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se interessava pelo tema da colonizagao: dos seus sete livros de historia, trés 0 abordavam de algum modo. Supomos, todavia, que tals livros, longe de indicar a adesao a qualquer questionamento da dominaéo colonial, serviram, no maximo, como um instrumento para a compreenséo dos desvios e das subversdes da norma, exigéncla do préprio papel de guardiao da ordem exercido pelo bispo"”. Sua biografia corrobora essa hipétese: 0 governador da capitania, visconde de Barbacena, avisara-o sobre a Conjura, antes mesmo de iniciada a prisao dos Sediclosos", e sua dnica palavra sobre © levante fol um serm&o em louvor a repressao. Por isso, foi considerado um “exagerado absolutista"*’. Em sua biblioteca, sob o império da ortodoxia, atricionistas*', 0 Cursus de theologia et havia os mal-vistos moralis, da Universidade de Salamanca, € Anecdotes, em dois volumes, sem referéncia a autor, possivelmente Anecdotes sur mme. Ja comtesse Du Barry,livro proibido, misto de libelo e crénica escandalosa sobre a amante do rei Luis XV, a condessa Du Barry, que enlameava o rei e a monarquia™ A historiografia ressalta 0 espirito plo, caridoso ¢ a ‘santidade’ de Fontevel* Suspeitamos, porém, que ele ou um de seus apaniguados desviou-se da moral Seminario N. Sa.da Boa Morte, de Marlana, em Minas Gerais. Litografia da obra Viagem pelo Brasil, de H. Burmeister, Berlim, 1853. pear, Ri de Janira,¥. Bn 1:2, 1O2, Jan/der 1995-33 presenca de alguns titulos comuns, como foi apontado anteriormente. No resto, as semelhancas evidenciam-se de modo mals acentuado em relacao aos padres nao-inconfidentes. Como os portugueses, os clérigos das Gerais possuiam fundamentalmente obras litdrgicas, seguidas, na maioria dos casos, pelas de teologia. Excetuavam- s¢ 0 bispo Pontevel, para o qual a ordem era a inversa; 0 cénego Vieira da Silva, Para o qual a literatura estava em primeiro lugar, seguida depois pela filosofia e histéria (que ficaria em segundo se juntassemos os livros de historia profana aos de hist6ria sagrada); © bispo Manuel da Cruz, que se dividia entre a liturgla e a historia sagrada: e o cOnego Borges, para quem a segunda posicao era reservada aos canones. Ao contrario do que sucedia entre os portugueses, entretanto, a literatura. para a maioria dos sacerdotes, vinha antes da historia, mesmo somando-se a historia sagrada a histo profana. As excegdes, realizando-se essa adigao, além do bispo Manuel da Cruz, eram 0 bispo Pontevel © padre Joao Souza, que priorizavam mais a histéria (o de literatura), € © cénego Borges, que se iltimo sequer possuia ob: voltava, entre as cléncias profanas, apenas para o direito e, em menor grau, para as ciéncias. Os dnicos sacerdotes @ aproximarem-se dos seus colegas de oficio parisienses eram o bispo dom fret Manuel e 0 con. Vieira da Silva, os quais até lam além daqueies: em suas ‘pag 30, Janidez 1905, bibliotecas, a histéria nao apenas rivali- zava com a teologia, mas a superava. A distribuicao dos livros pelas diferentes linguas (tabela IV) € um aspecto em que a singularidade dos inconfidentes se dissipa, tanto diante dos clérigos das Gerais como dos portugueses ¢, em alguma medida, dos franceses. A excegao € de novo o conego Inconfidente Vieira da Silva, Se entre os franceses, os livros escritos em tatim, em 1790, chegavam a 27% das bibliotecas, nas Gerais, as livrarias, em sua maioria arroladas proximo aos anos 1790, a média € de 26.7%. A semelhanga do ocorrido com os portugueses, 0 que se via, na imensa maiorla das bibliotecas, era o portugués ultrapassar o latim, variando entre 86.5%. na livraria do padre Alves, ¢ 28.3%, na pertencente ao cOnego Cordeiro, em cujo inventario omite-se Grande parte dos titulos e dos autores dos livros. Todavi nas bibliotecas do bispo Fontevel e dos cOnegos Borges e Vieira da Silva, o latim era o primeiro colocado, indo de 46,6%, na livraria do con. Vieira da Silva, até 73,5%, na biblioteca do bispo Fontevel. tm duas dessas trés livrarias 0 segundo lugar era ocupado pelo portugues, que correspondia a 14%, na biblioteca do bispo, © a 59%, na possuida pelo con. Cordeiro. Ja na livraria do cén. Vieira da Silva, 0 francés se encontrava na segunda colocacao, com 28,3%. Nesta mesma biblioteca, o inglés talvez ameagasse 0 portugues: se o dltimo correspondia a 11,8% dos titulos, o inglés talvez compreendesse 8,6% (a incerteza deve-se ao {ato dos livros ingleses nao terem seus titulos ou autores arrolados nos seqiestros, nao nos sendo possivel al mar que constituiam obras distintas). Portanto, se as bibliotecas eclesidsticas das Minas possuem algumas diferengas em relagao as suas similares portuguesas e francesas, quanto a sua composic¢ao por assunto, o mesmo néo se nota, de modo geral, com relagao as linguas. em que as identidades, principalmente com as livrarias portuguesas. sdo maiores. A livraria do con. Vieira da Silva, no entanto, € a nota mais destoante, seguida, aspecto, pelas bibliotecas do bispo Pontevel € do cénego Borges. neste Bibliotecas clericais nas Minas do século XVII ‘inventividade’ heterodox soe Malgrado as reqularidades observadas nas bibliotecas clericais € a ortodoxia de grande parte dos seus titulos € autores, encontramos singularidades, em especial entre os inconfidentes, que revelam um despreendimento em relacao as preocupacdes mais imediatas da vida sacerdotal. Em alguns casos, elas remetem a heterodoxias, que se evidenciam quando confrontamos a coloragao politica ¢ moral de alguns titulos ¢ autores de cada livraria aos Comportamentos morais ou politicos dos clérigos leitores. Quanto a esses aspectos, frise-se, dispomos de informagdes muito limitadas, mais ainda em relacao aos clérigos nao- inconfidentes, salvo para os bispos Manuel da Cruz ¢ Pontevel, € 0 conego Borges. Desse modo, primeiro focalizaremos tais clérigos ¢. depois. os conjurados mineiros. A biblioteca do bispo dom frei Manuel da Cruz era 0 retrato de um mundo que se encontrava em seus estertores. Se, por um lado, estava afinada com a ortodoxia catélica, por outro, parecia um tanto anacronica. Nao havia nela o menor vestigio da Ilustragao, muito pelo contratio, as obras de carater devocional e de cunho jesuitico, entao em baixa sob 0 reformismo de Pombal ¢ de dona Maria 1, pululavam: 1a estavam, por exempio, santa Tereza ¢ 0 padre Antonio Vieira, de quem o bispo, além dos Sermoes € das Cartas, possuia a sebastianista Histéria do Futuro. A censura portuguesa na segunda metade do século XVIII, com efeito, se voltava suas baterias contra os “pervertidos filésofos”, era implacavel com os jesuitas, responsabilizando-os pelo “fanatismo’, a “ignorancia* e, ainda, a “licenciosidade” que se viam grassar em Portugal’’. © bispo possuia © ja mencionado Cursus theologicus et ers moralis, da Ui Jade de Salamanca - de onde a Inquisicgao de Espanha riscou © trecho que permitiria tomar como licitas, aos olhos de deus, as relagdes sexuais com mulheres, até mesmo as violentas - e, ainda, 0 livro Maximas espirituais, censurado em ‘Acerv, Na de Janeiro, v8. nt 12. p: 19°52, jn/der 1998. pag 31 ortodoxa, sendo pai de um dentre dois bebés que foram expostos - isto é, enjeitados - a porta de seu palacio, em abril de 1780, um ano apés sua sagracao. em Lisboa. Tal hipétese funda-se nos cuidados que o enjeitado mereceu do bispo € em alguns siléncios ¢ regalias de que 0 mesmo foi objeto: primeiro, teve como padrinhos 0 bispo € Nossa Senhora do Rosario, recebendo nome similar ao do antistite, Domingos José da Encarnago Pontevel; em segundo lugi bispo,"criado em casa de Jodo José fol, * a mando do dito senhor" Correia"; terceiro, seu ingresso ¢ sua ascensao no sacerdécio, anos mais tarde, foram marcados por siléncios. Como exposto, Domingos era, aos olhos da lei, ilegitimo; todavia, saiu-the a ‘ilegitimidade de nascimento’, em fungao da qual teve acusagao de que obter dispensa do Nancio Apostélico em Lisboa, Ninguém em seu processo de habilitagao mencionou o nome de seu ‘ilegitimo’ pai, mas no breve de dispensa consta que Domingos tinha 0 ‘defeito* de ser ‘oriundo de presbitero". Domingos, porém, quis mais do que ordena: 1c: pediu, depois, dispensa para ser promovido as dignidades € altos postos da hicrarquia eclesiastica, no que fol atendido pelo provisor do bispado, que o dispensou na ‘irregularidade de defeito do nascimento proveniente de coito sacrilego™*.Ora. por que se denunciou a ilegitimidade de Domingos sem que fosse identificado 0 nome de seu pai? pag 34 Jer 1908 Esse siléncio nao teria sido uma imposigao da necessidade de preservar © presbitero que era seu genitor? Nao seria este clérigo importante demais para que sua condigéo de pai fosse explicitada? so tudo, enfim, faz-nos avent: hipétese de que o pai de Domingos seria © bispo homonimo, ou enta . algum apaniguado seu, ec, ademais, de que tal paternidade nao poderia ser revelada para preservar as aparéncias do prelado! Se tal hipétese for verdadeira, destaque-se, © bispo ¢ 0s que o protegeram acobertados pelas regras da civilidade estavam barroca, comum as demais sociedades do Antigo Regime, que nao se importavam se 0 parecer € 0 ser se distanciavam, fazendo da civilidade falsa aparénci: © bispo Fontevel ajudou a dissimula/ um arranjo que visava resguardar as aparéncias da mais alta autoridade da capitani segundo Tomas Antonio Gonzaga, o governador Luis da Cunha Menezes solicitou © conseguiu que 0 bispo dispensasse sua amésia, Maria Joaquina, € Jeronimo Xavier de Souza, dos banhos (proclamas) necessarios para a realizagao do casamento de ambos”. Fontevel, assim, se por um lado, talvez usasse da posse € do conheclmento de obras politicamente heterodoxas para melhor guardar a ordem, por outro, talvez fizesse do recurso @ dissimulagao das ilicitudes sexuais um modo de também preserva- la, A benignidade das autoridades com Pontevel ‘filho’ e os silénclos sobre a identidade de seu pai, ademais, sao o mais perfeito retrato de como esta tradigao vicejava na ordem do Antigo Regime. © bispo, ademais, neste aspecto, além de seguir uma tradigAo de exercicio de poder, nao seria senao um homem de seu tempo, um ‘homem do mundo’, obedecendo A moral coletiva imperante nas Gerais. Separando 0 parecer do ser, como nas demais sociedades do Antigo Regime, esta moralidade, urdida no interior de uma sociedade colonial € escravocrata, era patriarcal miségina e centrava. igualdade, isto é, casamento entre iguais na cor. no status social, na situacao fisica e moral. Mas, diante das dificuldades para se acharem équais para o matrimonio, dos seus ‘Custos € de sua burocracia, acabava por admitir algumas ilicitudes (como o concubinato, o racista, no principio de na defesa do aquitério e a Prostituigao), especialmente entre os desiguais (os homens brancos e/ou senhores, livres ou forros, com as mulheres havidas como ‘mulheres soltelras’, isto é, nao-virgens, negras, ‘indias, mulatas; forras e escravas), desde que se preservassem as paréncias**. Na conduta seaual de Pontevel, assim, as vozes da moral coletiva vigente nas Gerais talvez se massem os murmirios heterodexos fados em meio a ortodoxia catolica Sua livraria: da moralidade coletiva do Curso theologicus et moralis, 0 bispo pode ter extraido a idéia de que era admissivel relacionar-se, até mesmo de forma violent com mulheres solteiras e, algumas vezes, com as mulheres puras ¢ santas; das Anecdotes - hipétese pouco segura - 0 bispo talvez tenha estabelecido uma identidade entre sua experiéncia eas peripécias da condessa Du Barry. Afinal, se ele pode ter sido pal. Barry era filha de um monge. se Luis XV casava sua amasia com 0 conde Du Barry, ele foi cimplice de uma artimanha semethante, patrocinada por Luis da Cunha Menezes. Pontevel, em suma, pode ter sido, por um lado, prisioneiro e protagonista de estratégias de um poder cuja preservagao exigia 0 conhecimento das subversdes € a cisao do parecer ¢ do ser, €, por outro, expressao de uma moral heterodoxa (cm relagao as leis), que juntava o cotidiano a alguns livros © separava - também - 0 parecer € 0 ser, conjugando a defesa do casamento entre iguais & realidade das Hlicitudes que vicejavam sob 0 celibato. Tais consideragoes, porém, s40 meras hipoteses. Na livraria do cénego Borges, territério em que campeavam obras de canones € direito, ndo vemos nada que pudesse ser considerado heterodox, 0 mesmo sucedendo em relagao a sua postu politica. Todavia, no uso que fazia daquelas obr: percebe-se que nem tudo estava em conformidade com a regras juridicas ¢, além disso. que essas serviam para acobertar ilicitudes morais, Acer, Rode Sane, 8. -2. pe 1952, Janlder 1008. pag 38 aia ei ie Midie ee Re, 1's in iS hd nao dele, mas de outrem. Apesar de ter uma passagem pelo ilicito- foi contemplade duas vezes com ‘carta de seguro negativa ‘, espécie de habeas corpus, passada pelo Juizo Eclesiastico do bispado de Mariana -, devido as omissdes da documenta¢ao, nao nos foi possivel saber qual era o delito de que era acusado™. Como provisor e vigario geral do bispado, anos depois, Borges endossou a habilitacdo ao sacerdécio, recusada pelo bispo Pontevel. de José de Souza Barradas, apesar do candidato encontrar-se impedido para tanto, por viver publicamente concubinato com uma parda chamada Escolastica € ter uma filha. Embora Borges tenha reconhecido a existencia “da culpa, Julgou que a mesma nao estava provada conforme determinavam as Ordenagoes, segundo as quais se deveria provar “que no espaco de seis meses entrara um {concubino) na casa do outro, sete ou vito vezes, circunstancia que nao descobrira nos autos“. Ao que parece, porém, a legislagao fora pingada para favorecer um rebento de uma familia ilustre, constituida, no entender de Borges, por “bons pais tanto em honra como em cristandade", 03 quais “sempre criaram seus fithos com temor pag 36. Javier 1008 de Deus, em sujeigao ¢ exemplar recolhimento”*!, todos eles, no caso dos homens, ocupando cargos importantes. Se nem os comportamentos nem as aparéncias do habilitando prestavam para dar-the o passaporte para o sacerdécio, 0 provisor apelou para as filigranas da lei e usou as aparéncias da familia para habilita-lo - e. com Isso. também preservou-as. Borges, tao aferrado ao direito e aos canones. mostrou-se assim enredado no ideal de civilidade que grassava nas sociedades do Antigo Regime: uma civilidade das aparéncias. Qs inconfidentes, ao contrario dos outros clérigos - 0 que ¢ ébvio - revelam- se heterodoxos do ponto de vista politico, Na biblioteca do padre Carlos Correia de Toledo, homem muito rico”, vigario na vila de Sao José d’E! Rei desde 1777, vemos a Légica, de Luis Antonio Verney, iluminista portugues adversarlo dos jesuitas, pensador oficial da época pombalina™, certamente um “Mbertino’ aos olhos das autoridades eclesiasticas mais conservadoras. Havia também duas obras de Ovidio, autor proibido pela censura portugues: Compendio de metamortose © Triste vetho, Tals titulos nao representavam grande afronta a ordem estabelecida e, no mais, prevalecia o ‘bom cura’ na biblioteca do padre Toledo. Mesmo assim, ele atendeu & convocasao feita aos sacerdotes da América por seu colega de oficio, 0 abade Rayn entronizou a patria em sew altar®, engajando-se na Inconfidéncia. Considerava Raynal, por sinal, um “escritor de grandes vistas”. por ter Previsto a sedi¢ao dos colonos ingleses. concluindo, de seu relato sobre a experiencia dos colonos ingleses, que. se na América do Norte os impostos levaram & rebeliao, aqui, a derrama Poderia produzir os mesmos efeitos”. Portanto, a primazia numérica de livros ortodoxos de sua biblioteca e a irrelevancia quantitativa da historia nao contiveram as repercussdes do livrinho de Raynal, obra que sequer possuia, mas que leu ou, ao menos, escutou € Siscutiu, com os outros conjurados. Do Ponto de vista moral, porém, a orlodoxia triunfou. Na livraria do padre Costa, sacerdote desde 0 final da década de 1770", a quase igualdade numérica entre as obras de ciéncias e literatura © a Presenca de um livro de Pope, poeta Satirico inglés que comprendia a razao como virtude pablica, indicam certa heterodoxia: espelham uma opgao de vida futura ¢ uma determinada maneira de olhar o mundo, na qual este é compreendido mais a luz da razao © da observagao do que da revelacao. Duas das suas obras de ciéncias versavam sobre medicina. As outras eram: Aritmética, de Maia; Biologia, de Bert: © Instrugées para a cultura das amoreiras, O padre Manuel preocupava- se possivelmente com aspectos relativos 4 saiide, mas sobretudo se pelo mundo da natureza, prestigiando a botanica, tal como era caracteristico dos libertinos do século XVII, concedendo uma atengao especial a razao ¢ aos objetos das clénclas naturais ¢, de resto, a elas interessa\ mesmas. Tanto assim que, anos mals tarde, em 1801, em Lisboa, traduziu € publicou um Tratado da cultura dos pessequeiros*”, €, ao regressar de Fortugal, livre do carcere, tornow-se um notavel € Inovador fazendeiro. Passou a cultivar o linho em sua fazenda, obtendo sempre bons resultados, tendo trazido maquinas do Reino para tecé-lo, assim como a outros tecidos. Chegou mesmo @ apresentar ao governo um projeto para desenvolver a tecelagem” ‘cere, de Jane... 1.2. p 1982. Jes 1985 pag 37 a. a ee ol Mas a audacia de Costa, é bom lembrar, © fez entender que “esta América estava nos termos de ficar uma Europa”?!, levando-o a envolver-se na Conspiracio Mineira. Ele driblou, assim, a ortodoxia dominante em sua biblioteca e deixou- se conduzir pela razao € pelo espirito de observacao que emanavam de alguns de seus titulos, Atendeu, portanto, a0 abade Raynal, colocando a patria em seu altar - € nem a prisdo logrou conté-lo, pois, depois, velo a engajar-se no processo de emancipagao do pais: o padre, elegeu-se deputado na Constituinte de 1823, reelegeu-se para a legislatura seguinte e meteu-se na tevolta liberal de 184272, Contudo, este engajamento em questdes profanas e politicas, nao abalou sua [é ou os preceitos morais desta. pois, na Assembiéia Constituinte, votou contra a liberdade religiosa €, no campo Sexual, foi fiel a ortodoxia catolica. © conego Luis Vieira da Silva ® possula uma livraria, segundo Carlos Guilherme Mota, “recheada com a literatura mais critica do ocidente~* com muitos autores iluministas. Dos autores encontrados, destacam-se alguns classicos ¢ Ilustrados proibidos pela censura: Ovidio, Marmontel, Catulo, pag 38.Junider 1908 Anacreonte, Voltaire, Mably, Diderot, Condilac, Robertson e Montesquieu 7, Nela havia lugar, ainda, para livros de ilustrados moderados, como Genuensis, Verney e Bento Feij6. 0 olhar do conego teservava espaco também para autores de ciéncias, alguns importantes para a ciéncia moderna; Descartes, Pinel (cuja obra era proibida), Fabri, Gravesande, Winslow, Tissot € Musschembroeck. A secao de historia privilegiava os paises europeus, sobre os quais havia sels obras, seguidos depois por Portugal, com cinco obras, ¢ a América, com trés. A Europa, todavia, era contemplada também com os titulos de historia universal (trés obras) ¢ histéria moderna (duas obras), além da histéria antiga (duas obras). Nao havia livros especificos sobre 0 Brasil. O cénego se interessava pelas particularidades das gentes de sua ‘patria’ e, ao mesmo tempo, pelos mais distintos povos, sem que houvesse qualquer contradicao entre eles. Desta generalidade de povos particulares, ademais, destacava a América do Norte, motivo de estudo € discussao, ¢ na qual o cOnego enxergava identidades com sua capitania. A América era motivo de empréstimo de livros: © cOnego nao se contentava com a obra de Robertson, que possula, tendo emprestado de alguém, com certeza, 0 livrinho do abade Raynal e do intendente Bandeira, as Observations sur le gouvernement de les Etats Unis. © pensamento do conego Vieira, de fato, encontrava-se marcado pela presenca de Kaynal e, de resto, pela Ilustracao. Segundo Ernst Cassirer, 0 pensamento llustrado caracterizava-se pela renuncia 4 dedugao sistematica, Isto ¢, aquela que, partindo de um ser supremo ou de uma certeza fundamental, maxima, expandia a luz desta a todos 0s seres € saberes derivados através do método da demonstragao € da conseqiéncia Figorosa, enlagando os diltimos a certeza primordial de modo imediato’. 0 ponto de partida, no pensamento ilustrado, deslocou-se da certeza fundamental Para a experiéncia e a observa¢ao, Invertendo-se, pols, a hierarquia metodolégica. Procurava descobrir a légica dos fatos, através da qual, primeiro, apreendia os fendmenos; depois, buscava cada uma das condicdes que os originaram, revelando a dependéncia que os ligav finalmente, e. com base nestas lescobertas, chegava 4s regularidades comuns a cada tipo de fendmenos, formulando principios ou leis”. © pensamento ilustrado, portanto, combinava os métodos resolutive € compositivo; nele, a fungao mais importante da razao consistia, pois, em sepa ir ¢ juntar™. © carater ilustrado do pensamento do con. Vieira explicita-sé nas suas respostas ao Interrogatorio da Devassa da Inconfidencia. interrogado sobre sua posigao favoravel A revolta dos norte- americanos, depois de algumas tergiversagdes, afirmou que a rebeliao tinha uma causa, a opressio € que - procurando enganar os inquiridores - ela Inexistia nas Gerais. Questionado sobre a auséncia de diferencas entre os povos rebelados do norte € os mineiros, disse que os poves podiam rebelar-se por diferentes causas e que, em Minas Gerais, nao havia o problema dos impostos, motivo da sedi¢&o dos norte- americanos, pois 0 visconde de Barbacena noticiara que s6 farla a derrama depois de ouvir Sua Majestade. E 0 conego, nao acreditando no *maravilhoso” - quiando-se pela razao, poderiamos dizer - sabia que para os povos rebelarem-se eram necessarios *fatos de presente”; entrelinhas, a importancia estratégica da vé-se, nas Acervs, Rio de Janeiro, v8. #812. 1952, Janides 1985 pag. 39 derrama para os conspiradore Contraditado nas suas respostas pelo inquiridor, 0 cénego, enta ‘expos uma teoria geral sobre as condicdes que tornam exeqaivel uma rebelido. chegan- do até ela a partir de um exemplo concreto, Com isso, pretendia mostrar - enganando o inquiridor - que em Minas Gerais era impossivel pensar em sedicao € que ele nao poderia cogitar em realizé-la: as respostas dele respondente so tendem a mostrar os fundamentos, por que nao seguiria semethante partido, quando fosse para Isso conyocado, prescindindo inteiramente de que houvesse, ou nao. quem tivesse semelhantes Idéias: sabe que na fellz aclamagao de El-Rei D. Joio 0 quarto, sendo ima isa tho justa, e tanto da vontade dos povos, perguntou, segundo sua lembranca. D. Jodo da Costa, quais eram os generais, armas, as aliancas, os soldados, que tinham prontos para se levantarem contra as armas de Castela, que Isto fol bastante pari ¢ Suspender a agao por olto dias, e talvez se nao executasse, se nlsso nao estivesse 0 malor perigo: © como poderia pensar que tivesse efeito a sublevagao de Minas falta de tudo © necessirio, © cercada de outr capitania: em segundo lugar, ele respondente nao ve Interesse penhum proprio na sublevagdo; porque nto fol para Isso convidado, nem aceitarla o partido, quando 0 fosse, e menos evitar 0 dano eg 40, jee 1905, se este & obedecer aos superiores, © evitar tributos™. Do exemplo concreto da Restauracao Portuguesa. protagonizada por dom Joao IV, © cénego extraiu a conclusao de que s6 era possivel pensar em rebelar-se se houvesse condigoes para tanto - isto €, generals, armas, aliangas, soldados - ou se fosse mais perigoso manter-se na sujelgao. E em Minas, tudo isso faltava, além do que, obedecer aos superiores ¢ pagar tributos nao poderiam ser motivos de uma rebeliao - de novo, vé-se 0 lugar estratégico dos impostos. Nesta passagem, ademais, estabelece-se uma analogia entre a Inconfidéncia e a Restauracao, “causa tao justa, e tanto da vontade dos povos”. Um indicio seguro de que. para ele, era legitimo um povo rebelar-se contra a tirania; uma analogia que, por si 86, indica que a Inconfidencia, no pensamento do conego, era tao legitima quanto a Kestauragao. No pensamento do cénego. assim. encontramos a afirmacéo da razao, a negacao do maravilhoso, das certezas absolutas, € uma analise do real que, tendo como referencia a propria experiéncia (0 que habilidosamente se procura negar), compara tres situagoes distintas (a Conjuragao das Gerais, a Independencia das Treze Colonias Inglesas € a Restaurarao Portuguesa), decompondo-as; depois, chegando-se a uma conclusdo geral sobre a ocorréncia das rebelides; ©, por fim, atingindo a conclusao de que seria impensavel uma rebeliao em Minas, No sub-texto, ainda, temos a consagragao do principio Hustrado do direito & rebeliao © a expressao do lugar estratégico ocupado pela derrama na Conjuracao. © conego Vielra da Silva, em suma, por um lado, combinava os métodos resolutivo € compositivo, procurando estabelecer as condigdes que provocam os fenomenos: €, depois, descobrindo as regularidades que se fazem presentes em fenomenos similares, formulando leis. Por outro, baseava-se num principio caro aos ilustrados: aquele segundo © qual era leqitimo rebelar-se contra um poder despotico, presente em Rousseau” e também em Raynal (que estendia a legitimidade aqueles que nao viviam sob © despotismo)". ‘Auténtico ilustrado, por seus principios e pela maneira de estruturar o seu conego Vieira influenciou-se, portanto, pelos autores pensamento, © ilustrados que se encontravam em sua biblioteca e atendeu ao abade Raynal, a quem tanto apreciava, entronizando a patria em seu altar! Sua ‘libertinagem’, por fim, nao se limitou 4 Inconfidencia: embora cOnego, professor de teologia © comissario da Ordem Terceira da Peniténcia, Vieira da Silva era um *homem do mundo’. tendo legado uma filha, Joaquina Angélica da Silva, & posteridade, nascida em 1765, quando Vieira ja havia recebido as ordens cras*, A moralidade coletiva imperante nas Gerais deve ter-se conjugado ao ideal de civilidade de Corneile, autor presente em sua biblioteca, levando 0 cénego a desobedecer as regras juridicas e a sujeitar-se as normas sociais que admitiam algumas Hicitudes sexuais, desde que ndo prejudicassem as aparéncias: 0 cOnego, enfim, convivia com a cisao entre 0 ser € © parecer. Examinando a apropriagao dos livros pelos clérigos mineiros das Gerais do século XVIII, dentro dos estreitos limites que a documentagao nos Impoe, constatamos 0 fosso que separava os inconfidentes dos demals, no que se refere as idéias € aos comportamentos politicos. Ao mesmo tempo, percebemos que as diferengas se embaralham, quando 0 foco desloca-se para as questdes morais. Do ponto de vista politico, assim, vemos que, entre 05 Inconfidentes, 0 livros ilustrados ¢/ ‘ou que focalizavam aspectos relatives ao mundo natural - insignificantes na biblioteca. do padre Toledo, consideraveis na livraria do padre Costa, © razoavelmente numerosos na biblioteca do conego Vieira da Silva exerceram grande Influéncia sobre tals leltores. As possibilidades de leitura dos inconfidentes, no entanto, nao se limitaram aos livros que possuiam nem Aquilo que o5 mesmos diziam: a inventividade, de alguma forma, valeu, © livrinho do abade Raynal, nao possifdo por nenhum deles, tornowse centro da atengao €, em sua leitura, as idéias foram apropriadas de:tal sorte a luminar a propria experiencia dos leitores, norteando sua acao politica. A inventividade dos leltores-inconfidentes teve no cOnego Vieira da Silva o seu maior expoente, de tal sorte que a propria estruturacao de seu pensamento seguia parametros ilustrados associava as experiéncias alheias a de sua patria, Os clérigos que nao se meteram na Conjuragao, sobre os quals conseguimos obter informagées mais substanclais, ao contrario, mostram-se ou presos a uma ordem politica-cultural que ruia, caso do bispo Manuel da Cruz, ou possivelmente usando de livros heterodoxos para melhor preservar a ordem, caso do bispo Fontevel. A moralidade coletiva, que consagrava a clsao entre o ser € 0 parecer, foi mals forte que a ortodoxia, justamente entre ‘03 proprictarios das bibliotecas mals exuberantes: © cénego Vieira da Silva €, quem sabe, 0 bispo Pontevel. Esta moralidade, ademais, triunfou no comportamento do cénego Borges enquanto juiz. Venceu entre eles uma moralidade que aceitava as relacdes sexuais ilicitas desde que se mantivessem as aparénclas. Inclusive a de respelto a5 normas juridicas. Entre a maioria dos clérigos proprietarios de livros, contudo, a ortodoxia parece ter saido vitoriosa. Conclusao Nas bibllotecas dos eclesiasticos mineiros do século XVIII, visualizam-se as tensdes entre aquilo que as Pa. jin 1905 autoridades € os livros procuravam Impor € a inventividade de alguns dos leitores. seja no sentido de privilegiar determinadas obras. seja no sentido de lé-las segundo uma 6tica particular. Alguns titulos repetiam-se de uma biblioteca para outr das Gerais © suas congeneres francesas € portuguesas, havia similitudes no que entre as livrarias toca aos titulos € @ distribuigao dos livros pelos assuntos ¢, em algum grau, pelas linguas - mas em meio a estas uniformidades, os inconfidentes destacaram-se por destoarem, em maior ou menor grau. O cénego Vieira da Silva, dentre eles, fol o que mais se mostrou singular, Os ecleslasticos inconfidentes possuiam bibliotecas que expressavam inter s que iam além dos limites imediatos de seu trabalho pastoral, voltando-se mais fortemente que as dos demais clérigos para questdes teoldgicas € profanas. 0 inverso se dava entre os clérigos ndo- conjurados. A maior profanidade, os inconfidentes aliaram uma inventividade bastante aguda em relagao aos livros, apropriando-se das idéias apresentadas nos mesmos tendo em vista sua propria experiencia nas Gerais. Sua inventividade chegou ao limite de leva-los a organizarem uma sedigao fundada numa estratégia baseada no conhecimento livresco da da América inglesa. Assim, mais do que a experiéncia das Treze Coléni: patria, os inconfidentes parecem ter entronizado os livro: 10 menos alguns deles - em seu altar.

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