A Autobiografia Dos Que Não Escrevem

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A AUTOBIOGRAFIA DOS QUE NAO ESCREVEM Escrever ¢ publicar a narrativa.dapropria vidaXfor por muito tempo, ¢ ainda continua send, em grandé medida, um privilégio reservado aos membros das classes dominantes. “silencio” das outfas classes parece totaltnente natural; @ utobiografia nao faz parte daciiltura\dos pobres. Gontudoy ha cerca de Manos, umacfiova técrlica, a dos.relatos. deVida. roletados pelo gravador e,publicados enformato® de sivto, oloca a disposig4é do Ptiblico a vozde camponesesartesa6s operarigsA “palavra é dadah@ cles S6u seid) tomadl® deles transformada eméstrita\A origem dessé- movimento parece ter sido o métédo ethiografi¢d-aplicadto por socidlogos as classes domifiadas.de nossa sociedades. A publicagao da tradugio francesa\ de J: enfaiits de Sanchez [Os filhos de Sanchez] (1963), dé’ Osgar Lewis, revelou as fontes dessa técnica ¢ teve numerosos sucessores. Citemos, por exemplo, as iniciativas de escritores e jornalistas: Grenadou, paysan francais [Grenadou, camponés francés] (1966), de Ephrain Grenadou, € Alain Prévost, Pierrot et Alice (1973), de Jean Ferniot, Louis Lengrand, mineur du nord {Louis Lengrand, mineiro do norte] (1974), de Louis Lengrand ¢ Maria Craipeau, e, talvez.a obra- -prima do género, Gaston Lucas, serrurier [Gaston Lucas, serralheiro] (1976), de Adélaide Blasquez. E, de outro lado, as iniciativas de cientistas (em geral socidlogos e historiadores): La vie d'une famille ouvriere [A vida de uma familia operaria] (1971), de Jacques Destray, journal de Mohamed [Diario de Mohamed] (1973), de Maurice Catani, e, ainda, uma série de pesquisas recentes, ainda inéditas, GRESEPportanto, de um vo género literrio e de um novo método de investigagao manas. Meu proposito, aqui, “autobiografica” e analisdé-la em seu contexto. Ao ins -la no campo atual da escrita e hist6ria do género, pretendo, em contrapartida, elucidar essa escrita ¢ essa hist6ria, pois os deslocamentos provocados pelo aparecimento de um novo género possibilitam uma visao critica a respeito do que garantia o funcionamento do sistema anterior. Os trés ensaios que se seguemi formam umodo. Nao se enca- deiam como clementos.de ima demonsiragdo, mas propdem, diferentes apresentar essa nova produ revée- antes, uma série dé @acomodayoes* sobre aspectos do fendmenoeO primeiroy*Quem é 0 autor2%, opera um desvio Spassando pelaanilise das discuss6e$ Sobre, a autobio- grafia compostaem colaboragao (os #egres)\~ para chegar a verdadeira:pérgunta;“O que é um autor?”, esituar a ideia de pessoa@ de relagbes de poder‘ha produgdeautobiografica atual. O'segundo ensaio, “Relato de Vida classe8 Sociais”, inscreve historicamente-o\Felatode vidartias relacdes sociais e examina a mudangavatual. ie pareée dar@:palavra 4 meméria popular. O ultimo, “Memoria, didlogo, escrita”, descreve as diferentes fases de\produgao desse tipo de texto, desde o estabelecimento da relacao entrevistador-entrevistado até o trabalho de escrita € 08 efeitos induzidos por ele. Qual nome dar ao género analisado aqui? O titulo volunta- riamente paradoxal desse capitulo sugere que “autobiografia inadequado: a narrativa é produzida a dois e seu “sujeito” nao escreve. Seria necessério especificar: autobiografia falada, ou mais exatamente: audiofonia transcrita — mas o neologismo também nao ¢ feliz. A palavra “biografia” é igualmente imprdpria: cla 132 ‘0 indica que 0 modelo é a fonte (oral) tinica do relato e provoca uma certa confusio com aquele género literdrio bem conhecido, O mais simples é empregar a expressio ‘@elaronlep termo tem vantagem de deixar em suspenso dois pontos cruciai roblema do “autor” (\inico ou miltiplo? Aquele que viveu ou 3 outro?) ¢ o do meio de comunicacao (fala e/ou escrita?). Essa indeterminagao pode ser tomada como signo da ambiguidade sses textos falados-escritos a dois.’ Meu ponto de vista sobre o género sera essencialmente 0 do leitor. Nao tenho nenhuma experiéncia de coleta de relatos de vida, nem como modelo (quanto a esse ponto, estou na mesma situagao dos pesquisadores que nunca foram submeti- dos a nenhuma s mesnids Condi¢ praticadas com seus modelog)-hem como,pésquisador. Mas, precisei, é claro, conhecer a realidadeala enquete ¢ remontar aos vestigios mais Jonginquos que dela subsistem, ouseja, as gravagoes, O\material orab/que, serve, ao mesmo-tempo, de fonte e de'garantia para os@istursos reportados-por eserito. Fiz entao, por minha-yez, uma enquete sobré’as_praticas da enquete, pata medi as dificuldades téénicag@a owtfas que surgem-> quando se tenta“ter acesso a.essa fala fundadora. Agradeco muitissimee?todos%s, queéresporderam as minhas perguntas e me@ederany documentos: QUEM E O AUTOR? a vida tem apenas um autor”, declarava peremptoria- ente o editor Francois Maspero, ao longo de uma polémica om Annie Mignard, redatora de uma “autobiografia” - La émoire d’Hélene [A memoria de Héléne], de Hélene Elek — uja autoria queria compartilhar. Bara cle, o autor era a pessoa ue vivera aquela vida suficientemente dolorosa ou exemplar ara ser apresentada ao ptiblico que assumira aquele relato mats ou associava, pois, 0 papel do redator ao de um tradutor.' Ann Mignard, em contrapartida, enfatizava que sua iniciativa de entrevistar 0 modelo e organizar as respostas transformando-as em narrativa era um trabalho que se aproximava do papel e dal responsabilidade do bidgrafo. Indo além da querela pessoal, o editor ¢ seu négre estendiam a reflexao a todo 0 campo da abavam dizendo praticamente literatura “em colabora a mesma coisa, a0 condenar a voga da autobiografia “pelo vam uma gravador” de pessoas do povo, 0 que consid impostura paternalista. O leitor fica perturbado com ess mais perturbado ainda ao constatar que foi st convencido pela argumentaga6-tlds dois adversal sentaram, como é normal ‘numa justapolémi, do debate que confirmavam suas posigdes. Mas, indo além da habilidade dosoponentes, cado, e conclusa@ comum ¢ 'ssivamente s, que apre- ‘os aspectos a utilizagao déuma nogdosque justamente é problema- tica, a flo¢ao dé autor, em soFno da Qual.os dois polemistas se digladiam sem explicitar'seufandamento; — uma confusao entre dois tipos-dé-produgao cuja seme- Ihanga se_liftita,&@parénéia (a8\produgdes dos négres € as autobidgrafiag de pessoas. do povo coletadas pelo gravador). Deixaréi de‘lado provisoriamente esse segundo problema, para tentar résolyero primeiro no terreno em que foi levantado, o das “colaboragées autobiograficas”. Nao se trata apenas de um “escandalo” acerca do qual seria necessario julgar ou tomar partido, condenando a exploracao de uns pelos outros ou exigindo um controle de qualidade dos produtos oferecidos ao consumidor.‘ A meu ver, esses casos es andalizam porque sao produgées que fazem concorréncia com 0s livros realmente escritos pelas 134 pessoas que os assinam. ia se deve ao fato de que eles se baseiam nos mesmos procedimentos ¢ desempenham ssa concorren| a mesma fungao, revelando abruptamente as pessoas que escre- vem sua propria pratica, numa espécie de espelho deformante: ou, antes, 0 avess » de sua propria pritica, seu impensado. Esses livros nao sio, na realidade, condenados por sua inau- tenticidade, mas porque entregam 0 ouro ao bandido, e langam uma suspeita, talvez legitima, sobre o restante da literatura. certos aspectos, a autobiografia dos que nao escrevem elucida a autobiografia dos que escrevem: 0 erzatz revela os segredos Ge fabricagao e de funcionamento do produto “natural” INFRACAO AO CONTRATO nao énenkuma noyidade. Vem sendo praticada ha muito tempo, inicialmentesob forma de secretariado (homens célebr °s, politicos;¢in geral, que recor- riam aos 10s &s vezes, suas tnemorias), depois, no-nicio do século-19,-sob forma de ‘sbcontrato (proposto ‘por editoresou autores de suc 0). Surgiram-palayras para designaf esses Hovos papéis: os colaboradores eram “fazedores? “ou “tintureiros”, depois negres.oMeolaboracao nunca era assumida,mas apenas objeto de boatos e comentarios desaprovadores ou) maldosos. De outro lado, tratayasse de,wma troca de, servicos entre pessoas que, em diferentes gras, eraim todas Capazes de escrever; e, nos géneros praticadas (discursos, romances, pegas de teatro etc.), o nome do,autor nao tinha a mesma fungao do que no género autobiografico. E: tipo de colaboragao continua sendo mpre dissimulado ¢ dando margem a boatos. Mais proximo de nosso problema parece estar 0 fendmeno praticado, das memérias apécrifas, tal como se desenvolveram, no século 19, sob a Restauracio da monarquia. Depois da queda do Império napolednico, a sede do ptiblico por memorias sobre © Antigo Regime foi explorada por editores que fabricavam falsas memérias assinadas por pessoas do século anterior ou 135 por andnimos. Entre as memorias auténticas e 0 romance hist6- rico, desenvolveu-se um género intermediario, cuja “poética” foi analisada pelos criticos de Le Globe.’ Podemos tirar dessa analise um julgamento que, com algumas transposigées, ainda pode ser pertinente hoje: Reclama-se muito das memérias apécrifas que atualmente inundam a literatura, Aqueles que de boa fé acreditaram nessas memérias escritas por alguém indicado pelo titulo como autor irritaram-se com o engodo e denunciaram a impostura. Indignados atacando 0s proprios livros por terem sido enganados, vingaram-s ¢ passaram a achar lamentaveis aquelas obras devoradas ardorosa- mente quando acreditavam ser verdadeiras. Admitimos que a maior parte da originalidade das confissbes desaparece quando se sabe quéhado sao obra d@penitente. Mas nem por isso pensamos ser sudtentivel a idei@ de que esses livros nao possam instruir, ag\mesmo tempo'em que divertem. E podem até h grande merito literariy” A transposigad quese impde se\deve.ao fato.de que as mem6riasapocrifas eram completas falsificagGes, escritas sem a colaboragaéopnem a confissa0 deséus preténsosaiitores, mortos ‘ha muito tempo ou fiétitisPrataya-se portanto de embustes. Eo embuste, mésmo que provequemal-estar naqueles que se deixaram ehganais hao-deixa dé Ser, apesar de tudo, uma espé- cie de homenagem que a-mientira presta 4 verdade. O autor do embusté imitatotalménte o processo autobiografico e, embora esteja trapaceanido de fato no que tange ao contrato, respeita 0 efeito de unidade proprio ao género. O interesse pelos textos autobiograficos é consequéncia da crenga em um discurso vindo diretamente do interessado, refletindo simultaneamente sua visao de mundo e sua maneira de se expressar. Mesmo quando 0 leitor percebe a existéncia de uma escrita, esse trabalho, vindo do proprio “autor”, nao idade da mensagem, mas vai, ao diminui em nada a autenti 136 contrario, valorizi-la. O dispositive do contrato autobiografico produz uma confusao entre 0 autor, o narrador e o “modelo” € neutraliza a percepeao da escrita, tornando-a transparente. Essa fusdo se opera na assinatura autobiografica, presente nos créditos do livro. A diferenga da autobiografia apécrifa, a autobiografia composta em colaboragao tal como € praticada hoje, de forma mais ou menos confessa, abre uma brecha no sistema. ‘la lembra que o “verdadeiro” é ele proprio um artefato e que o A divisdo do trabalho entre multiplicidade das insta implicadas no trabalho de escrita autobiografica como em qual- quer outra escrita. Longe de imitar a unidade da autobiografia auténtica, ela ressalta seu cai iter indireto e calculado. Somos sempre varios quando escrevemos mesmo sozitthOs, mesmo nossa propria vida. E nao-s@ttata aqui dedebates intimos acerca de um eu divididd,'mas da artiéalacao das fa trabalho de escrit’a que pressups de um atitudes diferentesevincula quem escrevetanto ao campo doS textos ja escrites, qudito a demanda-que escolheisatista er. Ao isola® relativamente os papéis, a autobidgrafia‘em colaboragao quéstiona@’a crenga em uma unidade que, no géner@attobiograficd) subéntende a nogao-Ue autor e a de pessoa. 6, @possivel dividir o trabalho porque, de fato, ele Sempre ivididlo, mesmo se os que escre- vem 0 ignoramyumaiveZ qué assuniem os di 7 se fosse seu proprioviegre. ent papéis. como A ESCRITA Dai a atmosfera de mistério que a cerca e 0 cuidado arqueolégico que se tem para reconstituir ¢ s diferentes fases da producao de um texto, reunindo com devogao os vestigios que dela restam ou indo 137 entrevistar os escritores para saber como trabalham.” Ja a escrita em colaboragao sugere a possibilidade de uma espé- cie de andlise espectral da produgao do texto, das diferentes instancias e fases do trabalho. . Talvez isso nao passe ‘0 das de uma graga inalcangavel: os négres nao tém a supersti fontes, os modelos s6 dao valor ao produto escrito acabado e os editores ndo tém nenhum interesse de que se possa imagi- nar a natureza e a dimensdo do trabalho efetuado. Existe, entretanto, uma possibilidade de se obter tal dispositivo de a pratica dos pesquisadores da area cientifica,”” observacao que tentam coletar uma memoria anterior a escrita, funciona da mesma forma. Podemoscvirar pelo ayesso esse dispositive de observacdo para entender o que éavescrita sem memoria. certo que asduas pessoas qiie colaboram nao coincidem exatamenteéom tal divisao“de papéis: 0 modelo tem sempre mais oicnienos uma,idéia, dd que quer padsar ao leiror, e 0 redator colabora\éom ele ho esforga de’ meméria. Mas, teori- camente, actéparti¢ad do traballto’ podéria se résumida da ‘seguinte forma: modelo tem po? fungad dizer, quesaibe e responder as erguntas, ficando, portatito, n¢ssa etapa, isento de responsabi- lidade. S6 pelo fato ‘de ser Outro que escuta, anota, pergunta, € deve asSumir maig,tatde aresponsabilidade de composigao do téxta3%0 modelo se\vé reduzido ao estado de fonte. Pode e deixar dévar pela memoria, uma vez que esta liberado das estrigdes ligadas 4 comunicacao escrita. redator se vé, a0 contrario, incumbido de todas as ungdes de estruturagao, de regéncia, de comunicagao com o exterior. Em A memoria de Hélene, talvez a memoria seja Héléne, mas a escrita é de Annie. Condensar, resumir, eliminar 0s residuos, escolher eixos de pertinéncia, estabelecer uma ordem, uma progressao. Mas também escolher um modo de enunciagao, um tom, um certo tipo de relagao com o leitor, 138 claborar a instancia que diz = ou parece escrever = “eu”. O trabalho necessa rio para chegar ao produto final é, as vezes, definido em uma espécie de caderno de encargos. A titulo de exemplo, uma carta, citada por Je n-Mare Théolleyre, de um ecitor que explica a um négre recalcitrante em que consis claboragio ¢ a redagao de um livro de lembrangas”: Segundo numerosos precedentes, isso quer dizer: fazer perguntas tor, quase sempre com 0 auxilio de um gravador, acerca dos diferentes elementos que podem servir de base & redacao da obra; ordenar es: ao elementos, dar forma ao relato do autor (suprimindo © que é proprio a lingua falada, mas respeitando ao maximo 0 estilo do autor, a fim de que o leitor sinta sua persona jade), fazendo ao mesmo tempo um certo trabalho de selecaé\para que a obra seja 0 mais interessante possivel e para que@\personagem doattor aparega sob uma luz favoravel; fazerdh®perguntas emoeguida, acerca das lacunas que surgem, paraeriar, por exemfilo um cenario e recons- tituir 0 ambiente em que ele vives"? s O que 6 texto define Com precisao cinica’é umascerta forma de narrativa, na -realidade independente, doamodelo'e de sua memérianf certo que se pedeao négre’ que permatiega fiel ao tom do modelo em suas performances oraig) mas trata-se principalmente de adaptar-6 quefor ditaas leis do género e a demanda do,priblicowisadostecorrendo para isso a procedi- mentos dénarragao ¢ déscrigao-eventualmente bem distantes dos do modelo,.A6 fazet' isso, 0 entrevistador-redator impée seu ponto de Vista nem seu estilo pessoal, mas antes se langa em um duplo exercicio de pastiche, operando um vai € vem entre essa espécie de nebulosa ou de rascunho que é a imagem da vida flutuando na memoria e na fala do modelo e as formas de narrativa em curso no mercado. Assim, ele a ume tanto a demanda do ptiblico quanto a resposta do modelo a essa demanda, como fariamos nés mesmos se tivéssemos de escrever nossas vida Ss. 139 De modo que essa escrita, que realiza uma negociagao entre a oferta do modelo ¢ a demanda do piblico, nao é realmente aescrita de Annie, isto é, a escrita de um “outro” localizavel € pessoal, mas uma espécie de escrita flutuante, uma forma autobiografica sem sujeito que a fundamente, mas que, a0 rio, fundamenta em seu papel de sujeito aquele que a cont assume ou a quem ela foi atribuida. Daia posigao instavel da pessoa que desempenha esse papel. O négre deve primeiro intervir ¢ 86 poder fazé-lo através de uma relagao interpessoal de didlogo: mas tera, em seguida, de e 0 modelo, a apagar sua intervengao e assumir, como se fo: relagdo com o leitor. Talvez ele veja com relativa indiferenga essa mudanga de papel que estava prevista desde o inicio, se encarar essa tarefa apenas como um trabalho alimentar, Mas se der valor a sua escrita, viyeraessa instabilidade sob 0 modo da frustracao e da humilhiagao, da despio8sessao; ou entio sob 0 modo lirico do entusiasmo, da gssessdo. Isso depende tanto dos tipos de relagdes institusionais e pessoais existentes entre 0 modelo d redator quanta dos géneros cofisiderados como pontode referencia: | nnie Mignardcaspira ao estattito, de biggtafa: embora nha procuradd ‘ser o maisfielpossiyela imagem que o odelo quis fornecer dé@si, insite ter, sido ela\quem construiu ssa imagem e reivindica’) direitos deynanifestar sua opiniao jessoal. Reivindicagao comipreenstvel, mas contraria a regra Jo jogos‘A opiniao doredatde's6 pode aparecer no texto como fossea’do modeloiiA manifestacdo de uma pluralidade de ontos de ista(édo modelo sobre sua vida ¢ o de outrem jobre o modelo) define imediatamente um outro tipo de texto com outro contrato de leitura). Sob formas diversas (que no indo sao sempre variagées em torno do testemunho), trata-se je textos intermediarios entre a autobiografia ¢ a biografia. A vida de um homem pode muito bem surgir através da narrativa de um outro. Ou melhor: a fala ou a escrita do modelo podem ser coletadas e montadas por um terceiro. E 0 que acontece, 140 tomando como exemplo trés casos muito diferentes entre siz Vie de Samuel Johnson por Boswell, Conversations de Gaethe avec Eckermann ou Cahiers de la petite dame sobre Gide. O de: eliminado 0 espa senvolvimento moderno das técnicas de entrevista, sem ter co da reescrita e da montagem, deixa explicita, no texto final, a intervengao das dua instancias (entrevistado e entrevistador), abrindo novas possibilidades de solugdes inter~ mediarias: -substituir 0 modelo, apagando-se discetamente. © puiblico gosta muito dessas situagées claras de transagao, pois pode consumir © objeto de seu desejo (a vida pessoal de uma cele- bridade) apresentado de forma por assim dizer estereografica, a mesmo tempo auto ¢ heterobiogeafica. redator de uma autobidgrafia emseblaboragao se encontr: durante a primeira fa: do trabalho, nessa posigao intermedidria deceséuta e questionamento. Mas deve}em seguida, renuneidr a esse papel. A\tinica posigag que podera entdo ocupar, se quisersdarcdignidade a seuttrabalho, sera a do romancista. Deve apostar nao no distanciamentoimas na identificagao.Embebido da fala dé shodelo;imprégnadede sua historia; ele tentara por-sesém’ seuslugar-para poder escrever como se fosse ele. Alguhs redatores declardm ser necessario “usar de imaginagao ¢ tainbém de nossa propria experiéncia, se quisermos que. persofagemcviva realmente, se nao quiser- mos trair suds €xpresses,9e0 coracao e, as vezes, sua alma”, e terminam a provaga0 extenuados como se fossem Pitias. E claro que a operagdo de possessio é reciproca: o redator se deixa possuir pelo modelo, mas também o possui, através de formas narrativas e ret6ricas tradicionais. Ele se vé, tal como Flaubert diante de Madame Bovary, numa espécie de estado de despersonalizagao lirica. E 0 que explica Max Gallo apre- sentando ao leitor o trabalho que efetuou sobre a fala e o personagem de Martin Gray: 141 Tive de podar: a cada passo, essa vida contava uma historia S6 conservei o essencial; recompus, confrontei, montei os cenérios, tentei recriar a atmosfera. Empreguei minhas proprias palavras. E também utilizei todos os vestigios que a vida tinha deixado em mim. Pois, pouco a pouco, mergulhei na vida de Martin, pouco a pouco » era a minha. A expressio ¢ gasta, pouco entrei naquela pele que importa: fui aquele outro, o menino do gueto ¢ o fugitivo de Treblinka ede Zambrow, o imigrante descobrindo os Estados-Unidos, o homem golpeado pela vida." se trabalho de escrita é uma criagao literaria como outra alquer. O relativo descrédito em torno do género se deve to a evidente especulagao comercial quanto a monotonia las técnicas empregadas e@-médiocridade, dos textos produ- idos. Mas, se o redator tiver talenfoe se houver um bom entendimento entre’ele e o modelo, livros de grande qualidade poderao nascer: os leitores} eatao, questionariam menos sua autenticidade e seria menos exigentes; Reconheceriam ali implesmente-um générd novo, que Fealiza\uma articulagdo édita entfe 0 romance e a autdbiogratia, wit variedade do ‘romance veérdadeiro” qué’a hidgratia pretendéser."* Pode aconteceryalias, queéssa-divisdocde papéis seja abrup- tamente anulada por\tima ppermutagao durante o trabalho e que, dessa\formayA situa¢ao auitobiografica seja restabelecida. Basta’ queo ‘modelo, depois de ter desempenhado, durante a primeira fase dostrabalho, o papel de fonte, respondendo as perguntas,substitua o entrevistador na segunda fase do trabalho para elaborar ele proprio uma narrativa a partir da transcrigéo de sua entrevista, tornando-se assim... 0 négre de seu négre, ou seja um completo autobidgrafo."* E 0 que fez Christiane Rochefort, que construiu um autor- retrato muito original ao invés de dar respostas ao “entrevis- tador” e inseriu maliciosamente no fim do livro, como um residuo, a lista de perguntas que Ihe tinham sido feitas. 142 E 0 que fez também, mas de forma muito mais classica, Simone Signoret redigindo suas respostas em La nostalgie n'est plus ce qu’élle était [A nostalgia nao é mais a mesma] (1977). E € por nao ter entendido isso que Anne Gaillard foi parar no tribunal.'* Esse exemplo mostra perfeitamente duas coisa sum desdobramento seguido de um redobramento das instancias que esto em jogo no trabalho autobiografico; e a incerteza que cerca 0 problema da definigao de autor, com as desconfiancas © as suscetibilidades engendradas por essa incerteza. A ASSINATURA colaboragao turva de maneira perturbadora a questio ja responsabilidade, chegando a atentar contra a.nogao de ntidade. A tendéncia tanto d6é,modelo quanto’ do redator editar ser o principal¢3cnao 0 tnicos@autor” do texto. Quanto mais a elaberagao do texto or esmerada (e 0 texto, “bem-sucedido”), mais intenso-séra gsehtimento de fesponsa bilidade exclusiva de cadaaima-das partes. O modelo acaba se comportando comose tivesse escrito (caso muito frequente), o redator acaba ‘acreditando que vivew (caso menos frequente) ou, pelonienos, vendo 0 modelo como sua criatura. Os jogos de ifaSio engendrados_por essesmodosde trabalho nao sio reservados ao leitor,ijue sefia engantado pot cles: 0 modelo o redator podenrser eles proprios vitimas de uma vertigem ou alucinagao- Eé,yérdadeque-a-fvida” em questo pertence a ambos — mas talve? também, pela mesma ra 0, No pertenga nem a um nem a outro: a forma literdria e social do relato de vida, que preexistia ao empreendimento, nao seria a “autora” dos dois? Na verdade, nunca somos causa de nossa vida, mas podemos ter a ilusdo de nos tornarmos seu autor, escrevendo-a, com a condigao de esquecermos que somos tampouco causa da escrita quanto de nossa vida. A forma autobiografica da a cada um de nos a oportunidade de se crer um sujeito pleno e responsavel. Mas basta descobrir-se dois no interior do mesmo “eu” para que se manifeste a diivida e que as perspectivas se invertam. Somos talvez, enquanto sujeitos plenos, apenas personagens de um romance sem autor. A forma autobiogréfica talvez ndo seja 0 instrumento de expressao de um sujeito preexistente a ela, nem mesmo um “papel”, mas antes o que determina a propria existéncia de “sujeitos”.'” Na verdade, a colaboragao s6 engendra duividas tio meta- fisicas no leitor que aceita refletir sobre ela: essas reflexdes, © particular, levam-no rapidamente a sugeridas por um ca questionar a totalidade da escrita autobiogréfica, mesmo a divisio de “auténtica”. Quanto as partes implicadas, ou ¢ identidade desagua na simpatia, ou entao desencadeia conflitos que, se forem graves, nao vao sinscrever no plano metafisico, mas no terreno juridica: Isso porque, pardetras desses:problemas de identidade, se escondem problemas de relagaé de forgas (e, a0 mesmo tempo, problemas’de dinheiro)’¢ esirigdes impostas pelas regras proprias aos diferentes-¢ireuitos de comiuticagae. utor-déim.texto é, na maioria dagvezespaquele que o creyeul»mas\@fato de escrever nao € sufigiente para ser decla- Nao se é auto? incondicionalimenté Frata-se de algo clativo e convencional; s6 S¢ tora autoF quando se assume, ou quando alguéi The-atribuig’a responsabilidade da emissao de ensagem (emissiao queymplica sua produgao) no circuito A determinagao do autor depende tanto das leis desse cifevito qdanto da materialidade dos fatos. AUD _se complica pelo fato de a nocao de autor remeter tanto a idela (@iapropriaividida (igualmente ou de maneira hierarquizada) entre varias pessoas.'® Enfim, o estatuto de autor tem diferentes aspectos, suscetiveis de serem dissociados, e eventualmente também compartilhados: a responsabilidade juridica, o direito moral e intelectual, a propriedade literaria (e os direitos finan- ceiros a ela vinculados), e a assinatura que, simultaneamente, 144 remete ao problema juridico ¢ faz parte de um dispositivo textual (capa, titulo, prefacio etc.), através do qual o contrato de leitura é estabelecido. Nem tudo € tao simples como poderia fazer crer a formula empregada por Annie Mignard, indignada ao constatar que “um escreve, outro a: sina”. O préprio sistema nada tem de absoluto. A referéncia ao autor correspondeu, ao longo dos séculos, a praticas muito diferentes, e isso esta certamente vinculado a evolugao dos meios de comunicagao. No tempo em que os textos eram copiados a mio e que a leitura era feita em voz alta, a nogio de autor nao tinha o mesmo sentido que tem hoje.2” E novos meios de comunicagao, como o cinema (ea televisio) acabaram por desvid-la ou fragmenta . Francois Ma spero ficou mui chocado com a ideia de que um titulo,cdmo Histoire de ma vie [Historia de minha vida] possa s@fassinado poritvas pessoas, “Hélene Elek ¢ Annie Mighard”. Ele, ironiz ‘minha vida’ passousa-ter du a: “Em suma, propfietarias.” Obviamente, é “historia” que ‘tein duas responsayeis, ¢ 0 dispositivo d titulo parece burlesco. Mas issodemonstra apenas gué-seri © caso dé renovar asFérmulas de créditos{do livfo imprésse No cinema, acontece frequentementede gator do toteiro. o diretor-do filme serem pessoaS diferentes ¢ figurareh ambos nos éféditos. Por exemple? A mehtoriade Héléie, roteiro de Heléne Elek e diregao de Annie,Mignard)t certo que, aqui, tudo se complica, umaver,quie-o autor do roteiro é ao mesmo tempo o Sujeitocda nartativae Que essa identidade é um dos elementos qué metivam.aeompra. Além disso, a repartigao do trabalho, aqui, nao éotresponde totalmente a epartigao que a distingao roteirista/diretor implica no cinema. Nao se pode, assim, continuar sem artificios 0 paralelo com © cinema, pelo menos nesse plano. Mas, na origem do filme, ha um produtor, na do livro, um editor, que tém uma fungio " No setor da autobio- grafia composta em colaboragao, os editores (ou organizadores da colega estratégica no mercado de bens culturai » simples engrenagens de transmissao, mas 145 em geral tomam a iniciativa ¢ assumem uma responsabilidade Sncia € 4 propria forma do livro, $0 consideravel quanto a exist eles que fazem 0 estudo de mercado, determinam as zonas de ‘ato e associam notoriedade a serem exploradas, poem em con s © proprietario da jazida por contrato e um caderno de encargc de memoria que seré explorada (jazida cujo valor se mede seja pelo valor intrinseco do filao, seja pela posigao do terreno em gloria) e 0 profissional relagdo aos grandes eixos de circulagao d a sr iil funcionam verdadeiras oficinas, nas quais se pode dizer que, rigor, os modelos e os négres sao intercambiaveis ¢ o verdadeiro @arogsveMpresinig que se orienta pela demanda do puiblico ¢ providencia o que poderd satisfazé-la. A no ser que, no final das contas, consideremos@ue 0 verdad ma GRBPHO PUB cyjodesejo ¢ credulidade complacente deixa enganardesdle que se usetn lavas de pelica — dao a todos os livros um peso (a autoridaide) qué nao teriam.sern essa mediagao. bom ampliarstambém as nogdessde responsabilidade &produgios mas é bvio que iss@signifiéa ir exatamente a contracorrente,da mitologia.do autor; necéssdria ao funcio- naménto do‘sistema. Q.sistema‘do autor nao€ apenas uma condigao formal, eleé de certa fornia a mbhsagem fundamen- tal veiculada.pélo gériéro, avtobiogriitico. O que o piiblico consome.é fornia pessdal de uit discurso assumido por uma pessoa real, résponsavel por Sua escrita como 0 € por sua vida. Consoniése “stjéitopleno que se quer acreditar verdadeiro. Essa exigéncia profunda vai naturalmente entrar em conflito com as tentativas de “honestidade” que, tomando ao pé da letra 0 desejo de verdade, quebrariam a ilusdo de plenitude e de responsabilidade do modelo. O puiblico se encontra em situagao ambigua, desleal. De um lado, esta sempre pronto para suspeitar de um texto ¢ denuncid-lo por nao ser autén- tico (mas, exatamente por isso, arvora-se em amador sedento de autenticidade e reconhece essa qualidade no conjunto dos outros textos que consome cegamente). De outro, esta sempre pois se 146 disposto a se entregar aos jogos de ilusio e a nado enxergar através dos véus transparentes que encobrem a fabricagao de um texto, ja que o ssen al € 0 prazer que tira dele. A mediagao do negre sera, portanto, dissimulada, ou entio, se for confessa, atenuada ou metamorfoseada.”? © négre tem ma reputa : vitima de um sistema que o explora, ele é, ao mesmo tempo, tal como a prostituta, seu bode expiatério. verdade que quem o explora também é malvisto. Esse clima de desconfianga comegou a se desenvolver no inicio do século 19, isto é, desde que o papel do autor de fato se formalizou (desde que a pessoa se tornou objeto de consumo). O livro de Quérard, Les superchéries littéraires dévoilées |Os embustes literérios desvelados], reeditado e complementado ao longo do século 19, mostra perfeitamente o desenvolvimento da pratica de colaboragao ou impostura eda suscetibilidade'dos criticos. Hoje, o négre € visto menos Cohio “escritar,publico”, advogado ou ator de causas alheias'e mais come:tima espécie de dona de breché ou maquilador, um espectalista do “prét-a-pofter” ou do “sob medida” autobiografico, Se o piiblico soubesse aque “o autor?2histo éo modelo) realmente produit, ndo ficaria tentad6 8 sea@voltar2 Sera. que aceitaria s€deleitar’com colorantes? A.resposta nao é simples. Primeiramente porque toda’éscrita-€ unycolorante. 2, depois, o que de fato engendra _boates, escandalos e investigacdes parece ser antes 0 ato'de di imulagao ‘da colaboragao do que a propria Golaboragao. Ror fimse bem possivel que o piiblico nao seja homogénedr € priticipalmente o ptiblico “intelectual” ~ as pessoas que escfévem ou se sentem capazes de escrever — que é mais sensivel nesse ponto. O grande piiblico, a quem se destinam muitas des: produgées, admite mais fa Imente que se pega a alguém uma maozinha para escrever quando nao se é “do ramo”.?? Assim, a colaboragao é hoje, em geral, mencionada nos créditos, de forma pudi é verdade, usando litotes que s6 enganam quem quer ser enganado. QxREITOEMAD emencionadon 147 ”. A formula cpoimento a.. sugere o ditado ou a confidéncia coletada com fidelidade reli- giosa. Quando se confessa totalmente o trabalho de escrita ssuma, em um e composigao, & necessdrio que o redator « preficio, o estatuto de biégrafo ou romancista. E é desejavel entdo que tenha algo que o recomende ao ptiblico. Max Gallo : seu prefacio da ao livro de era um escritor de certo prestigic Martin Gray uma caugao literdria, Ele afasta o fantasma do négre (“Assim, esse livro nao foi escrito com a indiferenga dedicada de um profissional”) ¢ fornece ao leitor 0 exemploa ser seguido, o da identificagao (“Fui aquele outro”). Mas, seja escondida, parcialmente confessa ou manifesta, a colaboragao, de qualquer modo, raramente leva o redator inatura. Pouco que esti ao lugar estratégico reservado ao “autor”: a as importam os fatos: é a logicacdo*contrato de leitura em questao. Ficaremos convéncidos disso se compararmos 0 género que acabo de ‘descrever com género, aparentemente vizinho, da autabiografia deopessoas do povo coletada pelo gravadory As jnvestigagdes Sobréos négres, de tatoxtém_por objeto apenas os empreendifientos edjtoriais-qae huscam explorar © interesse’ por vidas fora .do’comum (heroicas;exemplares, estranhas etc.) ou a curidsidade inspirada por qualquer pessoa conhecida.** Nos.dois casos, aypartiredd momento em que se escolheu que proprio modelo contara sua vida em um livro (ao invés‘de celébra-Ja’em uma biografia), é necessario que ele assuma a éscritai0 estatuto de autor faz parte desse valor que © leitor admira. Apessoa gloricsa, ou exemplar, deve ser um sujeito pleno e completo. Se Deus €, por definigdo, completo, deve possuir em seu mais alto grau, todos os atributos possiveis, inclusive a existéncia. Da mesma forma, desde 0 momento em que revela sua vida em um livro, 0 herdi deve possuir a escrita ou, a0 menos, sua representagao simbélica: a assinatura. ne por intermédio da pena O fato de que essa escrita se faga de um outro tem pouca importancia, desde que o leitor tenha 148 fé. “Leia, isso é a minha vida .” O importante € a presenga real do corpo de Cristo na héstia. Obviamente, sempre ha um padeiro envolvido na histéria. Essas comparagées nao pretendem ser desrespeitosas, mas apenas ressaltar que, nesse setor editorial, se manifesta um fendmeno que contamina todo o nosso campo cultural: 0 poder carismatico, a crenga na exi ncia de herdis com os quais a massa deseja entrar em contato para aleangar algum valor. “Conhega melhor as pessoas conhecidas!”, recomendava © efémero periddico Saga, que tentou, em 1978, explorar esse fildo. no Ambito de uma etnologia dessas praticas magicas, s quais os meios de comunica o modernos deram um enorme poder, que se da conta, em ultima instancia, dos problemas editoriais aqui debatidos. Aa inaturalautobiografica tornou- se um dos atributos do heroi2s-le &, de certa{Orma, “autor honoris causa”, segundo, unPsistema cujectxemplo foi dado algumas vezes pela Agatlémia Frances de Letras, Na autobiografia gravada de pessoaede povo, as wécnicas de trabalho eaddivisdo dos papéis sao aparentemente m s mesma as relagGes de forga’e os tmperativos doeontrato de leitura jo exatamente inversos: O que se busca captar nazescrita é voz, 0 diséurso autobiogrificomos qe nao esereveni: Veh erdrios aposentados, eamponeses, artésios,trabalhadores. imigrantes etc. Suasnarrativas passam apter valor, aos olhos jo leitor, pelo, fato de\que, elés pertencem (ou sdo percebidos ‘como se pértencessem) actimacéilltura diferente, que se define pela exclusao da escrita. A.éditora explora uma curiosidade de tipo etnoldgico, quéprovoca uma reviravolta na encenacao. Confessar a colaboragao, no caso dos négres, era o pior que poderia acontecer, ao pa 880 que, aqui, se tornou uma pega essencial ao sistema: s isso € uma outra historia). O redator, que em g iniciativa de s uma narrativa que, sem sua intervengao, teria permanecido ju citar 149 no silencio, se apresenta como mediador entre dois mundos, quase como um explorador. Sua presenga deve ser flagrante € seu estatuto é o de verdadeiro autor, com todo prestigio social as vantagens financeiras que isso comporta.”* modelo aparece principalmente no titulo, e se 0 redator de dir nao assinar sozinho, mas dividir a autoria com o model sera por escriipulo ou generosidade (a0 passo que, no outr sistema, é generosidade da parte do modelo dividir a autori com seu négre). As relagdes de forga se invertem: para cada estrela, herdi ou explorador que tem uma vida a ser escrita, existem algumas dezenas de négres disponiveis no mercado de trabalho; para um “etnobidgrafo” amador que quiser captar uma vida, existem centenas de milhares de modelos possiveis, 0 modelo escolhido deve se dat-por muito feliz em ter acesso a.uma notoriedade que.nao Ihe era destitfada. Todo 0 valor da narrativa consiste no\valor agregado pela escrita, ou antes, pelo novo circuita de tomunicagad ho qual o mediador o inser © infeliz.sedaria conta disso-ses-em seguidayténtasse escrever ele-préprio. Perderia o crédito. Ele é defato asériatura de seu ethobidgrafos O sistémaydeassinatura dé um, livro muda, portanto, em furtgdo das Circunstancias: se omodelo@ um héroi ou um anti- “her6i, se pertence ou naoSno plano simbdlico, a0 mundo da escrita. Em. Aw nome tous Ves miéns [Em nome de todos os meus], Martin Gray 6 autor que assina, embora Max Gallo tenha escrito 0 livro (9, que torna o titulo estranho, Max Gallo escrevehdoém nome de Martin Gray, que fala em nome de todos os seus):Em Gaston Lucas, serrurier, chronique de l'anti héros [Gaston Lucas, serralheiro, crénica do anti-herdi] (Plon, 1976), Adélaide Blasquez escreve e assina o livro, Gaston Lucas nao é mais 0 autor, mas 0 assunto do livro: 0 anti-herdi é, ao mesmo tempo, um anti-autor, cuja “cronica” foi coletada. Ora, nos dois casos, 0 redator realizou 0 mesmo tipo de trabalho, mesmo que seja numa perspectiva diferente (de gesta heroica ou de escuta populista). 150 Escolhi aqui um caso em que a oposigao é categérica, gritante. Pode-se, obviamente, encontrar alguns contraexem- plos, ¢, principalmente, diversas situagdes intermediarias.” Eo sistema que descrevo nao é atemporal, mas, stema em curso na Franga atualmente. Mas essa oposigdo deixa claro ncial: uma vida (isto é, uma narrativa de vida escrita € publicada) é sempre o produto de uma transagao entre diferen- tes instancias, e a determinagao do “autor”, no caso de uma colaboragao confessa, depende acima de tudo do tipo de efeito que 0 livro deve produzir. Nao se trata de uma qu oe stao meta- fisica a ser solucionada independentemente das circunstancias: um problema ideolégico, vinculado aos contratos de leitura, as posigdes possiveis de identificagdo com “pe soas” eas rela- goes de classe. Martin Gray é proprietatio de sua vida. Ja a de Gaston Lucas s6 adquire unidade@'dignidade dapropricdade 0 de Adélaide, Blasquez. pela media A polémica comecada por Annie Mighard é muito esclare- cedora porque suaposig 10 € instavel e Jevou Frangois Maspero a raciocinargomo ela, ao-mMesmod, tempo, nos, déis sistemas. também elucida agrelagoés Ue violencia explaracae.que sto em jogo natéscrita © poder que‘esta representa: negres lespossuidase setrtrabalho ¢ avitoridadé, “modelos Sexclu- los da escrita e resgatados pelos,qtic.a. possuent) Na escrita pmo em toda parte, @“auroridade esta sempre do lado dos jue tém o poder,’ AnnieMighardpreconi#a enta0 entregar o poder ao povo, entregando-Ihé’a_escfita, Segundo ela, os editores deveriam propor diretamente sa pessoas do povo” “contratos de escrita”. “O povo, por sua vez, é perfeitamente capaz de escrever sem esperar que venham obrigé-lo a se confessar no microfone.” Certamente. Mas escrever para quem? Para 2 de Annie Mignard ar de tudo, vitima do circulo vicioso imposto pelo mercado pessoas que leem. A generosa propos apes de bens culturais. Mignard parece ignorar o relativo fracasso da “literatura proletaria” e suas razGes . E esse circulo vicioso que vou explorar agora, situando na historia recente 4 p gora, s aventuras 151 da escrita popular e da escrita populista, mostrando como a tiltima sempre levou vantagem, fato comprovado pelo suceso screvem. atual da autobiografia dos que nao e RELATO DE VIDA E CLASSES SOCIAIS A “meméria popular” é hoje objeto privilegiado de estudo, seus vestigios sdo coletados com devogao e sua historia, recons- truida. Mas, se remontarmos além dos Ultimos 60 anos, € necessério praticamente renunciar a encontrar manifestagoes escritas dessa memoria, ao menos sob a forma de relato de vida autobiografico. O aprego pelas Memorias de Perdiguier, de Nadaud, de Benoit, de Dumay se deve a raridade de tais testemunhos.”* E isso por se tratar de militantes arteséos ou operdrios: existem ainda menos autobiografias escritas pot camponeses. A de Pierre Riviéré s6 chegou a nds devido a um crime, através do qual’o jovem catiponés acreditava, por ter vingado o paix tohquistar a, gloria e “elevar-se acima de sua condigdo%\e sua publicacag.em 1836 passou desperce- bida a seus’ contemporances.2”O sucesso-do relato de Emile Guillaumin, La vie d'un simple [A vide-de um simples] (1904) se deve ao fato'de qué publico, depois de 60.anos de romences nisticos;pensow ouvir pela primeira Vez a-voz de um verdadeiro camponés.°? Por que esse “siléncio® Porque nas ¢ transmitiari Sua theméria oralinente? Seria ingénuo pensar isso. Adfstrugao se difundiuem larga escala ao longo do século 19. Mas quenpSabiaster e escrever usava sua instrugdo para outros fins, sob utras formas: por que, ou para quem, teriam eles escrito seus relatos de vida? O problema da alfabe' e da aculturagao esconde um outro problema: o do circuito de comunicagao do impresso e da fungdo dos textos e discursos se circuito esta nas maos das abiam ler nem escrever que passam por esse canal. E: classes dominantes ¢ serve para promover seus valores e ideo- logia. Os relatos autobiograficos, obviamente, nao sao escrizos apenas para “transmitir a memoria” (o que ¢ feito pela fala e 152 pelo exemplo em todas as classes). em que se elabora, se reproduz e se transforma uma identidad| coletiva, as formas de vida proprias as ¢ asses dominantes. Essd identidade se impde a todos os que pertencem ou se integram a essas classes € relega as outras a uma espécie de insignificancia. Talvez seja util, para se convencer disso, determo-nos um pouco no século 19. O tempo dos memorialistas ¢ 0 Antigo Regime esto longe demais de nés; nossa propria época pode ser um pouco opaca para nés. Para sentir 0 anacronismo que significa procurar autobiografias camponesas ou operdrias no século 19, basta abrir um livro volumoso, austero, mas fascinante, 0 Catalogue de l'Histoire de France [Catalogo da Historia da Franca], constituido no proprio século 19 pelo que € hoje a Biblioteca Nacional. A segio-das biografias indi- viduais retine por ordem alfabética todos os textos referenciais escritos (e impressos) sobre individuos."! Ao folhed-la, tem-se a impressdo de ouvircde certa forma%o' murmtirio daquela sociedade, Estao, ‘ali, obviamente; todasas biografias, teste- munhos, mémorias ¢ lembtangas,seorrespondénéias _publica- das relacionadas as,pessoas Gélebres, os que'partiviparanddo governo, das guerras,ou tiveram éxito’ém um campo qualquer da vida soeial, das artes ou das.letras, Por detras desses textos relatives a essas pessoas, dé-projeeao navionalpéncontramos uma massa muitomaior-de\ textos impréssos (e impressos sem davida em‘im niimero muito reduzido de exemplares), relativos a pessoas de_proje Aoomiais local, mas que indicam 08 ritos basicos dasociabilidade das classes dominantes.” Sao clogios académicos,\notas biograficas de cientistas. Oragdes fiinebres, biografias edifi antes encomendadas ou redigidas por sobreviventes, alguns dis ursos juridicos, mas também, as vezes, textos autobiogrificos. De menor prestigio, porém mais numerosos € significativos, esses textos comemorativos dizem respeito aos mais variados tipos sociais: médicos, reli- giosos, engenheiros ou cientistas, artistas ou homens de letras, industriais, comerciantes, proprietdrios, personalidades locai 153 Fica-se apenas na esfera dos bem-sucedidos, cuja vida adquiriy algum valor social. Essas pessoas se tornaram proprietaria\ de suas vidas, podem organizé-las, apresenté-las como carteira ou destino e fazer delas um espaco de transmissao de valores guramente, nem todos os individuos dessas categorias soc terdo sua vida impressa, mas sao os tinicos que tém alguma chance de conseguir chegar I ¢ produzir narrativas em que todos se reconhecem. Em contrapartida, quanto aos individuos dos outros grupos (camponeses, artesdos, operdrios, funciondrios de pouca impor- tancia etc.), ndo existe praticamente nenhuma possibilidade de que suas vidas sejam contadas por escrito (por eles proprios out por outrem) e impressas. O discurso sobre elas permanecera apenas na memoria de seu, gtupo (seu vilarejo, seus pares) ¢ raramente ira além desséGirculo. Enclaytsuradas em seu meio, suas vidas nao tém-ojtipo de indiyidtalidade proprio para susci- tar interesse,én} geral vinculado a mobilidade e ao éxito social. Enquanr forma individwal,@ao sao, aos.olhos das pesso: »presso, trarismissoras de picuild relativo as vidas passiveis de fabricar e edistmir o i nenhum valorAssith, nao sera_90°Ca individdais que\se deve proéirar, wéstigios Wo. “vivido” dos camponesés € operdriasyOu_entao, apenas nas narrativas dos egressos dessas classes Cuja Wxperiéncia do Campo ou da fabrica foi relegada, acum relato de\intancia Ou de juventude: mas, ai, id nao se¥screve thaigzna qualidade de camponés ou operirio. O-viyido das-dlasses@ominadas nao esta, na verdade, em suas propriaS mags: Como sugere Pierre Bourdicu, “as classes dominadas n&o falam, fala-se delas”." Seu vivido é estudado de cima, de um ponto de vista econdmico ¢ politico, em pesqui- sas que, naquela época, nao passavam pelo relato de vida. E imaginado no discurso jornalistico e romanesco das classes dominantes e nutre tanto seus sonhos (principalmente os campo- heses), quanto seus pesadelos (principalmente os opersrios)."’ A partir do momento em que camponeses ¢ operdrios tiveram acesso 4 pratica da escrita (e em particular ao relato de vida), 154 comegaram a fazé-lo a partir de imagers de si j4 constituidas que encontraram pelo caminho. De outro lado, o fato de assu- mir o proprio relato de vida (¢ eventualmente tentar publica- -lo) representar4, mais ou menos voluntariamente, um ato de ascensio social e de integragao cultura dominante, mesmo se isso for feito no ambito de uma luta militante destinada a suscitar uma consciéncia de classe. Entra-se aqui em um jogo complexo de contradig s, ligado as relagdes de poder e as leis dos circuitos de comunicagao do texto impresso. A fala operaria do século 19 nao assumiu a forma de relato de vida individual. Os primeiros militantes nao precisavam dela, nem para se dirigir a seus pares, nem para responder a0 discurso burgu ‘ Nao se tratava de criar uma memoria, mas, em primeiro lugar, uma consciéncia de ¢lasse, fundamentada na analise do presente. Isso fica claré nas narratiyasidé Nadaud. O trabalho dos militantes erayum trabalho de‘alfabetizacao, de instrugao, de associagae'seu discursogum discurso ideoldgico de luta. O texto,fememorative eseritoycentrado emma vida individual, nao correspondia a,fienhuma necessidade; ainda mais que‘ relato de vida poulctia assumir,in agpecto desmo- bilizador pelo stiples fato de ser retesSpectivee merguilhar em um mundo ultrapassado. certo que gtestemuitiho individual escrito poderia ter sido sitihinterhamente; para‘aproximar as diferentes fragées, isoladas eSeparadas, dag¢classes dominadas: mas essa comunicaga@ era_efetuada ‘de outra forma, inicial- mente pélas associagdes de companheiros e, depois, pelas primeiras aSsociagées opetarias. O testemunho poderia ter servido externamente, direcionado ao grande publico “leitor”: Nao ha, portanto, autobiografia “popular” no século 19, porque nao existia para ela nem ptblico, nem circuito de difusio, Os textos exumados hoje ou permaneceram inéditos até o século 20, ou entao tiveram divulgagao insignificante. Raras sao as excegées. Dentre elas, encontramos textos de autodidatas, como as surpreendentes Mémoires, de Norbert artir de sua reedi- Truquin, que s6 foram realmente lida ¢do em 1977. O relativo sucesso dos relatos de Perdiguier ¢ Nadaud se deve ao aspecto histérico de suas representagées a vida operatia soba =e, no caso das organizagées dos companheiros ou Monarquia de Julho e sua moderagao ideol6gic« de Nadaud, a sua gloria local como militante e self-made man do departamento da Creuse. O tinico género que surge e se desenvolve na segunda metade do século 19 é a autobiografia dos militantes que viveram em 1848 ou 1871 e que escrevem tanto para outros militantes o grande piiblico. $6 a pratica da agao eo m dotar a vida operari quanto para jamento politico e sindical poderia uma identidade, isto é, uma estrutura ¢ um valor que a fizess ter acesso ao modo de difusao,da\biografia impressa. O relat de vida torna-se entao um espaco de elaboracao da consciéncid de classe e serve paracincutir modelos valores mais ou meno} revolucionarios:’*De outro Jado, aos olhos das classes domi nantes, essas’narrativas-adquirem valor pela-participagao de seus autores em lutas que fazem parte d@Histéria: elas entram na categoriasdas memorias e testemunhos politicos. Mas o efeito da autobiografia militante éentravado pela’exiguidade dos canais de difusdo note diz respeito a-seu publico virttal, pessoas das classes! dominadas\qiie n40 leem, ou que leem a literatura dominante? O historiador que‘explora esse campo precisa ser muito prudente. Eu pféprio;‘a0 considerar a cultura das classes dominadas pelo angulo restrito do relato de vida, escolhi um critério que talvez nao seja pertinente. Mas talvez seja mais facil avaliar o grau de arbitrariedade das escolhas dos outros: as de Michel Ragon, em sua Histoire de la littérature prolétarienne en France® [Historia da literatura proletaria na Franga|, me impressionaram. Discipulo de Henri Poulaille, Michel Ragon se dedica, ha mais de 30 anos, a constituir uma hist6ria da 156 literatura proletaria, escrevendo manifestos, antologias ¢ essa Histoire. O objetivo é doar um movimento de expressio contemporaneo de um passado (uma tradigéo ¢ uma espécie de legitimidade}: vai-se entao reunir em uma historia (o que é, de fato, antes um catalogo) séries de fatos pertencentes a conjuntos diferentes, com a condigao de que remetam (mas pelos mais diversos meios) tanto a ideia de literatura quanto a ideia de povo. O que estuda Ragon é, de certa f intersego de dois conjuntos: de um lado, todas as formas de cultura do povo, de outro, todas as formas de representacio do povo na literatura escrita. Estudar apenas a parte comum aos dois conjuntos significa estar condenado a colecionar fatos pouco numerosos e heterdclitos, uma zona vacilante ¢ sem estrutura propria. De outro lado, histéria é inteiramente fundamentada em critérios deyvalor: agon declara querer tirar da literatura escrita por pessoas do povo “o que poderia mostrar © rosto auténtico do povo, sua evolugao, suas aspira- Ses, suas queixase suas alegrias" 19866 levor escritoresde origem popular qué nao fornecem uma imag correta do povo, mas também a incluir, naditératura prolerart escritores ja distanciados de suas origens popularés; mas q falam doypovo como convém.As disetissées sobre opedigr dos escritores prole ArioS revelam essas- ambiguidades.** A Histoire de Ragonsié’m pok isso, déixa deSer preciosa, como fonte de informagao; interessante como fato histérico, pois as contradicées que cle proprid encontra em seu trabalho de historiador s46°exatainente as mesmas enfrentadas pelos escritores proletarids: A principal contradigao diz respeito ao circuito de comuni- cagao: “os escritores proletarios nao atingem a classe oper ria.” Ou se a atingem é pela mediagao da classe dominante. Um sua experiéncia de camponés para outros camponeses, mas camponés como Emile Guillaumin nao escreve diretamente escreve a partir da literatura romantica assimilada na escola es municipal, para o circuito editorial parisiense, tinico capaz 157 de legitima-lo € divulga-lo. Dentro desses limites (que sio também condigées de possibilidade), ele transforma a imagem do camponés para que o piblico parisiense tenha a impressio de ouvir uma fala camponesa auténtica ¢ para atingir outras pessoas como ele, no resto da Franga. E s6 0 consegue por ter encontrado uma demanda das classes dominantes (a mesma que, hé um século, era suprida pelo romance rural), Nese sistema, 0 risco € grande: nao ter repercussao ou pagar o prego de ser apropriado pela midia ¢ pelo mercado. Esse é 0 problema que se coloca para a literatura proletaria desde 0 inicio do século, Com excegao dos depoimentos de mili- tantes, a maior parte dos escritores “populares” do século 19 e do inicio do século 20 se dedicaram principalmente a poesia ou a ficgo (de inspiragao autbiografica). $6 depois de 1918 comega a surgir um numéro mais signifiéativo de testemunhos e autobiografias, esctitos por autodidatas. Na ultima parte de seu livro, Michel Ragon fornécé um completo recenseamento desses textos que forameptiblicados."* Escritofes militantes do entre-guerras tentafam_ofganizar essa praticadispersa e difusa e garantir-lheCuim_ novo tipo de, divulgagao, criando revistas (Nouvel’Age),Atigares de en€ontr@(o Musée du soir) e até um#editora\para escapd? do ¢ifcuito thadicidhal. Apesar desse esforgo fecundo, Michel Ragansfaz unebalango desiludid ‘0 para atingir um piiblico popular. O citéuito das editoras nao € O editar.a&D conségueJeitbres e o leitor ndo consegue encontrar 0 livro. A mait parté'das obras mencionadas nessa Histoire de la lit- térature prolétarienne s6 pode ser encontrada em algumas bibliotecas especializadas. Muitos desses livros foram publicados por editoras que ja nao existem (Valois, Rieder) e destruidos, outros impressos em edig6es do autor.*° Talvez possamos ilustrar esse problema de comunicagao no interior da classe operaria, comparando dois depoimentos de mineiros escritores, ainda que cada um a seu modo. Louis 158 Lengrand, nascido em 1921, apos ntado em decorréncia de uma silicose que lhe atingiu 80% dos pulmdes, fala a Marie Craipeau de suas praticas de leitura: Nao é que eu | 1a tanto, Leio os jornais sindicais, tudo 0 que diz respeito aos mineiros. Mas nao me interessa saber que Pompidou pegou uma gripe. Na verdade, nao gosto de ler, mas quando um livro me agrada, leio até o fim. Durante todos esses anos de mina, nunca li nada, nao tinha tempo nem para o jornal. No sanatério, li- 0 que vocé queria que eu fizesse? io Conde de Monte Cristo, lembro-me de cor dos 10 volumes que li. As vezes, 4 uma da manha, a enfermeira vinha me dizer: “O senhor tem de dormir”, eu respondia: “esta bem, vou s6 acabar o livro”. Gostava daquilo. Litaiibem Porteuse dépain o) que vi no cinema ¢ na televisio Faz 15 anos que temos tele 0. Gosto dedilthes de guerra e faroeste. Dos filmes de Jean Gabin tambény AS historias de amor me entediam. Vou log dormir. E minhaitulher que vé. Ela vé ranibém, as vezes, pecas.d€ teatro, Minkta mulhekhao [é livros, 968 folhetins do Nord-Matin. . g ce Louis behgrand s6 comegowa ler depois, daiddengae da aposentadoria que também leyaram axdar seu depoimento. Na geragao precedente; 0, es¢ritor proletario\Constant Malva (1903-1969),também: thiheiros-escreyia-quando ainda traba- Ihava ¢ avaliava ponderadamente-o impacto de sua escrita: A gente faz 0 que pode. E acho que nés, escritores proletarios, somos titeis assim mesmo. Os operarios nem sempre podem digerir s da (0. Temos a vantagem de seduzi-los ao mesmo tempo em extos, em geral pe: los e complicados, dos grandes tes evoluga 1 05 educamos (...) Isso também significa trabalhar em pro! da olucao, mostrando detalha mente a sit (0 miseravel de certos Jcrarios © operarias a outros operarios ¢ operdrias, Sei que ficam hais entusiasmados quando ouvem um orador inflamado do que 159 do leem nossas obras, mas, assim mesmo, tomam consciéncia 5 que sao. E, depois, escrevendo podemos nos comunicar ¢ nos conhecer. Podemos dizer: La em Paris, ou em outro lugar, tenho queza e apatia ndos, verdadeiros irmaos. E isso nos consola da pssos outros irmaos.* Malva presta um testemunho da vida alienante dos mineitos e se defronta ele proprio com essa alienagao, que faz dele um sera parte na mina e um escritor sem puiblico.** Sera que Louis ? O depoimento escrito de um Lengrand leu Constant Malva operario ou de um camponés s6 tem chance de ter repercussio (c valor), seja nos meios intelectuais engajados, seja junto a0 grande piiblico, se for mediado pelo circuito dominante. Poderiamos pensar que a dificuldade de manejar a lingua escrita e as técnicas da narratiya constituiria uma desvanta- gem a mais. A existéncia das\édigdes de autor permite avaliat 0 problema, pois forneee relatos, que, por sua inabilidade, atingem o limite,do publicavel, ainda que sejam interessantes para o historiador.*” No.séntid6 inverso, ofatd de assimilar demasiadamente bem@as.téCnicas da natratiya“vivida” e da escrita romaneséa Corrente pode intégrar onarrador operario 4 cultura dominamtéa ponto defaze-lo'perdet Sua especificidade de-classe.” Mas tais julgamenrés sag-contraditorios e apenas as “populistas” do refletem os precaneeitas%e as éxpectatty: publico letrad6-"Também.nds classes dominantes pode-se escre- ver demasiadamente,aral obem. Basta ler um certo nimero de livros “proletatios*\ para discernir a mesma proporgao de “€xito” do que naliteratura nao-proletaria. Citemos, nos dois extremos do género, os admiraveis Cahiers autobiographiques [Cadernos autobiograficos], de Dominique Lagru,’ operdrio autodidata que se tornou pintor naif, depois, autobidgrafo na velhice, e Travaux [Obras], de Georges Navel, obra-prima longamente amadurecida. Se tais vozes foram silenciadas, nao foi por falta de talento, mas por falta de publico. 160 Talvez devéssemos distinguir dois aspectos d de testemunho: livros de autodidatas que contam vidas que sdo realmente testemunhas, cujas marrativas » sao, ent geral, muito elaboradas no plano ideol6 wico (e que justamente| por essa razao podem ser lidas como documentos pelos histo-| riadores ou como literatura populista pelo grande publico); os depoimentos de militantes engajados que escrevem tante para testemunhar quanto para analisar e justificar sua agac Estes tiveram mais possibilidade de publicagio do que 0§ outros, porque tinham um puiblico virtual, limitado mas real has organizagées politicas ¢ sindicais. E estao hoje reunidos, formando corpus (coleg s, antologias) porque servem para tragar concretamente a histéria do movimento operario.°} ESCREVER OU SER ESCRITO? O relativo fracasso dos.depoimentos.dé autodidatas escritos sde 1900 contrasta com o suce atual dos depoimehtos transcritos (ow-reescritos). dé Camiporeses © artesiosadsso porque, ‘na Franga,, ha Cerca Ue 10 anos, circuits oficial apropriou-se da fala popular. Hoje, parasubstitnir a,enquete ou construir uma fantasia, pode-se ¢dntar.com a .edlaboraga6 do modeld-¢elaborar um discurso'sobreé tle, dando-lhea palavra e parecendo citar 0 discurso dele. A aniilise ou'eVocacao da vida das classes dominadas &efetuada através de uma fala autobio- grafica suscitada por alguem que Se es onde por detras dela. A estratégia ‘U6 discurso relatado neutraliza aparentemente a oposigao entre quemctem a palavra e quem nao a tem. Essa reviravolta da situagao se deve em parte, mas apenas em parte, ao desenvolvimento dos meios de gravacio. Antes de 1948, socidlogos e historiadores americanos utilizavam a estenografia para anotar relatos de vida. A invengio técnica provocou uma formidavel expansao desse tipo de coleta. As duas ctapas principais foram a comercializagio dos primeiros grava- dores de rolo, em 1948 (mas esses equipamentos pesa 161 eram considerados material profissional, e nao instrumentos de uso comum) e, mais tarde, depois de 1963, 0 surgimento do gravador cassete, de tamanho e prego reduzidos e manuseio bem simples, que transformou a gravagao em procedimento anal, ao aleance de todos. Paralelamente, 0 radio e a televisa0 abituaram © ptiblico a esse tipo de contato direto, criando uma nova forma de verossimilhanga. Acoleta de relatos de vida se desenvolveu simultaneamente cias humanas e 0 editorial e jorna- em dois campos, o das c listico. Em ciéncias humanas, é algo bem recente, pelo menos na Franga. A Sociedade Francesa de Etnologia organizou, em maio de 1978, uma reuniao de preparagao e coordenagao entre especialistas de diferentes disciplinas que, quatro ou cinco anos acoleta sistematica de docu- 'a, psicolagia social, geografia, Naehique esse método fosse antes, haviam comegado a prati mentos orais (historia, sqeiologi: ciéncia politica, linguistica).™* novo: coletar doétmentos oraisinclusive relatos de vida) era, hd muitoppma das técnieasde base da etnografia: para se ter Colegao Terre Humaine. certeza-disso, basta ler os rélatos método havia sido aplicado na@apenasias Sociedades sem crita, ma8 também as classes, dominadas denossas proprias iedades.yA ‘ideia veiosde sccidlogosamericanos, no inicio século, em grandes ¢idades Como Chicago, onde a presenga imigrantes ainda mal daprados, separados de suas culturas le origem,inas nao'integrados.awwida americana, criava graves roblemas de ordene segufanca. Para compreender ¢ dominar delingtiencia € ‘@crimtinalidade, pensou-se que seria util captar priora |ogida de comportamentos tao lamentaveis. Dai o projeto de suscitar, primeiro par escrito, documentos pessoais que seriam comparados entre si ¢ também a fontes de infor- macao externas. O primeiro grande trabalho efetuado através desse método foi o de Thomas e Znaniecki, Polish peasant (1918-1920), que originou numerosas enquetes do mesmo tipo entre 1920 1940, em Chicago. F na linha da escola de Chicago que se inserem os trabalhos de Oscar Lewis, cuja tradugio em francés (1963, Les enfants de Sanchez) despertou 0 gosto do 162 piblico por documentos humanos tio apaixonantes quanto ficgdes € 0 interesse dos s ocidlogos frances de enquete nunca empregado antes.”° por um método Depois da etnologia e da sociologia, a historia decidiu recorrer ao relato de vida. Na origem, a motivagao foi diferente: tratava- -se de usar meios modernos de gravacao para captar a memoria dos atores da histéria antes que de aparecessem, Constituia entdo um novo tipo de arquivos para andlise imediata, mas prin- cipalmente para os historiadores do futuro. A ideia nasceu nos Estados Unidos, onde foi executada a partir de 1948. A historia oral americana teve um desenvolvimento gigantesco, dificil de imaginar na Franga. Intimeras instituigées (universidades, centros de pesquisa, coletividades locais, clubes) tm programas de coleta e armazenam fitas e suas transcricdes, indexadts & cata- logadas, a disposi io de eventudis-usudrios.*” Gontrariamente ao que ocorre hoje na Fraica, a historia oral americana nao & socialmente orientada para as classe domitladas, mas se inte= ressa por todes@stores da historia ¢¢specialmenteos dirigen= tes. De outré lado, a ideigede arquivo é dominante: existe uma completa dissociagi@entre, 6% que recolher'os relatos de vida € os que, eventualmenteé, vao utiliz; 108. NacFranca, os historiadores)$6 muito mais tardes@deram conta da urgéncia de fixar'a methOriay“repistrando a fala. A hist6ria oral emergenite™ centra-se mais nasiclasses dominadas e nas formas de-¥ida ¢ cultura que estaodesaparecendo. Vincula sistematicament@coleta € pesquisa: uma mesma equipe suscita relatos de vida enpfingaodo estudo que quer desenvolver € os analisa. Essa pratica seguramente tem chance de ser mais fecunda do que 0 simples arquivamento. Outra consequéncia € que esses documentos permanecero inéditos por certo tempo. Mas 0 publico nao esperou. Jorna as € escritores soube- ram tirar partido desse novo tipo de reportagem, em que © repérter se apaga para dar a palavra aos que nunca sao ouvidos. Na esteira de Les enfants de Sanchez surgiram docu- mentos etnolégicos sobre trabalhadores imigrantes na Franga, 163 Un noir a quitté le fleuve [Um negro deixou 0 rio] (Editeurs francais réunis, 1968), de Annie Lauran, e principalmente Grenadou, paysan francais (Scuil, 1966), de Alain Prévost, que encena 0 roteiro etnografico esbogado 60 anos antes por Emile Guillaumin, em La vee d'un simple.’ Outras tentativas a se seguiram, em geral de socidlogos isolados, pioneiros ne euil, rea: Juliette Minces (Un ouvrier parle [Um operatio fala] § 1969), Jacques Caroux-Destray (La vie d'une famille ouvrivre, sal tradi- Seuil, 1971, e Un couple ouvrier traditionnel [Um ca cional de operdrios], Editions Anthropos, 1974), Maurice Catani (Journal de Mohamed, Stock, 1973). A partir de 1974, uma onda de relatos coletados por jornalistas e escritores invade as livrarias: Louis Lengrand, mineur du Nord (Seuil, 1974), de Louis Lengrand e Maria Craipeau, Mémé Santerre, une vie [Vov6 Santerre, umavidha| (Ed. Du Jour, 1975), de Serge Grafteau, Gaston Lucas, servurier (Plon, 1976), de Adélaide Blasquez, Marthe, les mains pleiies de terre [Ma rthe, maos sujas de terra}(Belfond, 1977), de Léonce Chaleil, L’Escarbille, histoire @Pugene Saulaier, oprier verrier, [AFagulha, historia de Fugene Saulnié?, um/Vidreiro] (Presses deta Renaissance, 1978), de Michel Ghabor, s6 pata citaralguns’ O mercado foi inyadido.pot depoimentos de qualidade bem desigual. Os edlitores logo comegaram a.éplorar essaynova demanda do publico, criandaycoleg6és como “Lasmiémoire du peuple” [A memoria dg povo} (Jean-Pierre Delarge), “La vie des hommes” [A vida‘dos.homens){Stock)ou “La France des profondeurs” [A Franga profunda]{Presses de la Renaissance). UMA FALA AQUEM DA ESCRITA O desejo comum, presente tanto nas enquetes cientificas quanto nas publicag6es das editoras, é ver, € mostrar, 0 que escapa a vista, captar o incaptavel, constituir como objeto de conhecimento uma espécie de outro absoluto. Esse tesouro escondido se define negativamente: é 0 que esta aquém da 164 eserita. Os etnégrafos que exploram civilizagées sem escrita nao tém esse problema: seu trabalho consiste em neutralizar a propria intervengdo para observar © que aconteceria ou seria dito se nao estivessem l4. Nossos investigadores também tém de fazer esse trabalho, ¢ claro. Mas, como vivem em uma sociedade de escrita, devem primeiro reconstituir um campo etnolégico, considerando sistematicamente todo e qualquer depoimento assumido pelo interessado em texto escrito como algo que encobre, altera ou deforma. f eserita que residiria a fala verdadeira, a memoria auténtica, aquém dessa crosta de aqueles leng6is ou jazidas que a enquete quer atingir. F claro que estou definindo, aqui, uma atitude extrema na qual poucos pesquisadores se reconhecerZo. Obviamente, levam em conta documentos escritos que j4 existém. E vio fatalmente encontrar na fala ¢ até na menwria aquilo decjtre fogem na eserita (a ideologia, o esteréotipo, © papel) serao forgados a levar em conta ssas formas que na@ssa0,apenas deformagées. Mas o mais importante para eles Sera @aptar a maneita“natu- ral” que cada ‘um tem de(éncarai a propria vida anee@ que o inreressado retome essir nargativa em algum Ginbareou qualejuer outra forma derelag yc le saia dotircuito de eémunigagio que lhe &proprio. Esa busca do“ relate de vida em-sev' estado nascente” engendra fatalmente mesmo tipo dé paradoxo que a busca de uma miti¢a “sine idadé” na literatura psicolégica. A rigor, 0 queSe busca captar txist© apenas em estado virtual € aunca teria asstimider® forma de fala sem a intervengao do entrevistador. Essa'¢a_diferenga com relagao a enquetes etno- graficas que coletam essencialmente nar: na comunidade estudada. tivas que ja existem ae um novo campo de estudo no cual diferentes objetos poderao ser construidos, segundo o projeto cientifico do entrevistador. O método define também, no caso de escritores ou jornalistas, um novo tipo de objeto 165 de consumo (paradoxalmente escrito), a palavra captada_ou descoberta de quem nao escreve. de avesso do texto autobiogrifico que 4a memoria realmente vivida, a fala espontinea, tudo 0 que a a, mas transforma e esconde. Dai resulta, nas refle- escrita ut xées metodolgicas de alguns pesquisadores, o esquecimento sistematico dos relatos escritos ja existentes (considerados por definigao como estando fora do campo estudado) ou uma espécie de desconfianga em relagao a escrita do modelo. Darei ¢ produzido: viria 4 luz alguns exemplos. Selim Abou, no importante prefé Vautre Amérique® [Imigrantes na outra América], tenta mostrar a originalidade desse novo género que é a narrativa de vida coletada pelo grayadér: Comega coxistruindo um para- lelo entre 0 romance ealista e 0 queehama de “documento >in nenhum péomento da riquissima andlise jo de Immigrés dans autobiografico. que faz de sua'pratica, pensiremestabelecer um ovtro paralelo — que Se-impée, entrétanto\‘da mesma fotina ~¢om o texto alitObiograficorgue eventualmente setis modelos poderiam tet sido capazes de produzir sem suiéintervencao< Daniel Bertaux, em Histoiredide vies, ourrecits de pratiqnes?. [Historias de Vidas ou relatos de priticas?)} ndo\faz nenhiima comparagio entre as narrativas suscitadas por socidlogos e historiados e as narratiyacautobidgraficas publi¢adas pelos préprios interes- sad6s desde inicio do, séctilo. Como se esses relatos escritos assumidos epitblicados fossem materiais impuros, heteréclitos, produzidos em‘¢éndigoes incontrolaveis, logo inutilizdveis para a andlise sociol6gica, ainda mais que, ao escrevé-los, os autores ja teriam de alguma forma utilizado e interpretado eles préprios sua memoria. De tal modo que, para reutiliza-los, seria preciso desfazer 0 trabalho de escrita, analisando essa propria escrita, a destinagao do livro, os modelos utilizados, as estruturas e as técnicas — isto é, fazer um trabalho que elucidaria o texto como texto, mas ndo elucidaria de maneira mais precisa 0 vivido 166

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