You are on page 1of 9
A idéia de epistemologia O velko ideal ciensifico da episteme, o ideal de um co- nhecimento cientifico absolutamente certo ¢ demonstré- vel, revelou-se um fetiche, A exigéncia de objetividade stja dado, ¢ permaneca necessariamente, e para sem- pre, a titulo de ensaio, Karl Popper 4) epistemélogo possui de fato um territério proprio? & razodvel que a rellexdo sobre a natureza e sobre o objeto de uma ciéncia esteja a cargo de uma disciplina distinta dela? Claro que nao, ser4 a resposta imediata, pois é evidente que a atividade cientifica prescinde de qualquer comenti- tio filoséfico. Supondo (na melhor das hip6teses) que o epistemslogo te- nha a competéncia necessdria para se pronunciar sobre a ciéncia da qual cle trata, em que especificamente recai sua investigagao? Sobre a psico- logia da descoberta? Sobre os métodos que dio conta da fecundidade dessa ciéncia? Em outras palavras: ou sobre as circunstancias extrinsecas « “ao trabalho cientifico, ou sabre os pressupostos que © cientista, se assim "a quisesse, estaria em melhores condices para estipular... Entio, para | que serve a epistemologia? £ certo que a leitura de Bourbaki, se formos _ aptos a fazé-la, nos ensina mais sobre a esséncia da matemética que a de © Cassirer ou de Brunschvieg. E Michel Serres tem razio em dizer que a tarefa da epistemologia é estabelecer relagdes entre dois dominios sepa rados —a filosofia e a ciéncia — e que, desse modo, “ela é mais o sinal do divércio do que a possibilidade do acordo”.' A propria idéia de episte- mologia nao designaria nto uma pequena impostura que boa parte da “filosofia”, desde o final do século xrx, ter-se-ia permitido? - Isso seria plausfvel se a epistemologia fosse apenas uma rubrica dos programas universitérios, Entio, ela bem poderia ser uma edificante ho- menagem dirigida a ciéncia por uma filosofia que dela se afastou. No en- tanto, ela é outra coisa. Quando um estudioso se interroga sobre oalcance * Bxtraido de Manuserito, v. 1, n° 1, 1977. Tradugdo para a presente edigo: Maria Adriana Camargo Cappello. 1. Michel Serres, Le Systime de Leibniz. Paris: PUF, 1986, 1, p- 65. 19 ou sobre certas modalidades de seu trabalho, ele no esté se submetendo 1.um rito escolar: ele esti realizando um gesto cultural que Ihe parece corriqueiro. Sendo assim, parece-the normal questionar a ciéncia que cle pratica (ainda que freqiientemente o faca em uma linguagem que nfo ¢ aquela na qual ela é construfda). Quando Poincaré esereve A ciéncia e a Aipdtese, ele no esta fazendo divulgago nem ciéncia, portanto, ele esti fazendo epistemologia. Queiramos ou ni, a epistemologia é, no minima, tum género literdrio reconhecido. O que por si sé j4 coloca uma questo, Acabo de dizer: “questionar uma cigncia”. Mas o que é uma cincia? Esse conceito é dificil, se nao estamos convencidos de que ele designa desde sempre um objeto de estudo indicado pelo dedo de Deus. Como nos re~ corda Thomas Kuhn, o que entendemos hoje por “fisica” nao existia antes da segunda metade do século x1x, mas surge de duas comunidades distin- tas de pesquisa: a matematica e a “flosofia da natureza”.* As ciéncias si0 configuragGes méveis; suas fronteiras sio instaveis. A propria expressio, “uma ciéncia”, no tem equivalente em todas as linguas. Como traduzi-la em gregp antigo? Os gregos sabiam o que é uma investigagdo (historia), 0 que é a contemplagio (thearia), 0 que & 0 conhecimento (episeéme), mas nenhum desses termos possui o campo seméntico da expresso “uma cigncia”... Todavia, em ver de nos admirarmos ou de deplorarmos essas indeterminagbes, tiremos vantagem delas e procuremos nos perguntar 0 ‘que deve significar a palavra cigncia para que o genero epistemologia se torne aceitével e— quem sabe? — indispensivvel. Ou, ainda, invertamos a questio: haverd ao menos um sentido da palavra ciéncia que impossibili- tariaa epistemologia? Ao que podemos responder: sim — e dar o exemplo da ciéncia tal como a concebiam os pensadores do século xvi. (Nao existe epistemologia leibnitiana [escreve ainda Serres] ou mesmo carte | siana ou platénicas 0 gue hd & sempre filosofia, mermo nas mateméticas ~ ¢ sempre matemética, mesmo na flesofia. Elas ndo se relacionam como coisas ddistncas(..) Jamais se enconsra em Leibnit uma flosofia de exile reflexiva sobre este ou aguele discurzocienifico.” 2. Thomas Kuha, 4 exrure das revelers cowife, Sto Paulo: Perspectiva, 197, p.233- 130 A idéia de epistemologia Bb nis veuam objetara Serres que a0 menos as Regras para a diregao do Be Ripon [X ulaé] de Descartes podem perfeitamente ser consideradas wsaio de epistemologia. As Regras? Justamente elas, sobre- tia. Porque nessa obra Descartes nem sonha em refletir so- cia que o matemitico de seu tempo pratica. Essa ciéncia, ele assim como a toda ciéncia particular: “Aquele que dese} ‘Yeotimar seriamente a natureza das coisas no deve de forma alguma es oll uma ciéneia em particular”. Que aquele que pratica uma ciéncia ¢ loigosamente um especialista, que existem fronteiras entre os saberes — «ue fazem parte do senso comum dos dias de hoje—, tudo isso {pits Descartes niio passa de preconceito peripatético, ladainha tomista’ {que cle refutou desde as primeiras paginas das Regras. Refutagao que ‘vita foi levada adiante pelos cartesianos. Seria insano, pensa Arnauld, acer da pratica das ciéncias, inclusive daquelas que so as “mais verda- deinay © as mais sélidas”, 0 objetivo da cultura: as ciéncias sao, quando meios de edificar a razo, exemplos para o Método — fora disso, cis sio “fiteis e pueris”.* De onde exatamente vem esse descrédito? 0 fato de a leitura de uma obra cientifica, responde Descartes, jamais ts permitir responder & questéo: “Por que é assim e como € que se suibe que é assim?”. Nenhum matemético jamais pensou em trazer & luz +s método universal de descoberta que ele utiliza sem o saber e apenas parcialmente. Todos esto para a mathesis assim como Jourdain esti para a prosa. Nenhum deles percebeu que o segredo de sua arte con- sivte em reduzir sistematicamente as dificuldades a problemas de ordem 1M, Serres ope 6. | Hené Deseares, Ale pur le direction de esprit, gle A-7 %361- 1 "As virudesinelemuais lo dizem rexpete a temas divers ordenados eure si como ‘orce nas cincias que so to diversas quanto a8 artes, e€ por iso que no encontranon ‘ls a conexdo que encontramos nas vrnudes moras” (Tomés de Aquino, Suma tlipcs, Wah 64, 9 1 Servmo-no da eto come de ym nrumento para ini atlas, quand 20 contro, deveiamos nos servi das ciécias como de um instrument para apefegoar sua ‘A combinagdo de nossosdiversosconbeciments é ti livre como adas eas de ‘vu ipégrafa as quas poder ordenar-aedifereniemente segundo a necesdade[.]e@ algo ‘idiculo quanto o martrio no qul alguns autores se colocam ..] por entenderem ser tnuito diel determiner a jurado de ada cincia, fazer com que umas no se apropriem dla cutra J evilon em conta pars marca os limites entre os reine ara regulamentar ss aribuigdes dos Parlamentos™ Lopiqu de Port-Royal. Primeiro discuro, ed. Cire Git- bal, Paris: Po, pp. 5 34)- Br ede medida... E, aqui, atengio. Nao se trata, para Descartes, de res- saltar os pressupostos que conduzem o trabalho dos matematicos (em uma drea especifica) nem tampouco de pretender remontar — a0 modo kantiano — até a origem que torna a matemitca, tal como a praticamos, um modelo de conhecimento apoditico. Trata-se apenas de nos servir- ‘mos dela’ para elaborar o discurso no interior do qual seriamos capazes, de modo seguro e infalivel, de classifica os contetidos, listar as dificul- dades, localizar o que ndo é passivel de conhecimento e encontrar as verdades em seus devidos lugares —sem discingao de género ou dominio. Trata-te de construr o discurso homogéneo que unificard a produgio e 9 encadeamento de todos os enunciados ditos “cientificos”. £ por isso que, na realidade, as ciéncias particulares “nada mais so que a humana sabedoria que permanece sempre idéntica a si mesma, por mais diversos, que sejam os objetos aos quais elas se aplicam [...]". (Ora, de que fungio pode encarregar-se uma epistemologia em que ciéncia alguma é considerada produtora de sua racionalidade? Uma vez _ que se entende ser a scientia generals a tinica capaz de certificar os saberes, de que servird circunscrever a originalidade de determinado saber especia- lizado, estudar a especificidade de seu campo de objetos ou de suas regras- de procedimento?... Concedendo-se isso, acharemos ainda mais curios0. que, até havia bem pouco tempo, a filosofia (francesa e alemi) tenha co- ‘mumente entendido, sob 0 nome de “epistemologia” ou de “Erkennenis- theorie”, uma tentativa pés-cartesiana — por vezes desesperada ¢ sempre arbitra — ~de sistematicamente remeter as ciéncias a razao homoggnea da qual era necessdrio — a qualquer custo — que clas fossem 0 produto. Eis 2i um projeto ao qual a filosofia no conseguiria renunciar. E o que Cassirer nos assegura mais uma ver. em seu tiltimo livro; ainda que ele honesta- ‘mente se apresse em reconhecer que, de umas décadas para c4, tornou-se bastante dificil reencontrar essa unidade monérquica nos corpus irredutix velmente dispersos nos quais as ciéncias parecem ter se transformada..."__ ‘Também 0 epistemélogo racionalista se torna, aparentemente, modesto, Consideremos Brunschvicg. Quem ainda poderia sonhar, ele insiste, em prescrever as ciéncias de hoje suas categorias e seus métodos? A lida do filo=_ 7. Ksse ponto ¢ bastante escarecido na bela andlise das Regras fita por Jean-Luc Marion’ ‘Sur l'imuoloie grisa de Dercars. Pais: Vein, 197 4. Ernst Cassirer, Dar. Tod bis cur Gegenwart (0 problema do ‘conhecimenta, Da morte de Hegel até o presente}. Kohlaramer,s.d., pp. 23-24. V2 A dea de cpistemologia sll € mais modesta. Ela consistiré em analisar — por exemplo, tomando “tisica” como amostra— “o funcionamento das condigdes humanas do iecimento”. E, sendo assim, nio é preciso temer nenhuma usurpagio ervitério do cientista. “Nao se deve esperar encontrar aqui nada que ae \lygt respeito diretamente & histéria propriamente dita ou ao contetido das ncias fisicas. Nossa tarefa nio € a de saber como ¢ feita a nanureza das ws, mas dizer como é feito 0 espirito do homem,”* Louvavel resigna- ‘vis mas nem por isso menos ambigua, pois, se admitimos que, de Newton 4 Hinstein, as conquistas da ciéncia testermunham a favor de Prometeu, € porque, definitivamente, termodindmica, eletromagnetismo, mecinica ‘quintica ete. continuam a ser mais uma “tentativa” do que uma “aplica- a0" (para nos expressarmos como,a Légica de Port-Royal) do “espirito humano” — é porque a “humana sabedoria”, para manter sua soberania, ‘implesmente transformou-se num monarca constitucional. Mas continua sendo ela, a velha detentora da “Verdade” ocidental, o ponto de fuga de todas as priticas cientificas." E, nessas condigBes, o racionalista — desde que, evidentemente, nao tenha a intransigéncia do “extremista” Huser! — acaba por se adaptar a existéncia dispersa das ciéncias positivas, uma vez «que ele consegue neutralizar 0 efeito andrquico dessa positividade." 9 Lon Brunschvieg, Espérience humaine et causlit physique. Pais: wr, 1949, preficio, possivel que a infludncia exercida por Brunschvieg sobre Piaget (que reconhece sa epistemologga nada pelo eventual autor de "Sagesse et illusions de epi ssa ese lveo & pra quando? rmerafsica da cidncia € nfleo sobre a citnciae no determinosde da citncia. Em ver «le dedutr 0s principios, como faz logica transcendental, propomo-nos fazer uma critica ‘he juito experimental” (Brunschy cit, p 539). 1 demos peer, a es dome polis pdr, rion “arena” de Hume char que ele vem muito mais topete. Mas Husser nfo & 0 nico representante, em sua ‘pea, daquilo que chamariamos “a linha dura” cartesiana. Bast nos reportarmos 3 epste- de Alain, aparentemente kantiano, mis ainda, esobretndo,cartesiano por principio. para qual o “especialists"e 0 poltéenico” so as besas do apocalipse ~ relega ‘vs pedante 0 esrudo da Relatividade de Einstein par ele seria melhor que o filbsofo fosse liber de Euclides na fonte © que traeassetriingulos na area. A letura de Alain mostra 1c» famoso “desabono da eéncia™ que causou tanto protest, nos anos 1959, contra a «pisemologia eo existencialismo, vem de muito mais lange. £, anes de rado, um resquicio «kh imperialismo da rando clissica deia raizes na redigdo cartzsiane ~ que, desse ponto de ‘sta, alo mereceria ser baizada corn “intelecuaisa”. 33 & de grande interesse, portanto, distinguir epistemologia e reflexdo ra~ cionalista sobre as ciéncias, Esta s6 pode ser, no melhor dos casos, indife- rente ao fato de que a racionalidade de determinada ciéncia se enraiza ‘em um sistema autéctone de decisdes ¢ escolhas (0 qual, no tempo de sua formagdo, muitas vezes pareceu aos seus contempordneos o cimulo da arbitrariedade) e que, por isso, a “metafisica de uma ciéncia”, como s¢ dizia no século xvmt, s6 pode estar contida em sua técnica —_no equi- pamento singular que cla apresenta. Jé temos ai uma das condigdes nimas sob a qual devemos pensar a palavra epistasthai para que a epist ‘mologia ganhe cidadania; condigdo que, aliés, encontramos claramente_ formulada em Aristételes: E dificit saber se vemos ou ndo conhecimento. Porque é dificil saber se co cexmos ou no a partir dos principios de cada coisa. Endo dex, justamente, conkecimento? Acreditamos ter conkecimento cienifico apenas porgue raci cinamos a partir de premissas verdadeiras primeiras. Mas ndo 0 bascance: é preciso que a conclusio seja do mesmo género que as premissas."" Em ourras palavras, diante do Fakrum das ciéncias positivas, extern das atitudes possiveis, uma de origem cartesiana, outra de origem aristotéic (Ou bem se deixa na sombra a positividade, preferindo mostrar de que a citncia em questio uma explicagio dos arkhatracionais (dos quais ela revela entio, uma vez mais, a prodigiosa fecundidade em qualquer rea) trata-se do estilo racionalista. Ou bam se presta atengo ao caréter autéctone (cikeion) dos prineipios que uma ciéncia apresenta e ao caréter singu dessa montagem teérica que permite determinar os “objetos” de forma até entdo inédita ~ ou seja, prefere-se, aquilo que uma ciéncia descobre (p 12, Avisteeles, Sepundoe anallticos, seco s pré-kantiano sith ‘vista (aquele da ndo-comunicagio entre os géneros) que foi tio bem destacado — por vet teadendo um pouco para o seu lado ~ por Aubenque. E, sob esse Angulo, encontramos Aistlueles © em Tomés de Aquino preciosos tépei para uma ertica da Razdo cissica, 134 A idéia de epintemologio. 1 gléria da “ratio”), sua maneira propria de produgir enunciados ou 88 que possbilitam sua eficagdo:rrata-se do estilo epiemoligice. de epistemologia ndo é uma forma enwiesada de declarar: “s6 hi epistemologia positivista”? Se assim o qui- serem... Por que no? Nao somos solteironas pudieas e no temos medo de palavrdes. Mas, evidentemente, apenas sob a condigéo de que nao se cntenda positivismo como a decisio radical de s6 reconhecer sentido as proposig&es da ciéncia empirica positiva — 0 que, de resto, no deixaria nenhum lugar ao sol para uma epistemologia.” Digamos entio que a tpistemologia, como saber emancipado, s6 pode nascer porque conta com «0 positivismo — desde que se limite cuidadosamente o sentido dessa palavra iw que foi dito e elaborado no Curso de filasofia positiva de Comte. Pois parece-nos ser nele que, pela primeira vez, se vé com toda a clareza a ne- cessidade da tarefa epistemolégica. Por qué? Porque esse livro de Comte éo lugar de um debate incessante entre a idéia de mathesis — 3 qual o autor do chega a renunciar inteiramente—e o Fakium das ciéncias particula~ ‘es, uma ver que cada uma destas, conduzidas a sua “condigdo enciclopé- dica”, revela-se em sua originalidade. £ verdade que Comte nunca perde de vista as idéias de “coordenagio universal”, de “método homogéneo”.. Como também afirma que a matematica detém a chave “do modo uni- forme de raciocinar aplicavel a qualquer possivel objeto do espirito hu- mano”. Mas, por outro lado, vemos ao longo do Curso que os obstéculos __regionais encontrados pela matematizagio no devem ser interpretados ‘como fracassos, mas como indices de uma revisio indispensivel da no- ‘vio de saber — e a matemética, que de inicio parecia ser o lugar originério da “coordenagio”, nada mais é, no final, que a antecipagao meritéria, e hoje “perturbadora”, do advento do “verdadeiro espirito de conjunto”." © Curso & a desconstrugio das Regras — desconstrugdo trabalhosa, érdua © feita freqtientemente a contragosto. Sim, a astronomia é certamente “o Lipo mais perfeito do método universal que devemos aplicar, tanto quanto ‘possivel, para a descoberta de leis naturais” — e é recomendével, antes de ‘tos langarmos nas dificuldades da fisica, examinarmos “um tal modelo”. Mas esse “modelo” deve manter-se como uma idéia reguladora com vistas, 11.CELK, Popper, Lopique de le découverte sciamifque, Pars: Payot, 6.4, p. 48 fed. bras: Ligica da peaguisaciemific, S30 Paulo: Cults, 1975} 14. Cf. Auguste Comte, Cours, preficio, p. x1¥ aula tp, p. 13 [ed. bras: Curso de flosofia iva, in Comte. SEo Paulo, Abril Cultural, 1978 — Os pensadores}. oe | 15. eid, aula $8, pp. 391-925 aula 59, pp. 426, 468-69 e 1. Bs. 8 sistematizacio — e nada além disso! E evitemos, acima de tudo, deslocar 08 conceitos, a esmo e arbitrariamente, para além do dominio no qual se acredita que o impulso tedrico alcangou sua méxima unificacio possivel.'* Desse modo, as ciéncias acabam por ser reconduzidas & sua heterogenei- dade de principio, desvinculadas da rario: nfo falaremos mais em “ciéncias ‘puramente racionais”; ciéncia e razio pura nio mais se sobrepoem. E é a partir desse momento, no qual a razio pura deixa de langar sobre as ciéncias o olhar egoisticamente benévolo do genitor, que a curiosidade epistemolégica podera exibir-se em toda a sua plenitude. Uma vez que as ciénciasjé ndo slo mais facetas de um mesmo cristal, cada uma se torna in- teressante por si mesma, cada uma se torna instrutiva por si mesma. Bache- lard resumiré com sua mordacidade costumeira essa suprema condigao de possibilidade da atitude epistemol6gica: “A aritmética nao esti fundadana razio. Ea doutrina da razo que esta fundada na aritmética elementar. An~ tes de saber contar, eu nio tinha a minima idéia do que eraarazio”."” Essa é uma atitude que jé vemos despontar na Critica kantiana — que dela nos indica um segundo trago caracteristico. Certamente a Critica no € um manual de epistemologia. Longe disso. N3o porque Kant teria con fiado a sorte das ciéncias & vigilincia infatigavel de um génio bondoso chamado “sujeito transcendental”. Mas antes porque ele ainda pensa den- tro da érbita da razio clissica e porque, quando ele se pergunta: “Como a matematica pura possivel?”, é apenas para obter um elemento de res- posta para a questi relativa ao uso teGrico da razio em geral (apenas em relacio & possibilidade da metafisica). f isso que interessa a ele, e nio destino da matemética, que passa muito bem sem o filésofo e “nfo tem absolutamente necessidade, para confirmar suas assergdes, de uma critica da razio pura, uma vey que ela se jusifca por seu préprio fato (factum)”. ‘A matematica e a fisica puras so formagdes racionais inatacaveis, e cer- tamente nio seria seu retumbante sucesso que levaria alguém a se ques- tionar com tamanha urgéncia sobre a capacidade da razfo. E é sob esse aspecto que se pode retomar em Kant 0 tema epistemolégico propriamente dito (no final das contas, pouco considerado): essas ciéncias, que a Critica toma como exemplo bem-sucedido de racionalidade, so ancillae rationis 16.16, bid, aula 28, pp. 25-16; aula $9, pp. 493 €497- j 17. Gaston Bachelard, La Philasphie du non, apud G. Canguilhem, Exudes d'histoire et de ‘Philosophie des scenes. Paris: Vein, 1970, p- 200. 18. Immanuel Kant, Progrs de la meéaphyiqu, trad. Guillermit. Pars: Vein, dp. 88. | 136 4 idéia de epistemologia spenas de nome (e isso Husser! nunca perdoaré a Kant). Ao contrario, € «‘rizdo, tornada autocritica, que deverd reportar-se a elas para conhecer vondigdes de sua competéncia, para saber até onde se estende seu di- twito de determinar objetos. Se porventura essas ciéncias nao tivessem vulo inseauradas, a razo ndo saberia nem o que ela é nem qual é 0 seu poder. E somente com a ajuda dos paradigmas cientificos da modernidade «que ela pode se compreender — e gracas a essas “revoluges sibitas” do rwosso “modo de pensar” (que posteriormente chamaremos de “episte- ‘wolégieas”). Sem “aquele que pela primeira vez demonstrou o triéngulo ‘winceles, seja seu nome Tales ou qualquer outro”, como a razdo poderia ter tomado consciéncia de sua soberania? Como saberia que cabia a ela wubmeter a natureza a exame, se um sibio florentino ndo a tivesse guiado 40 “mover esferas em um plano inclinado com um grau de aceleragdo proporcional ao peso, determinado segundo sua vontade"? E notavel que, nessa famosa pagina da historia, independéncia, autoridade ¢ iniciativa se- am essencialmente caracteristicas do especialista ~ que, a0 mesmo tempo, dcixa de set mandatério da “razio” para se tornar seu iniciador. Portanto, temos ai ao menos duas condigdes necessarias para o ‘urgimento da epistemologia como disciplina bem fundamentada. A pri- meira, que cada ciéneia deve ser considerada antes de tudo naquilo que cla tem de diferente ¢ tinico, que deve ser encarada como um objeto do- tado de um funcionamento singular. A segunda, que nenhuma ciéncia deve apresentar-se como uma constelagio de “verdades”, mas se ofere- ‘cer como tema possivel de um exame histérico ou filolégico: a) histbrico: as \cias so aventuras contingentes (da razdo... se nlio podemos dispen- ar uma personagem) e suas proposigdes podem ser tratadas enquanto scontecimentos, como, ainda que de modo nebuloso, o elogio que Kant dispensa a Tales ¢ a Galileu deixa entrever;” b) filolégico: possivel ‘9. "De cero ponto de vista, tod juno cientfico € um acomtecimenta.O pesquisadorndo sabe ne encontrar aquilo que el procura endo fsse asim, estar al ou vsivel,Tavezseja 1 ilsdo de uma época, posteriormente refutada, que tera levado a exabelecer um far, que ‘ngit onde nfo se experava,no final de wma pesquisa, sem dividaexclarecida pelos eros da snictoe, mas inconsciente nto de seu proprio ururo Negar esa eventualidade sri amir «qe 86 i ciéncia na explorasdo de idéia ou tose nunca na invencao deles. Mas para além «lh palavra “tabemos", hi “nem sempre soubermos”. Na sombra dessa nego no pasado se dissimula tod a hiebria de uma questi. E esa histria deve ser escrita como uma historia © ‘do como uma citncia, Como uma aventura, € nko como uma exposisio" (C. Cangulem, Formation di soncyp da rifle, aux 2717 e271 sce. Pate PU, 1955 15657). 97 conferir-lhes 0 estaruto de um texto ¢ considerar cada uma delas ‘como um corpus de {6rmulas (enunciados, protocolos, indicagées de pesquisa...) no qual se deposita um trabalho coletivo, cujas articula- des exprimem escolhas ou decisdes, Essa segunda condicao pode ser mais bem enunciada da seguinte maneira: 0 fato de haver “historia da ciéncia” implica que a palavra epistasthai designa uma aventura; 0 fato | de haver “epistemologia” implica que designa uma estratégia. Nada mais que isso. Isso significa que a ruptura das ciéncias com a episteme no redunda necessariamente nessa sacralizagaocariatural das ciéncias que o senso comum, de forma bastante confusa, entende por “positivismo”; no implica de modo algum que devemos transferir para as ciéncias po- sitivas os privilégios arcaicos da episteme. Muito ao contrério. Uma cidncia s6 se torna objeto epistemolégico quando se entende que cada uma das disciplinas que a compée tem como tinica unidade aquela | de um trabalho produtivo regulamentado por um conjunto de regras passiveis de revisio, das quais nem todas precisam estar formuladas com clareza. Aos olhos do epistemélogo, nenhuma disciplina cienti- fica poderia tet qualquer outro tipo de unidade além desta, que é emi- nentemente provis6ria e instavel — ¢ nao estarfamos incorrendo em nnenhum paradoxo ao sustentar que o epistemélogo de hoje s6 pode visar & cientificidade sob a condigio prévia de destruir esses monstros identitérios forjados pelos manuais e pela vulgarizagio: “a ciéncia” “uma ciéncia”... Por que se escandalizar com isso? Desde os bancos da escola somos levados a admirar que Descartes tenha pretendido di solver na “humana sabedoria” 0s contornos das ciéncias. Entio, por que recusarfamos esse outro projeto de trabalho, igualmente digno di interesse: uma dissolugo no sentido inverso, no mais por evaporacio, mas por dissecagio? Alguém que acreditava estar criticando Thomas Kuhn escreve a propésito do seu RevolusBes cientifcas: As revolugies das quais ele nos fala ndo s80 revolugder da ciéncia, mas revol ses no interior das disciplinas cientificas. De metmo modo, ud o que ele noi 138 A iia de episemologia Be aes que trabalha simpleamente liza respeite da “ciéncia normal” ¢ do paradigma nao dit respeitod evolugao slo conhecimento em geral, mas & evolupdo de disciplinas particulare.” no seria esta a mais bela homenagem que se poderia render pistemélogo Thomas Kuhn e ao poder fortemente corrosivo de wu livro? E verdade que, ao feché-lo, nao sabemas muito bem o que 4 wma ciéncia diante do Eterno, Nem se “uma revolugdo cientifica” & ‘onceito que pode ser definido em duas linhas, uma vez que ele antas figuras, e que elas so tdo varidveis — no tecido cientifico, ‘y remanejamentos podem atingir escalas muito diferentes, e mesmo uma ruptura téo nitida quanto a mecdnica quantica pode afetar cada das disciplinas da fisica de modo bastante diverso... Mas sabe- mos, por outro lado, que ndo interessa muito querer a todo prego | abrigar, por recorréncia, a dinimica de Newton na de Einstein, Sa- hemos que a “ciéncia normal” nunca olhou para o céu da Verdade, a resolver seus “quebra-cabegas” # partir de uma “matriz disciplinar” que é composta de elementos bastante heterdclitos, e que nfo & posta em questio a nao ser nos. momentos em que ha necessidade de redistribuicao e de redefinicao de conceitos. Sabemos portanto que é initil procurar tragar a curva «le algum tipo de progresso cumulativo das ciéncias — e que, de resto, é preciso deixar a palavra “progresso” para a ret6rica da banalidade. {xemplo: quando Dalton decide que vai considerar como processos «quimicos propriamente ditos apenas as reagdes cujos ingredientes se | combinem em proporgdes fixas, trata-se realmente de um “progresso da quimica”? Proclamarei, para usar uma divertida frase feita, que Dalton fez a quimica dar “passos de gigante”? E muito mais esclare- cedor, acredita Kuhn, observar que, depois de Dalton, as manipula- ges quimicas nao tém mais o mesmo sentido, que “os quimicos ndo estabeleceram novas leis experimentais, a partir de Dalton, mas uma nova forma de praticar a quimica’.”! Nao um “progresso”, portanto, mas um novo olhar, uma nova pratica que compete a epistemolo- xia inventariar, Mesmo que esse comentario leve ao rompimento ou ameace a unidade essencial de uma ciéncia, nao faltarao a Kuhn ava- " listas. Concedamos a palavra a Frangois Jacob, esse outro iconoclasta, >. Stefan Amsterdamaki, “L'Evolution de la science”. Diagn, 8:89, p. 30. | 1 To Kuhn, op. cit, p. 169-70. 39 para que ele nos diga de que forma sua histéria da genética é fiel a0 espirito da biologia atual — de uma ciéncia “que ndo mais procura a verdade”, mas “constréi a ciénci © gue procuramos descrever aqui {.] foi o acesso a esses objetos cada vez ‘mais escondides que constituem as cllulas, os genes, ax moléculas de dcido nucléico. A descoberta de cada boneca russa, a revelagdo desses desmiveis e- cessivos ndo € 0 simples resultado de uma acumulasio de observasses ¢ de experitncias, Freglentemente expressam una mudanga mais profunda, uma transformasito na prépria natureza do saber. Nada mais fazem sendo tradutir, ‘no estudo do mundo vivo, uma nova maneira de considerar 0 wniverso.® Dispersemos os corpus, aprofundemos as fissuras, adensemos a desor- dem, sempre restaré algo: é 0 que, me parece, um bom livro de episte- mologia acaba sempre por sugerir. E é por isso que o livro de Kuhn ~ apesar do cardter precério de alguns conceitos — é um bom exemplo do. que pode ser a epistemologia quando considerada como uma ciéncia lolégica. Da mesma forma que uma hist6ria das religides nos ensina, no rinimo, que no ha absolutamente nada de comum entre as panatenéi uma macumba e uma missa em Notre-Dame, além do fato de uma nio de individuos, assim também uma boa epistemologia deve destacar as descontinuidades, sob as tranqiilas “evolugles” tragadas a vbo de passaro, e as homonimias sob os conceitos vagos (“teoria”, “observa do", “método”...) que as ocultavam, Ela s6 tem interesse (e entdo corre © risco de se tornar apaixonante) se quebrar o discurso da Verdade no gual a tradigdo embalsamara o trabalho cientifico e, assim, restabelecer © texto auténtico que o panegirico deformador havia recoberto, v De modo algum queremos dizer com isso que o papel da epistema gia seja o de relativizar as cincias inscrevendo-a8 no nivel tecnol6gico. ou hist6rico puro e simples o que faria supor — para o deleite de dos os metafisicos, que s6 hd escolha entre episteme e doxa, entre disenrso do Absoluto eo das impropriedades anedéticas e, no limit 23, Frangois Jacob. La Logigue de vvane, Pass: Gallimard, 1973p 3 140 A iddia de epistemlogia (++ que, afinal de contas, no é assim tio caricatural), entre a balanga de \avoisier, como artificio da razio, e 0 Lavoisier cobrador de impostos. stariamos nos afastando de nosso tema se procuréssemos dizer por ‘que a simples idéia dessa escolha é, numa palavra, burlesea (além do ‘mais, isso equivaleria a demonstrar que platénicos e “homens comuns” vempre foram cimplices fiéis; demonstragdo que nos faria levar pan- __ cada de todos os lados). Contentemo-nos por ora com a pergunta: que pertin€ncia pode ter essa escolha, uma vez que, diante da epistemologia, eva ciéncia se apresenta como um texto, ¢ suas normas reguladoras como um aparelho ret6rico que os “praticantes” dessa disciplina em particular aceitam, grosso modo, aqui e agora? Um texto nfo precisa ser _ “relativizado” (ou, inversamente, alegorizado): ele pede apenas para ser lida e relido, como as cartas de um jogo, abertas ¢ embaralhadas ini- __meras vezes. Portanto, 0 epistemélogo ndo est mais preocupado em “relativizar” do que em glorificar. Ele esta é muito ocupado em rastrear, longo de todas as ramificagdes, o que, por exemplo, marca (néo digo ‘significa”) a introdugao de um conceito novo. Sua ambigio nio é dizer por que 08 conceitos de “fungio” e “diferencial” foram, no século xvm, uma aquisigio indispensavel da razdo, mas analisar exaustivamente qual ruptura provocam na constituicdo do objeto “movimento”. Desse modo podemos entrever que a epistemologia no apenas est no direito de reivindicar um territério, mas que ela também detém uma temética que faz com que se diferencie totalmente de um simples exercicio des- ‘ritivo, Por meio da ciéncia como um texto dado, o epistemélogo pre- tende atualizar um “discurso segundo” — se podemos dizer assim —e é por isso que ele nem repete nem soletra aquilo que o cientista enuncia; pois nao seria um discurso racional que viria a explicar a verdade da ciéncia (ou fazé-la admitir o que nela é “impensado”). ~ O qué? Mas ento nio se trata justamente de uma descrigio? Por que vocé diz analisar onde se deve dizer descrever? ~ Porque s6 hé descrigao de elementos dados e porque uma con- ‘iguragao conceitual no é uma soma de elementos que bastaria enun- ciar. E preciso ainda encontrar seu estilo: quais enunciados ela admitee \quais ndo, que decisées implicam outras (e quantas) e que decisées s0 apenas secundérias. Ora, a representagdo de um relevo é algo préprio. da cartografia, que ndo é uma descrigio, mas uma anilise. Da mesma forma, uma “representac0” epistemolégica sera at *) 0&1 Gimpossivel no campo da matkesis grega”.” E de notar que, ib exe ponto de vista, Desanti acaba por reencontrar a legitimidade | Je alguns dos conceitos metodolégicos de Foucault (come o de “confi- \o de saber”). Independentemente das diferengas de constituigo esas formagdes que dividiriamos grosseiramente entre “ciéncias ‘pxntus” © “humanas”, o epistemélogo, tanto em uma como na outra, 0 encontra um tema para si ao procurar compreender como isso se | anicula, como isso funciona nesta regido teérica para que, desse terreno wovedigo, possam surgir esses macigos de enunciados relativamente pstiveis que em seguida honraremos com o nome de ciéncia; ele s6 se yente em casa quando escava sob aquilo que podemos chamar de cienti- | fividade estabelecida, Seria ixil repetit que tudo, ou quase tudo, resta a wor feito nessa dirego, comecando por explicitar conceitos analisado- tes? Mas, por mais atrasada que esteja a epistemologia em relagio a his- ria da ciéncia, ela sabe ao menos como deve orientar-se na ciéncia que " qntuda: nem deve fazé-la tender a0 Conceito nem historiciza-la, mas determinar os sistemas ¢ subsistemas que a fazem “funcionar” como viquina de inteligibilidade. , agora, reportemo-nos a Introduglo de Husser! & Légica formal en nesse texto pomposo, mas instigante, que venho pen- sando até aqui ao procurar determinar esse contra quem a epistemologia teria podido atingir a idade adulta. Leiamos novamente essas paginas Aapocalipticas: transformadas em “técnicas teédricas”, nossas ciéncias modernas perderam a grande crenga que as unificava, assim como seu cenraizamento na razio teérica. Vejam, nos diz em suma Husserl, de que naufragio niilista a fenomenologia, e somente ela, & capaz de salva- los in extremis. Ora, ocorre que nossa época nao mais compreende que interesse teria essa salvaco especulativa. E fato, ela nfo sente mais ne- cessidade dessa salvagio. E 0 destino atual da palavra epistemologia no ¢ justamente um sinal dessa despreocupagio? A “epistemologia” —bem 0 sabemos — estd bastante em voga para que muita mistificaggo tenha sma espécie de muparmiindi que deve mostrar os princpais pales, suas posi ses © correlaghes, ‘mda fia crs exis oeenra eonrey cancnis ste & comumenteinterrompido por mil obtudculas, que sb podem ser comheci= dos pelos habisantes¢ vsitances de cada pats, e que 86 poderdo ser mostradat em mapas especifics¢ bastante detalhados ‘Tranqililizemo-nos, Nao foi nenhum seguidor entusiasmado de Foucault quem teceu essa metéfora, mas D'Alembert, a0 apresentar a Enciclo- pédia* ~ e nfo seria possivel pressentir de forma mais clara um tipo de abordagem cientifica propria &epistemologia. Nessa mesma diresio, Jean Desanti mostra com mimicia, em seus belos estudos de epistemo- logia matemitica, aquilo que a epistemologia deve, antes de tudo, esfor- gar-se por distinguir do dominio tedrico que ela radiografa: “o sistema das operagdes e dos campos de objetos que efetivamente funcionam _ no discurso aparente”; quais conexdes ndo explicitas relacionam um enunciado regional aos conceitos que ele permite que sejam construi- dos alhuress ou ainda que rede de exigéncias e de incompatibilidades singulariza determinada formagio teérica — por que, por exemplo, 2, Jean Le Rond D' Alembert, Discours priliminaie de 'Encyelopdie. Pars: Bivins Gonthiers Matintions, 965, .6o, Seria interessante relacionaro surgimento da idea de erstemologa ‘com 0 desenvolvimento da idéia de Enciclopédia — especialmente levando em conta 2 transfor- ‘magi por esta sofrida entre Leibnit.e D’Alembert. Leibnia (Nove: ensaier, rv, cap. 21) insiste = | brea difculdade em separar “as grandes provincasintelecruais” por froneira fas (“cada parte parece englio todo") «prope dus spresencarexpomiveis das“ verdes downs” “pe |gundo 4 ordem das provas, como fazem of mateméticos” ¢ segundo 0 uso pritico que os homens | podem fazer delas. Mas énecessirio ainda, um reper, Por qué? Devemosir aot textos: “Esse ‘epertério serd neceedrio para reuni todas as proposigdes em que o termo sea um componente importante; pois, segundo as duas formas precedente. 8 verdades que dizer respeito a um ‘eamo temo no poderiam ser encontradas juntas. Por exemple, nto weriade forma alg permitido a Buctides, quando ele ensinasse como se encontra a metade de um ingulo, adicionar ‘1 1ss0 0 modo de encontrar sua tenga parte, pis ele tera entio necestidade de falar de 20;55 ‘dnicas, que ainda nio seriam conhecidas nessa etapa. Mas o repertério pode e deve indicat os lugares nos quais se encontram as proposigtes importantes que dizem respeito a um mesmo. objeto". £, portanta, uma nova perspectva da cidncias © que é aqui proposto: 0 enciclopedisia s+ colocs fora de su discus e,coniderando-o como um texto, edo dirito de reaprupar x5 24. Jean Desand. La Philsphiesilenccuse. Pais: Sell, pp. 148 ¢ 52. Reportemo-nos imbém & analise — essencialmente dirigida contra Huser! - du dificuldade, para dizer 0 ‘minima, que existe em pensar uma configuraglo unitaria da marhesis, mesmo se x idéia & tarualrnene sugerida pela aparénciatrans-histrica do desenvolvimento das matemAticas pelo cariter onitemporal de seus enunciados. E Desanti mostra a fragilidade de todas as inarianes peas quas se pretend unficar do exterior a produtividade da matemtca(ego- Inga ranscendental,universo de estécia, campos pré-predicativos) saber, 0 entendimento humano, Eses ramos freqilentemente nko tm nenhumna ligacto imediata «muitos sé esto reanidos pelo proprio rronco” (D'Alembert, op ct. 7). 142 A idea de epivemologia 43 sido € continue sendo cometida em seu nome. Mas de nada adianta zombar de uma moda; é preciso interroga-la, pois o fato de ela ter sido adoteda & sempre instrutivo. Ora, essa moda, parece-me, indica que estamos 4 vontade diante do “declinio” diagnosticado por Husserl. A catastrofe aconteceu, a episteme una morreu, mas seu luto quase nio pesa, embora nao andemos por ai alardeando niilismo. No lugar vazio deixado pela “humana sabedoria”, eis que nascem os “gaios saberes”, | as epistemologias — saberes ainda adolescentes, agressivos, insolentes, subversivos, que desrespeitam a cientificidade de direito divino por res- peitarem mais a ciéncia como trabalho e como documento. A epistemo- Jogja est na moda: é um sinal de satide. E a indicagao de que as ciéncias s6 se tornam divertidas quando as consideramos como jogos dos quais — é preciso encontrar as regras e de que se tornam interessantes apenas — quando nao mais cremos na Verdade. 144. A iddia de epistemologia

You might also like