principios e ideais que soam impecdveis quando os aprovamos em conferéncias e simpésios. Um desses principios é que a filosofia trata de nogées gerais. ssa maxima é repetida quase que em todos os textos intro- dutérios, e proclamada em relagéo a uma ou outra coisa em todo congresso filoséfico. A énfase é sempre sobre as “no- gies gerais”; porém o interessante é que confessamos lidar com elas, e que esse trato é filosofia. O efeito imediato desse principio é fazer com que as pessoas iniciem suas pesquisas com a atencado voltada para us generalidades: belo, valor, cultura, e assim por diante. ‘Tais conceitos, entretanto, néo tém nenhuma virtude siste- mitica; nfo so termos descritivos, como o so os con- ccitos cientificos, por exemplo os de massa, tempo, situagdo, cic, Nao tém unidade e nao podem ser combinados em proporgGes definidas. Sao “qualidades abstratas” tal como os conceitos elementares da filosofia grega da natureza — umidade e secura, calor e frio, leveza e peso. E, assim como nenhuma fisica jamais resultou da classificagéo das coisas de acordo com tais atributos, da mesma forma nenhuma teoria da arte emerge da contemplagio de “valores estéticos” . O desejo de tratar com idéias gerais desde o inicio, por supor-se que esse seja o trabalho dos filésofos, leva-nos ao que pode ser chamado de “a faldcia da abstragao ébvia”: a abstragéo e esquematizacao das propriedades mais ébvias ao bom senso, tradicionalmente reconhecidas e incorporadas no “modo material” da linguagem. Em vez de reiterar constantemente que a filosofia lida com idéias gerais, ou com “coisas em geral”, deve-se consi- derar o que ela faz em relag&o as nogGes gerais. Penso que ela, propriamente, as constréi. A partir do qué? A partir das nogées mais especfficas que usamos ao formular nosso conhe- cimento especial e particularizado — o conhecimento pré- tico, cientifico, social ou puramente sensivel. Seu trabalho € um constante processo de generalizagéo. Esse processo 6 SENTIMENTO E FORMA requer uma técnica légica, imaginagZo e engenhosidade; nao & alcangado se se principia com generalidades do tipo: “Arte € expressio” ou “Beleza é harmonia”. Proposigdes desta espécie deveriam ocorrer ao final de uma indagagao filo- s6fica, ndo em seu ponto de partida. Ao final da indagacao, elas sio sumarios de idéias explicitas e organizadas que lhes atribui um significado, porém como ponto de partida pre- julgam demasiado e nao fornecem termos para sua prépria elucidagao. Outro produto infeliz de nossa autocritica profissio- nal é o dogma de que a filosofia, na verdade, nunca pode alcangar sua meta, uma viséo completamente sintética da vida. Pode apenas aproximar-se de seu objetivo. Ora, mesmo que haja um limite ideal para nossa compreenséo Progressiva (o que pode ser posto em diivida, pois um insight sinético desse tipo cheira a uma “totalidade ilegiti- ma”), tal limite nao proporciona nenhuma medida de reali- zagio efetiva. Pelo contrério: quando todos estao devida- mente impressionados com a impossibilidade de realmente estar a altura de um desafio, pode-se exigir indulgéncia em demasia; todo fracasso pode ser desculpado como sendo “mera aproximagéo”. Em conseqiiéncia disto, hoje pratica- mente nado hé um padrao de trabalho filoséfico. As publi- cagées profissionais esto cheias de argumentos ultrapassados que nao fazem progredir seus tépicos de modo nenhum, e Os congressos deixam suas profundas sugest6es tao irrespon- didas e irrespondiveis como antes. A espécie de esforco e engenhosidade utilizados na solugéo de problemas cientificos ou histéricos analisariam e eliminariam de imediato as dé- vidas, substituindo-as por outras mais importantes e suges- tivas e a seguir inventando meios de encontrarem-se respos- tas reais. Quando ha recompensas para respostas definitivas, as pessOas gastam uma boa parcela de tempo e trabalho na procura de artificios intelectuais para a manipulagao de ques- tées dificeis. Os cientistas raramente falam sobre 0 método cientifico, mas freqiientemente encontram os mais elabora- dos c tortuosos modos de revirar uma questo a fim de tor- nG-la acessivel a algum método de investigacdo que possibili- taré uma solugio. E o problema que orienta a abordagem. Por outro lado, os fil6sofos normalmente decidem sobre uma abordagem dos problemas filoséficos em geral e a seguir en- tregam-se ds questdcs seculares — tao tradicionalmente mas- tigadas que j4 tém nomes com maidsculas: o Problema do Sor, o Problema do Mal, etc. — tal como foram formuladas por Platio ou por seu mestre, Parménides. A MEDIDA DAS IDEIAS 7 Nao obstante, a filosofia 6 uma especulagao ativa, e as questées filoséficas nao sao, por sua prépria natureza, inso- ldveis. Na verdade, sao radicalmente diferentes das ques- t6es cientificas, porque dizem respeito as implicagdes e outras inter-relag6es de idéias, e néo 4 ordem dos eventos fisicos; suas’ respostas sio mais interpretagdes do que relatérios fatuais, e sua funcfo nao é aumentar nosso conhecimento da natureza, mas sim nossa compreensio daquilo que sabe- mos. Na verdade, o desenvolvimento da conceituagao, que é a meta da filosofia, tem uma influéncia direta sobre nossa capacidade de observacao dos fatos, uma vez que é a concei- tuagao sistemdtica que torna alguns fatos importantes e outros triviais. Lineu, pioneiro nas ciéncias naturais com suas abstrag6es qualitativas ébvias, classificou as plantas de acordo com as cores de suas flores; uma conceituacéo mor- folégica da botdnica, que relaciona toda e qualquer parte de uma planta ao organismo inteiro e que, mais, combina a vida vegetal com a vida animal num esquema biolégico, faz com que a cor das flores seja um fator sem importancia. HA uma filosofia da natureza, gradualmente desenvolvi- da por homens como o Poincaré, Russell, Lenzen, Weyl, que é subjacente a nossas ciéncias naturais; e ainda que possa estar muito aquém do ideal “sinético”, um trabalho filosdfico como, por exemplo, o que Whitehead efetuou no campo, es- clarece nossos conceitos de ordem fisica, de existéncia organi- ca, de mentalidade e conhecimento. De forma semelhante, a filosofia da matematica fez dessa antiga disciplina um paradigma de clareza intelectual e de operacionalidade. Os pensadores que construiram esses sistemas conceituais dei~ xaram de lado todas as doutrinas rivais do Ser, Valor e Mente, © partiram de problemas bem especiais — o significado de “simultaneidade” em observagées astrondmicas, ou o signifi- cado de (- 2)! na série dos nimeros, ou de “ponto sem di- mensdo” em mensuragao fisica. Observe-se que estas sio todas questées filoséficas — todos, problemas de significa- do; mas, por serem questées especiais, os significados a se- tem interpretados devem satisfazer exigéncias definidas e bastante complexas. A definic&o de “simultaneidade” cés- mica, por exemplo, precisou de uma completa reconstrugao das nogées de espago e tempo. A interpretagaio de (- 2)? exi- giu uma teoria de séries matemdaticas para justificar o uso muito conveniente desse enigmatico simbolo. O conceito de ponto sem dimensdo, ou pura locagdo, levou a teoria de Whitehead sobre a “abstragao extensiva” — uma nogéo filoséfica muito importante. 8 SENTIMENTO E FORMA Geralmente, tais idéias acabam por demonstrar que tém uma aplicagao tanto geral como particular — ou seja, descobre-se que so capazes de generalizacdo, uma vez que tenham sido formuladas em pormenor para seus propésitos especiais. A colocagao dessas idéias em sua forma especial implica muitas outras proposigées colocdveis nos mesmos termos, e sugere ulteriores definigdes. E, 4 medida que se desenvolve a andlise filos6fica dos conceitos basicos, o assun- to torna-se mais e mais sistemdtico; a partir do foco central dos problemas reais que se esclareceram, formas simi- lares apresentam-se em todas as diregdes até que possa resultar toda uma cosmologia, ontologia ou epistemologia. Uma tal filosofia é elaborada através do principio da genera- lizagéo. Perfaz um todo tnico, e no entanto nao pode ser re- sumida na afirmac&o de uma tinica crenca e escolhida ou re- jeitada como sendo “isto-ou-aquilo-ismo”; tampouco pode ser simplesmente “‘aplicada” na interpretagio da experiéncia co- mo um todo. Os principios da construgao légica habilitam-nos a lidar eficientemente com a experiéncia, mas nfo nos ofere- cem construg6es j4 prontas. Evidentemente, “o método cientifico em filosofia” tem sido discutido desde que Bertrand Russell, quando jovem, langou seu vigoroso ataque contra a metafisica tradicional. No entanto, método cientifico nao é a mesma coisa que mé- todo filoséfico. Hipéteses e experimentos nao ocupam lugar de honra na filosofia, como o fazem na ciéncia; os fatos e as conexdes entre os fatos sao, para a filosofia, pontos de partida, ao invés de descobertas. As descobertas sao idéias — o significado do que dizemos, néo apenas sobre os fatos naturais, mas sobre todos os assuntos de interesse humano, sejam quais forem: arte, religido, razio, o absurdo, liberdade ou o célculo. Somente uma estrutura de ulteriores signifi- cados atribui um valor real a tais palavras gerais. A claboragio de uma teoria — “a arquitetura de idéias”, no dizer de Charles Peirce — envolve mais consideragdes légicas do que as pessoas geralmente percebem quando dis- cutem metodologia, Nao basta examinar o campo de estudo, dividi-lo no que parecem ser seus elementos constituintes mis simples ¢ descrevé-lo como um padrao destes “dados”, ‘lal padrio & ordenado como um indice alfabético den- (ro do qual tudo 0 que é conhecido pode ser localizado, mas iho fornece pistas para coisas desconhecidas. Para cons- trulr uma teoria, devemos comegar com proposigdes que tonhum dmplicacgdes; 0 pensamento teérico é a ampliacao das consoqliénclas destas implicagdes, Portanto, nem toda afir- A MEDIDA DAS IDEIAS 9 maco verdadeira sobre a ciéncia, arte, vida ou moral é uma “abordagem” do estudo sistematico do tépico em questo; a afirmagao deve conter idéias que possam ser manipuladas, definidas, modificadas e usadas em combinagdes; deve ser tao interessante quanto verdadeira. Esta exigéncia légica pode ser chamada de principio de fecundidade. Considere-se, como um bom exemplo de pensamento construtivo, a reinterpretagdo dos fatos fisicos que Newton propés em seus Principia mathematica sob a designagdo abso- lutamente correta de “filosofia natural”. A lenda diz que o primeiro fato que ele descreveu em termos novos foi a queda de uma macd. A queda de uma maga na terra sempre foi um fato comum, mas o fato de a maga ser atraida pela Terra expressa uma grande idéia. O que a torna grande, em pri- meiro lugar, é que ela é passivel de generalizagdo. Esta claro que podemos também generalizar a “queda” da maca e dizer: “todas as coisas tendem a cair para a Terra”, mas esta regra tem excegdes. A lua nao cai, nem as nuvens. Mas “Todas as massas atraem-se” nado tem excegdes. “A maga é atraida pela Terra” serve tanto para descrever com precisio a mesma observacéo como a frase “a maga cai”, porém é verdadeira mesmo quando a mac fica pendurada, e continua a sé-lo quando a maga esté apodrecendo no chiio. Pode-se dizer também a mesma coisa da lua, embora a lua nunca “caia” (ou seja, nunca chega 4 Terra) e das nuvens que flutuam indefinidamente, e até mesmo do sol. A segunda caracteristica que valoriza a interpretagado de Newton é sua fecundidade, pois o conceito de “atragado” requer um elemento dindmico que esteve ausente de toda a fisica matematica anterior. Todos os sistemas puramente geométricos exigiam a suposigéio de algum agente especial, fora do mundo, que a este fornecesse seu movimento. Mas a atragao era uma forga e, portanto, uma fonte de movimen- to dentro do sistema fisico. Além do mais, ela podia ser medida, e sua medida provou ser proporcional as condigées mais familiares de massa e distancia. Quase que no mesmo momento em que “a nova filosofia natural” foi proposta, deu ela origem a uma ciéncia da fisica. A critica de arte nfo € ciéncia, porque niao esté preo- cupada com a descrigéo e previsiéo de fatos. Mesmo que suas premissas fossem claras e coerentes, e eficientes os seus termos, ela permaneceria uma disciplina filoséfica, pois todo seu objetivo é a compreensio. Mas os principios de generalizacdo e fecundidade nao sao, essencialmente, princi- pios da ciéncia; séo princfpios do pensamento filoséfico, e é 10 SENTIMENTO E FORMA apenas na medida em que a ciéncia é uma formulacio intelec- tual que ela os compartilha. Talvez seja por isso que os defensores do “método cientifico” para a filosofia negligen- ciaram amplamente esses principios. S6 onde foi feito um verdadeiro trabalho filoséfico — por exemplo, ao estabele- cerem-se as bases da ciéncia, jurisprudéncia e teologia medievais — é que tais principios receberam uma aceitacio tacita. EB especialmente nos dominios indefinidos e assistemati- cos do pensamento que um tnico problema, cuja solugdo é perseguida obstinadamente, pode trazer 4 tona um novo voca- buldrio I6gico, isto é, um novo conjunto de idéias que vai além do problema em si e que forga uma concepcao mais operacional de todo o campo. Levar tal problema para o foco de nosso interesse 6 comecar um trabalho sério com o assunto em questéo. E isso que me proponho fazer com a filosofia da arte. Parece-me que, dentre todas as especulagdes dos estetas e as conversas de estidio dos artistas, nao devi- damente refletidas porém significativas, um ponto crucial nunca chega a ser encarado de frente, sendo sempre rodea- do com uma espécie de reveréncia intelectual ou tratado emocionalmente sem que se faca nenhuma exigéncia quanto a questéo do significado: 6 o problema da criag&o ar- tistica. A obra de um artista é realmente um processo de criagéo? O que, na verdade, é criado? Haverd uma justifica- tiva para o conceito bastante popular de que se deve falar, antes, em re-criag@o do que na criacdo de coisas na arte? Ou seré sentimentalismo toda a idéia de “trabalho criativo”? Todas essas perguntas, e varias outras, apresentam aspectos distintos de um mesmo problema. A solucio desse problema responde-as a todas com igual exatidéo. Mas ela ela requer uma certa reorientagéo entre as idéias familiares da filosofia e da critica de arte. Essa solugfo exige um tra- tamento mais rigido do termo “expressio”, e d4 um senti- do tnico e nado misterioso 4 “intuigéo”. Acima de tudo, tal solugao acarreta uma formulagao especial de quase todos os grandes problemas relativos 4 arte, notadamente aquele sobre a unidade das varias artes, face ao fato freqiientemente negado, mas patente, de sua divisdo real; 0 do paradoxo da abstragaéo numa moda supostamente caracterizada pela con- cretude; o da significag&o do estilo, o do poder da técnica. Uma vez respondida a pergunta: “O que a arte cria?”, todas as perguntas posteriores de por que e como, de personalida- de, talento c¢ génio, etc., parecem emergir da tese central sob uma nova luz. Isso quer dizer, simplesmente, que a tese é A MEDIDA DAS IDEIAS 1 central, e que o problema que a originou é fecundo e, em Ultima andlise, geral. A medida que o assunto se organiza, as idéias que foram aventadas no passado assumem uma nova significado, e descobre-se que neste campo ja foi feito um nimero sur- preendente de bons trabalhos. A literatura da teoria da arte, que parece tao incoerente e tao atravancada com “abor- dagens” infelizes, na verdade é rica em pensamentos vitais e descobertas valiosas, eruditas. Nao é preciso comecar com uma tabula rasa e traba- Thar desafiando escolas; as sementes da teoria filoséfica, e muitas yezes suas raizes substanciais, esto por toda parte. De uma certa forma, isso complica o trabalho: as literatu- ras combinadas de todas as artes, bem como uma grande parcela da filosofia e psicologia, formam um pano de fundo intelectual tao vasto, e as contribuigdes importantes ao conhecimento acham-se tio profundamente enterradas, que uma verdadeira erudi¢éo num dominio tio amplo e fértil as- sim é humanamente inatingivel. Os primeiros passos de qual- quer nova teoria que se proponha iniciar pela prépria arte, onde “arte” compreende misica, literatura e danca, bem como a expresso plastica, sfo inevitavelmente débeis e casuais. Mas uma filosofia nao é feita por uma tinica pessoa; 0 corpo total de uma disciplina no pode estar contido nos horizontes de pessoa alguma individualmente considerada. S6 se pode reunir dados suficientes para cada propésito ime- diato — no caso presente — para substanciar o tratamento de um assunto altamente importante, porém especial, que é o problema da criagdo aristica. Se esse tratamento real- mente possibilitar uma visio da teoria da atte em geral, a literatura anterior a nés (conhecida ou nao por qualquer pensador em especial) e as questdes ainda a nossa frente devem assumir, nessa perspectiva, suas formas e lugares ade- quados, onde quer que as encontremos no desenvolvimento do pensamento filoséfico. 2. Paradoxos Nos tiltimos duzentos anos — isto 6, desde os dias de Winckelmann e Herder — os filésofos tem continuamente ponderado sobre a significagio e motivagio das artes. O problema da arte tem até sido honrado como um departa- mento especial da filosofia sob o nome de “estética”, defi- nida de varias formas como “a ciéncia do belo”, “a teoria ou filosofia do gosto”, “a ciéncia das belas-artes”, ou, ulti- mamente, (na frase de Croce) “a ciéncia da expressio”. Todas essas definigdes abordam o problema de maneira mais ou menos torta. Um interesse filoséfico num deter- minado assunto, tal como gosto, ou belo, ou mesmo o grande tépico da “expresséo”, nao funda uma ciéncia; se “o belo” € o campo da estética, esse campo é mais amplo do que o das belas-artes; da mesma forma é o 4mbito da “expresséo”. Gosto, por outro lado, 6 apenas um dos fe- némenos relacionados ao belo (tanto na arte quanto em outros setores) e ele esté relacionado nao menos ao decoro e 4 moda. Talvez seja melhor nao mapear antecipa- damente um continente desconhecido, mas simplesmente es- tudar sejam quais forem os problemas filoséficos apresenta- dos pelas artes e confiar em que qualquer andlise cuidadosa e manipulacao construtiva de até mesmo questées bem espe- ciais (por exemplo, “O que € expresso na arquitetura?”, “O desempenho musical é um ato criativo?” ou “O gosto esté 14 SENTIMENTO E FORMA relacionado com o talento?”) mostrar4 logo suas inter-rela- gdes e definira o campo geral de sua relevancia. Enquanto isso, mesmo nos confins vagos e arbitrarios de uma pseudociéncia, tem sido feito uma grande quantida- de de reflexdes, ora em intima conexéo com a filosofia em geral, ora como uma incursao teérica a partir da critica. No curso dessa séria reflexio sobre as artes, emergiram certas idéias dominantes que se constituem numa espécie de voca- buldrio intelectual da estética contemporanea. Elas estio todas relacionadas, ao menos indiretamente, umas com as outras, porém os relacionamentos néo sao nada claros e simples e sao, efetivamente, muitas vezes antinédmicos. Algu- mas das préprias idéias dominantes parecem acarretar difi- culdades ldégicas. Em linhas gerais, essas idéias, que ocorrem repetidas vezes sob diversas formas e combinacées, séo: Gosto, Emo- gio, Forma, Representagéo, Imediatidade e Ilusio!. Ca- da uma delas é um forte Leitmotiv na filosofia da arte, po- rém as teorias nelas baseadas, respectivamente, tem uma maneira peculiar de ou entrar abertamente em choque umas com as outras ou deixar ao menos um tépico completamente fora de consideragio, Assim, as teorias da arte como satisfa- cao sensual, isto é, apelo ao gosto, precisam negociar mui cuidadosamente com a emogdo e tracar estritamente os limites da representagéo. As numerosas teorias com base na emogao s6 podem fazer do gosto e, o que é pior, da forma, um tépico de pouca importéncia, Aquelas que dao suprema- cia 4 forma em geral vetam qualquer apelo 4 emogao e, fre- qiientemente, consideram a representagio um andtema ao invés de uma vantagem; aquelas que se baseiam principalmente no conceito de representagéo dao-se bem com a iluséo, e até com a emogao, mas nao podem tratar da forma como um valor independente e reduzem a fun¢gio do gosto a um mero officio de censura. A imediatidade, que é uma virtude metafisica da realidade pura, ou da indi- vidualidade concreta, acarreta a idéia de intuig¢@o como uma percepgio direta de tudo o que ha para conhecer sobre uma obra de arte, Encaixa-se bem nas teorias do gosto, e é ao menos compativel com a maioria das teorias baseadas na emogio ¢ com os tratamentos mais sutis da representagao; My mio, como se supe Comumente, com a nogdo de arte enquanto forma, EB impossivel de estabelecer logicamente 1 Quntquer antologin de estética fornecer&é exemplo: A Modern Nuk of Aeathettes, do Molvin Rader, por exemplo, classifica as teorles somo "Coortna imoclous", “Leorlas da Forma”, etc. PARADOXOS. 15 a unicidade de uma forma. Nenhuma forma é necessaria- mente Unica e, a falta disso, o caréter de unicidade nao po- deria servir para conferir-Ihe um status metafisico. Quanto ao motivo da ilusdo, geralmente est4 unido a seu oposto, a realidade, e serve mais para levantar dificuldades do que para resolvé-las. Freqiientemente essa é a béte noire a ser explicada e afastada do caminho. A desordem geral de nossos recursos intelectuais no campo da estética agrava-se ainda mais pelo fato de haver duas perspectivas opostas a partir das quais toda obra de arte deve ser vista: a do autor e a dos espectadores (ou ouvintes, ou leitores, conforme o caso). Uma perspectiva apresenta-a como uma expresséo, a outra como uma impresséo. Par- tindo do primeiro ponto de vista, pergunta-se naturalmen- te: “O que induz um artista a compor seu trabalho, o que faz parte deste, o que o artista quer dizer (se quiser dizer algo) com ele?” Partindo do segundo, por outro lado, a per- gunta imediata €: “O que fazem, ou significam, as obras de arte em relagao a nés?” Esta pergunta é a mais usual, mesmo no pensamento tedrico sério, porque mais pessoas sio mais espectadoras do que fautoras de arte, e isso aplica-se a filésofos, bem como a qualquer piblico nao selecionado. A maioria dos estetas pode tratar com mais autoridade o problema da impressao artfstica do que a questdo da expres- sao; quando falam a respeito de estado de espirito e inspira- goes de artistas, ou tecem especulacgées quanto as fontes e mo- tivos de qualquer obra determinada, abandonam o caminho estreito e reto da consciéncia intelectual e freqiientemente deixam a4 solta uma fantasia bastante irresponsdvel. Porém as teorias da expresséo, embora mais dificeis de serem manipuladas por um leigo nas artes, sio mais férteis do que os estudos analiticos da impressio. Exatamente da mesma forma que a mais interessante filosofia da ciéncia foi elaborada a fim de ir ao encontro dos problemas Iégicos do laboratério, assim os tépicos mais vitais da filosofias da arte surgem do estédio. As idéias dominantes ocorrem nos dois tipos de teoria, mas parecem diferentes quando encaradas de tais pontos de vista diversos. Essa circunstancia soma-se 4 aparente confu- sio das nogGes estéticas. Aquilo que, na perspectiva impres- sionista, figura como gosto, isto é, como uma reacdo agra- davel ou desagrad4vel @ estimulacdo sensorial, aparece, “do Angulo oposto”, como o principio de selegao, o chamado “ideal de beleza” que supostamente guia um artista em sua es- 16 SENTIMENTO E FORMA colha de cores, tons, palavras, etc. A emogdo tanto pode ser considerada como o efeito de uma obra no espectador, como a fonte da qual surgiu a concepgao do seu autor, e as teorias resultantes parecerao tratar de todo o assunto da emogio de maneira inteiramente diferente (uma tenderé para o. tipo de psicologia de laboratério que procura princfpios estéticos nas reac6es tabuladas de criancas de escola, pais, estudantes universitérios ou audiéncias de rédio; a outra, para um estudo psicanalitico dos artistas). A contemplagao da for- ma do ponto de vista da impressdo fornece nogdes como Lei Universal, Simetria Dindmica, Forma Significante; do ponto de vista da expresso, ela nos envolve nos problemas da abstragéo. A representagao pode ser considerada como Pla- tao e Aristételes a consideraram — isto €, como a fungio social da pintura ou estétua, poema ou teatro — a funcio de dirigir a mente de quem percebe para algo além da obra de arte, a saber, o objeto ou ag&o representado: ou pode ser considerada como o motivo que o artista tem para criar a obra — um registro de coisas que o fascinam, pessoas ou coi- sas que ele deseja imortalizar. Ele pode pintar sua amante, sua lembranga do Taiti ou, mais sutilmente, seu estado de espirito. Mas, para o espectador a pintura fornece uma mulher, um aspecto dos Mares do Sul ou um simbolo da libido. De forma semelhante, o problema da ilusdo é tratado do ponto de vista do critico como uma exigéncia feita 4 nos- sa credulidade, nossa disposigfo em “fazer de conta”; do ponto de vista do estidio, é tratado como um jogo, “fuga”, ou sonho do artista. Esse inventério nao é de forma alguma exaustivo quan- to ad riqueza de idéias a serem encontradas na estética con- temporinea. Mas mesmo um apanhado tao ligeiro df-nos uma idéia da emaranhada profusio e da incomensu- tabilidade geral dos conceitos proeminentes uns em relacdo wow outros, Um esteta fala em termos de “Forma Significan- te" © outro, em termos de sonho. Um diz que a fungéo (tte cc registrar a cena contemporanea, e outro sustenta (jl kU pULOX em “cerlas combinagées”, ou cores em dis- Jnigiy expaelil harmoniosa, déo-lhe a “emogao estética”, (ji (nite a abjetive como o critério da arte. Um artista Heya pit AciA AOHtIMeNtOs pessoais, e o seguinte, expressar verily yitageniena sobre o universo astronémico. Mas enan pocullir tielevincin mdtua das nogdes princi- Pith ite er ate angwto dexeoncertante da atual teoria da mite, seen IE lente iain cadient @ a tendéncia que aquelas (On pun oo pone Ao mulorla dus idéias dominantes, PARADOXOS 17 mesmo tomadas isoladamente, trazem consigo algum perigo de auto-anulagao. No momento em que as desenvolvemos, vemo-nos as voltas com conceitos dialéticos. Temos a Forma Significante 4 qual n&o se deve, a nenhum prego, permitir que signifique nada — iluséo, que é a mais elevada verdade — espontaneidade disciplinada — estruturas ideais concretas, — sentimentos impessoais, “prazer objetivado” — e o sonho publico. : Essas extravagancias nao devem simplesmente ser postas de lado como autocontradit6rias?. Ha uma diferenga entre a mera inconsisténcia e o paradoxo. Idéias inconsistentes geralmente desaparecem de circulacio tao logo seus defeitos fatais sao revelados e, se querem estar a altu- ra das exigéncias, ainda que seja por pouco tempo, seus defei- tos devem ser escondidos de alguma forma. Um termo absur- do ou proposigéo autocontraditéria que continua a funcio- nar no pensamento sério, sistematico, embora seja patente © escéndalo légico, é paradoxal. As idéias inconsistentes nele envolvidas entram em conflito entre si porque na ver- dade sofrem uma distorcéo. Formuladas adequadamente, elas nao seriam mutuamente contraditérias. So mal-entendi- das e, conseqiientemente, sua unido é mal-entendida, mas ela é motivada por uma sensagdo-s6lida de sua importancia e conexdo légica. A palavra “paradoxo” evidencia essa con- dig&o peculiar; ambos os elementos contraditérios sao “dou- trinas”, isto é, so realmente aceitos e a conjuncio deles é admitida, embora nao seja compreendida. Onde quer que o “Jodo rico das vagas concepgées”, que é o lugar de desova da razio humana, fornega um paradoxo genuino, tal como “verdade ficticia” ou “simbolos auto- Tepresentativos” ou “sentimentos. impessoais”, deparamo- nos com um desafio filoséfico direto. O paradoxo é um sin- toma de concepgées erradas; e concepcoes coerentes, siste- maticas, isto €é, 0 processo de extrair um sentido da experién- cia € filosofia. Portanto, uma idéia paradoxal nao é para ser descartada, mas sim resolvida. Onde ambos os elemen- tos de 6bvia antinomia mantém sua aparéncia de verdade, sua virtude pragmatica, e ambos podem alegar originar-se de certas premissas aceitas, a causa do conflito provavel- mente esté naquelas préprias premissas. & o pecado original. As premissas, por sua vez, freqiientemente sao pressuposi- gdes tdcitas, de maneira que o desafio real feito ao filésofo é 2, Ainda menos como impostura ou pomposs bobagem, a como Ducasse imputou 2 Clive Bell, numa tirada veemente, niio dizer vitridlica, contra a nogéo ‘de “Forma Significante” “(Apendice ® The Philosophy of Art). 18 SENTIMENTO E FORMA expor, analisar e corrigir a elas. Se tiver éxito, se descobrird estar implicito um novo esquema das idéias dominantes sem os conceitos paradoxais da antiga perspectiva. Mas um tal procedimento filosdfico é muito radical. Geralmente, portanto, faz-se uma primeira tentativa de recon- ciliar as idéias opostas, tratando-as como “principios” no sentido cldssico, caracteristicas antitéticas que podem ser possufdas em proporgées varidveis, pdlos opostos com um ponto de equilibrio perfeito entre eles. Esse esquema esta t&o bem estabelecido no pensamento filoséfico — remon- tando, como remonta, pelo menos, até Empédocles — que mesmo um leigo nao tem dificuldades com ele. E o esquema da ciéncia antiga e medieval: esta e aquela medida do prin- cipio de calor com esta e aquela medida do principio de frio realiza uma temperatura dada, este e aquele tanto de movimento e este e aquele tanto de repouso fornecem uma velocidade particular, etc. Calor e frio, movimento e Tepouso, ago e paixéo, vida e morte sfo extremos que se contrabalangam mutuamente em sejam quais forem os fené- Menos que governam, mas sempre numa proporgdo caracte- tistica. O uso mais célebre dessa polaridade de “principios” opostos é a graduacdo feita por Nietzsche de todas as obras de arte entre os extremos do puro sentimento e da pura for- ma, e a sua classificagaéo em dionisiacas ou apolineas se- gundo a preponderancia de um ou outro principio. Efetiva- mente, esse tratamento de uma antitese basica na teoria da arte absorveu toda uma classe de “polaridades” relacionad: emocdo-razao, liberdade-restrigéo, personalidade-tradicao, instinto-intelecto, e assim por diante. O “grande ritmo”, de Curt Sachs, entre os pélos do ethos e do pathos é a mesma espécie de ajustamento as oposigées familiares na teoria da arte. Mas no se remedia o carater paradoxal da estética lan- gando-se mao da “polaridade”. A polaridade de sentimento e forma é, em si mesma, um problema; pois a relagao dos dois “pélos” nao é realmente uma relagao “polar”, isto é, uma relagdo de positivo e negativo, uma vez que sentimento e forma nao séo complementos légicos. Eles estio simples- mente associados, respectivamente, com as negativas um do outro. O sentimento est4 associado com a espontaneida- de, a espontaneidade com a informalidade ou a indiferenga 4 forma, e, assim, (por raciocinio desmazelado) com a auséncia de forma. Por outro lado, a forma conota formalidade, regras, portanto repressio do sentimento e PARADOXOS. 19 (através do mesmo desmazelamento) auséncia de sentimento. A concepgao de polaridade, embora possa ser fascinante, na verdade € uma metéfora infeliz pela qual uma confusio 16- gica é elevada a dignidade de um principio fundamental. E claro que a alteragio das fases de ethos e pathos na histéria da arte é um fato observdvel, e deve ter algum significado; mas traté-la como a revelagéo de um “princi- pio” dualistico (no sentido medieval) e achar que ela explica a natureza da arte nao é resolver um paradoxo, e sim aceité-lo como fundamental?. Por meio disso, toma-se uma posigao filoséfica final exatamente onde a indagacio filo- s6fica deve comegar. Além do mais, a antiga divisfo entre as duas perspec- tivas, a do artista e a do espectador — arte como expressio contra arte como impressio — nio é superada pela aceita- cao de uma eterna luta pela supremacia entre os “pélos” opos- tos, a forma prescrita e o contetido emocional. Até mesmo um “campo de forca” espiritual parece diferente, de acordo com os dois diferentes pontos de vista. Para o artista, que supostamente deve expressar-se face aos ditames técnicos e tabus, as forgas em combate sao suas emogées contra os c4nones da inteligibilidade, composigao e perfeigéo de for- mas. Para o critico, que deve encontrar beleza sensual nas formas, olhd-las a uma “distancia psiquica” adequada e com equilibrio mental enquanto é por elas excitado na direcdo de sentimentos empaticos, os “pélos” séo a qualidade estética versus © estimulo emocional. Em termos praticos, as préprias duas perspectivas alter- nativas oferecem-nos uma dificil opgio. Devemos julgar uma obra de arte como uma forma de expressfo, dando vaz4o aos sentimentos de seu autor, ou como um estimulo, produzin- do sentimentos no espectador? E ébvio que qualquer objeto de arte pode ser ambas as coisas; mas ele pode ser perfcita- mente adequado enquanto express4o e nao o ser enquanto incentivo 4 emog&o ou, ao contrario, pode deixar o artista ainda frustado, porém produzir reagdes das mais fortes nos espectadores. Se a auto-expressio for o objetivo da arte, entao apenas o préprio artista pode julgar o valor de seus 3. Sachs considera o paralelismo das flutuagées ethos-pathos nas varlas artes como uma prova de que todas as artes sio uma 806, A légica dessa “‘prova” é obscura, uma vez que qualquer influéncia externa pode causar uma flutuagio, sempre simultaneamente, em campos bem dis- tintos; efetivamente, suas proprias observagées posteriores de que as modas na vestimenta, maneiras e costumes seguem o mesmo padréo ritmico, fazem com que seu principio nfo prove nada ou prove demais —_& saber, que tais fenémenos também sfio “Arte' e que na verdade no se pode distingui-los da pintura, musica ou Mterature. 20 SENTIMENTO E FORMA produtos. Se o propésito dela for excitar a emogio, ele deve estudar seu ptblico e deixar que suas descobertas psi- colégicas guiem seu trabalho, como o fazem os propagandis- tas. Ambas as hipéteses soam pouco ortodoxas, para dizer 0 minimo; para falar sem peias, ambas sao tolas. A relacgdo da arte com o sentimento é evidentemente algo mais sutil do que a pura catarse ou incitagio. Com efeito, os criticos mais experientes tendem a descontar ambos esses elemen- tos subjetivos e a tratar do aspecto emotivo de uma obra de arte como algo que lhe é integral, algo tao objetivo quanto a forma fisica, cor, ritmo sonoro do préprio texto verbal. Mas o sentimento que nao é subjetivo apresenta um novo paradoxo. Tém havido varias tentativas de descrever, se nao de explicar, tal fendmeno. Santayana considerava o belo como o “prazer objetivado” — o prazer do espectador “projetado” no objeto que o causou. Como e por que ocorre a projecdo nao fica claro; nao 6 uma imputagdo, pois nao imputamos prazer ao Partenon ou pensamos que o Cristo crucificado, o Discipulo e a Mae desfalecente embaixo da cruz, ou a propria cruz, de Diirer, esto “tendo” nosso ale- gado prazer na pintura. O que a pintura “tem” é beleza, que € nosso prazer projetado, isto é, objetivado. Mas por que nao basta o prazer subjetivo? Por que o objetivamos e pro- jetamos em formas visuais ou auditivas como “beleza”, en- quanto nos contentamos em senti-lo diretamente, como delei- te, cm caramelos, perfume e assentos estofados? Uma manipulagao mais radical do sentimento como algo objetivo pode ser encontrada num pequeno artigo de Otto Baensch, intitulado “Kunst und Gefiihl”, publicado em Logos em 1923. Ali o paradoxo dos “sentimentos objetivos” é francamente aceito como um fato inegdvel, embora incom- preensivel. Através deste recurso fornecido pelo desespero, © problema é forcado a sofrer uma crise que torna iminente sua solugio; o cendrio intelectual esta montado para ele, Os documentos necessdtios estéo todos presentes. O prd- prio Baensch aproxima-se tanto da posicéo Idgica vantajosa da qual o inteiro emaranhado de “expressdo” artistica parece repentinamente deslindar-se e colocar-se em ordem e, nesse processo, resolver.um nimero assombroso de outros paradoxos, que a melhor introdugéo ao que considero como a idéia chave (embora ele tenha deixado escapar com- pletamente a solugao) 6é, talvez, citar, algo demoradamente, seu pequeno e sugestivo ensaio. PARADOXOS 2 Nas reflexes seguintes [diz ele no inicio] espero provar que a arte, como a ciéncia, é uma atividade mental pela qual trazemos certos aspectos do mundo para o campo da cognicio objetiva- mente valida; e que, além do mais, é a fungio especial da arte fazé-lo em relagio aos aspectos emocionais do mundo, De acordo com esse ponto de vista, portanto, a funco da arte nao é dar, a quem percebe, alguma espécie de prazer, por mais nobre que ele possa ser, mas dar-Ihe o conhecimento de algo que nao conhecia antes. A arte, exatamente como a ciéncia, tem por objetivo primé- Tio ser “entendida”, (...) Mas, uma vez que aquilo de que ela nos d& consciéncia é sempre de cardter emotivo, normalmente faz sur- gir, de maneira mais ou menos imperativa, uma reagio de prazer ou desprazer no sujeito da percepcao. Isso explica bem rapidamente como surgiu a opinifio errénea de que o deleite e o assentimento de quem percebe sio os critérios da arte. O estado de espirito de uma paisagem parece-nos ser dado obje- tivamente com ela como um de stus atributos, pertencendo-lhe exatamente como qualquer outro atributo que percebemos nela. (...) Jamais pensamos em considerar a paisagem como um ser sensivel cujo aspecto exterior “expressa” o estado de espirito que contém subjetivamente. A paisagem nao expressa o estado de espirito, mas 0 tem; o estado de espirito a rodeia, preenche-a e pe- -netra nela, como a Iuz que a ilumina ou o odor que exala; o esta~ do de espirito faz parte de nossa impressdo total da paisagem e¢ pode apenas ser distinguido como um de seus componentes através de um processo de abstracao. SupGe-se entéo que aqui encontremos, como um aspecto real do mundo, um sentimento que nao esté sendo sentido. Ele nao esté sendo exprimido por sujeito algum; est4 apenas presente objetivamente. Baensch tem na verdade tanta cons- ciéncia dessa qualidade distinta que habilmente supera a confusio através de sentimentos que sao expressos sintoma- ticamente. O semblante ¢ a atitude de uma pessoa triste podem “expres- sar” tristeza, de forma que nos pareca perceber diretamente, na apa- réncia da pessoa, a m4goa que a possui internamente; contudo, o sentimento objetivo que pertence a uma pintura de uma pessoa assim triste nao precisa em si mesmo ser tristeza. A pintura, por exemplo, pode ser cémica; pode ser bem-humorada, até mesmo alegre. Portanto, ressalta o autor: O sentimento que parece estar expresso numa pintura repre- sentativa pode ser © mesmo que © sentimento objetivo que é ine- rente 4 prépria obra, mas isso nao é necessdrio, absolutamente; de fato, longe disso, os dois freqiientemente achar-se-fo numa relagfio de acentuado contraste. Ha, entio, “sentimentos objetivos” dados a... nossa cons- ciéncia, sentimentos que existem de maneira bem objetiva e distintos de nds, sem que sejam estados interiores de um ser animado. Deve-se admitir que tais sentimentos objetivos nao ocorrem, por si mesmos, em um estado independente; sfio sempre engastados e ine- rentes a objetos dos quais nfo podem, na verdade, ser separados,

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