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60 A Inlerpretagiio do Proceso Histérico CONDORCET (1743-1794) ANTOINE-NicoLas CoNDORCET nasceu em 1743 na Picardia. Depois de uma educagio Jesuitica, virou-se para o estudo da matemitica ¢ da ciéncia, e escreveu o seu Essai sur Je caleu! integral aos vinte e dois anos. Durante os quatro anos seguintes publicou mais‘ obras sobre assuntos mateméticos e cientificos; 20 mesmo tempo absorveu as novas ideias sobre economia politica dos Fisiocratas e fez amizade com homens como Helvetius e Turgot. Aos vinte e seis foi eleito para a Académie des Sciences, tornando-se Secretirio da Academia em 1773. Nove anos mais tarde foi eleito para a Académie Francaise. Tomou parte activa na Revolugio Francesa, tornando-se presidente da Assembleia Legislativa para a qual foi eleito em 1791 e, posteriormente, exerceado as fungdes de membro de uma subcomissio da Comissao de Salvagao Publica. Nao era, porém, um Jacobino e acabou pot ser forgado a entrar na clandestinidade em consequéncia dos seus protestos contea uma nova Constituigio Jacobina adoptada pela Convengio; foi entio que comecou a trabalhar no seu Esbogo para sim Quadro Histérico do Progresso do Espirito Humano. Fm 1794 foi preso e encatcerado; no dia seguinte foi encontrado morto, na cela, por, segundo se cré, se ter envenenado, Condocert foi uma figura do seu tempo, um homem com consi- derdvel cultura cientifica e com um apaixonado interesse pela zeforma social e politica, Os seus numerosos escritos incluem nao s6 tratados de ciéncia e filosofia mas uma quantidade de panfletos sobre assuntos como educagio, esctavatura, perseguigéo religiosa e modificagces eleitorais. O sea Esquisse € a obra de um pensador que interpretou 2 histéria como um movimento continuo para ideias que atestam tanto da previsio como da generosidade do espirito que as contemplou. Condorcet concebeu a histéria, nao apenas cm termos de progresso intelectual e artistico, mas também em termos de avango para objec- tivos como o sufrégio e a educacio universais, a liberdade de expres- sto e de pensamento, a igualdade legal ¢ a redistribuig’o da riqueza Assim, no quadro da historia humana que emerge do esbogo por ele tragado, os acontecimentos do passado sio desctitos de acordo com a perspectiva imposta por um ponto de vista claramente definido AC Histéria é 0 registo de acontecimentos e desenvolvimentos a com- preender ¢ avaliar 4 Iuz da contribuigio que deram para promover a renlizagio final, na sociedade hnimana, de certas condigdes que no s6 Conporcer 61 deveriam preponderar mas que (como € confiadamente admitido) um dia futuro predominarao inevitavelmente. Qual era a justificagéo para tal optimismo? Condotcet cria que a chave da verdadeita penetragio do significado da evolugio histérica reside no reconhecimento de que as questées humanas, tal como os fenémenos da natureza, esto sujei- tas a leis universais verificéveis. Mediante o conhecimento delas, adqui- tido através da observagio de o que aconteceu no passado, nao so é possivel fazer progndsticos e previses, como também aplicar aos pro- blemas de organizagio politica e social os métodos que se revelaram vio imensamente bem sucedidos nouttos dominios em consequéncia dos progressos feitos nas ciéncias da natuteza. Tratava-se, claro, de uma ideia que seria desenvolvida ¢ elaborada pelos grandes socidlogos do século dezanove—por homens como Saint-Simon, Comte ¢ Marx. Um dominio seguro da acgao das leis que governam 0 progress histérico faz mais do que tornar claro, pata nés, © que jaz perante nds, pois pe em nossas maos os instru- mentos para acelerar este estado de coisas indicando as forgas que s¢ Ihe interpdem e que tém de ser superadas, bem como aquelas mediante as quais a sua efectivagao final terd lugar. Condorcet, por si mesmo, nunca formulou um programa revolucionétio no sentido marxista, mas 2 motal que derivou do estudo da histéria humana tem implicagdes revolucionatias. Se a «natureza nio pés limites a perfeigio das facul- dades humanas», nao dispés, contudo, as coisas de forma a tornar impossivel, para os homens, 0 cafrem em erro, quer em consequéncia da ociosidade ¢ credulidade prdprias, quer como resultado das activi- dades dos que tém interesse em os mantet num estado de ignorancia ¢ de superstigio. Existe uma adistingdo» com que se topa em todas as fases da civilizagio, pela qual a humanidade ¢ separada em duas partes — «a que € destinada a ensinar e a que € levada a crer; uma ocultando ciosamente 0 que se vangloria de saber, a outta recebendo, com res- peito, 0 que quer que Ihe seja condescendentemente revelado...» (2) ‘A destruiggo do erro e das forgas que procuram perpetud-lo é simul- taneamente uma caractetistica necessitia do processo histérico e o meio pelo qual se torna possivel a pecfectibilidade do homem. A. pro- posito, importa notar que Condorcet foi sevetamente contra a exces- siva medida em que os historiadores anteriores se tinham concentrado nas actividades politicas ¢ nos projectos de individuos proeminentes ou de ditigentes, sem terem em conta as opinides, necessidades € hébitos da grande massa humana, nem prestarem atengio suficiente aos aspec- tos nao politicos da vida social e as relagdes existentes entre eles. @) Exboro para um Quadro Histérico do Progresso do Espirito Humano, p. v7. 62 A Interpretagito do Proceso Histérico Condorcet aceitou grande parte da dominante petspectiva Tumi- nista da natureza humana. Os homens estayam dotados dos seus érgaos sensoriais ¢ dos seus poderes naturais de pensar ¢ calcular, para a livre procura da verdade. Além disso, possufam certos direitos naturais admissfveis pela razao ¢ pertencendo-Ihes em virtude da sua racionalidade Estas conviegées, em conjuncao com o desejo de Condorcet de ver os processos cientificos difandidos para se resolyerem os problemas apte- sentados pela pratica, detam origem a uma intefpretagtio do processo historico que é bastante diferente, quanto as caracteristicas gerais ¢ a0 estilo, das interpretagdes dadas por Vico ¢ Herder, apesar de pontos especificos de contacto —Hetder, por exemplo, também acrediton que a histéria decorria, de algum modo, segundo leis vetificdveis, ¢ falou como se 0 seu progresso se desse no sentido da difusio das ideias de razio ¢ de justica. Mas a paixio reformista subjacente a visto que Condorcet tem da histéria—e que o fez ver, no passado humano, a histéria da gradual emergéncia do homem a partir do barbatismo ¢ da superstigio, em vez de uma objectivagio de formas e realizages culturais a compreender ¢ respeitar nelas mesmas; ¢ que o fez julgar € avaliar 0s acontecimentos histéricos a luz da sua adaptabilidade a certos ideais ¢ aspiragdes predeterminados — liga-o, no a esses homens, mas aos seus grandes compatriotas Voltaire ¢ Turgot. a O Progresso do Espirito Humano (’) A Naturega dos Homen: (2) © homem nasce com a faculdade de receber sensacdes; de as aper- ceber ¢ de distinguit nelas as sensagdes simples de que se compoem, de as recordar, reconhecer ¢ combinar; de comparar, entre elas, essas combinacées; de apreender o que tém em comum e o que as distingue; de ligar sinais a todos estes objectos a fim de os reconhecer melhor € de facilitar 2 produgio de novas combinasées. () A presente tradugio foi feita directamente sobre a edigio francesa das «Oeuvres Complétes de Condorcet», Tome VII, Paris, 1804. (N. T), © Ch Eequisse dim Tablean Historique des Progrés de Esprit Humain (ed. cit., PP. 1-5). Conpoacer | 0 Progresso do Espirito. Humano 63 Esta faculdade desenvolve-se nele pela acgio das coisas exteriores, isto & pela ptesenga de certas sensagdes compostas, cuja constincia, quer na identidade do seu conjunto, quer nas leis das suas modificagées, & independente dele. Desenvolve-se igualmente pela comunicagio com individuos como ele; por tiltimo, através de meios artificiai gue os homens foram levados a inventar com base nestes primeiros desenvolvimentos. ‘As sensagies sio acompanhadas de prazet ¢ de dor, e o homem tem igualmente a faculdade de transformar estas impresses momen- taneas em sentimentos duradoiros de caracter agradavel ou desagra- davel e de experienciar estes sentimentos quando vé ou recorda os prazeres ou as dores dos outros seres sensiveis. Finalmente, em con- sequéncia da uniiio desta faculdade com a de formar e combinar ideias, nascem, entre ele € os seus semelhantes, relagdes de interesse e de dever, 4s quais a propria natureza quis ligar a porcdio mais preciosa da nossa felicidade e os mais dolorosos dos nossos males. _ - Se nos limitarmos a observagio ¢ ao estudo dos factos gerais ¢ das leis constantes que 0 desenvolvimento destas faculdades apresenta, considerando s6 0 que ha de comum aos diversos individuos da espécie humana, entio esta ciéncia denomina-se metafisica. Mas se considerarmos este mesmo desenvolvimento tal como se manifesta nos individuos que coexistem num dado espago, € se o seguir- mos de geragio em geracio, ele apresenta, entio, o quadro dos progres- sos do espirito humano. Este progresso est4 submetido as mesmas leis gerais que se observam no desenvolvimento das faculdades dos individuos, visto que ¢ 0 resultado desse desenvolvimento, considerado a0 mesmo tempo num grande ntimeto de individuos reunidos em socie- dade. Mas 0 que acontece em cada instante é 0 resultado do que acon- teceu em todos os momentos anteriores; ¢ tem, por sua vez, influéncia sobre 0 que acontecera no futuro. Este quadro € portanto historic, visto que, estando sujeito a per- pétuas variagdes, se forma pela observagio sucessiva das sociedades bumanas nas diferentes épocas que percorreram. Deve apresentar a ordem das transformagées, expor a influéncia que cada momento exerce sobre 0 momento subsequente © mostrar assim, nas transformagdes que sofreu a espécie humana — ao renovar-se, ininterruptamente, atra- vés da imensidade dos séculos—o caminho que seguiu, os passos que deu para a verdade ou para a felicidade. Estas observagées sobre © que foi o homem ¢ sobre o que é hoje conduzirao depois 20 conhe- cimento dos meios de assegurar ¢ acelerar os novos progressos que a sua natureza Ihe permite esperar ainda. ‘Tal € 0 fim do trabalho que empreendi, ¢ cujo resultado sera mos- trar, pelo raciocinio e pelos factos, que niio foi marcado qualquer limite 64 A Interpretagdo do Proceso Histérico a0 aperfeigoamento das faculdades humanas; que a perfectibilidade do homem ¢ realmente indefinida; que os progressos desta perfectibili- dade, daqui em diante independentes de qualquer poder que quisesse deté-los, nfio tem outro limite senfio a duragio do globo em que a natu- reza nos langou. Sem diivida, estes progressos poderdo seguir uma marcha mais ou menos répida; mas nunca seré retrogada, pelo menos enquanto a terra ocupar o mesmo lugar no sistema do universo e as leis gerais desse sistema néo produzirem sobre este globo nem um cataclismo geral nem transformagées tais que impedissem a espécie humana de nele se conservar, ¢ manifestar as _mesmas faculdades ¢ encontrar os mesmos tecursos. O Passado ¢ 0 Futuro (2) Entre-este grau de civilizagéo ¢ aquele em que vemos ainda as tribos selvagens é que se encontraram todos os povos cuja histéria se consetvou (até nés); ¢ se abarcarmos, de relance, 2 histéria universal dos povos, vé-los-emos, ora fazendo novos progresses, ora voltando a thergulhar na ignorfacia, ora sobrevivendo através destas alternativas, ora detendo-se num determinado ponto, ora desaparecendo da terra sob 0 fetro dos conquistadores, confundindo-se com os vencedores ou subsistindo ma escraviddo, ora, enfim, recebendo luzes de um povo mais esclarecido, para as transmitir a outras nagdes e formando, assim, uma cadeia ininterrupta entre 0 comego dos tempos histéricos e o século em que vivemog, entre as primeiras nagdes que nos so conhe- cidas € os povos actuais da Europa. Jé se podem ver, portant, jtrés partes|bem distintas no quadro que me propus tragar. Na primeira!—em que as natracdes dos viajantes nos mostram 0 estado da espécie humana nos povos menos. civilizados — estamos reduzidos a conjecturar por que graus 0 homem isolado, ou limitado apenas a associagaio necessiria para se reproduzir, pode adquirir estes primeiros aperfeicoamentos cujo termo ultimo é 0 uso de uma lingua articulada — a mais nitida distingdo ¢ mesmo a unica que, com algumas ideias morais mais amplas e um fraco comego de ordem social, 0 faz entio diferir dos animais que vivem como ele em sociedade regular e durivel. Assim, nto podemos ter aqui outro guia que nao sejam | as observagées tedticas sobre o desenvolvimento das nossas faculdades intelectuais ¢ morais. @) CE op. sit, pp. 11-20. Conporcer | O' Progresso do Espirito Humano 65 Em Geguida,) a fim de conduzir o homem até ao ponto em que pratica certas artes, em que jé a luz das ciéncias comega a alu- mif-lo, em que o comércio une as nagdes e em que, finalmente, a escrita alfabética é inventada, podemos juntar a este primeiro guia a historia das diversas sociedades que foram observadas em quase todos 0s graus intermedidrios; ainda que nao se possa seguir nenhuma em todo 0 espaco que separa estas duas grandes épocas da espécie humana. Aqui o quadro comega a apoiar-se, em grande parte, na sequén- cia dos factos que a histéria nos transmitiu: mas € necessirio seleccio- | néclos na histétia de povos diferentes, aproximé-los ¢ combiné-los, { para dai extrair a histéria hipotética de um povo tnico ¢ compor o | quadro dos seus progressos. ‘A historia, desde a época em que a escrita alfabética foi conhecida na Grécia até ao estado actual da espécie humana nos paises esclarecidos da Europa, ¢ ligada por uma série ininterrupta de factos e de obser- vases; € 0 quadro da marcha ¢ dos progressos do espfrito humano tornou-se verdadeiramente histérico. A filosofia nada mais tem a adi- vinhat nem mais combinagdes hipotéticas a fazer; basta-lhe reunir e ordenar os factos e mostrar as verdades uiteis que nascem do seu enca- deamento e do seu conjunto. $6 ficaria, por fim, um ultimo quadro a tragar, o das nossas espe- tangas, dos progressos que esto reservados as geragdes futuras ¢ que a constancia das leis da natureza parece assegurar-lhes. Seria preciso mostrar, nele, através de que graus aquilo que nos parece hoje espe- tanga quimérica deve sucessivamente tomnar-se possivel e até facil; por que razio, apesar dos éxitos passageiros dos preconceitos.e do apoio que recebem da cotrupgao dos governos e dos povos, sdmente a ver- dade deve obter um triunfo duradouro; e por que lagos a natureza uniu indissolivelmente os progressos das luzes e os da liberdade, da virtude, do respeito pelos direitos naturais do homem; e como os tinicos bens reais que possuimos, embora tantas vezes separados que se chegou mesmo a julgé-los incompativeis, devem, pelo contrério, tornar-se insepariveis, desde 0 momento em que as luzes tenham atingido um certo nivel num maior mimero de nagées ao mesmo tempo; ¢ em que tenham penetrado a massa inteira dum grande povo, cuja lingua fosse universalmente difundida ¢ cujas relagdes comerciais abarcassem toda a extensio do globo. Uma vez jé realizada esta unificagio em toda a espécie de homens esclarecidos, entre cles s6 se contaria, desde entio, com amigos da humanidade ocupados, de comum acordo, em celebrar © seu aperfeigoamento e a sua felicidade. Exporemos a origem e tragaremos a histria dos erros generali- zados que mais ou menos retardaram ou suspenderam a marcha da 66 A Interpretagao do Proceso Historicu tazao € que, muitas vezes, até —e tanto como os acontecimentos politicos — fizeram recair o homem na ignorancia. As operagées do entendimento que nos conduzem ao erro ou que nele nos retém, desde o paralogismo subtil, que pode surpreender o homem mais esclarecido, até aos sonhos da louctira, nfo pertencem menos do que o método de raciocinar certo, ou o de descobrir a ver- dade, 4 teoria do desenvolvimento das nossas faculdades individuais; e pela mesma razdo, a maneira como os erros gerais se introduzem entre os povos, neles se propagam se transmitem ¢ se perpetuam, faz parte do quadro histético dos progressos do espirito humane, Como as verdades que © aperfeigoam e 0 esclarecem, os erros so a consequéncia neces- satia da sua actividade € dessa desproporgio que sempre existe entre 0 que conhece, © que deseja ¢ o que julga ter necessidade de conhecer. Pode mesmo observar-se que, segundo as leis gerais do desenvol- vimento das nossas faculdades, alguns preconceitos devem ter nascido, em cada fase dos nossos progressos, mas para levarem longe demais a sua sedugio ou o seu dominio; pois os homens conservam ainda os ertos da sua infincia os do seu pais ¢ do seu século, muito tempo depois de terem reconhecido todas as verdades necessdrias para os destruir. Enfim, em todos os paises, em todos os tempos, hé preconceitos diferentes conforme o grau de instrug&o das diversas classes de homens bem como segundo as suas profissbes. Os preconceitos dos filésofos ptejudicam os novos progressos da verdade; os das classes menos esclarecidas retardam a propagagio das verdades j4 conhecidas; os de cettas profissdes eminentes ou poderosas opdem-tIhe obsticulos; aqui esto trés géneros de inimigos que a razio é obrigada a combater sem cessar e de que s6 triunfa muitas vezes depois de uma luta longa e penosa. A histéria destes combates, do nascimento, do triunfo e da queda dos pteconceitos, ocuparé um grande lugar neste trabalho e nao sera a sua parte menos importante ¢ menos util. [Se deve existir uma ciéncia para prever os progressos da espécie humana, para os ditigir e os acelerar, a histéria dos progressos que jé realizou deverd ser o seu fundamento] (2). [A filosofia teve que proscrever, sem duivida, a supetstigio que acteditava s6 se poderem encontrar regras de conduta na histéria dos séculos passados e as verdades apenas no estudo das opinides antigas. Mas nfo dever4 ela proscrever, igualmente, o preconceito que attogan- temente rejeitaria as ligdes da experiéncia? Sem duvida que s6 a Q) Os extractos entre parénteses tectos nia podem ser atribuidos, com segu- tanga, a Condorect. Contudo, a despeito das dividas acerca da autenticidade déles, pareceu-nos plausivel inclui-los aqui devido ao interesse que tém (P, Gardiner). Convorcer | 0 Progresso do Espirito Humano 67 meditagao pode conduzir, mediante felizes combinagdes de ideias, as verdades gerais da ciéncia do homem. Mas se a obsetvagio dos individuos da espécie humana é titil ao metafisico e ao moralista, por que tazao a das sociedades havia de ser menos util para eles € pata 0 filésofo politico? Se ¢ util observar as diversas sociedades que existem ao mesmo tempo ¢ estudar as relagdes entre elas, porque nto havia também de ser 0 obsetva-las na sucesso dos tempos? _Mesmo supondo que estas observacdes possam ser descuradas na procura das verdades especulativas, deverao sé-lo quando se trata de aplicar essas verdades a pritica e de deduzir da ciéncia a arte que deve ser © seu resultado til? Os nossos preconceitos e os males que deles derivam nao tém a sua origem nos preconceitos dos nossos antepassados? Um dos meios mais seguros de nos desenganarmos de uns ¢ de evitarmos os outtos nio estara em explicarmos a sua origem € os seus efeitos?] [Estamos nds no ponto em que jf nfio ha mais que temer, nem novos erros nem o regresso aos antigos; em que nenhuma instituigio corruptora possa jd ser inventada pela hipocrisia ¢ adoptada pela igno- rancia ou pelo entusiasmo; ¢ em que jé nenhuma combinagio viciosa possa fazer a desgraca de uma grande nacio? Seria entdo imitil saber como é que 0s povos foram enganados, corrompidos ou mergulhados na miséria?] [Tudo nos diz que atingimos a época de uma das grandes revolugées ‘ da espécie humana. O que haverd de mais prdprio para nos esclarecer sobre 0 que devemos esperar ¢ nos oferecer um guia seguro pata nos conduzit no meio destes movimentos do que o quadro das revolugées que a precederam ca preparacam? O estado actual das luzes garante-nos que esta revolugao tera um resultado favoravel; mas ndo sera também sob a condigao de sabermos utilizar todas as nossas forcas? E para que a felicidade que ela promete seja comprada menos cato, para que se difunda com a maior rapidez num espago maior, para que seja mais completa nos seus efeitos, no teremos necessidade de estudar,-na histéria do espirito humano, que obstéculos ainda temos que temer € que meios se nos oferecem para os superar? A Histéria ¢ @ Multidao do Género Humano (2) Até aqui, a histéria politica, tal como a da filosofia ¢ a das ciéncias, foi apenas a histéria de alguns homens; aquilo que forma verdadeira- mente a espécie humana, a maltidio das familias que se sustentam @) CE. op. cit, Newitme toque, Depnis Descartes République frangaise, pp. 314-317. ficgn’e ta formation de la 68 A Interpretagao do Proceso Histérico quase inteiramente do seu trabalho, foi esquecido; e mesmo na classe dos que seguem profissdes publicas ¢ trabalham, aio para eles prd- prios, mas para a sociedade, ocupados em ensinar, governar, defender, tratar dos outros homens, sdmente os chefes retiveram os olhares dos historiadores. . Para a histéria dos individuos, é suficiente recolher os factos; mas a hist6ria de uma multidao de homens sé pode apoiar-se em obser- vagdes; e para as seleccionar, para aprender os seus tragos essenciais, é jd preciso possuir Iuzes e quase tanta filosofia como para as usar adequadamente. ~ Além disso, estas observacdes tem aqui por objecto coisas comuns que se oferecem a todos os olhos e que qualquer pessoa que o deseje pode conhecer por si prdpria. Assim, quase todas as observagdes que foram recolhidas sto devidas a viajantes, foram feitas por estrangeiros, pois coisas como estas, tio triviais no ngar em que existem, tornam-se pata eles um objecto de curiosidade. Mas, infelizmente, estes viajantes slo quase sempre observadotes inexactos; véem os objectos com dema- siada rapidez, através dos preconceitos de seus paises ¢ muitas vezes pelos‘ olhos dos homens da regido que percorrem. Consultam aqueles com quem 0 acaso os ligou; ¢ as tespostas s4o quase sempre ditadas pelo interesse préprio, pelo espitito de partido, pelo orgulho nacional ou apenas pela disposigao do momento. Assim, nao é apenas ao setvilismo dos historiadores — como, com justica, se disse dos historiadores das monarquias — que se deve attibuir a escassez dos monumentos que nos permitiriam tragar o mais impor- tante capitulo da histéria dos homens. Podemos completé-los, mas sé imperfeitamente, pelo conheci- mento das leis, dos principios priticos de governo e de economia publica, ou da teligido € dos preconceitos em geral. Pois pode existir uma tal discrepancia entre a lei esctita e a lei aplicada; entre os principios dos que governam € a maneita como a acgio deles € modificada pelo espirito dos que sio governados; a instituigio tal como emana dos homens que a concebem e a mesma instituigao uma vez realizada; a seligiio dos livros e a do povo; a universalidade aparente de um preconceito e a adesio real que ele obtém— que os efeitos deixem absolutamente dé corresponder as suas causas puiblicas ¢ conhecidas B desta parte da histéria da espécie humana —a mais obscura, a mais descurada e para a qual 0s monumentos nos oferecem to poucos materiais — que nos devemos sobretudo ocupar neste quadto; ¢, quer relatemos uma descoberta, uma teoria importante, um novo sistema de leis ou uma revolugio politica, esforcar-nos-emos por determinar, as suas consequéncias para a parte mais numerosa de cada sociedade; Coxporcer | O Progresso do Espirito Humano 69 pois esté ai o verdadeiro objecto da filosofia, visto que todos os efeitos intermediarios destas mesmas causas s6 podem ser considerados enquanto agem finalmente sobte este sector que constitui verdadeira- mente a multidio do género humano. Bao chegar a este ultimo elo da cadeia que a observacio dos acon- tecimentos passados, tal como os conhecimentos adquiridos pela medi- tagao, se tornam verdadeiramente tteis. E ao chegar a este termo que os homens podem apreciar os seus titulos reais de gloria ou gozat com verdadeiro prazer os progressos da sua razio; € s6 entio se pode julgar do verdadeito aperfeigoamento da espécie humana. © Progresso Futuro do Espirito Hamano (') - Se o homem pode predizer, com seguranga quase completa, os fenémenos cujas leis conhece; se mesmo quando elas lhe sio desconhe- cidas pode, segundo a experiéncia do passado, prever, com grande probabilidade, os acontecimentos do futuro; por que razio se havia de considerar como empresa quimérica a de tracar, com alguma verosi- milhanga, 0 quadro dos futuros destinos da espécie humana, segundo os resultados da sua histéria? O tinico fundamento da crenga nas cién- cias naturais é a ideia de que as leis gerais, conhecidas.ou ignoradas, que tegem os fendmenos do universo, sdo necessitias e constantes; © por que tazao este principi havia de ser menos verdadeiro para 0 desenvolvimento das faculdades intelectuais ¢« morais do homem do que para as outras operacdes da natureza? Enfim, visto que as opinides formadas de acordo com a experiéncia do passado, sobre 0s objectos da mesma ordem, sio a unica regra na conduta dos homens mais sabios, por que raziio se havia de proibir 0 filésofo de apoiar as suas conjec- turas sobre esta mesma base, desde que cle nao Ihe atribua uma cer teza superior 4 que pode nascer do ntimero, da constancia e da exactidio das observacdes? As nossas esperangas quanto 4 condigdo futura da espécie humana podem reduzit-se a estes trés pontos importantes: a destruicio da desigualdade entre as nagdes; os progressos da igualdade num mesmo povo; ¢, finalmente, o aperfeigoamento real do homem. Isao todas as nagées aproximar-se um dia do estado de civilizagio a que chegaram 08 povos mais esclarecidos, mais livres, menos presos a preconceitos, tal como os franceses e os anglo-americanos? Iré desaparecer, pouco a pouco, a distancia imensa que sepata estes povos da servidio das Q) Ch. op. cit, Dixiéme Epagne. Des progrés de Vesprit bumain, pp. 319-323. 70 A Interpretagto do Processo Histérico nagdes submetidas aos reis, da barbatie das tribos africanas, da igno- rincia dos selvagens? Haveré sobre o globo tegides cujaxnatureza tenha condenado os habitantes a jamais gozarem de liberdade, a jamais exercerem a sua razao? - Esta diferenga de Inzes, de meios ou de riquezas, observada até agora em todos os poves civilizados entre as classes que compdem cada um deles; esta desigualdade que os primeiros progressos da sociedade aumentaram e, por assim dizer, produziram, derivaré da propria civi- lizagao ou das imperfeigdes actuais da técnica social? Iré ela atenuar-se, continuamente, para dar lugar a essa igualdade de facto que é 0 objec- tivo ultimo da arte social e que, diminuindo realmente os efeitos da diferenga natural das faculdades, sé deixa subsistir uma desigualdade itil a0 interesse de todos, porque favorecerd os progressos da civili- zagao, da instrugio e da industria, sem acarretar nem dependéncia nem humilhagio nem empobrecimento? Numa palavra, aproximar-se-4o 0s homens desse estado em que todos terdo as Iuzes necessétias para se conduzirem segundo a sua propria razao nas tarefas comuns da vida € para a manterem isenta de preconceitos, conhecerem bem os seus direitos e os exercetem segundo a sua opiniio e a sua consciéncia; e em que todos poderao, pelo desenvolvimento das suas faculdades, obter os meios seguros de prover as suas necessidades; ¢ em que, finalmente, a estupidez ¢ a miséria nZo serio mais do que acidentes € no o estado habitual de uma parte da sociedade? Por uiltimo, deveré a espécie humana melhorat, quer por novas descobertas nas ciéncias e nas artes e, como consequéncia necessitia, nos meios de bem-estar individual e de prosperidade comum; quer por progressos nos principios de conduta e de moral pratica; quer, enfim, pelo aperfeigoamento real das faculdades intelectuais morais ¢ fisicas que pode ser igualmente o resultado, ou do aperfeigoamento dos instrumentos que aumentam a intensidade ¢ dirigem o emptego destas faculdades ou mesmo da organizagao natural do homem? Respondendo a estas trés perguntas encontraremos, na experiéncia do passado, na observagio dos progressos que as ciéncias € a civilizagio fizeram até aqui, na andlise da marcha do espirito humano e do desenvol- vimento das suas faculdades, os motivos mais fortes para acreditar que (a natureza nao pés nenhum limite as nossas esperancas. |

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