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desmistificando a esquizofrenia er ad JORGE CANDIDO DE ASSIS e CECILIA CRUZ VILLARES RODRIGO AFFONSECA BRESSAN Nota ‘Amedicina é uma ciéncia em constante evolucao. A medida que novas pesquisas ¢ a experiéncia clinica ampliam 0 nosso conhecimento, sao necessarias modificagoes no tratamento e na farmacoterapia. Os coautores desta obra consultaram as fontes consideradas confidveis, num esforco para oferecer informagoes completas ¢, geral- mente, de acordo com os padroes aceitos época da publicacao. Entretanto, tendo em vista a possibilidade de falha humana ou de alteracoes nas ciéncias médicas, os leitores devem confirmar estas informagdes com outras fontes. Por exemplo, ¢ em particular, 0s leitores sao aconselhados a conferir a bula de qualquer medicamento que pretendam administrar, para se certificar de que a informacao contida neste livro esté correta e de que nao houve alteracao na dose recomendada nem nas con- traindicagoes para o seu uso. Essa recomendacao é particularmente importante em relagao a medicamentos novos ou raramente usados. oN ‘Br PES = AB48r Assis, Jorge Candido de. Entre a razao ea ilusao [recurso eletronico] : desmistificando a esquizofrenia / Jorge Candido de Assis, Cecilia Cruz Villares, Rodrigo Affonseca Bressan. — 2. ed. — Dados eletrénicos. — Porto Alegre : Artmed, 2013. Editado também como livro impresso em 2013. ISBN 978-85-8271-007-4 1. Psiquiatria. 2. Esquizofrenia. I. Villares, Cecilia Cruz. 2. Bressan, Rodrigo Affonseca. CDU 616.895.8 Catalogacao na publicagéo: Ana Paula M. Magnus ~ CRB 10/2052 ENTRE It razao ousn EIA desmistificando a esquizofrenia segunda edigio JORGE CANDIDO DE ASSIS CECILIA CRUZ VILLARES RODRIGO AFFONSECA BRESSAN Versio impressa desta obra: 2013 2013 © Artmed Editora Ltda., 2013 Gerente editorial Leticia Bispo de Lima Colaboraram nesta edigao Coordenadora editorial Cldudia Bittencourt Capa Tatiana Sperhacke Tlustragées Camucada Comunicagéo Ltda. Preparacao de originais: Camila Wisnieski Heck Leitura final: Antonio Augusto da Roza Editoragao eletronica: Armazém Digital® Editoragiio Eletrénica ~ Roberto Carlos Moreira Vieira Reservados todos os direitos de publicagao a ARTMED EDITORA LTDA., uma empresa do GRUPO A EDUCAGAO S.A. Av. Jerénimo de Ornelas, 670 - Santana 9040-340 — Porto Alegre, RS Fone: (51) 3027-7000 Fax: (51) 3027-7070 E proibida a duplicagao ou reprodugao deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrénico, mecanico, gravacao, fotocépia, distribuigio na Web e outros), sem permissao expressa da Editora. SAO PAULO ‘Av. Embaixador Macedo Soares, 10.735 - Pavilhdo 5 Cond. Espace Center - Vila Anastacio 05095-035 ~ Sao Paulo, SP Fone: (11) 3665-1100 Fax: (11) 3667-1333 SAC 0800 703-3444 ~ www.grupoa.com.br IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Sobre os autores Jorge Candido de Assis é portador de esquizofrenia ha 28 anos, atual- mente é vice-presidente da Associacao Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia (ABRE). Tem participado e ministrado aulas no curso de Medicina da Universidade Federal de Sao Paulo (Unifesp). E membro do Advisory Group do Movement for Global Mental Health. Cecilia Cruz Villares é terapeuta ocupacional e terapeuta de familia e mestre em Satide Mental pela Unifesp, onde trabalha no Programa de Esquizofrenia (Proesq) e supervisiona alunos do curso de Especiali- zacao em Terapia Ocupacional em Satide Mental. Participa ativamente, nos ambitos nacional e internacional, do estudo e combate ao estigma relacionado aos transtornos mentais. Foi vice-presidente da ABRE (2006-2008). Rodrigo Affonseca Bressan é médico psiquiatra e Ph.D. em Neuro- ciéncias pelo Institute of Psychiatry, University of London, onde é professor visitante; é professor adjunto livre-docente do Departamento de Psiquiatra da Unifesp, onde é membro do Proesq e coordenador do Laboratério de Neurociéncias Clinicas (LiNC). E pesquisador do Insti- tuto do Cérebro do Instituto de Ensino e Pesquisa Albert Einstein (InCe-IIEP AE) e membro da ABRE. Agradecimentos Este livro é fruto do que aprendemos com as pessoas com esquizo- frenia e seus familiares ao longo de anos de convivéncia em atividades diversas, na clinica e na vida. Por meio de suas historias e batalhas, do sofrimento e da superagdo, essas pessoas nos ensinaram e nos insti- garam a escrever, procurando transmitir tais vivéncias em uma linguagem muito préxima das conversas que tivemos durante esses anos. A todos os familiares e pacientes do Programa de Esquizofrenia (Proesq) da Universidade Federal de Sao Paulo (Unifesp), & Associagao Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia (ABRE) e aos associados e colaboradores da ABRE, 0 nosso muito obrigado pela oportunidade de conhecer, partilhar e aprender por meio desse rico didlogo. A Simone Rocha e ao Christian Schneider, por acreditarem desde o inicio em nossa proposta e pelo incentivo e apoio ao projeto ao longo de quase dois anos de trabalho conjunto. Ao Dr Itiro Shirakawa e ao Nilton Vargas, por compartilharem conosco © sonho de construir um mundo melhor para os portadores de esqui- zofrenia e seus familiares. ‘Aos colegas e amigos Ary Gadelha, Cecilia Attux, Cristiano Noto, Elaine Vieira, Fernanda A. Pimentel, Fernando S$. Lacaz, Fernando Paz, José Alberto Orsi, Larissa C. Martini, Luiz Claudio Freire, Maria Eduarda Caruso, Marlene Apolinario, Miguel R. Jorge, Marcelo Q. Hoexter (0 “Dr. Marcelo”), Romilda Viana Lima, Stella M. Malta, Vania Bressan, Wagner Barbosa de Souza e Wulf Dittmar, pelas contribuicées, pela confianga e pela parceria no trabalho. Prefacio da primeira edigao A condic¢éo humana nao é linear e racional como queremos crer, mas se da na convivéncia entre aspectos légico-racionais e a dimensaio subjetiva e atemporal do mundo mental. O balango entre esses aspectos e dimensées permite que mantenhamos determinada “sanidade mental”, que possibilita que exercamos nossos papéis sociais com cria- tividade. Tememos a loucura, pois ela esta muito perto de nds — todos passamos por situacdes emocionais ou fisicas que nos colocam em contato com os limites da sanidade. Mas, quando certas dimensées do mundo mental, tais como pensamentos e percepcées, ganham prepon- derdncia e subjugam a racionalidade, limitando, inclusive, a subjetivi- dade, entramos no campo da loucura denominada psicose. Neste livro, abordamos a experiéncia da esquizofrenia, uma forma de psicose em que aspectos subjetivos, tais como fenémenos alucinatérios e delirantes, tendem a distorcer a compreensao da realidade. Que fendmenos sao esses? Até que ponto eles se restringem as pessoas que vivenciam a psicose? A experiéncia da esquizofrenia é extremamente complexa e de dificil compreensao tanto para quem a vivencia quanto para quem a acompanha de fora. E também assustadora, uma vez que significa prejuizo ou perda da capacidade de autogestao e do livre- -arbitrio. Como os estados psicdticos oscilam em intensidade ao longo do tempo, as pessoas afetadas convivem com estados de sanidade e insanidade. Vivem, literalmente, entre a razdo e a ilusao. A experiéncia de enlouquecer em consequéncia do efeito agudo de drogas psicotrépicas tem sido muito explorada em diversos textos e X= Prefacio da primeira edigao livros. Este livro vai além, ao apresentar aspectos de uma condicao humana singular, a esquizofrenia, por meio de narrativas dos percursos de personagens que convivem com a doenga. Procura mostrar também. como um “outro entendimento das coisas” e a convivéncia com a loucura podem levar a grandes aprendizados, tanto do ponto de vista pessoal quanto compreensivo das pessoas que nos cercam. © processo de enlouquecimento que ocorre na esquizofrenia 6 um constante desafio & superacdo e A procura do melhor meio de se promover a aceitacao entre os diferentes pontos de vista. Aceitar nao implica necessariamente concordar, mas entender que a visao dife- rente do outro faz sentido para ele e, com base nisso, construir um territério comum de compreensao. Entre a razdo e a ilusdo é um convite para vocé construir um entendi- mento sobre o que € o processo de enlouquecer, ficar psicético e conviver com essa condic¢do ao longo da vida. Assim, os temas so apresentados a partir de quatro pontos de vista principais: a) de quem vivencia o processo; b) de quem convive com pessoas que vivenciam 0 processo (familiares e comunidade); c) de quem trata das pessoas que passam por esse processo (profissio- nais da satide mental); d) de quem estuda a esquizofrenia (pesquisadores e neurocientistas). O livro utiliza linguagem simples e muitas ilustracdes sobre assuntos relacionados a esquizofrenia. Descreve aspectos da vida das pessoas que tém esquizofrenia e de seus familiares, desde os primeiros sintomas, 0 caminho até o diagnéstico, uma compreensao do que é a doenga, a busca de ajuda, o relacionamento com os profissionais da satide e estratégias de tratamento. Oferece ideias de como lidar com situacGes e sentimentos que dizem respeito ao que ha de mais profundo em cada um de nds para a manutengdo de um equilfbrio possivel e saudavel. O livro trata de forma realista os caminhos da recuperagao, com 0 objetivo de oferecer entendimento e esperanca. x Prefacio a segunda edigao Nesta segunda edigéo, modificamos o titulo do livro de Entre a razGo e a ilusdo: desmistificando a loucura para Entre a razdo e a ilusdo: desmis- tificando a esquizofrenia. Seguimos a escolha da edigdéo em portugués de Portugal, pois “loucura” parece ter um estigma to intenso que difi- culta a leitura do livro. Nesta edigdo, acrescentamos um novo capitulo, que vem ao encontro de um pedido dos leitores. Este novo capitulo, o terceiro, procura desmistificar a esquizofrenia a partir do entendimento de sua neuro- biologia. Apresentamos de forma didatica os principais aspectos cien- tificos, pois entendemos que sua compreensao contribui consideravel- mente para que as pessoas com esquizofrenia e suas familias possam entender melhor a doenca e utilizar melhor os recursos terapéuticos que lhes sao oferecidos. Incluimos também um glossdrio com alguns termos utilizados pelos profissionais da satide e atualizamos o apéndice com links para sites, servicos, projetos e associagées. Esperamos que vocé, leitor, encontre nesta segunda edicao informa- Ges titeis e uma visio da esquizofrenia como uma experiéncia que pode ser compreendida e para a qual ha caminhos para superacdo. Introdugao. 1. Aexperiéncia de adoecer... O que é esquizofrenia? Diferentes visées ... Tudo tem um comego.. Um caminho que comega a mudar 0 outro caminho..... ts m Percebendo o mundo de outra maneira. csr 37 Outro entendimento das coisas . Arealidade pode ser bem confusa.. Cores desbotadas .. Energia perdida A cognigao e a esquizofrenia Caminhos e possibilidades Primeiro passo.. 2. Ocaminho até o diagnéstic Mas... qual 6 a doenga?... 7 Uma convivéncia nem sempre facil 67 Inicio da melhora 70 Isso é loucura?.. Caminho até 0 diagnéstico .. Tem cura?...... Um aprendizado necessario... 3. Que doenca é est: 0 entendimento cientifico diminui o estigma da doenga.. Epidemiologia e impacto na sociedade Qual o drgao afetado na esquizofrenia xiv = Sumario Genética e esquizofrenia... Alteragao do funcionamento cerebral — dopamina Tratamento da alteragao cerebral — antipsicético Neuroprogressao.... Esperanga realista — neuroplasticidade 4. Tratamento Aspectos gerais Outro camino, a volta Um erro muito comum .. Prevencao de recaida. Outra forma de cuidado.... Desmistificando a internaga Quando a pessoa nao acha que esta doente.. Quando os medicamentos nao funcionam Depois da crise aguda... 0 que dizem os especialistas. Reabilitacao Recuperagao. 5. Estigma — como as pessoas se sentem. Rotulos...... Desconhecimento, onde tudo comega. Aceitagao das limitacoes.. Loucura, uma palavra que pode machucar Uma consciéncia dific Discriminagao e ocultagao. Relagées sociais dificei: Isolamento.... Oportunidades perdidas Esquizofrenia e uso de droga: Enfrentando 0 estigma Dois aspectos do estigma Sumario = XV 6. Convivio familiar .. Familia .. ‘As questées de cada um Qual é a formula magica? .. Acrise aguda de esquizotrenia desorienta a todos. Lidando com um momento de crise Quando a pessoa nega-se a se tratar. Prevenindo recaida: Criando um ambiente acolhedor..... Encontrando recursos na comunidade. Incentivando a autonomia Caminhos de superacao Aprendendo com a convivénci 7. Recuperagao e novas perspectivas... Recuperacao.. Recuperacao de Carlo: Recuperacao de Francisca. Recuperagao de Gabriel. Medicamentos: novas perspectivas Juntos, 0 caminho fica mais facil Participagao e defesa de direitos... 0 futuro — detecgao precoce Perspectivas..... Esperanga realista Glossario Apéndice.. Introdugao Entendemos que ha quatro visdes distintas no contexto em que as pessoas com esquizofrenia estao inseridas, a da pessoa que tem esqui- zofrenia, a de seus familiares, a dos profissionais e a da comunidade onde se vive. F importante frisar que cada uma delas é correta com base no préprio ponto de vista. Muitas das incompreensées a respeito da esquizofrenia ocorrem em razao da dificuldade de aproximar as vivéncias e as explicacdes dessas quatro vis6es. Apresentaremos, neste livro, como cada uma dessas perspectivas pode se constituir, com a finalidade de promover a aproximaciio e o didlogo entre elas. Propomos que nossos leitores acompanhem, nos dois primeiros capi- tulos, a trajetéria de um personagem, que chamaremos de Gabriel. Essa trajetoria ilustrard a experiéncia da esquizofrenia nas varias vis6es. Nos capitulos seguintes surgirao outros personagens. Gabriel e esses outros personagens foram criados com base em experiéncias de varias pessoas com esquizofrenia que conhecemos ha anos e no que elas tém em comum. Procuraremos mostrar ao longo do livro que: * A pessoa que adoece, ao passar por uma crise aguda, acredita nos pensamentos e nas percepcdes que tem. Mais do que acreditar, sente que eles esto acontecendo. Nao é uma experiéncia comum. E uma experiéncia diferente, na qual a pessoa vive momentos muito dificeis de confusao, perplexidade e desorientacao. * Quando uma pessoa tem esquizofrenia, toda a familia é afetada. Os familiares invariavelmente querem o melhor para a pessoa, mas veem-se envolvidos em situacdes muito dificeis e perguntam-se: O que fazer? Qual o melhor caminho? Como conviver com a pessoa com esquizofrenia? Nao existem respostas prontas para essas 18 = Assis, Villares & Bressan perguntas, mas esperamos apontar caminhos possiveis diante das questées vividas pelos familiares. * Os profissionais (psiquiatras, psicdlogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e enfermeiros) procuram ajudar a pessoa com esquizofrenia e seus familiares a aprender a lidar com a doenga e a restabelecer sua satide. Cada profissional, em sua area de atuagao, tem um ponto de vista diferente. Em conjunto, procuram apoiar uns aos outros, de forma que os resultados sejam os melhores possiveis. Neste livro, a comunidade é composta por pessoas com quem a familia € a pessoa com esquizofrenia tem uma relacdo préxima e cotidiana. Nas grandes cidades, ela se define bem pelo bairro, e nas cidades menores, por seus habitantes. Cada comunidade tem sua maneira propria de funcionar e influencia diretamente a forma como a pessoa com esquizofrenia e seus familiares se relacionam e como sao acolhidos. A comunidade tem seus pontos de vista, que também tém um papel importante, influenciando a visdo que a familia tem da doengca. A vivéncia da esquizofrenia pela pessoa e pelos familiares leva 4 neces- sidade de muita compreensao e busca de apoio dos profissionais da satide. Ela promove grandes mudancas, que exigem um novo aprendi- zado nos relacionamentos familiares, de maneira que a pessoa com esquizofrenia tenha o acolhimento necessdrio para redesenhar seu caminho de vida. Também é preciso aprender a viver na comunidade, pois a experiéncia mostra que uma postura de aceitagdo da doenga e de nao se envergonhar ou se isolar contribui muito para que as pessoas da comunidade compreendam que a esquizofrenia é uma experiéncia humana como tantas outras. Isso contribui para diminuir a discrimi- nacdo e para que se estabelecam relacionamentos sociais que tornam a vida melhor. E possivel abordar a esquizofrenia e as praticas de tratamento de um ponto de vista cientifico, pois a esquizofrenia é a doenga mais estu- dada na psiquiatria. Também é possivel falar da esquizofrenia do ponto de vista da experiéncia pessoal, pois existem hoje muitos livros e textos autobiograficos em sites da internet. Nosso objetivo é preencher a lacuna que existe entre essas duas formas de abordar a doenca. Assim, Entre arazdoeailusao = 19 cuidamos tanto de informar com corre¢ao cientifica como de falar a partir da vivéncia da esquizofrenia; para iniciar, apresentamos as prin- cipais quest6es que nos guiaram na construcao deste livro. Como aparece a esquizofrenia? Quais sao as dificuldades para a pessoa perceber que o que ela esta vivendo é uma doenca? Serd que essa percepgao leva a uma aceitagado ou, em vez disso, reforca a negacao? Como a familia lida com a situacéio de um de seus membros ter esqui- zofrenia? Essa forma de lidar pode mudar ao longo do tempo? A familia pode ajudar a pessoa que tem esquizofrenia? O que fazer? Como agir? O que pode e o que deve ser evitado no rela- cionamento com uma pessoa com esquizofrenia? O que esperar dos tratamentos? Por que nao existe um exame laboratorial que determina a presenca da doenga? Se nao existe tal exame, como 0 médico sabe que a pessoa tem esquizofrenia? Como ele prescreve os medicamentos? Por que os medicamentos sao importantes? Existem outros trata- mentos para a esquizofrenia, além do tratamento médico? Como esses tratamentos “funcionam”? Eles substituem a necessidade de medica- mentos? As familias podem se beneficiar de alguma forma com o trata- mento? Quando a internacao é necessdria? Como é a internagdo? Quais sao os profissionais envolvidos no cuidado da pessoa com esquizofrenia? Como a familia deve lidar com a possibilidade de internacao? A esquizofrenia é uma doenga do cérebro ou da mente? Pode ser as duas coisas? O cérebro pode adoecer? O que acontece no cérebro da pessoa com esquizofrenia? E a mente, ela pode adoecer? O que se passa na mente da pessoa com esquizofrenia? A esquizofrenia muda com o tempo? Como acontece a recupera¢ao na esquizofrenia? Por quanto tempo os tratamentos sao necessarios? Por que é possivel ter esperanca? Essas sao algumas das questdes abordadas neste livro. Percebemos, por meio da pratica, que a compreensao de questdes que afetam dire- tamente a maneira como vivemos e vemos a vida € 0 tipo de entendi- mento mais dificil, pois s6 ocorre quando conseguimos promover mudangas em nossa forma de ser, dando espago para o novo. Tal 20 = _ Assis, Villares & Bressan processo comeca com o reconhecimento de nossas experiéncias naquilo que o livro transmite, uma vez que ele nao foi escrito para dizer o que € 0 certo ou 0 errado. Esse é 0 primeiro passo. O préximo passo do processo é pensar sobre a propria vida e as possibilidades que ela oferece e, entaéo, caminhar em diregao as mudancas. Nesse percurso, que € necessariamente individual, cada um tem de achar seu jeito de caminhar. Entre a razdo e a ilusdo foi organizado em sete capitulos; cada um trata de um t6pico que consideramos importante para a compreensdo e um. bom convivio com a esquizofrenia. Eles podem ser lidos de forma inde- pendente, mas consideramos que a leitura desde 0 comego até o final propiciara uma visao mais completa da abordagem dada ao tema. Segue uma apresentacao breve do contetido de cada capitulo. No primeiro capitulo, apresentamos o que é a esquizofrenia, como se da seu aparecimento e como ela evolui, levando a necessidade de um atendimento psiquiatrico e de satide mental. Nesse capitulo, é possivel entender, por intermédio de vivéncias dos personagens criados — Gabriel e sua familia — quais sao os principais sintomas da esquizo- frenia quando a pessoa vive uma crise da doenga. Nao se trata de uma descri¢do cientifica rigorosa, pois isso tornaria o assunto incompreen- sivel para quem nao é especialista. Ainda assim, a descricao segue um enquadramento cientifico, mas é apresentada por meio das vivéncias e do contexto em que a pessoa com esquizofrenia se envolve. Nosso objetivo é mostrar que a esquizofrenia é uma doenca e que pode ser entendida, apesar das incompreensoes que acarreta. No segundo capitulo, apresentamos as dificuldades de entendimento e aceitacio da doenga e seus tratamentos. E pela superagiio dessas difi- culdades que é possivel sustentar a fase inicial do tratamento até se estabelecer um diagnéstico seguro da esquizofrenia (diagnéstico dife- rencial). Apresentamos alguns dos fatores que levam a um atraso no comeco do tratamento e exemplos de caminhos que as pessoas podem seguir para superar esses fatores. Para se diagnosticar a esquizofrenia, é preciso um tempo de tratamento consistente, a fim de eliminar a possibilidade de a pessoa ter outros tipos de doenga. Mostramos que, com Os tratamentos e medicamentos corretos, a pessoa pode sair da Entre arazdoeailusao = 21 crise aguda se ela e sua familia receberem as orientacdes para lidar com 0 cuidado que a esquizofrenia exige para ter seus sintomas contro- lados. O terceiro capitulo apresenta o que é a doenga do ponto de vista cien- tifico e dados objetivos que permitem desmistificar varios aspectos relacionados a esquizofrenia, incluindo sua prevaléncia e a sobrecarga para os individuos, as familias e a sociedade; os mecanismos cerebrais associados aos sintomas (tais como alucinagées, delirio e alteragdes da cognicao); os mecanismos de agéo dos medicamentos; as causas da doenca (ambientais e genéticas); as repercussdes cerebrais da evolucio da doenga (neuroprogressao); e as maneiras possiveis de atenuar essa evolucao a partir da neuroplasticidade. O quarto capitulo mostra como é possivel redesenhar o caminho de vida, mantendo os cuidados necessdrios com a esquizofrenia. Entre- tanto, mostra um erro muito comum em todas as doencas que, como a esquizofrenia, exigem tratamento por tempo indeterminado: achar que se esta curado e abandonar o tratamento. Nosso personagem tera uma recaida com a doenca e, em razdo das condicdes em que isso acontece, precisard ser internado. Mostraremos como é uma inter- nacao que segue os procedimentos atuais de tratamento. Apresenta- remos outros dois personagens que vivem situagGes diferentes da de Gabriel, mas muito comuns na esquizofrenia: a pessoa que nao aceita o tratamento, representada pela historia de Francisca, e a pessoa que nao responde bem a medicacao, representada pela historia de Carlos. Seguiremos a histéria de Gabriel ao sair da internacao, e mostraremos como ele retoma a vida, o processo de reabilitacdo e as perdas que serao, em parte, superadas com o tempo. Nesse capitulo, apresenta- remos também informagées importantes sobre os medicamentos, seus efeitos e quais sao eles, inclusive com as doses comumente utilizadas. O quinto capitulo trata de um assunto que tem grande influéncia na vida das pessoas que tém esquizofrenia e de seus familiares: 0 estigma. A forma que escolhemos para abordar esse assunto foi mostrar como as pessoas se sentem em diversas situagdes. Apresentaremos também maneiras de lidar com a rotulagdo e a discriminacao que o estigma acarreta. Nosso personagem Gabriel procura as drogas como forma de 22 = Assis, Villares & Bressan ser aceito, o que exigird uma acdo por parte da familia e dos profissio- nais da satide. Mostramos que ha maneiras de lidar com situacdes estigmatizantes e que é preciso nao se deixar ser vitima da incom- preensao da sociedade em relacao aos transtornos mentais, em espe- cial a esquizofrenia. sexto capitulo tem como tema o convivio familiar, a relagao dos familiares entre si, enfatizando que a pessoa com esquizofrenia é parte dessas relagdes. Esse assunto é muito mais vasto do que o espaco deste livro. Assim, escolhemos alguns temas importantes que podem contri- buir para que a pessoa com esquizofrenia e sua familia pensem em maneiras de construir juntos, formas boas de convivéncia. Aborda- remos, por meio dos personagens, quest6es que envolvem a convi- véncia a partir de situag6es reais que conhecemos e também de cami- nhos de resolugéo de problemas. Mostraremos a importancia de a familia procurar resolver os problemas, bem como 0 valor de se utilizar os recursos da comunidade para estabelecer uma rede de relaciona- mentos gratificantes e buscar que a doenga nao ocupe um lugar central nas relacdes, de modo que todos possam viver com qualidade e cuidar somente das questdes da esquizofrenia em relacdo as exigéncias que ela acarreta. Isso é 0 que entendemos como caminhos de superagao. O sétimo capitulo, que fecha o livro, apresenta a recuperacdo e novas perspectivas. Apresentamos informacGes que permitem um entendi- mento da doenca com base na ciéncia, pois acreditamos que essas informacées ajudam a desfazer concepcdes erréneas sobre a doenca e sobre a psiquiatria. Deixamos elas para o tiltimo capitulo, pois consi- deramos que é preciso entender o processo do adoecimento e da busca de tratamento de uma maneira vivencial para que essas informacoes sejam mais bem aproveitadas. A experiéncia mostra que a recuperacao. na esquizofrenia precisa ser entendida como o resultado de um processo ao longo do tempo, mantendo os cuidados necessdrios para que a doenca fique controlada, em que a pessoa e sua familia vao aprendendo a lidar com as situaces e a redesenhar caminhos que permitam uma vida com qualidade. Isso é ilustrado com a histéria de recuperacao de cada um dos personagens, com base em historias reais que conhecemos. Abordaremos a importancia de participar de associa- Entrearazdoeailusio = 23 Ges e grupos de apoio a fim de sair do isolamento e trocar experién- cias comuns, bem como de se organizar para a defesa de direitos. Por fim, falamos das pesquisas mais recentes sobre a deteccao precoce da esquizofrenia que se encaminham para, em um futuro proximo, possi- bilitar a prevencdo da doenca. Esperamos que a leitura deste livro apresente informacoes titeis e traga novas ideias para o cuidado com a esquizofrenia e um convivio com qualidade. Esta foi a motivacao central do nosso trabalho: contribuir para uma vida melhor para as pessoas que tém esquizofrenia e seus familiares e apresentar essa doenga como uma condicao humana que pode ser compreendida e com a qual é possfvel uma boa convivéncia. A experiéncia de adoecer 0 que é esquizofrenia? Comegcamos a resposta para esta pergunta com a consideracado de que tecnicamente é muito dificil ou até impossivel responder perguntas do tipo “o que 6?”. Quando respondemos a esse tipo de pergunta, invaria- velmente formulamos uma defini¢ao, deixando de lado varias caracte- risticas e experiéncias de que a definicao nao da conta. Uma forma de contornar essa dificuldade é tentar, da melhor maneira possivel, responder & pergunta do tipo “como acontece?”, ai podemos delinear uma caracterizacéio que abre espaco para a reflexdo de quem Ié. E isso que comecaremos a fazer agora e que sera desenvolvido por todo o livro. Aqui, fazemos 0 convite para 0 comeco de uma conversa que nos leve a entendimentos positivos sobre a esquizofrenia. Este capitulo aborda a experiéncia de enlouquecer. O primeiro paragrafo do prefacio apresenta, em poucas palavras, 0 que tenta- remos apresentar mais detalhadamente ao longo deste capitulo. “Loucura” é um termo usado ha séculos para qualificar atitudes e comportamentos que nao correspondem ao que é esperado e natural e, por nao fazerem sentido ou nao serem aceitos na comunidade, geram sofrimento para quem os vive e medo para quem no os compre- ende. Nesse sentido, a esquizofrenia, como ficard claro a seguir, repre- senta bem 0 que as pessoas entendem por loucura — isso justifica 0 titulo para este primeiro capitulo. Nosso objetivo é mudar a vis que as pessoas tém da loucura como algo que é incompreensivel e causa medo. Mostraremos que a esquizo- 26 = _ Assis, Villares & Bressan frenia 6 uma experiéncia humana possivel de ser compreendida e, mais importante, poderemos mostrar ao longo do livro que ela é uma doenga, tem tratamento e que a recuperacéo é possivel. Algumas pessoas poderdo pensar que estamos sendo idealistas, que nao conhe- cemos a realidade das pessoas que tém esquizofrenia. Entretanto, foi a partir do conhecimento e da atuacao com pessoas com esquizofrenia que delineamos, neste livro, varias compreensdes que podem contri- buir na pratica para a melhora e a recuperacao. Nao escrevemos sobre o conhecimento tedrico, que é aquele que se busca dominar intelec- tualmente para resolver os problemas; procuramos apresentar um caminho para construir entendimentos e promover mudangas, tanto para a pessoa que tem esquizofrenia como para sua familia. E preciso caracterizar e explicar o que queremos dizer quando usamos 0 termo “esquizofrenia”, que é tanto uma doenga que afeta principal- mente o funcionamento do cérebro quanto uma experiéncia muito dife- rente e dificil da realidade. Iremos esclarecer ambos os aspectos ao longo do livro. Para iniciar, apresentaremos algumas informacées que ibilitam um primeiro entendimento da natureza da esquizofrenia. Entrearazdoeailusio = 27 A esquizofrenia abordada como doenga é 0 resultado de varios fatores que se inter-relacionam ao longo da histéria da pessoa. Entre os fatores conhecidos, temos: problemas durante a gestacéo e/ou o parto; problemas genéticos; problemas no amadurecimento do cérebro ao longo da vida; fatores estressores além do que a pessoa pode suportar; entre outros. Quando esse conjunto de fatores atua em uma determi- nada condigio e perfodo da vida, a pessoa pode desenvolver esquizo- frenia. Sabe-se, hoje, com certeza, que um dos efeitos que promovem as alteracdes de comportamento da pessoa com esquizofrenia é um aumento da fungao da dopamina, uma das muitas substancias quimicas que fazem a transmiss4o de informagiio no cérebro. Todos os medica- mentos para controlar a esquizofrenia (antipsicéticos) atuam regu- lando a fungao da dopamina. A esquizofrenia é, portanto, uma doenca complexa, mas pode ser controlada, de forma que a pessoa que a porta e seus familiares possam construir uma vida com qualidade. O trata- mento mais recomendado da esquizofrenia demanda uma equipe com varios profissionais: psiquiatra, enfermeiro, psicdlogo, terapeuta ocupacional e assistente social. Mais informacées sobre as causas multifatoriais da esquizofrenia serao apresentadas ao longo do livro e principalmente no Capitulo 3. Aesquizofrenia abordada como uma experiéncia diferente de realidade sera bem esclarecida durante este capitulo, por meio das vivéncias do nosso personagem Gabriel e de sua familia. Aqui, vem o convite para © préximo item deste capitulo, que é o didlogo entre as diferentes visées que cada um tem sobre a esquizofrenia. ‘A visdo que cada um tem sobre um assunto ou um tipo de experiéncia esta relacionada 4 maneira como sua histéria foi vivida. Nao existe uma tinica verdade que nos dé garantias sobre como é a realidade. Até na matematica, a mais exata das ciéncias, existem diferentes visdes sobre seus princfpios. Como dissemos no inicio da Introdugao, no contexto em que as pessoas com esquizofrenia esto inseridas, enten- demos que ha quatro visées distintas: a da pessoa que tem esquizo- 28 = Assis, Villares & Bressan frenia, a de seus familiares, a dos profissionais e a da comunidade onde se vive. E importante frisar que cada uma delas é correta com base no préprio ponto de vista. Procuraremos, aqui, mostrar um pouco de cada uma dessas visées. Nosso objetivo é apresentar algumas consideracées que facilitem o didlogo entre essas visdes. O didlogo legitimo sé é vidvel quando tem origem na aceitagao da visao do outro, mesmo que esta seja diferente da sua, promovendo um entendimento compartilhado. Certa vez, uma pessoa com esquizofrenia nos procurou pedindo um livrinho que publi- camos sobre o assunto, para deixar com o pai para que ele entendesse que ela tinha uma doenga, e que nao era preguicosa como ele dizia. Nao sabemos o resultado dessa iniciativa, mas de uma coisa temos certeza: se essa pessoa nao conversou abertamente com o pai, dificil- mente ele mudou sua visio. A pessoa que tem esquizofrenia vive diferentes momentos com a doenga. Um deles é a crise aguda, que pode durar de semanas a alguns meses; nesse caso, 0 didlogo exigira das outras pessoas uma aceitacao voltada para promover o cuidado; nesse momento, a pessoa esté passando por uma situagdo muito dificil e desorientadora. O didlogo, nessas condi- Ses, pode servir mais para estabelecer lacos de confianca do que para promover qualquer tipo de convencimento. Outro momento é a fase de estabilizacao, que pode durar anos, se a pessoa com esquizofrenia seguir os tratamentos. Nesse caso, 0 didlogo com base na aceitagao pode servir para se estabelecer uma ponte entre as questGes que a pessoa vive e as visdes de outras pessoas que convivem com ela, diminuindo o isola- mento e promovendo um tipo de relacionamento com qualidade mais satisfatoria, que pode melhorar com o tempo. Os familiares normalmente ficam sem saber como agir quando um membro da familia adoece com a esquizofrenia. E uma experiéncia nova e que traz muitas dificuldades, e os familiares podem ficar entre dois extremos: 0 conformismo, que leva a nao procurar caminhos para melhorar os relacionamentos, ou a nao aceitacéo, que leva a querer que as coisas se resolvam de uma hora para outra, seja mudando o medicamento, confiando em apenas um tipo de profissional da satide ou nao aceitando a doenga. Entre arazoeailusio = 29 E necessario encontrar um caminho mediano: entender a presenca da doenca sem se conformar “que é assim mesmo” e procurar sempre encontrar a melhor solucdo para cada situag4o. Uma das caracteristicas da esquizofrenia é que ela é uma doenga crénica, isto 6, exige cuidados ao longo do tempo. Os resultados, muitas vezes, s4o mais lentos do que gostarfamos, mas as melhoras sé sao possiveis com a busca constante e cotidiana de resolucao de problemas e de exercicio de didlogo. Os profissionais da satide tém formacéo para promover o cuidado e ajudar a pessoa com esquizofrenia e seus familiares a lidar com os problemas decorrentes da doenga. Cada tipo de profissional tem uma formacio mais direcionada para um tipo de atuacdo. E sempre muito proveitoso para o paciente quando eles dialogam entre si, buscando as melhores soluc6es. Na pratica, esse didlogo nem sempre é 0 ideal, por varios motivos, mas, dentro do possivel, ele sempre contribui para um. atendimento mais integrado. Outro aspecto importante é o didlogo dos profissionais de satide com o paciente e sua familia, o qual, ao promover a formagao de vinculos — um tipo de relaciio de confianca e atencdo -, permite lidar com as questées levadas para os tratamentos da melhor maneira possivel. 30 = Assis, Villares & Bressan Cada comunidade tem sua forma prdpria de funcionar. Quando as pessoas tém acesso as informagées corretas sobre os transtornos mentais, é possivel estabelecerem-se relagdes de solidariedade, dimi- nuindo o isolamento dos pacientes por meio da reducao do precon- ceito e também desfazendo 0 medo que as pessoas alimentam por desconhecimento. Informar e educar sao miss6es da Associagao Brasi- leira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia (ABRE). Abordaremos esse assunto com mais detalhes nos Capitulos 4 e 5. Vejamos, a seguir, a historia de Gabriel, que ilustra bem tudo 0 que dissemos até agora. Tudotemumcomego ‘A pessoa com esquizofrenia experimenta a realidade de forma dife- rente, e tal vivéncia invariavelmente causa muitos conflitos nos rela- cionamentos. Procuraremos descrever como esse processo se inicia, acompanhando como ele se deu na vida de Gabriel. Esse inicio se dé bem antes do aparecimento dos sintomas. Gabriel terminou os estudos e comegou a trabalhar. Até entao, sua vida seguia um curso natural. Ele passava pela transigao entre o ambiente escolar e o ambiente de trabalho, agora com mais responsabilidades e uma rotina mais rigida. Para ele, foi a partir dessas mudancas que comecou a sentir certas dificuldades que antes nao percebia. Ele comega a ter dificuldade de se relacionar com as pessoas no trabalho. Em casa, seu comportamento comeca a mudar, conversa menos com os irmaos e os pais. Gabriel passa a se isolar e sentir-se solitario. Aumenta a distancia em relacao as pessoas, evita sair com os amigos e ndo conversa muito quando os parentes vao a sua casa. Sua diminuicdo de desempenho e seu gradual isolamento marcam o comec¢o do aparecimento da esquizofrenia. Isso nado quer dizer que todo jovem que vive uma fase dificil tera a doenga, mas a maioria das pessoas que a desenvolvem relata experiéncias parecidas com as de Gabriel antes do aparecimento dos sintomas. Entre a razoeailusio = 31 Essa situacado comega a se tornar cada vez mais problematica e estres- sante. Entaéo, Gabriel decide parar de trabalhar e ficar em casa estu- dando para o vestibular. A familia percebe suas dificuldades, mas sempre encontra uma explicacgao para o que ele esta vivendo. Acredita que se trata de um perfodo de mudangas, uma fase dificil que ele superara. Gabriel passa a maior parte do tempo no quarto, estudando. Perde o interesse até em ver os jogos de futebol de seu time do coracao. Tal comportamento preocupa seus pais, mas eles esperam que, depois do vestibular, seu filho faga novas amizades e volte a ser a pessoa alegre e cheia de vida que sempre foi. A familia de Gabriel nao é diferente das outras; os filhos adolescentes normalmente se tornam mais independentes e nao compartilham tudo © que vivem com os pais. A postura dos pais de Gabriel de serem mais tolerantes e esperar que essa fase do filho se resolva com 0 tempo é natural. Infelizmente, Gabriel nao passa no vestibular. Esse fato é vivido por ele como uma grande derrota e contribui para aumentar seu isolamento e 32 = Assis, Villares & Bressan sofrimento interior. Longe dos amigos e distante nas relagées familiares, ele nao encontra com quem dividir a situac&o dificil que esta vivenciando. Seus pais conversam com ele, procuram oferecer apoio, dizem que ele precisa ter paciéncia e nao desistir de seus projetos. Seus irmaos também procuram conversar com ele, para que nao leve tudo tao a sério, para se distrair mais e entender que o vestibular é importante, mas que ele estard mais bem preparado para o préximo ano. Entre- tanto, o sofrimento de Gabriel é muito profundo; ele nao consegue expressar 0 que sente e dividir esse sentimento com outras pessoas. O que os familiares lhe dizem reforga a sensagdo de que eles nao conse- guem entender o que se passa em seu mundo interior. A familia nao deve se sentir culpada quando uma pessoa desenvolve um transtorno mental; a postura mais adequada é a de desenvolver recursos nos rela- cionamentos para ajudé-la. Cabe notar que muitos jovens passam por fases dificeis como a descrita no caso de Gabriel e acabam por superar as dificuldades. As pessoas que tém predisposicdio para a doenca (esquizofrenia) tém maior vulne- rabilidade ao estresse e as decepcées ante a vida, e quando eles acon- tecem, sao os elementos que disparam o processo que desencadeia os sintomas da esquizofrenia. Mostraremos, no tiltimo capitulo, que hoje j4 existem pesquisas para identificar situagdes como a de Gabriel, que sao chamadas de alto risco, e oferecer suporte para 0 aparecimento da esquizofrenia ou até evita-lo, ou tratar a doenca logo no inicio. O futuro dessas pesquisas aponta para um trabalho de prevengio logo no comeco do processo que desencadeia a doenga. Um caminho que comegaamudar Antes do surgimento dos sintomas da esquizofrenia, ha um perfodo que chamamos de préddromos. Nele, gradativamente, a pessoa vai mudando a maneira de perceber 0 mundo a sua volta e o relaciona- mento com os outros. Pudemos ver que as mudangas na vida de Gabriel acabaram por resultar em isolamento e dificuldade de dividir com as Entrearazdoeailusio = 33 pessoas proximas as vivéncias dificeis que a vida colocou em sua histéria. Vejamos como essa situac4o evolui. Aos poucos, Gabriel comeca a ter percepcées diferentes das coisas e dos acontecimentos que o cercam. Comega a encontrar evidéncias de que as atitudes das pessoas se relacionam com ele. Nés, naturalmente, nao damos importdncia para 0 que as pessoas falam entre si ou suas atitudes; isso sé acontece quando as pessoas se dirigem a nds. No caso de Gabriel, ele passa a ficar desconfiado e comega a acreditar que cada acontecimento a seu redor se relaciona com ele. Junto a essa desconfianca, Gabriel também comeca a perceber 0 ambiente de forma diferente. As pessoas, as cores das coisas e os lugares, assim como os sons que escuta, sao sentidos com intensidade maior. Ele passa a entrar em uma maneira de estar no mundo marcada por grande perplexidade, que ele nao consegue explicar para outras pessoas. Essas novas percepcées o levam a isolar-se ainda mais e tornam sua experiéncia diante da vida ainda mais dificil. 34 = Assis, Villares & Bressan E importante lembrar que essas alteracdes na percep¢aio e no compor- tamento nao sao devidas ao jeito de ser de Gabriel; elas nao estao sob seu controle. As alteragdes estéo acontecendo, e ele se vé envolvido na situacdo. Essas mudancas esto relacionadas ao desequilibrio nas subs- tancias quimicas que sao responsdveis pela transmissao de informacao no cérebro, chamadas de neurotransmissores. Sua familia percebe suas dificuldades, e todos se preocupam com ele, com as mudangas em seu comportamento. Seus pais tentam conversar, saber 0 que est acontecendo, aconselham Gabriel a sair daquele isolamento, procurar sair com os irmaos e amigos. Entretanto, 0 que Gabriel esté vivenciando é um conflito interior; ele mesmo néo tem clareza do que est se passando, e os conselhos de seus pais nao o ajudam muito. Seus pais e seus irmios sao bem intencionados e tentam ajudé-lo, mas Gabriel nao sabe definir as coisas que esta vivenciando; nao é um problema claro para o qual se pode pedir ajuda para resolvé-lo ou um sentimento que pode melhorar ao desabafar com alguém de confianga. Trata-se de um conjunto de coisas que Gabriel esta sentindo e que nao da para explicar para outras pessoas, mesmo que sejam os familiares que oferecem atencio. As pessoas da comunidade também percebem que 0 jovem esta dife- rente, mais desconfiado, nado conversa como tempos atrds. Entretanto, as pessoas costumam nao dar muita importancia aos conhecidos; elas estao mais preocupadas com suas préprias vidas. Esse retraimento nas relagGes sociais é um dos fatores que alimentam o estigma em relacao a doenga, porque a distancia favorece a manutengao de preconceitos, que sao uma visdo negativa e preconcebida das pessoas. Gabriel continua isolando-se e vai distanciando-se até dos familiares. Suas percepgées estéo muito diferentes, e seus pensamentos s4o marcados por uma visio distorcida do que acontece a seu redor. E importante ressaltar que nosso personagem nao tem a nocdo do que esta Ihe acontecendo. Gabriel se vé envolvido em um caminho que comeca a mudar. Ele nao tem recursos internos para lidar com as percepcées e impressées que as situagdes e os relacionamentos lhe apresentam. Ao mesmo tempo, Entrearazdoeailusio = 35 as pessoas que o amam, seus familiares, néo veem muito resultado nas tentativas de ajuda-lo a sair dessa situacao. Essa é uma fase que deso- rienta a todos na familia, e a atitude mais comum é€ acreditar que as coisas vio melhorar, que a pessoa vai superar a fase ruim que estd vivendo. Entretanto, no caso da esquizofrenia, as coisas sao mais complicadas do que a capacidade de a pessoa e os familiares encon- trarem uma saida. O ideal seria buscar ajuda de profissionais da satide, mas, normalmente, até chegar a esse tipo de ajuda, as pessoas resistem. e mantém uma esperanga de que o problema se resolver. 0 outro caminho A esquizofrenia se apresenta na vida da pessoa como outro caminho com o qual precisara aprender a conviver. Para muitos, no comeco, ela é uma experiéncia sedutora, mas que logo se torna assustadora. A vivéncia dos sintomas vai formando uma rede de experiéncias em que cada sintoma contribui para dar sentido a outros. Somente com tempo e tratamento a pessoa aprende a conviver com esse caminho. Apresen- taremos, pela experiéncia de Gabriel, alguns dos principais sintomas da esquizofrenia e, sempre que for oportuno, como eles se relacionam entre si. Gabriel comega a atribuir significado as percepcées diferenciadas que esta vivendo e a sentir que as coisas que acontecem e as atitudes das pessoas realmente se relacionam com ele. Essa é uma experiéncia muito dificil, e a forma de dar sentido para ela é por pensamentos que a justifiquem. Seus pensamentos as vezes se confundem, e ele nao consegue interpretar de forma correta 0 que as pessoas lhe falam. Ao mesmo tempo, as percepgées dos sentidos apresentam uma realidade completamente diferente, marcada por sensacdes também diferentes. Gabriel percebe os sons de maneira mais intensa, até que comeca a ouvir vozes. Os odores e gostos dos alimentos nao sao mais os mesmos. Seu comportamento muda: Gabriel passa a ter atitudes que fazem sentido para ele, mas que para os familiares sao muito estranhas. Nosso personagem esta vivendo um perfodo de crise no processo da esquizofrenia, tecnicamente conhecido como episédio psicético agudo. 36 = Assis, Villares & Bressan Infelizmente, existe grande desinformagaéo acerca dos transtornos mentais e em especial da esquizofrenia. As pessoas normalmente néo associam as mudancas marcantes do comportamento do outro com uma doenga que precisa de tratamento, desconhecem os recursos de sua comunidade onde possam levar a pessoa para uma avaliacao, e, muitas vezes, o medo e o preconceito em relacao aos tratamentos retardam a chegada a uma ajuda profissional. E o que aconteceré no caso de Gabriel. Em um episédio psicético agudo, a pessoa pode sofrer uma série de perdas; por isso, é importante procurar ajuda médica. O fato de ela acre- ditar nas experiéncias que esta vivendo e de ter a capacidade critica obscurecida pelos sintomas causa perdas nos relacionamentos e perdas dificeis de recuperar na vida interior. Relacionamentos importantes e que servem de referéncia para a pessoa, muitas vezes, quebram-se de maneira que as situacées criadas dificilmente sao superadas. As vivén- cias internas na crise sao tao reais, assustadoras e profundas que podem. levar muito tempo para serem compreendidas e causar desajuste social e perda de autoestima, ambos dificeis de serem superados. Entrearazdoeailusio = 37 As mudangas que Gabriel vive causam estranheza nos familiares, e isso leva a conflitos nos relacionamentos. Para os familiares, é como se ele estivesse fora da realidade; suas atitudes nao fazem sentido diante de situagées cotidianas. Esse periodo é marcado por um estremecimento nas relagGes, pois as pessoas reagem ao comportamento de Gabriel de acordo com as atitudes estranhas. Somente quando a familia nao consegue mais lidar com ele é que procura ajuda de um médico, e este recomenda acompanhamento psiquidtrico. Esse sera 0 comeco de uma longa jornada até chegar a recuperacao. O outro caminho que a esquizofrenia impde a pessoa tem seu inicio marcado por grandes dificuldades, tanto em seu mundo interior quanto no relacionamento com as pessoas. Como pudemos ver, esse caminho tem suas raizes em mudangas que envolvem a vida da pessoa como um todo. ‘As pessoas da comunidade que apenas olham para as acées do portador de esquizofrenia quando em crise rotulam-no de louco. Ao mesmo tempo que essa pessoa causa estranheza, também gera medo. Assim, a comunidade se afasta dela, 0 que contribui para seu isolamento. A seguir, entenderemos melhor 0 que se passa com Gabriel e também. os principais sintomas da esquizofrenia. Percebendo o mundo de outra maneira Existe uma relacao de influéncia mutua entre o que a pessoa percebe, pensa e sente. Entretanto, para facilitar o entendimento, abordaremos separadamente cada uma das faces da vivéncia interior. Aqui, trata- remos das percepgées dos sentidos e da forma que elas podem se apre- sentar na esquizofrenia pelas experiéncias de nosso personagem. Gradativamente, a maneira como Gabriel percebe o mundo a sua volta vai mudando sem que ele se dé conta. Ele comeca a perceber os sons com mais intensidade, de maneira que os sons aos quais antes ele 38 = Assis, Villares & Bressan naturalmente nado dava atencdo passam a ser notados e a chamar sua atenc4o. Passa a perceber barulhos estranhos, como batidas na parede de seu quarto, o que o leva a pensar que sao os vizinhos que querem incomoda-lo. Esse processo vai intensificando-se e promovendo mudangas em sua forma de pensar. Entao, ele comega a ouvir vozes. As vozes conversam. entre si sobre o comportamento de Gabriel; algumas o elogiam e dizem o quanto ele é especial, outras o criticam e apontam seus defeitos mais intimos. As vozes séio muito reais para ele; apesar de nao ver quem estd falando, ele se vé envolvido por essa vivéncia, que vai tornando- -se cada vez mais assustadora. Os médicos descrevem esse tipo de experiéncia como alucinacées auditivas. O que os médicos nem sempre percebem é que essas vozes ndo séo somente uma experiéncia audi- tiva, mas se dao em um contexto complexo que mistura emogGes e pensamentos com percepcoes sensoriais. Ao mesmo tempo que as alucinacées auditivas vio tomando forma, Gabriel comega a perceber as coisas que vé com vivacidade maior. As cores, a percep¢ao de contorno das coisas e os movimentos das pessoas dao a impressdo de que o mundo mudou, de que este se apresenta de outra forma, muito mais intensa. Essa percepcio também o leva a mudar sua maneira de pensar. Os elementos visuais aos quais as pessoas normalmente nao dao impor- tancia, para Gabriel, ganham um sentido especial. Certas sombras em sua casa lhe aparecem como a presenga de pessoas. Ao olhar para 0 céu azul, ele vé pequenas formas transparentes que configuram imagens de rostos e lugares. Em seu quarto, quando olha para a lampada, vé pequenos bichinhos que ele interpreta como “formas inte- ligentes de vida”. Os médicos descrevem esse tipo de experiéncia como alucinagées visuais. Gabriel também passa a sentir de forma diferente o cheiro e 0 gosto dos alimentos, 0 que, como veremos, ganharé um significado muito dificil para ele. Os médicos descrevem esse tipo de experiéncia como alucinacées olfativas e gustativas. Entre arazéoeailusio = 39 Vocé esta sendo filmado por todos 0s lados, se pisar na bola vamos maté-lo. Vocé é uma pessoa especial que tem ‘superpoderes... Vocé no serve Vocé foi enviado por Deus para salvar ara nada ‘ humanidede. Essas percepcoes sao vividas por Gabriel de forma solitaria, pois nao consegue compartilhar com os familiares o que esta acontecendo com ele. Os familiares percebem seu comportamento diferente e sentem que ele nao esté bem, mas no sabem como se aproximar dele e transpor a barreira que ele préprio levantou. A percepgao do mundo de forma diferente, por intermédio de alucina- Ses, muda na vida de Gabriel aquilo que para as pessoas garante suas certezas ante a realidade. O mundo em que ele esta vivendo nao é 0 mesmo compartilhado pelos outros; ele est envolvido em sensacdes e percepcSes que colocam em diivida a realidade que sempre viveu. Essa é uma experiéncia muito intensa. Qualquer pessoa que passasse pelo que Gabriel esta passando se desorganizaria e se sentiria perdida. Seria mais facil compreender muito do comportamento diferente de Gabriel se fosse possivel se colocar no lugar dele, passando pelas 40 = Assis, Villares & Bressan experiéncias que ele esta vivendo. Infelizmente, as pessoas que estéo convivendo com ele nesse periodo ficam absorvidas por seu comporta- mento diferente e nao sabem como agir, como ajudar. No convivio com uma pessoa em um episédio psicético agudo, na maior parte do tempo, © mais importante é decidir qual a melhor atitude a se tomar, saber 0 que fazer para melhorar a situagao e lidar com os conflitos, compreen- dendo o que é a crise. Adiante, abordaremos alguns tdpicos sobre como lidar com uma pessoa em um momento de crise. W.B. ‘Antes dos meus 16 anos, levava uma vida normal; de repente, comecei a ter uma sen- sagdo estranha e tive a impressao de a televiso estar conversando comigo, dizendo que eu era uma pessoa especial (Super-Homem) e que eu estava sendo vigiado por todos os fados; tive a impressao de estar sendo filmado. No comego, achei muito estranho e disse a meus pais o que estava acontecendo. Eles, assim como eu, nao entenderam nada. Quando disseram a meu tio, itmao de meu pai, um psiquiatra, descobri que tinha esquizofrenia. Mas 0s delirios e as alucinagdes eram intensos, recebia mensagens da televisdo e do radio dizendo que eu era 0 salvador da humanidade e que estava salvando o mundo. Tive a impresséo de que as pessoas a meu redor, ineluindo minha familia, queriam me matar e que havia uma conspiragao. Ao mesmo tempo que escutava vozes engrandecendo-me, escutava outras dizendo que eu nao era nada e criticando minhas atitudes. Certa vez, em meu quarto, tive uma alucinacao bizarra; vi minha alma sair de meu corpo e brigar com este, tive a sensacdo de minha alma vencer. Depois daquilo, fiquei tefletindo e lembrei-me do filme Super-homem III, em que aconteceu a mesma coisa, Tinha a sensago de que 2s pessoas sabiam 0 que eu pensava e que tinha um micro- chip em meu cérebro. Outro dia, estava assistindo a televisdo quando vi uma espiral e, depois, senti que fui abduzido por extraterrestres. Um dos delirios que tinha era achar que minha alma tinha 0 poder de controlar o tempo com meus ideais. Eu achava que eu era o compositor das musicas dos Backstreet Boys e tinha a sensagao de ser o centro do mundo, Achava também que as miisicas do Renato Russo eram feitas para mim e que, ria outra encarnagao dele e nesta minha, nés nos encontrariamos e nos amariamos, s6 que ele encarnado em corpo de mulher. O que mais alimentou meus delirios foi uma das miésicas dele ~ Perdidos no espaco -, dizendo que minha alma, como a dele, veio de ‘outro planeta, assim como 0 Super-Homem. Tive varios delirios e alucinagées estranhas que dificultavam levar minha vida de uma maneira normal. Hoje, com os medicamentos, ainda escuto vozes, mas a intensidade & pequena. Frequento 0 grupo de acolhimento ‘judo meus pais em casa com pequenas coisas, vou a minha chécara e sou colecionador de DVDs, consigo levar uma vida feliz. Entrearazdoeailusio = 41 Outro entendimentodas coisas === Ao mesmo tempo que Gabriel comega a perceber 0 mundo de outra maneira por intermédio das alucinagées, ele também vai construindo explicagGes para essas vivéncias. Ele passa a ter pensamentos e certezas muito incomuns. No comego, as percepgées diferentes dos sentidos sao entendidas por Gabriel como uma habilidade especial, como capacidades paranor- mais, e tal entendimento é inicialmente sedutor. Entretanto, essas vivéncias passam de sedutoras a assustadoras, marcadas por ideias de persegui¢ao. A sensaciio de Gabriel de que o que as pessoas falavam e faziam tinha relacéo com ele tornou-se uma certeza, de forma que, agora, tudo 0 que acontece a seu redor é entendido como parte de sua experiéncia. Assim, as conversas das pessoas na rua, sua mae limpando a casa, programas de televisdo, mtisicas do radio, tudo forma parte de um enredo no qual Gabriel se sente o centro dos eventos. Os médicos descrevem esse tipo de experiéncia como delirio de referéncia. As vozes que falam coisas agradaveis dizem para Gabriel que ele tem. poderes especiais e a misséio de mudar o mundo. Tudo o que ele sente e acerteza de que tudo a seu redor acontece em funcdo dele confirmam 0 que as vozes dizem. Estes sao delirios de grandeza. Entretanto, as vozes que dizem coisas desagraddveis para Gabriel afirmam que, mesmo com esses poderes, ele nao esta fazendo nada e que por sua culpa as coisas ruins acontecem no mundo, como crimes e guerras. Este é o delirio de culpa. Gabriel passa a acreditar que esta sendo filmado, que existe um complé entre o crime organizado e a policia para persegui-lo, pois, se ele usasse seus poderes e resolvesse os problemas da humanidade, eles perderiam e seriam atingidos. Apesar de Gabriel nao ver nenhuma cAmera ou evidéncia fisica de que esta sendo filmado, ele sente que isso esté acontecendo; é uma certeza inquestionavel. Nesse contexto, nao ha para quem pedir ajuda, pois até a policia é suspeita. Quando ele comega a sentir cheiros e gostos diferentes nos alimentos, passa a 42 = _ Assis, Villares & Bressan acreditar que sua familia quer envenend-lo para nao ser atingida pela perseguicao. Gabriel se sente acuado e ameacado por todos os lados. Estes sao os delfrios persecutérios. Nessas condicdes, em que as alteragées da percepc4o (alucinacdes) confirmam os pensamentos diferentes que o portador de esquizofrenia esta tendo (delirios), nao adianta argumentar que essas coisas nao estao acontecendo. Uma caracteristica dos delirios é que eles sao certezas em que a pessoa acredita profundamente, e nao ha como convencé-la a mudar sua maneira de ver as coisas. Gabriel esté passando por um grande sofrimento, atormentado por vozes e com a certeza de que esta sendo vigiado e perseguido. Sua reacao é€ se isolar em seu quarto como uma maneira de se proteger e fugir dessas sensa- cdes e desses pensamentos extremamente ameagadores, dos quais ele nao consegue se afastar. Esse outro entendimento das coisas que Gabriel esta vivendo é uma experiéncia muito marcante. Muitos portadores, mesmo depois de anos de tratamento, nao conseguem aceitar que essas experiéncias vividas durante 0 episédio psicético agudo foram uma criacdo de seu cérebro. A mudanca que esse tipo de vivéncia provoca causa desorien- taco diante da maneira de estar no mundo, de forma que a tnica Entrearazdoeailusao = 43 maneira de a pessoa se situar é acreditando que essas coisas realmente aconteceram, e, assim, seguem construindo explica¢ées para elas. Essa é uma das grandes dificuldades a serem vencidas durante os trata- mentos; é preciso compreender que, para quem vive esse tipo de expe- riéncia, é dificil reconstruir uma compreensdo que faca sentido na realidade compartilhada com a maioria das pessoas. Nessas condiges, a familia de Gabriel nao sabe mais o que fazer e nao consegue conversar com ele. Ele esta completamente estranho, falando coisas que para eles nao fazem sentido, passa a maior parte do tempo trancado no quarto e nao fala mais com os amigos, nem mesmo quando eles telefonam. Seus pais e irmaos sofrem por nao conseguir ajuda-lo, mas no fundo mantém a esperanca de que essa crise passara. Arealidade pode ser bemconfusa As vivéncias de Gabriel resultam em uma relacao muito diferente com o mundo, em que sua realidade interior se desorganiza e nao corres- ponde & realidade externa, compartilhada pelas pessoas. As experién- cias das alucinagées e dos delirios causam grande confusao em seus pensamentos e percepcées. Esse processo pode ser percebido na forma como Gabriel se comunica, como entende 0 que as pessoas falam e como conversa com elas. Os médicos descrevem esse tipo de expe- riéncia como desorganizacao ou desagregacao de pensamento. As vivéncias dos delirios e das alucinag6es normalmente so solitarias, dificeis de compartilhar e assustadoras. As pessoas s6 conseguem perceber que 0 individuo com esquizofrenia nao esta bem pela forma como ele se comunica e reage ao que Ihe é dito. Isso ocorre devido as diferencas em relacdo ao que as pessoas compartilham, principalmente no contetido do que o sujeito diz e como ele entende 0 que os outros estdo tentando comunicar. A sensacdo mais comum é de impossibili- dade de conversar, tamanha a quantidade de mal-entendidos. uma vivéncia frustrante e exasperante para todos. Gabriel esta envolto em uma realidade muito diferente; portanto, sua maneira de entender 0 que as pessoas dizem esta afetada, ha uma 44 «= Assis, Villares & Bressan distorcdo na interpretagdo das informacées. Assim, quando seus pais procuram conversar com ele, nao entendem o motivo de seu siléncio, e, quando ele responde, o que diz nao faz sentido com o que esta sendo conversado. Gabriel esta envolvido em percepgées e pensa- mentos que o colocam no centro das coisas; assim, ele nao consegue perceber que as outras pessoas tém suas prdprias ideias e percepcées, que nao se referem a ele. Essa autorreferéncia gera sua forma incon- gruente de se comunicar. Seus irm4os nao conseguem entender por que Gabriel esta tao dife- rente, e quando conversam com 0 irmao, ele fala de coisas incompreen- siveis. Isso se da por ele saltar de um assunto para outro sem uma linha clara de raciocinio e também por falar de assuntos completa- mente desconhecidos ou muito estranhos. Seu irm4o, Renato, nao consegue entender o que esta acontecendo com Gabriel e logo se irrita, discute ou se afasta, transtornado. JA sua irma mais nova, Julia, percebe que seu irmao precisa de ajuda e procura concordar com as coisas que ele diz, mesmo nao fazendo sentido para ela, mas espera que ele melhore e perceba como est confuso. Entrearazdoeailusao = 45 Quando Gabriel sai na rua e conversa com os conhecidos, eles logo percebem que ele nao estd bem e que estd falando coisas absurdas. Rapidamente, as pessoas passam a comentar que ele estd ficando louco, que é uma pena um rapaz tao jovem perder a razdo dessa maneira. Essa é a imagem e a ideia que as pessoas tém da pessoa com esquizofrenia: alguém com um comportamento muito estranho, que fala coisas incompreensiveis e que nado compreende as coisas mais simples que lhe sao ditas. Os amigos acabam afastando-se, pois suas atitudes sao estranhas, e todos ficam constrangidos, alguns com pena, outros com medo. Acham melhor evitar estar perto de Gabriel; sua companhia nao agrada aos jovens de sua idade. Entretanto, Gabriel esta vivendo percepcdes, pensamentos e senti- mentos que sé fazem sentido para ele, e, da mesma forma que as pessoas nao o entendem, ele também nao entende o que elas falam e fazem. Suas vivéncias sao muito intensas e causam desconforto, medo e desorientacao, e as pessoas nao percebem o quanto isso é dificil para ele. As atitudes dos outros reforcam a sensacao de que tudo se refere a ele, confirmam o que as vozes Ihe falam e os pensa- mentos de perseguicao que ele tem. Gabriel vive um momento muito dificil, em que a desorganizacao do pensamento o afasta ainda mais das pessoas e reforca os sintomas da doenga. Ele cada vez mais se sente encurralado. Os pais e 0 irmao reclamam com Gabriel, dizendo para ele parar de dizer coisas sem sentido e levar a sério 0 que eles estao falando. A unica que consegue perceber que Gabriel nao tem condicoes de agir de forma diferente é a irma mais nova, Jtilia, pois ele conta para ela seus pensamentos e como esta percebendo o mundo. ‘A desorganizacéo do pensamento gera muitas incompreensdes e conflitos nos relacionamentos, pois 0 comportamento do individuo com esquizofrenia nao corresponde ao que as pessoas esto habituadas para uma dada situacao. Os familiares nao conseguem entender que 0 sujeito esta vivendo uma experiéncia muito intensa e sofrida, esperam que ele aja de maneira que corresponda aos habitos cotidianos; entre- tanto, ele nado consegue, o que gera grande angtistia. 46 = Assis, Villares & Bressan Coresdeshotadas = Ao mesmo tempo que Gabriel percebe 0 mundo a sua volta de forma diferente e seus pensamentos mudam, a maneira como ele expressa suas emogées também se modifica. Ele tem dificuldade em expressar 0 que sente e também em perceber como as pessoas expressam seus sentimentos. Os médicos descrevem esse tipo de experiéncia como embotamento afetivo. Quando as pessoas conversam com Gabriel, percebem que, além de estar com uma maneira desorganizada de expressar suas ideias e seus pensamentos, ele também parece insensivel ao mundo a seu redor. Isso causa muitas dificuldades nos relacionamentos do nosso perso- nagem, principalmente com os irmios e os pais. Eles sentem que Gabriel nao reage, tanto as situagées alegres quanto as tristes; é como. se ele nao tivesse sentimentos. Uma parte importante das trocas nos relacionamentos se da em funcao das emogées e dos sentimentos que as pessoas conseguem compartilhar. Gabriel nao consegue se comu- nicar direito, e o fato de ele nao conseguir demonstrar emocées torna o convivio com as pessoas ainda mais dificil e distante. Sua realidade interior é marcada por grande sofrimento, experiéncias emocionais muito intensas e impossiveis de serem expressas em pala- vras. Ele se sente perseguido e vigiado o tempo todo; tudo o que acon- tece a seu redor, para ele, esta relacionado com o que pensa e percebe. As vozes constantemente comentam seu comportamento e suas atitudes. Gabriel vive uma realidade que é ameacadora e se vé mergu- lhado em situagdes que o desorientam constantemente. O relaciona- mento com as pessoas também faz parte dessa experiéncia desconcer- tante que tomou conta de sua vida, e ele nao consegue corresponder As emocdes e aos sentimentos das pessoas a seu redor. E a partir de suas vivéncias interiores que Gabriel reage emocional- mente. Apesar de parecer, para os outros, que ele nao esta sentindo nada, na realidade, sua percepcao esté muito agucada, e ele pode perceber os detalhes das atitudes dos demais. Percebe quando as pessoas sao irénicas, o evitam ou esperam dele atitudes as quais ele nao consegue corresponder. O embotamento afetivo faz parte das Entre arazdoeailusao = 47 vivéncias muito sofridas para as pessoas que tém esquizofrenia, e nao conseguir expressar esse sofrimento leva a um isolamento ainda maior. Onde as pessoas pensam que nao esta acontecendo nada, hd toda uma vida que nao consegue se expressar. A familia de Gabriel percebe que ele vem definhando nos tltimos meses; ele se isola no quarto a maior parte do tempo, nao consegue mais conversar, muitas vezes fica falando sozinho, nao tem disposicao para as tarefas mais simples e descuida-se de sua aparéncia e da higiene pessoal. f como se suas cores estivessem desbotadas. £ dificil para quem convive com a pessoa que tem esquizofrenia entender o que se passa no mundo interior de seu familiar, e também é dificil se dar conta de que essas mudangas sao resultado de uma doen¢a. Dai a dificuldade em procurar um médico. Seus pais nado sabem o que fazer para ajudar o filho a sair desse estado de indife- renga em relagao a tudo, até mesmo consigo. Para Gabriel, a unica forma de se proteger da realidade que 0 ameaga e das dificuldades com as pessoas ¢ isolando-se, passando a maior parte do tempo sozinho em seu quarto. 48 «= Assis, Villares & Bressan As pessoas da comunidade percebem que o individuo com esquizo- frenia muda e passa a se comportar de maneira estranha. A maneira de entender o que estd acontecendo é rotular a pessoa de louca, e nao consideram o sofrimento que ela esta vivenciando. O desconhecimento em relacdo 4 doenga afasta as pessoas; elas nao se dao conta de que com esse tipo de atitude contribuem para que a doenca se agrave. Seria importante entender a importancia de lidar com transtornos mentais com respeito; isso ajudaria muito e facilitaria também a procura e a aceitacdo de tratamentos apropriados. A famflia e a comunidade sao muito importantes para ajudar o indi- viduo com esquizofrenia a superar as dificuldades impostas pela doenc¢a. Quando as pessoas sao informadas sobre 0 que é a esquizo- frenia, como ela se manifesta e quais seus sintomas, fica mais facil compreender e conviver com o doente e saber como ajuda-lo a superar as dificuldades geradas pelo isolamento, devido ao conjunto angus- tiante de circunstancias que esta vivendo. O desconhecimento é um dos fatores que geram o estigma da comunidade por um lado e atrasam a procura de ajuda pelos familiares por outro. Energiaperdida === Um sintoma da esquizofrenia que causa incompreensées é a falta de vontade. Diante da situagao em que se encontra, Gabriel nao consegue realizar as tarefas mais simples, como arrumar a propria cama ou ajudar sua mae com as tarefas cotidianas da casa. Essa postura é enten- dida pelos pais e irmaos como preguica. Gabriel sente-se sem energia, ndo tem motivacao para realizar as coisas que naturalmente fazia antes. E preciso entender qual é o contexto que ele esta vivendo e que sua falta de vontade nao é simples- mente preguica, como as pessoas interpretam. A “falta de vontade” é um sintoma que os médicos chamam de abulia. Ele esta vivendo uma situagao na qual seu mundo interior é marcado por vivéncias em que a realidade se apresenta ameacadora: suas percepcées, seus pensamentos e sentimentos mostram-lhe situagdes Entre arazdoeailusao = 49 em que ele se acha perseguido, culpado e invadido pelas vozes que escuta. Junta-se a isso a dificuldade de se comunicar, entender e ser entendido pelos outros. Gabriel se isolou e se afastou do relaciona- mento com as pessoas, sente-se incompreendido. A vontade é resultado dos estimulos que encontramos no relaciona- mento com as pessoas e€ nos resultados que conseguimos nas tarefas que realizamos. Gabriel, na situacao em que se encontra, nao consegue realizar coisas que para outros parecem simples porque perdeu as condicgdes fundamentais para ter motivacao. Ele passa a maior parte do tempo em seu quarto sem fazer nada, raramente sai de casa. Essa é a maneira que ele encontra de se defender de uma realidade que 0 oprime, na qual ele nao consegue se encaixar. Infelizmente, a falta de vontade reforca outros sintomas que levam a mais falta de vontade. Trata-se de um circulo vicioso, no qual ele se sente aprisionado. Sua familia nao compreende o que se passa no mundo interior de Gabriel, seus pais acham que o cobrando para fazer as coisas que os outros irmaos fazem o ajudard a sair daquela inércia em que se encontra. Entretanto, essas exigéncias dos pais aumentam a angustia dele, pois ele nao consegue corresponder ao que eles esperam. Essa situacao 50 = Assis, Villares & Bressan gera nele um sentimento de inferioridade em relacdo aos irmaos e de que os pais nado gostam dele da mesma forma que gostam de seus irmaos. Na comunidade, seus amigos esto iniciando a vida profissional, traba- Ihando, estudando, namorando. Os pais de Gabriel nao entendem o que acontece com seu filho, ficam questionando-se “onde erraram” em sua criagao. Eles nao sabem como ajudar o filho. A falta de vontade é vista como um problema de preguica e gera angustia para ele e para os pais. Entretanto, ela é um sintoma da esqui- zofrenia. Nao é culpa de Gabriel, assim como nao houve erros dos pais em sua criacao. J.A.0. Sou portador de esquizoafetividade, que é um transtorno mental que mescla sintomas de esquizofrenia e bipolaridade, alternando momentos de manias e vales de depresséo. No caso de minha depressao (sintomas negatives), ocorrem com muita frequéncia o deséni- mo de maneira geral e a falta de vontade de realizar atividades rotineiras. Muitas vezes, asso boa parte de meu dia na cama ou impossibilitado até mesmo de sair de casa para exercer atividades profissionais. ‘A manifestacao de minha primeira crise de bipolaridade e seus respectivos sintomas rnegativos comegou a ocorrer no segundo semestre de 1994, apés um retiro espiritual no Rio de Janeiro. Comecou com uma crise de choro e uma forte desorientacao cognitiva De volta ao trabalho, em Sao Paulo, comecei a enfrentar sérias dificuldades de exercer atividades profissionais rotineiras e de me organizar no dia a dia. Mesmo com medica- cdo, os sintomas persistiram até meados de 1995, quando finalmente arrefeceram ao me decidir fazer uma viagem de estudo aos Estados Unidos. Depois dessa primeira crise, parei de tomar medicacao e tive uma vida normal até meados de 1998, quando surtei pela segunda vez. Retomei a medicagao e voltei a apresentar fortes depressdes e desmo- tivagdes existenciais. Parei novamente a medicacdo e tive nova crise no fim de 1999 e inicio de 2000. $6 aderi ao tratamento nessa época, mas mesmo assim tive uma dltima crise em maio de 2001 Hoje, tenho tomado trés tipos de medicamentos, um neuroléptico (antipsictico), um regulador do humor e um antidepressivo. Ainda convivo com altos e baixos de humor, mas 0s grupos que eu frequento na Associacao Brasileira de Familiares, Amigos e Porta- continua Entre arazdoeailusao = 51 .. continuag&o dores de Esquizofrenia (ABRE) t8m-me ajudado bastante a superar a doenca, sendo eu, inclusive, um dos facilitadores do grupo de acolhimento. Este ¢ realizado semanalmente nas dependéncias do Programa de Esquizofrenia (Proesq) da Escola Paulista de Med nna da Universidade Federal de Sao Paulo (Unifesp/EPM). Atualmente, os sintomas ne- gativos de minha esquizoafetividade ainda persistem, mas tenho conseguido controlé-los satisfatoriamente com os medicamentos e as terapias individuais e familiares. Para o futuro, tenho tragado planos para que eu me motive e possa readquirir a alegria de viver, sendo que voltar a estudar é uma de minhas metas, fazendo matérias esporadicas na universidade. As leituras que so feitas por minha curiosidade intelectual ‘também tém ajudado a combater os sintomas negativos de meu transtorno, e acredito que estou paulatinamente superando as dificuldades e readquirindo uma qualidade de vida compativel com minhas expectativas existenciais. Acognigdéoe aesquizofrenia == Alguns portadores de esquizofrenia se queixam de alteracGes na atengao e na meméria. Serd que essas alteracdes cognitivas sao parte da esqui- zofrenia? O texto a seguir discute aspectos cognitivos envolvidos na doenca. Neuropsicéloga ‘A neuropsicologia pode ser definida como o estudo da relacdo entre 0 cérebro e 0 com- portamento. E uma ciéncia recente, que s6 por volta dos anos de 1980 ampliou seu campo de atuacgo para incluir as doengas psiquiatricas. Apesar de os distdrbios cog- nitivos tere sido descritos desde o inicio da histéria da esquizofrenia, s6 agora os estudiosos dessa doenca nao tém mais duvidas de que os problemas cognitivos s40 centrais no transtorno esquizofrénico, a ponto de serem caracterizados como sintomas dessa patologia, © comprometimento cognitivo na esquizofrenia inclui problemas de atencao e con- centracao, meméria e aprendizagem, linguagem e fungées executivas (ou seja, ter vonta- de de fazer uma coisa, planejar como conseguir realizé-la, capacidade de resolver 0s pro- blemas que vao surgindo, etc), além de maior lentidao para realizar tarefas. O declinio continua 52 = Assis, Villares & Bressan w+ continuagao nas habilidades cognitivas est presente na maioria dos portadores de esquizofrenia, mas ‘também existem aqueles com funcionamento cognitivo normal. Esse declinio parece co- megar um pouco antes do inicio da doenca e nao piorar muito com o decorrer do tempo. ‘A importancia do diagnéstico dos déficits cognitivos esté relacionada ao fato de eles erferirem em varias éreas da vida do portador, tais como: em suas atividades da vida diaria, no funcionamento social e ocupacional, nia capacitagao para o trabalho, nos rela- cionamentos interpessoais e até mesmo na adesio ao tratamento. Com base nesses recentes conhecimentos, & cada vez mais frequente a avaliagao neuropsicolégica do individuo portador de esquizofrenia. Essa avaliagao é realizada pela aplicagao de testes neuropsicolégicos, que avaliam o funcionamento cognitivo, ou seja, a atengao, a memoria, a aprendizagem, as fungdes executivas, a linguagem, etc. Os objetivos dessa avaliagao séo verificar quais as habilidades e as dificuldades que essa pessoa apresenta e ajudar no planejamento de um projeto terapéutico especifico para esse paciente. 0 projeto terapéutico se fundamenta na utilizagao das habilidades de que © portador dispbe e na descoberta de formas alternativas para compensar as dificuldades. encontradas. Outra forma de atuagao da neuropsicologia € a reabilitagao cognitiva, que é um tratamento com 0 objetivo de recuperar ou diminuir os déficits cognitivos e, consequen- temente, reduzir a longa duracgo das consequéncias sociais e pessoais da doenca. A neuropsicologia € um dos mais recentes instrumentos no diagnéstico e no tra- tamento das pessoas com esquizofrenia que com certeza traré grandes beneficios na recuperagao dessas pessoas. Caminhos e possibilidades Apresentamos, por intermédio da experiéncia de Gabriel, algumas das questées envolvidas na vivéncia da esquizofrenia. Perante uma situacado, sabemos que sempre hd o que fazer, existem sempre caminhos e possi- bilidades. E importante procurar ajuda e nao ter vergonha de ter esqui- zofrenia ou ser familiar de um portador. Ela é uma experiéncia humana. Renato estava na casa de um amigo e comentou as dificuldades que seu irmao estava vivendo e como isso estava afetando toda a familia. A mie do amigo, que trabalha em um hospital como enfermeira, ouviu todo o relato. Ela explicou que no hospital nao se tratam somente doencas do corpo, que ha uma especialidade chamada psiquiatria que trata de problemas como o que Gabriel estava vivendo e recomendou que o levassem para uma consulta. Entrearazdoeailusio = 53 A partir dessa conversa, Renato contou para os pais o que havia ouvido. Os pais de Gabriel, no inicio, tiveram resisténcia em aceitar a proposta de levar o filho a um psiquiatra, pois a ideia que eles tinham da psiquiatria era muito negativa, em fungao das historias que ja ouviram sobre os hospitais psiquiatricos. Eles tiveram parentes que ficaram muito tempo internados em hospitais psiquidtricos e nunca se recuperaram e tinham medo de que isso também acontecesse com seu filho. Até algumas décadas atras, 0 unico tratamento para casos como o de Gabriel eram internagdes longas e métodos de tratamento pouco eficazes, Felizmente, esse panorama melhorou muito. Hoje, os medica- mentos so muito mais eficazes e causam menos efeitos colaterais, os métodos de tratamento melhoraram muito e recomenda-se que a pessoa seja tratada na comunidade, isto é, ela vai ao hospital para consultas e tratamentos, mas continua vivendo com a familia, como ocorre com qualquer outra doenga. Entretanto, vendo o sofrimento do filho, reconhecendo que ja tinham tentado tudo o que podiam e que o problema sé se agravava, deci- Vamos falar sobre. 54 = _ Assis, Villares & Bressan am leva-lo a um psiquiatra. Hoje, sabe-se que a esquizofrenia é uma doenca que tem varias causas. Sabemos que as pessoas que desen- volvem o transtorno tém menor resisténcia a situag6es estressantes, mas conhecemos também os efeitos de mudangas biolégicas impor- tantes, amplamente comprovadas. Assim, 0 tratamento com o psiquiatra e o uso de medicamentos sao fundamentais para a pessoa com esquizofrenia sair da crise aguda e conseguir estabilidade com a doenca. Normalmente, o psiquiatra deveria ser o primeiro profissional a quem recorrer em casos como o de Gabriel. A consulta com o psiquiatra foi longa. Inicialmente, ele ouviu Gabriel sozinho e depois com seus pais. O psiquiatra explicou-Ihes que o problema era grave, mas afirmou existir um tratamento bastante eficaz. Procurou explicar que o jovem tinha sintomas de uma psicose, um transtorno que afeta o cérebro e dificulta as vivéncias da pessoa, e que seriam necessarios tanto o tratamento com medicamentos quanto um acompanhamento com outros profissionais, como terapeuta ocupa- cional e psicdlogo. O médico psiquiatra tem larga experiéncia para identificar em linhas gerais a doenca que Gabriel apresenta. Durante a consulta, nao ocorreu uma simples conversa; 0 médico estava realizando o que tecnicamente se chama “exame do estado mental” e identificou varios elementos claros e amplamente estudados na psiquiatria para determinar o inicio do tratamento. Durante a conversa com os pais, ele procurou reconsti- tuir © que vem acontecendo com o jovem desde que os problemas comecaram. Este é um procedimento médico em psiquiatria. Entretanto, Gabriel e seus pais sairam da consulta com uma série de dtividas a respeito da doenca. Com base em qué o médico estava fazendo 0 diagnéstico de psicose? O que significa psicose? Psicose é a mesma coisa que loucura? A doenca ocorreu porque os pais de Gabriel fizeram alguma coisa errada em sua educacaio? Qual é a evolucio dessa doenca? Tem cura? Sera que esse problema é espiritual? Precisa mesmo tomar medicamento? Esses medicamentos sao fortes? Podem fazer mal? Tanto Gabriel quanto sua familia precisarao vencer essas dtividas e resisténcias até aceitarem que esses sao os melhores trata- mentos para que ele se recupere. Entrearazdoeailusio = 59 No proximo capitulo, abordaremos essas quest6es com mais profundi- dade e discutiremos as dificuldades envolvidas tanto no diagndstico quanto no injcio do tratamento da doenga. Primeiropasso Ahistéria de Gabriel até aqui mostra como a esquizofrenia pode se apre- sentar como uma doenca grave e que desorienta a pessoa e a familia. Mas isso é apenas 0 inicio de uma mudanga de caminho na vida do indi- viduo. Ao longo deste livro, procuraremos mostrar que é possivel ter esperanca e que as situagdes cotidianas vivenciadas pela pessoa com esquizofrenia e por seus familiares podem melhorar ao longo do tempo. A esquizofrenia nao é uma doenga que se resolve naturalmente apenas tomando os medicamentos, como acontece, por exemplo, com uma infeccao. Na esquizofrenia, a recuperacado se dd em um caminho de construcao interior tanto da pessoa quanto dos familiares. Essa cons- trugdo é um aprendizado que se adquire no convivio e nos relaciona- mentos. Isso se da na familia, com os profissionais da satide e na comu- nidade. primeiro passo, seja em uma primeira crise, como a de Gabriel, seja durante o tratamento, caso as coisas fiquem dificeis, é procurar um psiquiatra, para juntos investigarem o que esta acontecendo e tragarem. uma linha de tratamento, sempre com base no didlogo, a fim de os fami- liares e o paciente entenderem 0 que 0 médico esta propondo e também relatarem 0 que esta funcionando e o que nao esta no tratamento. ‘A medicacao é fundamental para que a pessoa consiga se recuperar. Para isso, o médico psiquiatra conhece profundamente como funciona © cérebro e como agem os medicamentos e sempre procura o que é melhor para cada caso. Também sao fundamentais as abordagens psicossociais, como a terapia ocupacional e a psicoterapia. Esses tratamentos ajudam a pessoa e seus familiares a redesenharem seus caminhos no sentido de adqui- rirem uma vida com qualidade. 56 = Assis, Villares & Bressan E muito comum as pessoas ficarem um longo tempo sem tratamento, procurando alternativas, ou resolverem sozinhas os problemas. Infeliz- mente, no caso da esquizofrenia, quanto mais tempo demorar o inicio do tratamento, mais longa e dificil sera a recuperacao. Gabriel e seus pais precisarao caminhar mais um tanto do caminho até chegar a um entendimento claro das questdes que ficaram depois da consulta com o psiquiatra, mas o jovem encontrard um caminho de recuperacao da esquizofrenia com o passar do tempo e com os novos relacionamentos que ele estabelecera. E essa jornada que sera apresentada nos prdximos capitulos deste livro. 0 caminho até o diagndéstico Nosso entendimento do mundo e das coisas da vida se da por meio do que jd experimentamos e aprendemos. A doenca de Gabriel, em menos de seis meses, mudou sua historia e a de sua familia, entrando na vida deles como algo novo e permeado de dificuldades. O desconhecido — no caso, um transtorno mental -, traz consigo muita angtistia, muita deso- rientagdo e muito medo. 58 = Assis, Villares & Bressan A primeira consulta com o psiquiatra trouxe uma série de dtividas. Gabriel nao acha que esta doente e sente que o médico nao entende o que ele esta vivendo. Seus pais tém dificuldade em aceitar que um de seus filhos precise de tratamento psiquidtrico; por mais dificil que esteja 0 convivio com o filho, no fundo eles mantém a esperanga de que ele supere essa fase ruim. Existem, em nossa sociedade, muitos valores individualistas que sao assumidos pelas pessoas e criam a falsa nogdo de que podemos resolver tudo sozinhos. Desfazer-se desses valores, aceitar a ajuda oferecida por um psiquiatra e entender que se esta diante de um transtorno mental é muito dificil, e as pessoas tém muita resisténcia. A dificuldade em aceitar as explicagdes do médico e a busca de alter- nativas para lidar com a situagdo caracterizam esse periodo de inde- ciséo, que, em muitos casos, se arrasta por anos, prejudicando a recu- peracao das pessoas que tém esquizofrenia. Em nosso caso, 0 inicio efetivo do tratamento de Gabriel sera protelado em alguns meses em consequéncia das dtividas e da confusdo em que a familia se encontra. Esse tipo de situacdo é muito comum, mas prejudica a evolugdo do tratamento e deve ser minimizado ao maximo. Gabriel se nega a tomar os medicamentos receitados pelo psiquiatra. Ele acredita nas ideias que criou para explicar as percepgdes e os pensamentos diferentes que esta vivenciando. Ele acredita estar sendo filmado o tempo todo e que ha uma conspiracao contra ele. As vozes que sé ele escuta as vezes 0 elogiam, as vezes 0 criticam e dao ordens. Ele interpreta tudo o que acontece a seu redor como tendo alguma relacéo com sua vida. A percepgao mais intensa dos sentidos da um significado novo para fatos que so corriqueiros para seus familiares. Dentro desse contexto, Gabriel nao consegue entender que o que esta vivenciando sao sintomas de uma doenga. Os médicos chamam essa dificuldade de entendimento da doenca de falta de insight ou de critica sobre a doenga. Seus pais nado conseguem convencé-lo a tomar os medicamentos e nao insistem, pois também tém duvidas sobre a necessidade de medica- mentos psiquiatricos. O desconhecimento e o medo sao os principais fatores que levam os pais de Gabriel a nao seguir as orientagdes do Entrearazdoeailusio = 59 médico. Essas dtividas precisarao ser vencidas, mas esse nao é um processo facil. Antes, os pais de Gabriel irao fazer um caminho de busca de solugées, e s6 quando elas falharem é que irao procurar nova- mente o médico psiquiatra, gragas a um conselho acertado de uma pessoa vivida e experiente. Os irmaos convivem com as dificuldades de Gabriel de outra maneira. Renato, dois anos mais velho, nao sabe mais como lidar com 0 irmao, nao entende o que ele esta passando e, para evitar discuss6es, passa a evitd-lo. Julia, trés anos mais nova, sempre conversou muito com Gabriel e passou a ser a pessoa em que ele mais confia nesse novo periodo, a tinica para quem ele consegue contar 0 que esta vivendo e que 0 escuta € 0 leva a sério. Os vizinhos e conhecidos do bairro passam a comentar que Gabriel ficou louco. Alguns se comovem com as dificuldades que a familia esta passando, outros nao se envolvem, ou porque tém medo, ou porque estao voltados para os préprios problemas e nao se ligam no que acon- tece na comunidade. Ha grande desconhecimento na comunidade sobre os cuidados com a satide em geral e ainda mais em relacao aos transtornos mentais. Hoje, é sabido que instruir as pessoas sobre os problemas de satide e incentivar o cuidado reduz muito o sofrimento da populacao e os custos para o sistema de satide. Se as pessoas da comunidade entendessem o que Gabriel esté passando, poderiam contribuir de forma importante para que ele e sua familia encon- trassem ajuda profissional. Doengaoumalespiritual? _ Areligiao, em nossa cultura, tem o importante papel de ajudar as pessoas a lidar com situagGes de sofrimento e desorientacdo. Ela oferece explica- des que dao sentido para o desconhecido. Os pais de Gabriel procu- raréo ajuda em algumas religiées como alternativa a explicagéo do meédico, e dessa busca encontrarao uma orientagao positiva. Gabriel acredita que é 0 enviado de Deus para salvar 0 mundo. Tal certeza dificulta sua ida aos cultos religiosos; ele se nega a aceitar esse 60 = Assis, Villares & Bressan tipo de ajuda. Entretanto, essa crenga é uma experiéncia religiosa profunda, trata-se de uma fé muito intensa, em que ele assume para si a responsabilidade pelos problemas do mundo. Essa experiéncia sera mais bem compreendida por ele no futuro e serd muito importante em sua recuperacdo. Ao mesmo tempo, um casal de vizinhos, ao saber das dificuldades de Gabriel, procura seus pais para oferecer ajuda. Em uma conversa longa, ouvem as dificuldades pelas quais a familia esta passando e falam da importancia de procurar uma ajuda religiosa e manter a fé, que algum caminho Deus ir indicar. Os pais de Gabriel buscam ajuda em varias religides. As explicacdes sao sempre parecidas: ele esté sendo vitima de um mal espiritual, do assédio de espiritos obsessores ou energias negativas. Eles passaram a rezar pelo filho e a frequentar os cultos de uma igreja. Mesmo assim, passados alguns meses, a situacao vai ficando cada vez pior no convivio familiar. Infelizmente, no caso dos transtornos mentais, hé ainda muita desinformagao no meio religioso. Conforme dissemos anteriormente, a religido tem um papel impor- tante na vida de muitas pessoas. Nao consideramos que as explicagées cientificas se contraponham as explicagées religiosas. O ideal na vida das pessoas é que as duas visdes sejam complementares. A ciéncia procura, por meio de métodos seguros e amplamente testados, propor, na area da satide, procedimentos terapéuticos que tém o objetivo de controlar as doengas e promover melhor qualidade de vida. A ciéncia ea medicina nao tém todo o conhecimento; sempre ha pesquisas para melhorar, seja com medicamentos, seja com técnicas clinicas. A seguir, mostraremos a viséo de uma pessoa de bom senso, que ajudou muito a compreensao dos pais de Gabriel. Foi no fim de um culto que uma senhora, j4 idosa, perguntou aos pais de Gabriel o que os afligia tanto. Surpresos com a pergunta, eles contaram o caso do filho e as dificuldades que a familia estava passando. A senhora ouviu tudo com muita atengdo, fez algumas perguntas durante o relato e, por fim, depois de pensar um pouco,

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