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Critica e Socledade: revista de cultura politica v. 4,1. Dossié: Relagdes Raciais ¢ Diversidade Culkural, jul 20/4, ISSN: 2237-0579 ARTIGO A QUESTAO DA DIVERSIDADE E DA POLITICA DE RECONHECIMENTO DAS DIFERENCAS' Kabengele Munanga’ Resumo: Este texto discute a importincia do reconhecimento e respeito das diferengas na construgio de uma verdadeira democracia. Aponta em consequéncia desse recorihecimento a implementagio de politicas publicas afirmativas que visam a promogao da igualdade de oportunidades entre os diferentes, combinada com uma educagiio multicultural e umm pedagogia antirracista no proceso de formagio da cidadania, Abstract: This text discusses the importance of the acknowledgement and respect to the differences in the building of a true democracy. It points the consequence of this acknowledgement and the implementation of affirmative public policies which address the promotion of social equality of opportunities between the different ones, combined with a multicultural education and antiracist pedagogy in the process of citizenship building, Introdugio A questio da diversidade e do reconhecimento das diferengas faz. parte da pauta de discusstio de todos os paises do mundo, mesmo daqueles que antigamente se consideravam como monoculturais, As velhas migragdes ¢ 0 trifico negreiro juntaram sum mesmo territério geogrifico descendentes de poves, etnias e culturas diversas. Ha cerca de meio século, os fendmenos pés-coloniais provocam novas ondas migratérias Gos paises pobres em desenvolvimento, prineipalmente afficanos, em diregtio aos paises rivos desenvolvidos da Europa e da América do Norte. Tanto as antigas migragdes combiradas com o trafico negreiro ¢ a colonizagiio dos territérios invadidos, quanto as novas migragdes pés-coloniais combinadas com os efeitos econdmicos perversos da Texto original da aula inaugural proferida no Instituto de Cigncias Sociais da Universidade Federal de Uberlindia (UFU) em 24 de maio de 2013, Basendo rersitas.fflch.usp.brfiles/il “0 artigo: in: Todos no Mesno Barco +r Titular aposentado do Departarreto de Antropologia da Universidade de Sao Paulo, 34 A questao da diversidade e da politica d e reconhecimento das diferengas globalizagao criam problemas na convivéncia pacifica entre os diversos ¢ os diferentes. Entre esses problemas tém-se as pritieas racistas, a xenofobia ¢ todos os tipos de intolerdncia, notadamente religiosa. As consequéneias de tudo isso sto as desigualdades que se caracterizam como violagio dos direitos humanos, principalmente o direito de ser ao mesino tempo igual ¢ diferente, Dai a importineia e a wgéneia, em todos os paises do mundo, em implementar politicas que visem ao respeilo e ao reconhecimento a diferenga, centradas na formagao de uma nova cidadania através de uma pedagogia multicultural Acredite-se que essa nova pedagogia posse contribuir para a construgio de uma cultura de paz e para o fim das guerras entre deuses, religides e culturas, Teoricamente a equagio parece bem simples, A liberdade de expresso, de movimento, de ir e voltar é tedrica quando se trata de grupos humanos. As mereadorias, incluindo as armas letais, tm mais direitos de circulagio apesar das barreiras alfandegirias © as politicas protecionistas, enquanto as politicas de imigragiio de todos os paises regulam drasticamente essa liberdade de movimento, de ir ¢ voltar Em vez de opor igualdade e diferenga, ¢ preciso combini-las para poder constrair a democracia. E nessa preocupagio que se coloca a questio do multiculturalismo, definido como encontro de culturas, ou seja, a existéncia de conjuntos culturais fortemente constituides, cuja identidade, especificidade ¢ logica interna devem ser reconhecidas, mas que riio sio inteiramente estranhas umas as outras, embora diferentes entre si No plano politico, o reconhecimento da diversidade cultural conduz. a protegiio as culturas minoradas. Por exemplo: as culturas indigenes da Amazénia ¢ de outras partes do continente americano, que esto sendo destruidas, seja pelas invasdes de seus tervitérios, seja ainda pela criagio das reservas onde se acelera a deterioragae das sociedades ¢ dos individuos. Nos paises da didspora africana se coloea a mesma questo politica do reconhecimento da identidade dos affodescendentes, © multiculturalismo nao poderia reduzir-se a um pluralismo sem limites, deve ser definido, pelo contririo, como a busca de uma comunicagio e de uma integragiio parcial entre os conjuntos cultnrais niio reconhecides na formagio da cidadania, A vida de uma sociedade cultural organiza-se em torny de um duplo movimento de emancipagio ¢ comunicagio, Sem o reconhecimento da diversidade das culturas, a idzia de recomposigtio do mundo arrisea-se a cait na armadilha de um nove universalismo, 35 Kabengele Munanga ‘Mas sem essa busca de recomposigiio, a diversidade cultural s6 pode levar & guerra das culturas. No plano juridico, © reconhecimento das identidades particulares no contexto nacional se configura como uma questio de justiga social ¢ de direitos coletivos ¢ & considerado como um dos aspectos das politicas de agiio afirmativa Na contramio da globalizagio neoliberal homogeneizante que quer arrastar todos os povos para o mesmo fosso, corre paralelaments, em todo o mundo, o debate sobre a preservagio da diversidade como uma das riquezas da humanidade, A questo fundamental que se coloca em toda parte ¢ como combinar sem conflitos a Liberdade individual com o reconhecimento das diferengas culturais e as garantias constitucionais que protegem essa liberdade ¢ essa diferenga, Essa questiio leva a uma teflexiio complexa que abarca notadamente 0 politico, 0 juridico e a educagio, essa questiio que esti no dimago das polémicas maniqueistas do bem ¢ do mal que envelvem o debate sobre a agi afirmativa e a obrigatoriedade do multiculturalisame na educagao brasileira. E a partir dessa interminivel polémica que pretendo me colocar para mostrar que a defesa da diversidade e da diferenga é uma questio vital no processo de constragio de uma cidadania duradoura e verdadeira, por um lado, sem, portanto, abrir mio da defesa de nossas semelhangas ¢ nossa identidade humana genériea, por ‘outro lado. O debate sobre o multiculturalismo e as ages afirmativas De acorde com Alain Touraine, nenhuma sociedade modems aberta as trocas ¢ as mudangas tem unidade cultural completa, as culturas so construgdes que se transformam constantemente ao interpretar experiéneias novas, o que torna artificial a busca de uma esséneia ou de uma alma nacional ou, ainda, a redugdo de uma cultura a umn cédigo de condutas. Nesse sentido, a ideia de que uma sociedade deve ter uma unidade cultural, seja esta da razio, da religidio ou étnica, niio se sustenta mais (TOURAINE, 1997, p. 209). © Brasil, um pais que justamente nasceu do encontro das culturas e civilizagées, niio pode se ausentar desse debate. © melhor caminho, a meu ver, é 0 da dinémica da sociedade através das reivindicagdes de suas comunidades e niio aquele que se abre para uma abordagem superada da mistura racial que, por dezenas de anos, congelou o debate 36 A questao da diversidade e da politica d e reconhecimento das diferengas sobre a diversidade cultural e racial no Brasil, que era vista apenas come cultura, como identidade mestiga. Como a sociedade brasileira lida na atualidade com essa complexa questiio que envolve, a0 mesmo tempo, a defesa dos direitos humanos, a justiga distributiva, o Gireito de ser ae mesmo tempo igual ¢ diferente, a construgio da cidadania, da identidade e da conscigncia nacional? Até o ano de 2001, mareado pela organizagio da 3* Conféréncia Mundial da ONU contra © Racismo, a Discrininagao Racial, a Xenofobia e a Intolerineia Comelata, essa questio niio tinha eco na grande imprensa, nos setores do governo ¢ ma populagio em geral, salvo entre os raros estudiosos e pesquisadores que se dedicam ao tema nos meios académicos e inteleetuais, Os responsiveis do pais pareciam viver com conscineia tranquila, de acordo como ideal do mito de demoeracia racial que apresenta © Brasil como um paraiso racial, isto é, um pais sem preconceito ¢ diseriminagao iciais, Em fungdo desse ideal, © Brasil conviveu muite tempo sem leis protecionistas dos direitos humanes dos no brancos, justamente porque no eram necessarias, em vista da auséneia dos preconeeitos e da discriminagio racial. Enquanto permanecia essa consciéncia tranquila dos dirigentes e da sociedade civil organizada, intimeras injustigas @ vivlagdes dos direitos humanos foram cometidas contra negros ¢ indigenas, como demorstrados pelas pesquisas quantitativas que 0 IBGE e o IPEA vém realizando nos ‘iltimos dez. anos, Depois da Conferéneia de Durban, o Brasil oficial se engajou, como niio se via antes, na busca dos caminhos para a execugio da Declaragio dessa Conferéneia da qual foi um dos paises signatirios. A declaragdo previa a implementagio das politicas de ago afirmativa, inclusive as cotas, em beneficio dos negros, indios e outras chamadas minorias. As polémicas ¢ controvérsias a respeito dessas politicas so indicadores das realidades de uma sociedade que ainda vive entre o mito ¢ os fatos, ou melhor, que confide o mito ¢ os fitos, ou seje, onde o mite fimeiona como verdadeira realidade. Para uma parcela significativa da sociedade, parcela infelizmente niio mensurada por falta de estatisticas, mas com reflexo na midia, na academia, nos setores do governo 2 até vagamente na sociedade civil organizada, a resoluyio da 3° Conferéneia Mundial da ONU nao condiz com as realidades da sociedade brasileira, ume sociedade de amistura de sangue altamente mestigada, onde os indicios da discriminagio devem ser buscados ms diferengas socioeconmicas e mio nas diferengas raciais, pois, como 37 Kabengele Munanga acreditam muitos, nfo hid mais ragas no Brasil, “Nao somos racistas”, um livro de Ali Kamel bastante vendido, prefaciado por uma antropéloga conceituada, representaria essa parcela da populagiio. A segunda parcela é representada por todos aqueles que acreditam na existéneia do racismo a brasileiza, no entanto se divide em dois grupos retoricamente opostes em relagio abordagem. O primeira grupo compreende todos aqueles académicos, midisticos, politicos ¢ ativistas que se insorevem na abordagem essencialista, ou seja, na conviegdo de que 4 hurmanidade é uma natureza ou uma esséneia e comp tal possui urna identidade especifica ou genética que faz do ser humano um animal racional diferente dos demmis animais. Eles afirmam que existe uma natureza comum a todos os seres ‘humanos em virtude da qual eles t8m os mesmos direitos, independentemente de suas Giferengas de idade, sexo, raga, etnia, cultura, religifio, ete. Trata-se de uma defesa clara do universalismo ou do humanismo abstrato coneebido como democritico, muito bem ilustrado pelo principio constitucional “perante a lei somes todos iguais”. Considerande a categoria raga como uma ficgo inventada para oprimir os negros, advogam 0 abandono desse conceito ¢ sua substituigao pelos conceitos mais cémodos, como o de etnia, por exemplo, De fato, eles se opdem ao reconhecimento piblico das diferengas entre brancos ¢ nio-braneos. Aqui temos um antirracismo de igualdade entre todos os seres humanos, que defende argumentos opostos ao antirracisme de diferenga. As melhores politicas puiblicas julgam-se capazes de resolver as mazelas e desigualdades da sociedade brasileira, que devem ser somente macrossociais, ou melhor, universalistas. Qualquer proposta de agi afirmativa vinda do Estado que introduza a diferenga Diclogica para lutar contra as desigualdades ¢ considerada, nessa abordagem, como um reconhecimento oficial das ragas e, consequentemente, como uma racializagio de um pais cuja caracteristica dominante é a mestigagem. As propostas de reconhecimento das Giferengas raciais implicariam, segundo eles, em mudanga de paradigmas capaz. de hipotecar a paz ¢ © equilibrio social solidamente construido pelo ideal de democracia racial brasileira. De outro modo, indagam se as politicas de reconhecimento das identidades raciais, em especial da identidade negra, podertio ameagar a unidade ou a {identidade nacional, por um lado, e refergar a exaltagtio da conseiéneia racial, por outro, Em outras palavras, que tais politicas poderiam ter um efeito bumerangue, oriando conflites raciais que, segundo dizem, no existem ma sociedade brasileira, E dentro dessa preocupagio que as criticas vém sendo dirigidas contra as politicas de cotas, 38 A questao da diversidade e da politica d e reconhecimento das diferengas consideradas come ameaga & mistura racial, como estinmulo ¢ fortalecimento da erenga em ragas (FRY, 2005, p. 335-347). Contraponho-me a alguns aspectos dessa argumentagtio, Em primeira lugar, todos os brancos ¢ negros no Brasil acreditam na “mistura racial” como fundante da sociedade brasileira, geneticamente falando, A pesquisa do geneticista Sergio Danilo Pena mostra que todos os brasileiros, mesmo aqueles que aparentam fenotipica europea, tém em porcentagens variadas marcadores gensticos afrieanos ou amerindios, confirmando o principio ja conhecido da inexisténeia de ragas puras. Nao vejo como, a no ser recomendo @ uma imaginagio criativa, a ago afirmativa possa desfazer a “mistura racial”, desafiando as leis da genética humana e a ago voluntarista dos ‘homens das mutheres que continuario a manter os intercursos sexmnis inter-raciais. Se as leis ¢ barreiras raciais contra relagdes sexuais inter-raciais nos Estados Unidos ¢ na Africa do Sul (apartheid) no conseguiram desfazer a “mistura racial”, como ¢ que isso possa ser possivel somente no Brasil, por causa das cotas? Isso seria atribuir & ago afirmativa um poder magico que ra realidade ela niio possui. Em segundo fugar, sabemos todos que 0 contetido da raga ¢ social ¢ politico, Se para o bidlogo molecular ou o geneticista hmmano a raga niio existe, ela existe na cabega dos racistas e de suas vitimmas. Seria muito dificil convencer Peter Botha e um zailu da Africa do Sul que a raga negra ¢ a raga branca niio existem, pois existe um fosso sécio-histérieo que a genética nfo preenche automaticamente, Os mestigos dos Estados Unidos siio definides como negros pela lei baseada numa tinica gota de sangue, Eles aceitaram ¢ assumiram essa identidade racial que os une ¢ os mobiliza politicamente em torno da luta comum para conquistar seus diretos civis na sociedade americana, embora conscientes da mistura que core em seu sangue e também da negritude em razio da qual sto discriminados. Consciente de que a diseriminagao da qual negros ¢ mestigos so vitimas apesar a “mistura do sangue”, no é apenas uma questo econémica que atinge todos os pobres da sociedade, mas sim resultante de uma discriminagio racial eamuflada durante muitos anos, O Movimento Negro vem tentando conscientizar e mobilizar negros ¢ mestigos em tomo da mesma identidade através do conceito “Negro” inspirado no “Black” norte-americano, Trata-se, sem ditvida, de uma definigao politica embasada na divisio binracial ou bipolar norte-americana, ¢ niio biolégiea, Esta divisio ¢ uma tentativa que j4 tem cerca de trinta anes ¢ remonta a fundagao do Movimento Negro 39 Kabengele Munanga Unificado, que tem uma proposta politica clara de construir a solidariedade © a identidade dos excluidos pelo racismo & brasileira, Ela ¢ anterior & discussao sobre as cotas ou agiio afirmativa que tem apenas uma dezena de anos, Mais do que isso, ela correu. paralelamente a classificagio popular cromitica baseada justemente na amultiplicidade de tons e nuangas da pele dos brasileiros, resultante de séeulos de miscigenagio. Afirmar que a definigio bipolar dos brasileiros em ragas negra e branca nasce das politicas de agio afirmativa, ainda em debate, ¢ ignorar a historia do Movimento Negro Brasileiro. Pensar que o Brasil sofre pressdes internacionais ou smultilaterais para impor as politicas de cotas é minimizar a prépria soberania meional ¢ ignorar as reivindicagdes passadas ¢ presentes do Movimento Negro que, mesmo sem utilizar as palayras cota e ago afirmativa, sempre reivindicou politicas especificas que pudessem reduzir as desigualdades e colocar o negro no mesmo pé de igualdade que 0 braneo. © problema fundamental nvio esti na raga, que é uma classificagdo pseudocientifica rejeitada pelos préprios cientistas da area biolégica. Q né do problema esta no racismo que hierarquiza, desumaniza ¢ justifica a discriminagao existente. Ha cerca de meio século, que os geneticistas ¢ bidlogos moleculares afirmaram que as ragas puras no existem cientificamente (Ci, Jean Hiernaux, J. Rule, A. Jacquard, F. Jacob, ete.). Chegaram até a preconizar a eliminagio do conceito de raga dos dicionirios, eneiclopédias ¢ livros cientificos como medida de combate ao racismo, Nao demoraram a coneluir que essa proposta era uma ingenuidade cientifica, dando-se conta de que a ideologia racista no precisava do conceito de raga para se refazer e se reproduvir. Da anesmma mangira que © Brasil criou seu racisme com base na negagio do mesmo, os racismos contempordneos néo precisam mais do conceito de raga. A maioria dos paises ocidentais pratica 0 racismo antinegro ¢ antiérabe, sem mais recorrer aos conceitos de ragas superiores ¢ inferiores, servindo-se apenas dos conceitos de difsrengas culturais ¢ identitarias. As propostas de combate ao racismo niio estiio mais no abandono ou ma erradicagéio da raga, que é apenas um coneeito ¢ néio uma realidade, nem no uso dos léxicos cdmodos como os de etnia, de identidade ou de diversidade cultural, pois o Tacismo é uma ideologia eapaz. de parasitar por todos os conceitos. Benjamin Isaac, num livro recente baseado numa pesquisa de aproximadamente 15 anos, sustenta a existéneia do proto-racismo entre os antigos gregos e romanos. Porém, os antigos no usavam o 40 A questao da diversidade e da politica d e reconhecimento das diferengas coneeito moderno de raga, Eles usavam os coneeitos de ethnos ou natio, que nao séio sinnimos de raga’, A lei da pureza de sangue vigente em Portugal ¢ na Espanha dos séculos XIV-XV que deu origem ao antissemitismo, que é uma modalidade do racismo, nije precisou da raga no sentido moderno da palavra. No entanto, a lei da pureza de sangue ma peninsula ibériea mio era tie diferente das leis de Nuremiberg, durante o regime nazista. A saida, no meu entender, nfo esti na erradicagdo da palavra raga ¢ dos processos de construgio da identidade racial, mas sim numa edueagio ¢ numa socializagdo que enfatize a coexisténcia ou a convivéneia igualitiria das diferengas ¢ das identidades particulares. Olhando desta ética, penso que implantar politicas de agaio afirmativa no apenas no sistema edueativo superior, mas em todos os setores da vida nacional onde o negro é excluido, niio significa destruir a identidade nacional nem a “mistura racial”, como pensam os criticos das politicas de cotas, que eles mesmos rotulam come cotas raciais, expresstie que nid brotou da boca do Movimento Negro brasileiro. Sem construir a sua identidade racial ou étnica, alienada no universo racista brasileiro, o negro nao podera participar do processo de construgdo da democracia ¢ da identidade nacional plural em pé de igualdade com seus compatriotas de outras ascendéncias. O segundo grupo compreende todos aqueles estudiosos, intelectuais, midiaticos, politicos e ativistas que se colocam na abordagem nominalista ou construcionista. Eles entendem o racism como uma produgtio do imaginrio destinado a ser considerado ‘como uma realidade a partir de uma dupla visio do outro diferente, isto é, do seu corpo nistificado ¢ de sua cultura também mistificada, O outro existe antes de tudo por seu corpo, antes de se formar uma realidade social. Nesse sentido, se a raga milo existe biologicaments, histérica € socialmente ela existe, pois, no pasado ¢ no presente, cla produz.e produziu vitimas. Apesar do racismo nio ter mais fandamento eientifico, como no séeulo XIX, ¢ de niio poder se prevalecer hoje de nenhuma legitimidade racional, essa realidade social da raga, que continua a passar pela geografia dos corpos das pessoas, niio pode ser ignorada, Visto nessa dtiea, @ reconhecimento ptiblieo das Giferengas raciais € 0 melhor caminho para se pensarem as politieas piblicas que > Conf: ISAAC, Benjamin, The invention of Racism in Classical Antiquity. Princeton University Press, 2004. a4 Kabengele Munanga possam contemplar as vitimas presentes e fituras do racismo, advogam os defensores dessa abordagem A primeira fonte de diversidade ¢ a coexisténcia no interior de um dado Estado de diversas nagdes. Cada uma dessas nagdes corresponde a uma comunidade histérica ccupando um dade tertitério e partilhando, nesse teritério, uma lingua e uma cultura distintas. Um pais que compreende mais de uma nagio no um Estado-Nagio, mas sim um estado multinacional onde as pequenas comunidades formam as minotias acionais. Neste sentido, a maioria das democracias ocidentais é multinacional. A segunda fonte de diversidade cultural se origina na imigragdo ¢ na eseravidio, quando escravizados e¢ emigrados @ os descendentes de ambos conservaram certa Gimensio de particnlaridade émieo-cultural, como é 0 caso do Brasil, de muitos paises da América do Sul, dos Estados Unidos, que podemos considerar como patses de velhas imigragdes. Muitos paises da Europa Ocidental se tornaram, desde os anos 60, paises de novas imigragdes ¢ constituem, desde entio, suas minorias étnico-culturais As duas abordagens - 0 antirracismo de igualdade defendida pelos essencialistas, ¢ oantirracismo de diferenga defendido pelos nominalistas on construcionistas - pregam posigdes maniqueistas do Bem e do Mal, que de fato, refletem a propria estrutura copressora do racismo, porquanto a soviedade se sente forgada a escolher entre a negagio © a afirmagio da diferenga a todo o momento, Apesar da coeréncia dos argumentos defendidos, as duas abordagens sto problemiticas. A melhor abordagem seria aquela que combina a aceitaglo da identidade humana genériea com a aceitagtio da identidade de diferenga, A cegueira para a cor ¢ uma estratégia falha para se lidar com a opressio racista, pois nio permite a autodefinigdio dos oprimidos ¢ institui os valores do grupo dominante @ consequentemente, ignora a realidade da discriminagio cotidiana. A. estratigia que obriga a tornar as diferengas salientes, em todas as cireunstineias, obriga ‘a negar as semelhangas ¢, impéem expectativas restringentes, A diferenga em si se torna uma nova virtude capaz de criar novas armadilhas ideolégicas. Essas armadillas esto no Amago da critica dirigida ao filésof Will Kymlicka, defensor das reivindicagdes multiculturais, por uma das grandes figuras da teoria politica feminista, Susan Moller Okin. A critica é a de que aceitar sem restrigio o slogan “viva a diferenga cultural” poderia promover as culturas que estimulam a desigualdade entre os géneros ¢ violam os diteitos politicas das mulheres. O que fazer quando as reivindicagSes culturais ou a2 A questao da diversidade e da politica d e reconhecimento das diferengas religiosas de algumas minorias étnicas se chocam com as normas de igualdade entre sexos num Estado de Direito? (FASSIN et.al, 2006, p. 243-246). Universalismo ¢ reconhecimento das diferengas na educagio A questio fundamental que permanece colocada ¢ como combinar a igualdade ¢ a diferenga para podermos viver harmoniosamente juntos? Emprestando os argumentos de Alain Tourtaine (op cit, p.371), nie vejo outro caminho a nio ser a asseeiagiio da democracia politica com a diversidade cultural baseadas na liberdade do sujeito. Finalmente, de que temos realmente medo? Das diferengas ou das semelhangas escondidas atris das difsrengas? © ego ¢ 0 alter estio sempre juntos, mama relagio Gialégiea, Nao hi uma sociedade multicultural possivel sem o recurso a um prineipio universalista que permite a comunicago entre individuos © grupos social & cultualmente diferentes, Mas também rio hi uma sociedade universal possivel se este principio universalista comanda uma concepgio de organizagiio social e de vida pessoal que leve alguns a se julgar superior aos outros, Deve-se criticar a identificagiio dos direitos do homem com certas formas de organizagao social, em particular com o liberalismo econdmico, mas é também importante afitmar © direito a liberdade ¢ a igualdade de todos os individuos nos limites que no devem franquear nenhum governo, nerihum eédigo juridico, e salvaguardando-se ao mesmo tempo os direitos culturais e os direitos politicos como a liberdade de expressio e de escolha. Se a questo fundamental é como combinar a semelhanga com a diferenga para podermos viver harmoniosamente, sendo iguais ¢ diferentes, por que nao podemos também combinar as politicas universalistas com as politicas diferencialistas? Diante do abismo em matéria de educagio superior, entre brancos ¢ negros, brancos ¢ indios, ¢ Tevando-se em conta outros indicadores socioeconémicos provenientes dos estudos estatisticos do IBGE ¢ do IPEA e os demais indiees do Desenvolvimento Humanes provenientes dos estudos do PNUD, as politicas de agiio afirmativa se impdem com “urgéneia, sem que se abra mio das politicas macrossociis, Nio conhego nenhum defensor das cotas que se oponha melhoria do ensino Piblico. Pelo contrério, os que criticam es cotas ¢ as politicas diferencialistas se opdem categoricamente a qualquer politica de diftrenga por consideri-las a fiver da racializagao do Brasil. As leis para a regularizagio dos territérios ¢ das terras das 43, Kabengele Munanga comunidades qnuilombolas, de acordo com o artigo 68 da Constituigao e as leis 10639/03 ¢ 11645/08 que tornam obrigatorio o ensino da historia da Affica, do negro no Brasil dos povos indigenas, as politicas de satide para doengas espeeificas da populagio negra como a anemia faleiforme, ete., tudo isso é considerado como racializagiio do Brasil ¢ visou até motive de piada, Os autores! do livro “Divisées Perigosas” véem nas leis referidas uma ameaga a unidade nacional, enquanto os defensores das mesmas vem no nulticulturalismo um caminho para a inclusio, Sem divida, a defesa de multiculturalismo ¢ das identidades culturais particulares, em alguns paises da Europa (Espanha, Bélgica, paises Baledis, entre outros) e no Canadé, tem um contetido separatista, contrariamente ao Brasil onde a reivindicago da identidade negra e da indigena busca a incluso e niio a separagio. Nesse sentido, ensinar a historia do negro e dos povos indigenas na escola brasileira & Tomper com a vistio eurocéntrica que exelui outras raizes eulturais formadoras do Brasil come pove ¢ nagi . A diversidade é nossa riqueza coletiva. Ela tem uma histéria que evemos inventariar ¢ conheeer para enfim ensini-la as geragdes presentes e futuras. No entanto, por questio ideolégica, a diversidade foi manipulada ¢ transformada em problemas para as sociedades. Os diferentes foram classificados ¢ hierarquizados em superiores ¢ inferiores, com base nas teorias racialistas desenvolvidas na Europa entre os séculos XVIII ¢ XX. Sua cultura, isto é, religides, artes, filosofias, visdes do mundo, sistemas sociais... foi, consequentement2, exclnida do sistema educacional nacional enja referdneia é ainda eurocéntrica, Aqui esta o né do problema que se pretende solucionar através de uma educagaio ¢ de uma pedagogia multiculturais. Mas antes de buscar solugdes para um problema da sociedade, devemos, primeiramente descrevé-lo, analisi-lo para melhor compreend3-lo a fim de explicd-lo para a sociedade. Este ¢ 0 nosso papel principal como pesquisadoresias e estudiososias. Sé depois é que podemos, quando interpelados pela sociedade, apontar alguns caminhos de mudangas ¢ transformagSes de acordo com os resultados de nossas pesquisas. Infelizmente, alguns deixam de cumprir devidamente essa fiangfio para se transformar em ativistas politicos improvisados. Isso nés vimos durante o debate nacional sobre politicas afirmativas e cotas para negros e indigenas. Muitos assineram as petigdes ou abaixo-essinados contra ou favor numa atitude * FRY, Peter et ali, Divisées perigosas. Politicas raciais no Brasil contemporaneo. Rio de Janeiro: 2007 44 A questao da diversidade e da politica de reconhecimento \s diferengas maniqueista do bem e mal, fazenrio confitséo entre a Histéria do Problema e o Problema da Histéria, E essa histéria ¢ seu problema que devemos conhecer antes de tomar qualquer posigio. Muitas vezes ficamos presos nos lugares comuns dos meios de comunicagtio de massa, 0 que nio ¢ adequado para os futuros pesquisadores, estudiosos ¢ intelectuais que vocés representa. Referéncias Bibliogrificas FASSIN, Didier & Fassin, Eric. De fa question sociale a la question raciale? Patis: La Découverte, 2006, p, 243-246. FRY, Peter; MAGGIE, Yvonne, CHOR MAIO, Marcos, MONTEIRO, Simone; VENTURA, Ricardo (orgs). Divisdes Perigosas: Politicas raciais no Brasil Contempordneo. Rio de Janeiro: Civilizagio Brasileira, 2007 FRY, Peter. 4 persisténcia da rapa, Rio de Janeiro: Civilizagiio Brasileira, 2005, p. 335- 347. ISSAC, Benjamin. Zhe invention of Racism in Classical Antiquity. Princeton University Press, 2004. KYMLIKAW. “Démoratie Libérale et Droits des Cultures Minoritaires”. In. GAGON,F; MC ANDREW; PAGE, M. (ed.). Pluralisme, Citoyenneté et Education. Paris: L’Harmattan, Col.”Ethike”, 1996, Appud MESUE, S.: RENAUT, A. Alter Ego: Les paradoxes de I'identité démocratique. Paris: Aubier, 1999. LACORNE, D. La crise de I'ididentité américaine Du Melting Pot ao Multiculturalisme. Paris: Fayard, 1977. TOURAINE, Alain, Pouvons-nous vivre ensemble? Egaux et différents. Paris: Fayard, 1997, p. 208. Recebido em Maio de 2014/ Aprovado em Junho de 2014 45

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