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HANS HEINRIC H EGGEB 1 vee a musica? EDICSes textofGrafia UE f A MUSICA? Titulo Original: Was ist Musik? Autores: Carl Dahlhaus / Hans Heinrich Eggebrecht Traduc4o: Artur Morao Grafismo: Cristina Leal Paginagéo: Vitor Pedro Edigao original: © 4th Edition Copyright 2001 by Florian Noewel GmbH, Verlag der Heinrichshofen-Biicher, Wilhelmshaven, Germany ‘Todos os direitos reservados para lingua portuguesa para Edigées Texto & Grafia, Lda. Avenida Oscar Monteiro Torres, n.° 55, 2.° Esq. 1000-217 Lisboa Telefone: 21 797 70 66 Fax: 21 797 81 30 E-mail: texto-grafia@texto-grafia.pt www.texto-grafia.pt Impress4o e acabamento: Papelmunde, SMG, Lda. 1.4 edig4o, Abril de 2009 ISBN: 978-989-95689-4-5 Depésito Legal n.° 291432/09 Esta obra est protegida pela lei. Nao pode ser reproduzida no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, sem a autorizacao do Editor. Qualquer transgressao a lei do Direito de Autor seré passivel de procedimento judicial. Apresentagdo a0 Leltor sess Adverténcia prévia [= Existe «a» miisica? . Il = Conceito. de musica ¢ tradigho europeia TIL — Que quer dizer «exttamusical? .. IV = Miisica boa ¢ musica ma V — Musica antiga ¢ musica nova so V1 = Significado estético ¢ intuito simbélico .. VII = Contetido musical VIII — Do belo musical ... IX = Masica ¢ tempo X= Que é a miisica? ...... 159 MUSICA BOA E MUSICA MA HANS HEINRICH EGGEBRECHT uponhamos que, para julgar ou valorizar a musica, ha fundamentalmente (embora sé num primeiro momento) duas instancias: 0 juizo sensivel e 0 jufzo cognitivo que, por seu turno, dependem respectivamente da compreensio sensi- vel e cognitiva. O juizo sensivel ou estético move-se — como a compreensio sensivel ou estética (idealmente falando) — para l4 dos conceitos linguisticos; assenta na impressio sensivel, na sensago que opde 4 misica uma reac¢io judicativa. Pode formar-se na total auséncia de expresses, pode resumir-se numa tinica palavra: «bom» ou «mau» («Como isto é belo» ou «Tao feio!»). O juizo cognitivo, pelo contratio, é de tipo abstracto. Procura indagar as raz6es, 0 porqué algo agrada ou desagrada ou, exage- rando, os motivos do «bom» ou do «mau»; quer no sujeito (por ex. ao nivel da sua formagao musical), quer — de modo analitico — no objecto, a propria musica. A proporcionalidade dos dois juizos, sensivel e cognitivo, € varidvel no decurso da audicéo musical. (Por exemplo, a faculdade de compreensao ¢ valoracao cognitiva de um leigo pode estar s6 pouquissimo desenvolvida, enquanto no conhecedor estas duas instancias interagem.) Importa todavia dizer que, em virtude de a misica ser criada para a compreensio sensivel, o primado cabe, em principio, ao juizo sensivel. O juizo cognitivo pode nao sé tentar esclarecer o sensivel, mas também ir em sua ajuda, estimul-lo, aprofundé-lo, modificd-lo e transformé-lo. O juizo, sensivel ou cognitivo, sobre a boa ou ma qualidde de uma miisica depende de muitos pressupostos, que se podem distinguit, em primeiro lugar, em subjectivos (também historica- mente condicionados) e objectivos (insitos na prépria musica). Subjectivo é 0 gosto que, todavia, tem sempre também motivos objectivos (objectivaveis): disposicao, experiéncia, formacio, idade, habito, pertenca a um grupo, etc. O juizo de gosto, que decide sobre 63 UE E A MUSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT bom ¢ 0 mau, pode modificar-se no plano dos seus motivos objec- tivos. Deste modo, por exemplo, a barreira que impede a recepcio da mtisica moderna, ou da antiga, pode reduzir-se ou até remover-se inteiramente através do habito (a escuta) e a compreensio cognitiva, E 0 juizo que considera uma cangao ligeita inferior a um lied de Schubert, pondo as duas obras numa interrelacdo de confronto, pode modificar-se logo que o ouvinte abandone o ponto de vista comparativo e, ao alterar a sua atitude receptiva em face do género musical, tome atitudes e critérios criticos capazes de distinguir com base na funcao: pata ele existirdo entio cangées ligeiras boas ¢ més, tal como existe a boa e ma mtisica culta — mas as barreiras levantadas pela limitacao dos horizontes subjectivos podem ser aqui ¢ além um factor de inibigdo: todas as cangées ligeiras s40 m4 musica ¢ nao me interessam ¢, vice-versa, a miisica culta estd demasiado longe de mim e nao me diz respeito. ‘As condigées objectivas de que depende 0 juizo do bom e do mau em misica residem, 4 primeira vista, na propria musica. S4o identificdveis por meio da andlise musical, contanto que o trabalho analitico oriente a sua problemdtica para a qualidade, para o valor da misica. Todavia, aqui, 0 género da miisica torna a desempenhar um papel importante. Na misica mais artificiosa, que como musica composta quer set livre, isto é, provir de si e ser para si, a andlise musical costuma prescindir inteiramente das condigées funcionais da composicao para se dedicar inteiramente ao objecto musical enquanto objecto de um universo estético auto-suficiente. Aqui pode retomar-se a questo do valor da miisica, da sua qualidade, no conceito de «patriménio informativoy estético, que inclui os aspectos da beleza (porque inteligivel no plano da andlise), da novidade e originali- dade, poliedricidade, densidade, mas também da compreensibili- dade na conjungao de sentido e contetido. O trabalho analitico é capaz de reconhecer se ¢ de que modo uma composicao se distin- gue qualitativamente de outras, quais as caracteristicas boas e més de um produto musical; e ao fazé-lo, é possivel que, as vezes, seja vencido pelo assombro provocado pela arte compositiva, A compreensio e a valoracao cognitiva da miisica est4, pois, sujeita a limites. Em primeiro lugar, a beleza da musica, sobretudo de uma melodia, é analisdvel sé em parte, pelo modo como o ana- lista musical recebeu o valor do seu objecto de anilise (geralmente 64 IV — MUSICA BOA E MUSICA MA antes) ¢j40 pressupbs ¢ com ele contou enquanto tal, durante © seu trabalho. Em segundo lugar, ¢ apés isto, a compreensio ¢ a valoragio estérica antecedem quase sempre a cogniciva. Quanto ‘mais articulado e denso de significado for um fendmeno musical, tanto mais complexo é 0 modo como a ele rage a compreensio estétca, que ~ também 4 no caso de formas musicais simples = nunca pode ser de todo alcangadla e«sobrelevada» pela compre- ensio conceptual; pelo que uma misica € capaz, em progressio proporcional & sua densidade de significado, de oferecer & com- preensio ¢ & valoracio cognitiva vertentes sempre novas do seu ser objectivo, E, em terceiro lugar, falta-nos, para a valoracio da misca do passado e antiga, 0 souvido contemporineos (2 con- temporaneidade sem mais) ao passo que, no caso da producio ‘musical mais recente, falta muitas vezes a seguranga acerca de normas ¢ crtérios de valoraséo. Apesar de tudo, «analise musical, {qu lida especificamente com a questio do valos, encontra 0 seu. genuino e congénito campo de aplicacéo na miisica artist caso € diferente na misica intencionalmente funcional, isto 6 naqueles géneros de miisica que néo surgem no terit6r da arte, mas sio determinados por fins, de modo consciente € programado, na sua factura. Néo se deve aqui valorizar a qualidade dda misica em si; a questio dizarespeto 3 relagio entre a musica, como dla 6, e 0 fim para que serve. Vej-se 0 exemplo da misica de sao do final do século xxx. Se aqui se tiverem em conta os critéros objetivos do bom e do mau em musica, e se buscar por meio da andlise musical o valor atsico «a riqueea informativa de tas composigées, © confionto com a msi ienta de vinculos funcionais€ auromitico ¢ o juizo sobre class pode ser negativo:epigonais, estereotipadas, vazias, superi- iat, inconsstentes, vulgare, banais ~ mé mica. Bem depressa semelhante andlise musical se cornaré um exerccio cansativo € afigurar-se-4 inl, chegando sempre ao mesmo resultado: peri Cidade de ito compassos:esquemas formals elementaes, conteido unidimensional (por ex. melodia com acompanhamento), férmulas de epresentaco, expresio e viruosismo, etc. ~ m4 miisica. Mas, seindagarmos os fins ou, mais exactamente, as necesidades aque este género de misica responde — atmosferae entretenimento 6 UE E A MUSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT de salao, busca de prestigio, imitacdo cultural, exigéncias sociais do mundo feminino, etc.), entéo, o fim transforma-se em norma ¢ a sua realizacdo em critério da valoracao. A musica auténoma cum- pre o seu objectivo sendo (ou julgando ser) livre de toda a fungio e entregando-se em tal liberdade ao critério de juizo absolute. A misica de saldo realiza a sua finalidade satisfazendo as exigéncias de -salfo ¢ adquite valor 20 desempenhar semelhante funcao. Exage. rando, podemos pois dizer que a boa miisica de saldo deve ser ~ se avaliada com o critétio da musica isenta de fungdes — m4 misica, Mas isto apenas quer dizer que, para desrelativizar os conceitos de bom e mau e discriminar com base objectiva, é sobretudo'o fim que deve ser analisado, e nao (ou ndo em primeiro lugar) a miisica. Sob esta perspectiva (e para a comprovar), é possivel exercitar- -se em varios jogos, por exemplo os quatro seguintes. Primeiro: pode tentar-se melhorar a misica de salo rumo & mitisica auténoma, como fez Robert Schumann nas suas criticas musicais. Mas nao funciona. Deveria partir-se das exigéncias ou dos «factos» que suscitam exigéncias e sio sempre da natureza hist6rico-social. A musica de saléo do século xtx foi caracteri- zada de modo nao secundério por um processo de massificacéo ¢ por uma simultanea degradacéo — no sentido do pensamento de Schumann — porque os «factos», a comecar pela industrializacio € pela afirmacao do modelo capitalista, os processos sociais abertos e incompletos, ganharam peso e influéncia. Segundo: Nos repertérios de salao encontram-se, muitas vezes, também pegas de miisica auténoma, por ex. pecas de Mozart e Beethoven, Mendelssohn e Schumann. Porventura, na recepgio, a funcao de tais pecas musicais ter sido invertida: pretendia ser, executava-se € ouvia-se como musica de sal4o. Mas € mais visivel que © ctuzamento dos repertérios constitui o indicio de uma interseccao de fins ¢ necessidades, expectativas e exigéncias, radicada nos «fac- tos» que estéo por detrds dos dois géneros de musica ¢ que nos dois dois Ambitos so, ao fim € a0 cabo, os mesmos. A Triumerei [Pecas de fantasia] de Schumann, embora inigualada no plano artstico pelas numerosas misicas de salao de titulo igual ou semelhante, satisfaz exigéncias que nao se podem repartir nitidamente entre os dois campos, ao ponto de fazer vacilar a distingao entre a musica de todo isenta de fins e a completamente sujeita a uma funcio, tornando «de facto» adjacentes as nogées de musica boa e ma. 66 IV — MUSICA BOA E MUSICA MA Terceiro: Que significado tem, neste contexto, «bom» e «mau»? A mé mtisica vive da boa, ao imitd-la. E a boa musica vive da m4 como aquilo que se libertou do que esté escravizado; em concreto, por exemn- plo, em certas editoras musicais as audacias da fachada alimentam-se das segurangas fornecidas pela muisica que se faz nas traseiras. Quarto: Nao é de excluir que também a mtsica de salio do século xix (musica tao abundante) conheca uma redescoberta, que para mim jd se iniciou. Toco-a de bom grado, néo s6 por interesse histérico ou pela grande tristeza que ela esconde, mas também apenas por uma motivacio directamente estética: deleito-me com a finura sentimental, do «oh! que belo»: hé em mim um lado kitsch. Gosto da boa misica md. A dicotomia também me diz respeito. O que aqui acabou de se dizer acerca da miisica de salao pode transferit-se, no fundo, para toda a misica intencionalmente fun- cional: a mtisica dos mendigos e de rua, a misica dos comediantes e circenses, a musica ligeira, as cancées de éxito, todos os géneros € modos da misica pop, mtisica de bandas, mitsica de ambiente nos grandes centros comerciais ¢ nos locais de trabalho, musica publici- taria, musica de filmes, velha e nova, etc. Estabelecer como padrao a musica independente da fungao poderd ser um nobre pensamento e uma boa inten¢ao, mas nada altera e nao é um comego ou é apenas um primeiro passo na via do conhecimento. O bom e o mau, tais como se concretizam na feitura, no texto e na qualidade do som da misica funcional, qualificam-se com base na consecucao do fim, e © pior produto artistico poderia ser o melhor produto funcional. Por outro lado, também no ambito da funcionalidade se busca a qualidade: brio ¢ elegancia, genialidade, divertimento e frivolidade —um certo nao-sei-qué dificil de conceber, que porventura melhora a musica funcional em direccdo a abstracta, mas quase sempre a torna pior: ao pretender, no entanto, melhoré-la quanto & func4o. E possivel, sem divida, decretar simplesmente como péssimos certos tipos de musica funcional, desprezé-los, recusar a sua audicao, ignorar a sua existéncia. Mas a reaccdo-de-avestruz, a ignorincia da dicotomia, a conservacao da pureza pessoal nada conhece (nem sequer a si mesma), néo resolve problemas, apenas os adia. 7 UE £ A MUSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT ona oe ee Pode falar-se de um abuso da misica. Mas de que miisica? Em relagio ao bom e ao mau nao existe «a» musica, nem na tealidade, nem como conceito, Além disso, o abuso — mesmo quando se pudesse objectivamente demonstrar — seria moral ¢ nao estétic, Se se quiser entender bem o que aqui foi designado como musicalmente «mau», entéo é necessério examinar & lupa os fins, as necessidades e a sua gesto, ou melhor, os «factos». Estes tiltimos podem reconhecer-se também no caminho que a miisica petcorre, mas nao é possivel modifici-los mediante a miisica, Ouve-se, no entanto, repetir que a boa misica, a auténoma, se for adequadamente ouvida, pode melhorar os homens, sobrecudo na senda da educagéo estética e da formagio do gosto. Mas que homens? Decerto nao aqueles que sempre houve, que so semprea maioria, massa fora da arte — os que consomem a «md» misica. Com isto prende-se a possibilidade de pensar que também a misica livre, a chamada auténoma, se pode pér em causa ¢ chamar- -se m4; sem todavia se aferrar ao seu valor estético, mas em aten- cao & sua fungao, aos requisitos que exigem este valor e 6 criam, Pois também a musica que se julga privada de fung6es as possui. Chamam-se, desde ha muito, por exemplo, utopia ¢ afirmacio, projecto de um antimundo e fuga para ele, «mundo para si», iso- lamento e segregacio perante a realidade, incluindo os «factos», de que nasce a ndo-muisica. Deveria entao admitir-se que apenas se pode ver a mtisica independente também em luz negativa, embora aqui no se pretendesse (¢ isto vale igualmente para mim) admitir a negac4o, enquanto os «factos» se afigurem imutivei Para a questao Que é a musica? a resposta é esta: pluralidade, uma multiplicidade potencial nao s6 dos seus fenémenos, mas também do seu set-valor, para o qual nao existe um cinone absoluto, mas 96 posicional. A partir da posicao é possivel tentar objectivar as nodes de bom e mau. Mas semelhante objectivacio dependera sempre da subjectividade da posicéo, ou seja, aqui, dos fins e das necessidades a partir dos quais a musica é feita, recebida e avaliada. Assim como nio existe «a» miisica, assim também nao existe «a» mtisica boa ou ma. Mas a constatagao da pluralidade de valores nao significa ainda pluralismo em relagao aos «factos», que forcam a relativizacao na avaliacdo dos fenémenos. Todavia, neste modelo, como me parece, a questdo nao se resolve... 68

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