You are on page 1of 8
Cad.Est.Ling., Campinas, (38):71-78, Jan/Jun, 2000 LEITURA COMO PRODUGAO ' SIBELIUS CEFAS PEREIRA * (Doutorando em Linguistica- Unicamp) INTRODUCAO. Como 0 tema do presente texto se insere n0 contexto da graduago € no que esta pode propiciar de pesquisa € produgdo, comecemos pelo pressuposto basico de que é necessario que 0 graduando, num compromisso pessoal, exerga a prética constante da leitura, efetivamente, como um ato de produgdo. Esta exposi¢ao vai no sentido de reivindicar um certo lugar para o aluno, uma mudanga de posigdo subjetiva, na qual o individuo, enquanto membro do grupo, salte para o que o singulariza no grupo e, nessa singularidade, contribua, de fato, para o préprio grupo. Isso impGe que se pense muita coisa. A comecar por uma certa redefinigio das graduagdes, superar uma certa expectativa, ainda muito presente, de uma formacdo voltada para a transferéncia de contetido, ampliar 0 dominio limitado de parametros epistemolégicos e teorias cientificas, o que se relaciona a uma formagao de metodologia cientifica menos voltada para métodos enguanto técnicas e, mais, para o cientifico no método; ampliar o olhar/leitor voltado apenas para formas/textos candnicos; definir instrumentos efetivos de produgio: textos, performances, amostragens, jornais, revistas; criar uma cultura de incentivo e reconhecimento das produgées de alunos em graduagao, e assim por diante, Enfim, uma tarefa de grandes proporgdes e que demanda muitos esforgos. Este trabalho é uma iniciativa nessa diregao. Neste momento, minha contribuigéo vai no sentido de comegar por reciclar os termos - leitura e produgao - j4 tZo consagrados em nosso meio e, diante do inevitavel desgaste € reducionismo que os termos em circulagao acabamn por softer, esbogat um sentido outro que leitura e produgao comportam. ALEITURA - ATO SINGULAR titulo deste texto, em sua simplicidade quase dbvia, pode fazer supor uma nogéo mais ou menos comum de leitura € produgao. De leitura como um mero ato de " 0 presente trabalho constitui-se numa reflexdo sobre texto apresentado no I Semindrio sobre Leitura e Produpio no Ensino Superior, realizado no interior do 120. Congresso de Leitura - COLE, 20 a 23 de Julho dde 1999, Campinas, Unicamp. * Professor de Lingilistica da PUC-MG, Campus Pocos de Caldas, e pesquisador do Projeto Lingua Matera em Insténcia Paterna, sob a coordenacao de Nina Leite. decodificagdo de realidades textuais ¢ produgdo como o resultado sempre esperado de um conhecimento previsto, suportando de novo, no maximo, uma elucidag3o a mais, que reafirme a perspectiva adotada, Essa idéia de leitura vai, muitas vezes, ao encontro daquela, operacionalizada pela linglifstica textwal, que tem se centrado em certas nog6es-chave como coesao e coeréncia, que privilegiam o estudo das préprias estruturas sintéticas de argumentagio e de construgdo de sentido no texto, trabalhando mecanismos de constituigdo textual, organizagdo do texto, fatores de coeréncia, tipologias. Levando em conta 0 processamento de operagdes interpretativas como inferéncia, pressuposiggo, subentendido, analogia, correlago, além do papel da cognigdo no processamento da leitura, chama a atengo, ainda, para fatores sécio- cognitivos, considerando importante, por exemplo, 0 conhecimento de mundo. Tal abordagem pode sublinhar a importancia de uma prdtica mais constante de leitura, no sentido quase que elementar de actimulo de informagdes, de construgio do que tradicionalmente qualificamos de uma fundamentagao cultural, de letramento. Nao desconsiderando a validade desse tipo de abordagem, digamos, quase que operacional da leitura, que propiciaria certos protocolos de leitura ¢ produgao, situo-me aqui em um outro lugar. Essas abordagens de coeréncia e coesio vo na linha de uma padronizacao, ou seja, supor que os textos configuram em certas estruturas, modelos pré-determinados, cabendo ao leitor apossar-se de certas téenicas de decodificagao. Ou, no caso da escrita, operacionalizar tais técnicas para atingir aqueles modelos delimitadores. Sigo por um sentido oposto, o de chamar atengdo para o fato de que 0 texto, 0 discurso” se constréem num constante deslizamento de sentido. Aquilo que seria uma leitura como produgdo seria, pois, aquilo que vai na linha mesmo em que o sujeito- leitor, num ato pessoal e com uma especificidade, assume a leitura como um ato seu, intransferfvel, e daf se insere numa cadeia de sentidos, gerando novos sentidos, singularizando-se. Como bem mostrou Lemos (1992) - no contexto de uma critica a Cohesion in English de Halliday, sobre aquilo que faz texto, um ideal de texto, um ponto realizdvel de sentido - esse todo almejado é bem instavel e fugaz. E 0 proprio esforgo de tentar mostrar 0 que é um texto, alerta-o para a necessidade de coesio, é, ironicamente, 0 que mostra que na linguagem “opera algo da ordem do ndo-coesivo, do ndo-todo” (p.35). Isto que seria um texto unificado, realizado, que faz texto, seria muito mais um efeito de sentido no discurso, um imagindrio lingilfstico que sustentaria 0 sentido, Ponto que, diga-se de passagem, paga um prego, que seria 0 silenciamento de outros sentidos - ov ainda mais, o silenciamento da propria geracdo de sentidos, da proliferagio dos mesmos, Nab € preciso muito esforgo para se constatar que © que normalmente se classifica como uma boa literatura, textos e estudos consagrados com um ponto satisfatério de realizagdo forma/contetido, so aqueles que efetivamente avangam, que destoam, que > -Tomamos Iingua nos termos da conceituagdo saussureana, como o sistema ou estrutura que conhece sua pr6pria ordem. Ea fala efou discurso como aquela dimensio que diz respeto a0 uso da lingua, um campo amplo onde os sentidos estio em circulacSo, as préprias cadeias de sentido; uma tomada de estudo da linguagem que estaria no campo de interesse da pragmatic, semfntica, aquisiga0 da linguagem, andlise do discurso € Outtos, Para um apmfundemento da terminoiogia Iingua versus fala/discurso vide De Lemos (1995). 2 deslocam e surpreendem. Nao se pode cair no simplismo de supor que isto seja um diteito de uns poucos iluminados. Em menor ou maior escala, 0 que se deveria esperar € que cada sujeito-leitor se torne um sujeito-produtor. Esse diferencial é o que constitui a idéia mesma de subjetividade, Existe, hoje, todo um campo semantico de termos conceitos mobilizados, no sentido de dar conta desse proceso, de mostrar essa dimensao; termos como: deslizamento, deslocamento, cadeias, fragmentos, fugas, movimento, funcionamento e, sobretudo, discurso. DA PRODUCAO - 0 QUE SE REPETE COMO DIFERENCA. Quanto produgdo, o termo também se presta a muitos equivocos. O termo pode sugerir, de imediato, a idéia corrente de produtividade, isto é, produzir pesquisa, oferecer resultados, publicar artigos, e procedimentas similares. Este aliés seria 0 sentido dado como pressuposto pelos érgdos governamentais de incentivo & pesquisa, Seria uma produgdo mensurdvel em termos de quantidade e freqtiéncia. Como se sabe, ha af um forte componente politico-ideoldgico, jé que nessa quantificaco da pesquisa acaba-se desconsiderando 0 elemento diferencial, 0 avango substancial, a originalidade, numa sé palavra: a qualidade. E por isso que pensar o ato de leitura ¢ a conseqiiente produgéo como uma via de singularizagio do sujeito é se bater com certas limitagdes institucionais. Ndo € 0 caso aqui, mas precisariamos recorrer a Foucault para relembrarmos que as sociedades contempordneas, corporificadas em suas diferentes instituig6es, dentre as quais a escola, em sua impessoalidade e em suas malhas difusas de controle e poder vao, na maioria das vezes, no sentido de constringir e controlar o sujeito. N’A ordem do discurso (1971), Foucault foi capaz de mostrar exatamente isso, que nossa sociedade estabelece um insistente controle sobre a produgo do discurso; controle, selegao, organizacao e redisttibuigdo dos discursos, conjurando seus poderes e perigos, dominando seu acontecimento e esquivando a sua sempre temerdria materialidade. A obra vai distinguir e esmiugar 0 que seriam trés grandes grupos de procedimentos, que permitem o controle dos discursos: os procedimentos de exclusao; 0s que funcionam como principios de classificagdo, ordenagao e de distribuigao; e, por fim, 08 procedimentos de controle dos discursos propriamente ditos, que séo aqueles que determinam as condigdes de funcionamento dos discursos. Nao hd, em si, nenhum problema em se refletir sobre produgdo no sentido exposto acima, de uma possfvel produtividade . O problema seria reduzi-la a esse seu componente. Sem esquecer que tomar a necessidade da produgéo, nesses termos, implicaria levar em conta uma série de limitagdes préticas nas diferentes graduagdes espalhadas pelo pais: auséncia de espagos efetivos de publicagao; falta de dominio epistemolégico e metodolégico, etc. Quero, no entanto, abordar a questo pelo lado da producao como um diferencial qualitative. Como enunciade no inicio, a idéia é que o graduando se engaje, como sujeito, numa pratica efetiva de leitura como produgao. O que nos obriga a pensar, mesmo que sumariamente, na dimensdo da subjetividade, pois a subjetividade tem sido, em certas abordagens, reduzida a um espago mfnimo. Sabemos que assumir 0 ato de leitura é inserir-se numa histéria de leitura, numa cadeia de sentidos, em formagdes 23 discursivas, interagindo e operando sobre sobre praticas sociais de leitura jé existentes. Consoante a esse inegdvel condicionamento sécio-histérico, no é incomum, a propésito, correspondendo aos paradigmas epistemoiégicos contemporaneos - talvez por uma leitura equivocada ou parcial da critica da nogao de autoria por Barthes, Foucault ¢ Derrida - afirmagGes que reduzem e quase negam qualquer referéncia a realidades como autonomia e heteronomia. E, por um achatamento, através de expressdes tais como assujeitamento, cair-se num reducionismo de explicagdes gerais, sobre-interpretagdes que dio conta da critica anti-humanista do sujeito, mas néo possibilitam o gesto seguinte de concepgdo de uma outra idéia de singularidade. Assim sendo, a leitura, acaba também sendo abordada com um certo reducionismo, pois que a se toma como repetibilidade na longa histéria de leituras. E € neste sentido que trago de Freud, aprofundado por Lacan, 0 conceito de repetigao, que foi por eles pensado como reprodugio e como producto, repetigzo diferencial. Podemos, a partir daf, dar um certo estatuto ao conceito de produgao. Talvez reconhecer, dar visibilidade ¢ explicitude a um processo de produgdo de saber, que sempre existe, mas de que talvez o prdprio sujeito ndo se dé conta. Para a psicandlise, a repetico nao é uma referéncia casual, mas uma nogio central. Freud escreveu sobre ela um artigo, em 1914, e a retoma em Além do Principio do Prazer. Lembrando a propésito que, antes disso, 0 problema da repetigéo fora uma antiga questio filoséfica. Na antigtidade clissica, podemos trazer & meméria os instigantes fragmentos de Herdclito, especialmente sua mais famosa formulagao, “Nos mesmos rios entramos e n&o entramos, somos e ndo somos” (1985:84). Alids, antes mesmo de Herdclito, a propria questio do mito relacionava-se em grande parte a0 problema da repetigao. Nietzsche retoma modernamente estas questes na sua conhecida reflexio sobre o eterno retorno. Mas nao s6 ele, também Hegel ¢ Kierkergaard refletiram bastante sobre essa questo. Quando Freud aborda, pois, esta questi em sua obra, é certamente sob 0 peso desta tradigao. Podemos, no entanto, ressaltar que em alguma medida as perguntas ali trabalhadas coincidem com as de Freud, que sto exatamente a de inquirir sobre 0 que se produz de novo, 0 que se diferencia em cada nova repeticao. Sempre identificando, como resposta a esta inquirigao, um tipo de repetigao que nao seria mera reminiscéncia, recordagao ou reprodugdo. No texto citado de Freud (1914) encontramos exatamente esta idéia do vinculo da repeticio com 0 novo. E nao é coincidéncia que ele se reporte a0 jogo infantil como uma analogia da “obsessdo de repeticao”. Hé af uma dimensio Iidica no ato de repetir. A referéncia & qual Freud se apega & @ da brincadeira do fort-da, que observara em seu neto, na qual a crianga supunha fazer-se o agente do aparecimento/desaparecimento da mie, fazendo-o coincidir com 0 movimento oscilatério do préprio brinquedo. Mas o aspecto mais importante, destacado por Lacan, € a diferenciagdo que Freud fizera, em 1914, entre Wiederholen (repetir) e Reproduzieren (reproduzir). A repetigao ndo se reduz a uma reprodugao, pois, o que se repete, com efeito, sempre algo que se produz (1964:45ss). A repeticdo é um retorno, no do mesmo, mas do diferente. B por ‘sso que Lacan pode dizer, ainda, que a repeti¢do -tanto quanto a desordem, os lepsos , 0s chistes, certas discordéncias, buracos e contengdes - opera como um indice, um fragmento, um gesto que diz, de um néo dito. "4 No Semindrio 11 (p.56), Lacan vincula o tema da repeti¢do a dois conceitos aristotélicos: 0 de tiqué e autématon. Tiqué, Lacan traduz como o “encontro com 0 real". E autématon, em geral traduzido por ‘espontaneidade’, est ligado ao que chamamos ‘acaso’. Ao termo tiqué, que se aproxima da ananké ‘necessidade’, Lacan vai selacionar a repeti¢ao. O real é 0 que estd para além do aurématon, do retorno, da volta, da insisténcia dos signos. O real € 0 que vige por tras do autématon. Assim, a repeti¢do nao se reduz a essa seriagio automética dos signos, com um funcionamento trangiiilo da cadeia. O que se repete é um real, “como por acaso”, mas que, de fato, é da ordem de uma necessidade, tiqué, Real que, enquanto causalidade, interrompe a cadeia. ‘Mas que real é esse? Nao a pura realidade, enquanto mera cronologia. Temos que recordar que Lacan pensa o real enquanto uma temporélidade inserida no conceito central de cadeia significante. Conceito complexo e que tem que ser pensado em termos I6gicos. Mas, seja como for, podemos ao menos indicar que a cadeia significante pode ser entendida como a propria insisténcia do desejo, insisténcia dos signos, comandada pof um principio do prazer. Ocorre que 0 objeto do desejo se constitui como imaginério, uma vez que 0 objeto absoluto (Das Ding) se encontra ausente € 0 objeto presente (Die Sache) se constitai como uma ilusio daquele absoluto. assim que o real vai se constituir entre estes dois objetos, 0 ilusério e o absoluto. E assim que 0 real ndo se encontra nos objetos do mundo, mas com o impossfvel, como o que falta ao encontro marcado; e, o lugar vazio dessa falta é ocupado pelo significante. O que se repete como falta ndo sao os signos - que retornam - mas q encontro faltoso, tiqué. Contudo, 0 papel dos signos ndo pode ser subestimado, reduzido ao papel de um ‘mero insteumento. Paul Henry (1977) ressaltou que a articulagdo da lingiifstica com a psicandlise se daria num ponto preciso: o da repeticao. Pois a lingiifstica demonstra que, seja no discurso, seja na fala, alguma coisa repete, e repete materialmente, As palavras se repetem, ndo enquanto realidades fénicas ou gréficas, ou ainda significagdes evanescentes, vagas: “o que se repete (...) sao diferengas, isto 6, relagdes, o que Sausurre ‘nomeia por significante” (p.163). As diferengas e as telagdes 6 que se repetem, nao obstante o realizem pelo viés de substncias e formas. Assim, pondera ainda Henry: “o conceito de Ifngua néo tem outra fungao além de permitir que se pense o registro da materialidade do que se repete realmente no discurso ou na fala, enquanto fala verbal ou discurso verbal (ou gréfico) para além de todas as variagdes de forma ou substincia. O desejo inconsciente implica também uma ‘epetigdo, uma volta do mesmo sob as diferengas. E isso o real do desejo inconciente ¢ nada mais.” (p.163) O que justificaria esta répida incurséo pela abordagem freudiana na leitura de Lacan? Antes de tudo, o fato de que essa abordagem permite o relevo da idéia de producéo num patamar de complexidade que 0 conceito muitas vezes esconde. A complexidade vem exatamente do vinculo da idéia de produgao e uma teoria subjetiva a uma certa concepgio de singularidade. Podemos dizer, voltando ao contexto da graduacdo, que nenhum graduando produz, como esforgo intencional advindo de uma ordem de mestria por parte do professor, como se este determinasse: — Vamos Id, garoto, produza! Mas, por outro lado, paradoxalmente, nenhum aluao cessa de produzir; ndo se pode nao se produzir, visto ser essa a condigo mesma para que haja af um sujeito. O problema muitas vezes est4 em se supor um controle dessa situagdo, um mapeamento desse proceso. Voltando ao que Lacan sublinha, hé af algo da ordem do 75 acaso, no sentido de que nunca se sabe 0 qué, que elementos, que leitura, que poema, que dizer, que enunciado vai fazer efeitos sobre 0 sujeito, de tal qual forma que este se inclua numa cadeia discursiva, gerando sentidos, produzindo. Muitas vezes, o trabalho de um aluno, sua pesquisa, seu texto, sua contribuigdo, ado atende aquilo que seria da ordem de uma coesio e coeréncia, da ordem de certos protocolos de leitura e produgao pré-determinados, mas justamente na medida em que frusiram essa expectativa, que nao se rendem a esses condicionamentos, nao raro, fastidiosos e entediantes, é que oferecem ‘uma real contribuigao, uma efetiva produgao. E preciso, no entanto, diferenciar essa nogdo de singularidade de um psicologismo do individuo, Digamos que 0 ponto em que nos encontramos aqui no € de reservar a0 sujeito um controle sobre a situagao, de tal forma a produzir como resultado uma decisio intencional; nem de negar a possibilidade dessa produgdo. Mas essa possibilidade se dé por outra via, na medida em que a sala de aula, a universidade, 0 professor - para ndo esquecermos as referencias deste semindrio - possam propiciar ao aluno espagos estimuladores da singularidade. Que o aluno possa ser seduzido e fisgado em certas brechas do amontoado académico e curricular da graduagdo c, por essas brechas, singularizar-se. Nem espontanefsmo, nem assujeitamento total, mas singularidade possfvel. ENTRE 0 EXCESSO E A FALTA: A EMERGENCIA DO SENTIDO O processo todo de leitura ¢ produg&o parece oscilar numa permanente tensio. E preciso iniciar a leitura de posse de alguns protocolos, familiarizado com um certo repertério que permita uma aproximagdo consistente dos textos, uma vez que a leitura néio se expde como epifanias, revelagdes gratuitas ao leitor, quaisquer que sejam suas predisposigdes. E quanto & produgio, € inevitével que se oriente por esse ponto lingiifstico imagindrio que faz todo, que demanda coeréncia, que faz texto, Mas hé uma oscilagdo e essa rota se desfaz, se dispersa; e 0 processo subjetivo de apropriagae de um texto, e 0 que daf se produz, seguird, entdo, um imprevistvel percurso. De tal tensdo decorrerd uma outra, que tem sido apontada de diferentes modos e por diferentes autores, que é a do jogo entre a contengdo ¢ 0 excesso. A abordagem lacaniana procura mostrar exatamente que © sujeito é constitufdo numa estrutura psiquica de falta. E supondo que a via mesmo de constitui¢go subjetiva seja a linguagem, é sobretudo af, na linguagem, que essa falta se torna vistvel. Todo dizer, entdo, paga 0 alto preco de nao realizar plenamente o sentido, de ndo suturar. Disso se segue, para retomarmos 0 ponto indicado, a compulsdo para a repeti¢Go, uma vez que Fepetir é tentar, mais uma vez, e assim ao infinito, dizer a verdade, nomear 0 teal. Operagdo sempre frustrada, mas que possibilita, por retroag3o, um avango, certos avangos. Onde entra, ent4o, 0 jogo entre a contengo e o excesso? Entra exatamente na medida em que o dizer, no que precisa cumprir sua razdo de ser, que é dizer o que deve ser dito, descamba para um excesso de palavras, como se nesse moinho de palavras pudesse circular um vento espirituoso que carregue consigo o sentido. E, por outro lado, quando se evidencia a rapidez com que esse vento se evanesce, por mais ¢ mais rapido 76 que se movimente 0 moinho, a frustragéo do sujeito tende a puxé-lo para um nio-dizer, para um mfnimo. © fildsofo francés Rancigre (1995) chama bastante atengdo para essa tensio. Sobretudo a literatura, mas nao sé ela, e sim toda a trajetéria da escrita no ocidente, desde 0 mythos no Fedro de Platéo, vem marcada por uma divisio; por um lado, ser ‘menos que escrita ¢, por outro, ser mais que escrita. Ou seja, a escrita se caracteriza por ser contraditoriamente muda e falante a0 mesmo tempo. Enquanto muda, na medida em que nao hé nenhuma voz presente que ofereca garantia de verdade, é como se fosse um logos liberto do ato da palavra, liberto do verbo. Enquanto falante, ela segue érfi ¢ errante, rolando de um lado para o outro, em busca desse garante. Num processo infinito, tal como a biblioteca borgeana, o que vem em socorro da escrita faltosa € uma ‘outra escrita. Uma outra escrita “...menos que escrita, mais que escrita, falando quando € preciso falar, esquivando-se quando é preciso se esquivar” (p.10). Na direga0 do ‘menos, 0 trajeto visaria 0 ponto impassivel de um logos sem palavras/simulacros, Na diregdo do mais, a meta impossivel seria a de uma escrita indelével, infalsificdvel. Uma “mimese anti-mimética’ ......"(uma) dramaturgia da recusa da esctita e © mito da escrita mais que escrita” (p.12). Uma esquivanca infinita, um jogo mimético. A escrita escandindo esse miituo pertencer entre “a verdade plena e as palavras vazias.” Numa reflexdo que possui afinidades com estas formulacdes, para abordar a idéia da exatiddo, como wma das caracteristicas da escrita literdria, Italo Calvino (1988:84ss) invoca duas figuras que funcionariam como emblemas de duas atitudes de escrita, de dois tipos de escritores: as figuras do cristal e da chama. O cristal, como modelo de perfeicdo, refratério; “imagem da invariancia e de regularidade das estruturas especificas”; e a chama, como a “imagem da constancia de uma forma global exterior, apesar da incessante agitagdo interna”, A tensdo entre uma racionalidade geométrica e uma ordem do rumor. De alguma forma, isso faz eco 4 tensdo mencionada entre 0 menos € 0 mais da escrita. O menos, como o mfnimo, 0 exato; 0 mais como 0 m4ximo, 0 rumor, a cadeia.* O fato é que pesam sobre o sujeito incontorndveis injungdes, que o assujeitam e 0 constringem , tanto em termos de limites sdcio-bistéricos, como de limites de estruturago subjetiva. Mas, como mostrou Pécheux (1983:51), entre esses dois espagos —“o da manipulagdo de significagdes estabilizadas, normatizadas por uma higiene pedagdgica do pensamento, e o de transformagdes do sentido, escapando a qualquer norma estabelecida a priori, de um trabalho do sentido sobre o sentido, tomados no elangar indefinido das interpretagdes” — & possivel uma descrigdo das materialidades discursivas. Nao um descrever, tomado na perspectiva de uma apreensio fenomenolégica ou hermenéutica, indiscernivel de interpretar (p.50); mas unite descrigo, que ndo apaga e sim reconhece a equivocidade e a heterogeneidade 3 i propésito desta discussio, € significativo o estudo de Haroche (1984) sobre o prinefpio conhecido como denominatio, que foi uma inserigdo espectfica de exipéncias de transparéncia e clareza, na Franga, a partir do século XVI, impostas no interior da propria gramética, na forma de wita normatizacdo externa, um principio de visibilidade, um ideal de completude, que determinou a caga incessante & ambiglidade, & elipse (falta) e & incisio (0 acréscimo descontrotado). Imperativos que procuravam fazer do homem uma entidade hhomogénea € transparente, fazendo do explicito, da exigéncia de dizer tudo € da completude, regras que contribuem para um assujeitamento, 7 constitutiva, pois que “todo enunciado intrinsecamente suscetivel de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (a nao ser que a proibigdo da interpretagdo prépria ao logicamente estdvel se exerga sobre ele explicitamente). Todo enunciado, toda sequéncia de enunciados é, pois, lingilisticamente descritfvel como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possiveis, oferecendo lugar a interpretagdo. E nesse espago que pretende trabalhar a andlise de discurso” (p.53). Eu diria que é essa suscetibilidade do enunciado, essa incessante deriva do sentido numa série, que permite que haja, por um sujeito, Jeitura como produgao. Do lugar da andlise discursiva, cabe-nos reconhecer ¢ operar sobre esse espago possivel de interpretagao. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS CALVINO, L. (1988), Seis propostas para o préximo milénio, So Paulo, Cia das Letras, 1990. DE LEMOS, C. T.G., (1995), Lingus e discurso na teorizago sobre aqusiso de linguagem, in Letras Hoje, Porto Alegre, v.30.n<, p.9-28,dezembro 1995. FREUD, S, Recordar, Repetire Elaborar, vol.XUL, Edigdo Standard Brasileira Rio de Janeiro, Imago. HAROCHE, C. (1984), Fazer dizer, querer dizer, So Paulo, Hucitec, 1992. HENRY, P. (1977), A Ferramenta Imperfeta, Campinas, Unicamp, 1992. HERACLITO, Fragmentos B (1985), in Pensadores - Pré Socrdticos, tradugdo de José Cavatcante de Souza, ‘So Paulo, Abril. ( Fragmento 49 a) LACAN, J. (1964), Semindrio 11- Os quatro conceitos furdamentais da Psicandlise, Rio de Janeiro, JZE, 1985. LEMOS, M. T. G. de, (1992), Sobre o que faz texto: uma leitura de Cohesion in english, DELTA , vol.8, nL, p.21-42 PECHEUX, M. (1983), O Discurso: Estrutura ou Acontecimento, Campinas, Unicamp, 1990. RANCIERE, J. (1995), Politicas da Escrita, Rio de Janeiro, Ed. 34. 78

You might also like