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coAO STVDIVM PROF. JOHANNES HESSEN DA UNIVERSIDADE DE COLONIA TEORIA DO CONHECIMENTO mapugio pa DR. ANTONIO CORREIA enc em Cac Hine « iscas ARMENIO AMADO — EDITOR, SUCESSOR COIMBRA — PORTUGAL 1980 6 ‘TEORIA DO CONHECIMENTO exposigies ndo fazem. Finalmente, porque desenvolve 4 teoria especial do conhecimento, além da geral. Onalé o resente trabalho contribua para fomentar 0 interesse, hoje revivide, pelas questdes filoséficas Colénia, Outubro de 1925 J. Hessen INTRODUGAO 1. Esséncia da Filosofia A teoria do conhecimento é uma disciplina filos6fica. Para definir a sua posi¢io no todo que 4 a Gilosofia, temos necessidade de partir de uma definigio essencial desta. Porém, como chegar a esta definigio? Qual o méodo que devemos utilizar para definir a esséncia da filosofiae Poderia, antes de mais, tentarse obter uma definigio essencial de filosofia partindo do signi- ficado da palavra. A palavra fllosofia procede da lingua groga ¢ cquivale a amor pela sabedoria ou, ywe quer dizer 0 mesmo, descjo de saber, de ecimento. £ claro que este significado etimo- logic da palavra filosofia € demasiado geral para que dele se possa extrair uma definigio essen cial. E necessirio, evidentemente, procurar outro miétodo, Poderia pensar-se em coligir as diversas defini- Ges essenciais que os fildsofos tém dado da filosofia através a histéria e, comparando-as umas com as outras, obter uma definicio exaustiva. Mas também este processo no conduz ao fim em vista. As definigdes essenciais que encontramos na histéria 8 TEORIA DO CONHECIMENTO da filosofia diferem tanto, muitas vezes, umas das ‘outras, que parece completamente impossivel colher delas uma definigio essencial unitéria da filosofia. Compare-se, por exemplo, a definicio de filosofia gue dio Platio ¢ AusrOrmas — que definem a losofia como a ciéncia pura e simples—com a definicio dos estficos © dos epicuristas, para os quais a filosofia é, respectivamente, uma aspiragio 3 virtude ou a felicidade. Ou compare-se a definigio que, na Idade Moderna, dé da filosofia Cristian Wourr—que a define como scientia possibilium, quatenus esse possunt—com a definigio que dé Frepenico Userwec no seu conhecido Tratado de Histéria da Filosofia, segundo a qual a filosofia é a ciéncia dos principios. Tais divergéncias tornam ‘vio o intento de encontrar por este caminho uma definicio essencial de filosofia. A essa definicio sdmente se chegari, pois, prescindindo-se de tais definiges ¢ enfrentando-se 0 contetido histérico da propria filosofia, Foi Guuerme Dirrmey quem pela primeira vez utilizou este método, no. seu ensaio sobre A esséncia da filosofia. Aqui o segui- remos com certa liberdade, tentando naturslmente, pela nossa parte, desenvolver os scus pensamentos, Porém, 0 proceso que acabamos de apontar parcce destinado a um. fracasso, porque encontra desde logo uma dificuldade. Trata-se de extrair do contetido histérico da filosofia 0 conccito da sua esséncia, Mas, para poder falar de um con teédo histérico da filosofia, necessitamos — parece =nos—de possuir jé um’ conceito da filosofia Precisamos de saber o que ¢ a filosofia para tirar INTRODUCAO 9 © seu conceito dos factos. Na definicio esencial da filosofia, na forma em que desejamos obté-la, parece haver, portanto, um cfrculo; este processo parece, pois,” por esta dificuldade, condenado a0 fracasso. Nao acontece no entanto assim. A dificul- dade que se aponta desaparece se se atende a0 facto de que nio partimos de um conceito defi- ldo: da. Bloat mug sks Ye peptide ta que toda a pessoa culta tem dela. Como indica Durney: +O que primeiramente devemos tentar € descobrir um contetido objective comum em todos aqueles sistemas 4 vista dos quais se forma a representacio geral da filosofias, Estes sistemas existem de facto. Acerca de muitos produtos do pensamento cabe duvidar se devem ‘ot nao considerar-se como filosofia. Porém, toda esta espécie de davida se apaga quando se trata de numerosos outros sistemas. Desde © seu apare- cimento, 2 Humanidade tem-os sempre conside- rado como produtos filoséficos do espirito, tem visto neles a propria esséncia da filosofia. Esses sistemas sio os de Pratio ¢ Anisréretes, Descartes ¢ Lewnrrz, Kant ¢ Hecet. Se os aprofundarmos, neles encontraremos certos tragos essenciais comuns, apesar de todas as diferencas que apresentam. Encon- tramos em todos cles uma tendéncia para a miver- salidade, uma orientacio para a totalidade dos objectos. Em contraste com a atitude dos espe- Gialistas, cuja observagio se dirige sempre a um sector maior ou menor da totalidade dos objeceos do conhecimento, encontramos aqui um porto de 10 TTEORIA DO CONHECIMENTO vista universal, que abrange a totalidade das coisas. Tais sistemas apresentam, pois, 0 carécter da univer salidade, A este se junta um segundo traco essencial comum. A atitude do filésofo em frente da totali- dade dos objectos & uma atitude intelectual, uma atitude do pensamento, O filésofo trata de conhecer, de saber. E essencialments um espirito cognoscente. Como pontos essenciais de toda a filosofia temos portanto: 1.2, 2 orientagio para a totalidade dos objects; 2°; 0 cardcter racional, cognitivo, desta orientacio. ‘Assim conseguimos um conceito essencial da filosofia, se bem que muito formal ainda. Enri- queceremos 0 contetido deste conceito conside- rando os diferentes sistemas, no separadamente, mas sim na sua conexio histérica, Trata-se, portanto, de abranger a total visio histirica da filosofia nos seus aspectos fundamentzis. Debaixo deste ponto de vista hio-de aparece: compreensiveis as defi~ nigdes contraditérias da filosofia a que atrés nos referimos. Tem-se designado, nio sem razio, SGcRATES como o criador da filosofia ocidental. Nele se manifesta claramente a caracteristica atitude tedrica do espfrito grego. Os seus pensamentos ¢ aspi- races dirigem-se 4 construcio da vida humana sobre a reflexio, sobre o saber. SOCRATES procura fazer de toda a accio humana uma acco consciente, um saber. Procura clevar a vida, com todos os seus contetidos, 4 consciéncia filosdfica. Esta ten- déncia atinge 0 seu pleno desenvolvimento com. Ptat&o, 0 scu maior discfpulo. Neste, a reflexio INTRODUGAO n filoséfica estende-se 20 contetido total da cons- cincia humana. Nio se dirige apenas aos objectos priticos, aos valores ¢ 3s virtudes, como acontecia a maioria das vezes com S6cRATES, mas também 20 conhecimento cientifico. A actividade do esta- dista, do poeta, do homem de ciéncia, apresenta-se igualmente como objecto da teflexio filos6fica. A filosofia aparece-nos assim, em S6cRATES ¢ mais em P1ario, como uma auto-reflexio do espirito sobre os seus supremos valores teéricos © pré ticos, sobre os valores do verdadeiro, do bom ¢ do belo. ‘A filosofia de Anistéritss apresenta um aspecto diferente. O espirito de Anistéretes dirige-se de preferéncia para o conhecimento cientifico e seu objecto: 0 ser. Na base da sua filosofia encontra-se uma ciéneia universal do ser, a eilosofia primeiras ou meta~ fisica, como se intitulou mais tarde. Esta ciéncia ensina-nos acerca da esséncia das coisas, as conexdes € © principio altimo da realidade. Se a filosofia soctético-platdnica. pode caracterizar-se como uma concepcio do espirito, deveré dizer-se de ARISTOTELES que a sua filosofia se apresenta, antes de tudo, como suma concepcao do universo. A filosofia volta a scr reflexio do espirito sobre si mesmo na época pés-aristotdlica, com os estbicos eos epicuristas. A _cxnento socritico-platénica sofre, sem diivida, limitagio, pois sdmente as questées priticas entram no espaco visual da cons- Cigncia filoséfica. A filosofia apresenta-se, segundo a frase de Cicero, como a «mestra da vida, a criadora 2 TEORIA DO CONHECIMENTO das leis, 0 guia de toda a virtude. Converteu-se, em suma, numa filosofia da vida. No principio da Idade Moderna voltamos a andar pelos caminhos da concepcio aristotélica. Os sistemas de Descartes, Espinosa ¢ Lerenrrz revelam todos a mesma direccio para o conhe- cimento do mundo objective que encontrimos no Estagirita. A filosofia apresenta-se claramente como uma concepcio do universo. Em KANr, 20 con- tricio, revive 0 tipo platénico. A filosofia toma de novo 0 caricter de_auto-reflexio, de auto- ~concepgio do espirito. E verdade que se mostra primeiramente como teoria do conhecimento ou como fundamento critico do conhecimento cien- tifico. Porém, nfo se limita a esfera teérica, pois prossegue até chegar a um fundamento critico das restantes esferas do valor. Ao lado da Critica da razdo pura aparece a Critica da razdo pritica, que trata a esfera do valor moral, e a Critica do julzo, que faz dos valores estéticos objecto de investi~ gages criticas, Também com KANr se apresenta, pois, a filosofia como uma reflexio universal do espirito sobre si mesmo, como uma reflexio do homem culto sobre a sua total conduta de valores. No século xrx ressurge © tipo aristotélico da filosofia nos sistemas do idealismo alemio, prin- cipalmente em ScHELUNG ¢ HecEL. A forma exal- tada ¢ exclusivista como ele se manifesta provoca um movimento contririo igualmente exclusivista. Este movimento leva, por um lado, a uma com- pleta desvaloriza¢io da filosofia, como a que se revela no materialismo ¢ no positivismo; ¢, por INTRODUGAO Bb outro lado, a uma renovacio do tipo kantiano, como a que teve lugar com o neokantismo. O exclu sivismo desta renovacio consiste na eliminasio de todos os clementos materiais ¢ objectivos, que exis tem de modo flagrante em KANT, adquirindo assim a filosofia um cardcter puramente formal e meto- dolégico. Nesta mancira de ver radica por sua vez 0 impulso que conduz a um novo movimento do pensamento filoséfico, 0 qual de novo volta a dirigir-se principalmente para 0 material e objec- tivo, em oposicio ao formalismo ¢ metodismo dos neokantianos e significa, portanto, uma reno- vagio do tipo aristotélico. _Encontramo-nos ainda no meio deste movimento, que levou, por um lado, a ensaios de uma metafisica indutiva, como os empreendidos por EDUARDO DE HARTMANN, Wonpr © Dnusc e, por outro, a uma filosofia da intui¢io, como a que encontramos em BERGSON e, sob outra forma, na moderna fenomenologia repre sentada por Hussert e SCHELER. Este golpe de vista histérico sobre a evolucio total do pensamento filoséfico Ievou-nos a deter- tminar outros dois elementos no conccito csencial da filosofia. Caracterizamos um destes elemen- tos como «oncepgio do ew © 0 outro com a expressio «concepgio do universo», Entre estes dois elementos existe um particular antagonismo, como nos mostrou a histéria, Ora se salienta mais um, ora 0 outro; e quanto mais um se salicnta mais 0 outro se apaga. A his- téria da filosofia aj ita-se, em suma, como um movimento pendular entre estes dois elementos, 4“ TEORIA DO CONHECIMENTO Mas isso prova, precisamente, que ambos os cle- mentos pertencem aquele conceito essencial. Nao se trata de uma alternative (ow um, ou outro), mas sim de uma acumulagio (fanto um como o outro). A filosofia ¢ simultineamente as duas coisas: uma concepcio do eu e uma concepcio do uni- verso. Trata-se agora de ligar os dois elementos materiais obtidos com as duas notas formais pri- meiramente apontadas ¢, assim, conseguir-se uma completa defini¢io essencial. 'Verificimos ante- riormente que os dois caracteres principais de toda a filosofia eram a direcgio para a totalidade dos objectos ¢ 0 caricter cognoscivo desta direccio. O primeiro destes dois caracteres experimenta agora uma diferenciagio, provocida pelos elementos essen- ciais que dltimamente se obtiveram. Por totalidade dos objectos pode entender-se tanto o mundo exterior como o mundo interior, tanto © macrocosmos como 0 microcosmos. Quando a consciéncia filoséfica incide sobre o macrocesmos, teremos a filesofia no sentido de uma concepgao do universe. Peo contricio, quando o ‘microcosmos constitui 0 odjecto sobre que incide a filosofia, verifica-se 0 segundo sentido desta: a filosofia. no sentido de uma concepgio do eu. Os dois elementos essenciais altimamente obtidos intercalam-se perfeitamente no conceito formal pri- meiramente estabelecido, pois que o completam corrigem. Podemos agora definir a esséncia da filosofia, dizendo: a filosofia € uma auto-reflexdo do espi- INTRODUGAO ry rito sobre 0 seu comportamento de valor teérico € pritico e, ao mesmo tempo, uma aspiragio ao conhecimento das ltimas conexdes entre as coisas, a uma concepgio racional do universo. Mas podemos ainda stabelecer uma conexio mais profunda entre os dois elementos essenciais. Como o provam Prarko e Kanr existe entre eles a telagio de meio ¢ fim, A reflexio do espirito sobre si mesmo & 0 meio e o caminho para chegar a uma imagem do mundo, a uma visio metafi- sica do universo. Podemos dizer, pois, em con- clusio: a filosofia ¢ uma tentativa do espirito humano para chegar a uma concepgio do universo por meio da auto-reflexdo sobre as suas fungdes de valor tedricas € préticas. Conseguimos esta definigo de filosofia por um proceso indutivo. Mas podemos completar este proceso indutivo com um processo dedutivo. Este consiste em situar a filosofia no conjunto das fungdes superiores do espirito, em. assinalar © lugar que ela ocupa no sistema total da cultura. © conjunto das fangdes culturais lana uma nova luz sobre 0 conceito essencial que obtivemos de filosofia. Entre as fungdes superiores do espitito e da cultura contamos a ciéncia, a arte, a religifo ¢ a moral. Se colocamos em relacio com elas a filo- sofia, esta parece distanciar-se da esfera da cul- tura iltimamente referida, da moral. Se a moral se refere ao lado pratico do ser humano, pois tem por sujeito a vontade, a filosofia pertence completamente ao lado tedrico do espirito humano. ca gree ver me ric ob Oo CRE 28 oH BOPP SSR & 16 TEORIA DO CONHECIMENTO Assim, a filosofia parece entrar na_ vizinh: da cénia, E, efecevamente, existe’ uma aie dade entre a filosofia e a ciéncia, na medida em que ambas astentam na mesma fungio do espitito humano, no pensamento. Porém, ambas se dis Seen, como ji dissemos, pelo seu objecto. quanto que as ciéncias especiais tém por objecto parcclas di realidade, a flosofia ditigese a 3 conjunto. Poderia, no entanto, pensar-se em aplicar 0 conceito de ciéncia ’ filosofia. Bastaria distinguir entre ciéncia particular ¢ ciéncia uni- versal e chamar a esta _iltima filosofia, Mas no ¢ justo subordinar a filosofia a ciéncia, como 2 um género mais clevado, e consideri-la desta forma como uma determinada espécie de ciéncia, A filosofia distingue-se de toda a cigncia, nio 36 gradual mas cssencialmente, pelo seu objecto. A totalidade do existente ¢ mais do que uma adigio das diferentes parcelas da realidade, que gonstituem 0 objecto das cigncias —especiais, E em face destas um objecto novo, heterogéneo. Supe, portanto, uma nova funcio’ da parte do sujeito. © conhecimento filos6fico, dirigido para a totalidade das coisas, e 0 cientifico, orientado ara as parcelas da realidade, sio essencialmente distintos, de maneira que entre 4 filosofia ¢ a ciéncia predomina a diversidade, ndo s6 em sentido objective mas também no subjectivo, Que relaggo tem agora a filosofia com as duas restantes esferas da cultura, com a arte ¢ a rei ? A. resposta é: existe profunda afini- entre estas trés esferas da cultura. Todas INTRODUGAO 1 las estio ligadas por um vinculo comum, que reside no seu objecto. Encontrase 0 mesmo enigma do universo ¢ da vida em face da poesia, da religiio ¢ da filosofia. Todas clas pretendem resolver este enigma , dar uma interpretagio da realidade, forjar uma concepcio do universo. © que as distingue € a origem desta concepsio. Enquanto que a concepgio filoséfica do. universo brota do conhecimento racional, a origem da con~ cepgio religiosa do mesmo esti na fe religiosa, © principio de que procede e que define o seu espitito € a vivéncia dos valores religiosos, a expe- riéncia de Deus. Por isso, enquanto que a concep¢io filosdfica do universo pretende ter valor universal © sc susceptivel de uma demonstrasZo racional, a aceitagio da concepcio religiosa do univers depende, de modo decisivo, de factores subjectivos. O acesso a ela nao esté no conhecimento univer- salmente vilido, mas sim na experiencia pessoal, nas vivéncias religiosas. Existe, pois, uma dife- renga essencial entre a concepcio religiosa do uni verso ¢ a filos6fica; e, por iltimo, entre a reli € a filosofia. A filosofia é também essencialmente distinta da arte. ‘Tal como a concepgio do universo que tem o homem religioso, a interpretagio que dele di © artista nfo procede do pensamento puro. Também ela deve a sua origem muito mais 4 vivén- cia © 2 intuigio. O artista 'e © pocta nio criam a sua obra com © intelecto, mas cla resulta, sim, da totalidads das forsas espirituais. A esta diversidade de fungées 18 ‘TEORIA DO CONHECIMENTO subjectivas junta-se algo mo sentido objective. © poeta € o artista nio estio atentos directa- mente 4 totalidade do ser como o esti o filésofo. seu espirito dirige-se, cm primeiro lugar, a um sere a um processo concretos. E, a0 dar repre- sentagio a estes, elevam-nos 4 esfera da aparéncia, do itteal. O caracteristico desta representagio con- siste no facto de neste processo irrcal sc manifestar 9 sentido do proceso rel; no, proceso particular exprime-se 0 sentido e 0 significado do processo do universo. O artista e poeta, interpretando primordialmente um ser ou um proceso particulares, dio indirectamente uma interpretagio conjunta do universo ¢ da vida. Se desejarmos definir resumidamente a posi- Gio da filosofia no sistema da cultura, devemos dizer © seguinte: a filosofia tem duas faces; uma dirige-se & religiio e 4 arte, a outra para a cién- cia. Tem de comum com aquclas o dirigir-se a0 conjunto da realidade; com esta 0 seu caticter te6rico. Portanto, a filosofia ocupa 0 seu posto no sistema da cultura entre a ciéncia, por um ado, ¢ a religiio ¢ a arte outro, ainda que ‘esteja mais préximo da religiio do que da arte, pois que também a religiio se dirige imedia- tamente 4 totalidade do sere procura interpreti-la. ‘Assim completimos 0 nosso processo indutivo com outro dedutivo. Colocando a filosofia dentro do. conjunto da cultura, relacionando-a com as diferentes esferas da cultura, demos confirmacio 20 conceito essencial de filosofia que haviamos obtido ¢ salientimos claramente os seus diversos aspectos. INTRODUCAO 1» 2. A posigéo da teoria do conhecimento no sistema filossfico A. nossa definigio essencial traz como conse- quéncia uma divisio da filosofia em diversas dis- ciplinas. A filosofia é, em primeiro lugar, como vimos, uma auto-reflexio do espirito sobre 0 seu comportamento (capacidade, atitude, fungies) valo- rativo (valorizader) teérico e pritico. Como refle- xio sobre 0 comportamento tedrico, sobre aquilo a que ,chamamos ciéacia, » flosofia ¢ teoria do conhecimento cientifico, teoria da ciéncia. Como reflexio sobre 0 comportamento pritico do espi- rito, sobre 0 que apelidamos de valores em sentido Testrito, a filosofia ¢ teoria dos valores, Mas a reflexio do espfrito sobre si mesmo nio é um fim auténomo, mas sim um meio ¢ um caminho para chegar a uma concepcio do univers. A filosofia é pois, em terceiro lugar, teoria da concepgao do universo. A esfera total*da Blovofa divides pol, am wis partes: teoria da cigncia, teoria dos valores, concep¢io do universo. Uma maior diferenciagio destas partes tem como consequéncia a distingio das disciplinas filossficas fandamentais. A concepcio do universo divide-se em metafisica (que se subdivide em metafisica da natureza e metafisica do espirito) e em concepraio ou teoria do universo em sentido restrito, que inves- tiga os problemas de Deus, a liberdade ¢ a imorta~ lidade. “A teoria dos valores divide-se, em relacio 4s diferentes classes de valores, em teoria dos valores 20 TTEORIA DO CONHECIMENTO éticos, dos valores estéticos e dos valores religiosos. Assim obtemos as trés disciplinas chamadasetica, estética e filosofia da religido. A teoria da ciéncia, por tiltimo, divide-se em formal ¢ material. Apeli- damos a primeira de Ifgica, a ltima de teoria do conhecimento. Deste modo indicamos o lugar que a teoria do conhecimento ocupa no conjunto da filosofia, £, como vimos, uma parte da teoria da ciénci: Podemos defini-la como a teoria material da ciénci ou, como a teoria dos princlpios materiais do conheci- mento humano, Enquanto que a légica investiga os princfpios formais do conhecimento, isto é as formas e as leis mais gerais do pensamento humano, a teoria do couhecimento ditige-se aos pressupostos materiais mais gerais do conhecimento cientifico. Enquanto que a primeira prescinde da referéncia do pensamento aos objectos e considera aquele puramente em si mesmo, a tltima dirige-se justa- mente para a significacio objeciva do pensamiento, para a sua referéncia aos objectos. Enquanto que a légica pergunta pela correceZo formal do pensa~ mento, isto é, pela sua concordancia consigo mesmo, pelas suas prdprias formas e leis, a teoria do conhe~ Cimento pergunta pela verdade do pensamento, isto é pela sua concordincia com 0 objecto. Portanto, pode definir-se também a teoria do conhecimento como a teotia do pensamento ver dadeiro, em oposicio & légica, que seria a teoria do pensamento correcto. Isto pée a claro a impor tincia fundamental que a teoria do conhecimento tem para a esfera total da filosofia. & por isso que INTRODUCAO a também se The cham, ¢ com rani, a eitia flo si al, philosophia fundamentals. Fe ra dives touts do coshecimento em geral e especial. A primeira investiga as refe- réncias do pensamento ao objecto em geral. ‘A Giltima toma por tema de investigagdes criticas ‘os principios e conceitos fundamentais em que se exprime a referéncia do nosso pensamento aos objectos. Principiaremos, naturalmente, pela exposigio da teoria geral do conhecimento. ‘Antes, porém, lancemos um golpe de vista sobre a histdria da teoria do conhecimento. 3. A histéria da teoria do conhecimento Nio se pode falar de uma teoria do conheci- mento, no sentido de uma disciplina filoséfica independente, nem na Antiguidade ‘nem ma Idade WBaG. Na Goole ‘sotign. cacontamon namo rosas reflexes epistemol6gicas, especialmente em Prato e ARistéTeLes. Mas as investigaces epis- temolégicas estio ainda englobadas nos textos meta~ fisicos € psicolégicos. A teoria do conhecimento, como disciplina auténoma, aparece pela primeira vez na Idede Moderna. Deve considerat-se como seu fundador o filésofo Jou Locxe. A sua obra funda- mental, An essay concerning human understanding (Ensaio sobre 0 entendimento humanos), apare- cida em 1690, trata de forma sistemitica as ques- tes da origem, esséncia e certeza do conhecimento 2 ‘TEORIA DO CONHECIMENTO humano. Lersyrrz tentou na sua obra Nouveaux cessais sur Ventendement humain («Novos ensaios sobre © entendimento humanos), editada como péstuma em 1765, uma refutacio do ponto de vista epis- temolégico defendido ‘por Locks. Sobre os resul- tados por este obtidos edificaram novas constru- ges, em Inglaterra, Groncs BERKELEY, na sua obra A treatise concerning the principles of human knowledge (‘Tratado dos principios do ‘conheci- mento humano»), em 1710, e Davin Hume, na sua obra fundamental A treatise on human nature (Tratado da natureza human), em 1739-40, e na sua obra mais resumida Inquiry concerning human understanding («nvestigagzo sobre o entendimento humano»), em 1748, ‘Como verdadeiro fundador da teoria do conhe- cimento dentro da filosofia continental apresenta-se Manus. Kanr. Na sua obra epistemoldgica capital, a Critica da razio pura (1781), trata essencialmente de dar uma fundamentacio critica do conhecimento cien- tifico da natureza. Ele proprio chama a0 método de que se serve nela «método transcendental». Este método nio investiga a origem psicolégica mas sim a validade légica do conhecimento. Nao per- gunta—como o método psicolégico —de que mancita surge 0 conhecimento, mas sim como é possivel o conhecimento, sobre que bases, sobre que pressupostos supremos ele assenta. Devido a este método, a filosofia de Kant chama-se, tam- bém, abreviadamente, transcendentalismo ou criti~ cismo. INTRODUGAO a No sucessor imediato de Kant, FicHTE, a teoria do conhecimento aparece pela primeira vez com © titulo de «teoria da ciéncia. Mas j& nele se mani- festa essa confusio entre a teoria do conhecimento ¢ a metafisica, que se acentua francamente em Scumunc ¢ Hecet e que também se encontra de forma evidente em ScHorENHAUER ¢ EDUARDO pe HARTMANN. Em oposicio a esta forma meta fisica de tratar a teoria do conhecimento, o neokan- tismo que surgiu por volta do ano de sctenta do século pasado, esforgou-se por tragar uma nitida separacio entre os problemas epistemolégicos ¢ metafisicos. Porém, tanto procurou colocar os problemas cpistemolégicos em primeiro lugar que a filosofia correu 0 perigo de reduzir-se 2 teoria do conhecimento. Além disso o neokantismo desen- volveu a teoria kantiana do conhecimento numa direcgio bem determinada. O exclusivismo por ele provocado, depressa fez surgir varias correntes epistemolégicas contririas. E assim que hoje nos encontramos perante uma multidio de direcges epistemolégicas, as mais importantes das quais vamos passar em revista imediatamente, em conexio siste- mitica. PRIMEIRA PARTE TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO Investigasio fenomenolégica preliminar © FENOMENO DO CONHECIMENTO E OS PROBLEMAS NELE CONTIDOS A teoria do conhecimento , como o seu nome indica, uma teoria, isto é uma explicagio ou inter Pretagio filoséfica do conhecimento humano. Mas, antes de filosofar sobre um objecto, ¢ necessério examinar escrupulosamente esse objecto, Uma exacta ‘observacio ¢ descrigio do objecto devem_preceder qualquer _explicacio ¢ interpretacio. E necessério, ‘no nosso caso, observar com rigor e descrever com exactidio aquilo a que chamamos conhecimento, esse peculiar fenémeno de consciéncia. Fazémo-lo, rocorando_apreender_ot_tagoa_geait_suencais “fenémeno, por meio da somo-reesis_ sobre at que vivemos quando falamos do cimento, Este_método chama-se ee é distinto do psicolégico, Enquanto que este tltimo investiga os processos psfquicos concretos no seu 26 ‘TEORIA DO CONHECIMENTO curso regular e a sua conexio com outros processos, © primeiro aspira a aprender a esséncia geral no fenémeno conereto. No nosso caso nio descreverd um proceso de conhecimento determinado, nio tratar de estabelecer 0 que é préprio de um conhe- camento determinado, mas sim o que & essencial a todo 0 conhecimento, em que consiste a sua estru- tura_geral. Se empregamos este método, o fenémeno do conhecimento apresenta-se-nos mos scus aspectos fundamentais da maneira seguinte (*): No conhecimento encontram-se frente a frente a conscigncia e 0 objecto, 0 sujeito e 0 objecto. © conhecimento apresenta-se como uma relacio entre estes dois elementos, que nela permanecem eternamente separados um’ do outro. O dualismo sujeito e objecto pertence A esséncia do conhe- cimento. ‘A relagio entre os dois elementos & a0. mesmo tempo uma correlagi0. O sujeito s6 & sujeito para um objecto ¢ 0 objecto sé é objecto para um sujeito. Ambos les s6 si0 0 que sio enquanto 0 sio para © outro. Mas esta correlacdo nfo é revers{vel. Ser sujeito é algo completamente distinto de ser objecto. A fanco do sujeito consiste em aprender o objecto, a do objecto em ser aprcendido pelo sujcito. Vista pelo lado do sujeito, esta apreensio apre- sentase como uma safda do sujeito para fora da ©) CE. para o que se segue a thndise do fenémeno do conhecimentor ‘que 44 Nicotau Haxrauny, na aus importante obra Findanenot de ume Matflica do Concinent TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO n sua propria esfera, uma invasio da esfera do objecto © uma recolha das propnedades deste. © objecto nfo € arrastado, contudo, para dentro da esfera do sujeito, mas permanece, sim, trans cendente a ele. No no objecto mas sim no sujeito alguma coisa se altera em resultado da funcio do conhecimento. No sujeito surge algo que contém as propriedades do objecto, surge uma «imagem» do objecto. Visto pelo lado do object, 0 conhecimento apresenta-se como uma transferéncia das pro- Priedades do objecto para o sujeito, Ao que trans- cende do sujeito para a esfera do objecto corres ponde o que transcende do objecto para a esfera do sujeito, Sio ambos sdmente aspectos distintos do mesmo acto. Porém, tem nele o objecto predo- minio sobre 0 sujeito. © objecto & o determinante, © sujeito ¢ o determinado. O conhecimento pode definir-se, por iltimo, como uma determinagao do sujeito pelo objecto. Mas o determinado nio ¢ 0 sujeito pura ¢ simplesmente; mas apenas a imagem do objecto nele. Esta imagem € objectiva, na medida em que leva em si os tracos do objecto. Sendo distinta do objecto, encontra-se de certo modo entre © sujeito eo objecto. Constitui o instrumento pelo qual a consciéncia cognoscente apreende o seu objecto. Sendo o conhecimento uma determinagio do sujeito pelo objecto, nio hé davida que o sujeito se conduz receptivamente perante 0 objecto. Esta receptividade nio significa, contudo, passividade. Pelo contririo, pode falarse de uma actividade Ey ‘TEORIA DO CONHECIMENTO ¢ espontaneidade do sujeito no conhecimento. Eis io se seers, nauralmente, 20 objecto, mas sim & imagem do objecto, no que a consciéncia pode muito bem participa, contibuindo para sua claboracio. A receptividade perante 0 objecto € a espontaneidade perante a imagem do objecto no sujeito sio perfeitamente compativeis. Ao determinar 0 sujeito, 0 objecto mostra-se independente dele, transcendente a cle. Todo o conhecimento designa (cintendes) um objecto, que & independente da consciéncia cognoscente. © caricter transcendente proprio , enfim, de todos 0s objectos do conhecimento. Dividimos os objectos em reais ideais. Chamamos real a tudo © que nos é dado pela experiéncia externa ou interna, ou dela se infere. Os objectos ideais apresentam-se, pelo contrario, como itreais, como meramente pensados. Objectos ideais sio, por exemplo, os objectos da matemitica, os niimeros © as figuras geométricas. Pois bem: o interes sante € que também estes objectos ideais possuem um ser em si, ou transcendéncia, no sentido epis- temolégico. As leis dos ntimeros, as relagdes que existem, por exemplo, entre os lados ¢ os angulos de tum tridngulo, sdo independentes do nosso pensamento subjective, no mesmo sentido em que 0 sio os objectos reais. Apesar da sua irrealidade, fazem-lhe frente como algo em si determinado ¢ auténomo. Agora, vejamos: parece existir uma contra- digio entre a transcendéncia do objecto 20 sujeito € 2 conelaiio do sujeito e do objecto apontada anteriormente. No entanto esta contradicio é TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO » 4 gente. Sdmente enquanto € objecto do Ginhecimento. & que ele, cbjecto, se encontra incluso na correlacio. "A corrclacio sujcito -objecto sé & insepardvel dentro do conheci- mento; mas nfo em si mesma. © sujeito ¢ 0 objecto nio se esgotam no seu ser de um fara 0 outro, pois tém além disso um ser em si. Este consiste, para o objecto, naquilo que ainda existe de desconhecido ‘nele. No sujeito encontra-se naquilo que ele & além de sujeito cognoscente. Pois, além de conhecer, o sujeito sente ¢ quer. Dese'mndo, 0 oljcao delta dy 0 var quinds tl da cortelagio, 20 passo que 0 sujeito, agora isolado, deixa de ser sujeito cognoscente. ‘Assim como a corrclasio do sujcito © objecto s6 6 inseparével dentro do conhecimento, assim também s6 ¢ irreversivel como correlacio de conhe~ cimento. Em si mesma é muito possivel uma inver= so, a qual tem efectivamente lugar na accio. Na acco 0 objecto nao determina o sujeito, mas sim © Sujeito ao objecto. O que se altera no & o sujeito mas sim o objecto. Aquele jé nio se conduz receptiva, mas sim espontinea e activamente, enquanto que este se conduz passivamente, O conhecimento ¢ a acco apresentam, pois, uma estrutura completa~ mente oposta. © conceito de verdade rclaciona-se intima mente com a esséncia do conhecimento. Verda- deiro conhecimento é sdmente o conhecimento verdadeiro. Um econhecimento falso» nio é prd= priamente conhecimento, mas sim erro ¢ ilusio. ‘Mas, em que consiste a verdade do conhecimento? 30 ‘TRORIA DO CONHECIMENTO ‘Como dissemos, deve assentar na concordancia da cimagem» com o objecto. Um conhecimento diz-se verdadeiro se 0 seu contetido concorda com ‘© objecto designado. © conceito de verdade é assim, 0 conceito de uma telacio. Exprime uma relagio, a relagéo do contetdo do pensamento, da imagem», com o objecto. Este objecto, por sua vez, nio pode ser verdadeiro nem falso; encon- tra-se, de certo modo, mais além da verdade ¢ da filsidade. Uma representagdo inadequada pode ser, pelo contritio, absolutamente verdadeira. Pois, ainda que seja incompleta, pode ser exacta, se ©$ aspectos que contém existem realmente” n0 objecto. ‘© conceito de verdade, obtido ao considerar- mos 0 conhecimento debaixo do aspecto feno- menol6gico, pode designar-se como conceito trans cendente da verdade. Tem efectivamente como pres- suposto a transcendéncia do objecto. £ 0 conceito de verdade préprio da consciéncia ingénua e da consciéncia cientifica. Pois as duas aceitam como verdade a concordincia do conteiido do pensamento com o objecto. Mas nio basta que um conhecimento seja verdadeiro; h4 necessidade de poder alcancar a certeza de que ¢ verdadeiro. Isto levanta a questio: em que é que podemos conhecer se um conhe- cimento € verdadeiror EB a questio do critério da verdade. Os dados fenomenolégicos nada nos dizem sobre se existe um critério semelhante. © fenémeno do conhecimento implica apenas a sua pretensa existéncia; mas nfo a sua existéncia real. TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO En Assim sc esclarece o fenédmeno do conheci- mento humano nos seus aspectos principais. Ao mesmo tempo verificimos que este fenémeno confina com trés esferas distintas. Como vimos, © conhecimento apresenta trés elementos princi- pais: © sujeito, a simagem» e 0 objecto. Pelo sujeito, 0 fenémeno do conhecimento toca na esfera psicolégica; pela cimagem», com a Iégica; pelo objecto, com a ontolégica. Como processo psicolégico num sujeito, 0 conhecimento & objecto da psicologia. Naturalmente, verifica-se que a psicologia mio pode resolver o problema da esséncia do conhccimento humano. Pois, na ver- dade, 0 conhecimento consiste numa apreensio de um objecto, como nos revelou a nossa inves- tigagio fenomenolégica. Agora bem; a psicologia, a0 investigar 0s processos do. pensamento, pres- cinde por completo desta referéncia a0 objecto. A psicologia dirige a sua atencio, como ja disse, para_a origem ¢ desenvolvimento dos processos psicolégicos. Pergunta como tem lugar o conhe- cimento mas nio se é verdadeito, isto é, se concorda com o objecto. ‘A questio da verdade do conhecimento esté fora do seu alcance. Se, apesar de tudo, pro~ curasse resolver esta questio, cairia numa per- feita periBuarg els So yévos, num caminho para uma ordem de coisas completamente distinta. Nisto reside, justamente, 0 erro fundamental do psicologismo. Pelo seu segundo elemento, o fenémeno do conhecimento penetra na esfera Idgica. A cimagem» 2 ‘TEORIA DO CONHECIMENTO objecto no sujeito & uma entidade I6gica ¢, oe eet tjecto da logics. Mas também se vé Smediatamente que a logica nio pode resolver © problema do conhecimento. A légica investiga cs tmnidades légicas como fais, a sua arquitectura intima eas suas relagSes miétuas. Como se vit, tha indaga da concordincia do pensamento con sige meme oto ae cigs aoe © problema epistemol6gi ob tO ce foe da. cfera Logica. Quando se des Guhece este facto, entio dizemos que se cai n0 deg eax vercizo clement, 0 conhecimento hhomano toca a esera ontoligica. © object aparece perante a consciéncia cognoscente como algo que PoTguer se trate de um ser ideal ou de um cer teal. © ser, pelo sea lado, & objecto da onto- Togia, Mas também aqui se vé que a ontologia nao pode realver 0 problema do conhecimento, Pols, assim como niio € possivel climinar-se do conkecimento 0 objecto, no pode tio pouco eliminarse 0 sujeito. Pertencem os dois a0 con fefido essencial do. conhecimento _humano, Come nos revelaram as consideragSes. fenomeno- Teele. Quando isto se ignora e se vé o problema de conhecimento exclusivamente pelo lado do bjecto, o resultado € cair-se no ontolagisme. Nem 2 psicologia, nem a légica, nem a ontor Jogia podem, assim, resolver o problema do cor Goento, Este representa um facto absolutamente peculiar e auténomo. Se desejarmos atribuirthe Pim nome especial poderemos falar, como NIcoLAU TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO 3 HARTMANN de um facto. gnoseolégico. Quetemos com isto significar a referéncia do nosso pensa- mento aos objectos, a relacio do sujeito e do objecto, que nao cabe cm qualquer das trés dis ciplinas apontadas, como se viu, ¢ que cria, porcanto, uma nova disciplina: a teoria do conhecimento, Também as consideragées fenomenolégicas con- duzem, pois, a0 reconhecimento da tcoria do conhecimento como uma disciplina filoséfica inde- pendente. Poderia pensar-se que a missio da teoria do conhecimento se cumpre, no essencial, com a des ctigio do fenémeno do conhecimento. Mas nio acontece assim. A descriffo do fenémeno wo ¢ a sua interpretagao © explicasio filosdfica. O que acabamos de descrever & aquilo que a consciéncia natural entende por conhecimento. Vimos que, segundo a concepgio da consciénecia natunil, 0 conhecimento consiste em forjar «uma imagen» do objecto; e a verdade do conhecimento € a concordincia desta imagem» com o objecto. Mas averiguar se esta concepcio esti justificada é um problema que sc encontra para além do alcance do problema fenomenolégico. O método feno- menolégico s6 pode dar uma descrigio do fené- meno do conhecimento. Sobre a base que é esta descrigio fenomenoldgica, tem de procurar-se uma explicagio ¢ interpretagio filoséficas, uma teoria do comhecimento. E esta a missio peculiar da teoria do conhecimento, Este facto € muitas vezes esquecido pelos fenomenologistas, que julgam resol- ver 0 problema do crea 2 * ‘TEORIA DO CONHECIMENTO simplesmente 0 fenémeno do conhecimento. As ‘objeccées dos filésofos de diferente orientacio respondem. limitando-se a considerar_ os dados fenomenolégicos do cenhecimento. Porm, isto equivale a desconhecer que a fenomenologia e a teoria do conhecimento so coisas completamente distintas. A fenomenologia apenas pode esclare- cer-nos sobre a cfectiva realidade da concepcio natural, mas nunca decidir sobre a sua justeza e veracidade. Esta questio critica encontra-se fora da esfera da sua competéncia. Também se pode exprimir csta ideia dizendo que a fenomenologia € um método mas nfo é uma teotia do conhe- cimento. Em consequéncia do que se disse, a descricio do fenémeno do conhecimento tem apenas um significado preparatério. A sua missio nfo é resolver © problema do conhecimento mas sim conduzir-nos 2 presenga dese problema. ‘A descrigio. fenomenolégica pode ¢ deve des- cobrir os problemas que se apresentam no fend- meno do conhecimento e fazer com que tomemos consciéncia deles. Sc aprofundarmos mais_uma_vez_a_descricio do_fenémeno do conhecimento. que demos_ante- riormente, verificamos sem dificuldade que sio, antes de mais, cinco problemas. principais que_impli- cam os dados fenomenolégicos, Vimos ji que ‘© conhecimento significa uma relagio enére um | sujeito e um objecto que entram, por assim dizer, fem contacto mito; 0 sujeito apreende 0 objecto. © que em primeiro lugar se deve perguntar é, TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO 35 finalmente, se esta concepgao da consciéncia natural € justa, se realmente tem lugar este contacto entre 0 sujeito € © objecto. Pode o sujeito apreen- der realmente 0 objector Esta é a questio da ‘possibilidade do conhecimento humano. Deparamos com outro problema quando consideramos de perto a estrutura do sujeito cognoscente. Esta € on wien, es O homem ¢ um ser espiritual ¢ sensivel. Por conseguinte distingui- mos um conbecimento espinal eum conhe- cimento sensivel. A fonte do primeiro é a razio; a do fltimo a cxperiéncia. Pergunta-se de que fonte tira principalmente os seus conteiidos a consciéncia cognoscente. E a razio ou é a expe- riéncia a fonte e a base do conhecimento humano? Essa € a questo da origem do conhecimento. Asingimos o verdadeiro problema central da teoria do conhecimento quando nos fixamos na telago do sujeito e do objecto. Na descricio fenomenolégica caracterizamos esta relagio como uma determinacio do sujeito pelo objecto. Porém, pode também perguntar-se se esta concepcio da consciéncia natural € justa. Como veremos mais adiante, numerosos ¢ importantes fildsofos defi- niram esta relacdo precisamente no sentido con- trério. Segundo eles, a verdadeira situagio, com efeito, € justamenté a inversa: nfo ¢ 0 objecto que determina o sujeito, mas o sujeito que determina o ‘objecto. A consciéncia cognoscente nio se conduz receptivamente em presenca do seu objecto, mas sim activa e espontineamente. Pode perguntar-se, pois, qual das duas interpretacdes do fenémeno do 26 TEORIA DO CONHECIMENTO conhecimento é a justa. Poderemos designar resu- midamente este problema como a questio da essén- cia do conhecimento humano. ‘Até aqui, 20 falar do comhecimento, temos pensado exclusivamente numa apreensio racional do objecto. E natural que se pergunte se, além deste conhecimento racional, hi um conhecimento de outra espécie, um conhecimento que fosse possivel designar como conhecimento intuitivo, em oposigio a0 racional. Esta é 2 questio das formas do conhe~ cimento humano. Um diltimo problema entrou no nosso campo de observagio no final da descrigio fenomeno- Togica: a questio do critério da verdade. Se hi um conhecimento verdadeiro em que € que pode- mos conhecer esta verdade? Qual & 0 arifério que nos diz, concretamente, se um conhecimento & ou nio verdadeiro? © problema do conhecimento divide-se, pois, em cinco problemas particulares. Serio adiante discutidos sucessivamente. Faremos exposicio, isola- damente, das solugdes mais importantes que 0 roblema tenha encontrado através da histéria da ‘losofia, para imediatamente se fazer a sua critica, tomar uma posicio perante elas e indicar, pelo menos, a direc¢io em que nés préprios procuramos a solugio do problema I A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 1. © dogmatismo Entendemos por dogmatismo (de Ssyya = dou- trina fixada) a posicio epistemoldgica para a qual nao existe ainda 0 problema do conhecimento. © dogmatismo tem por supostas a possbilidade e a realidade do contacto entre 0 sujeito e 0 objecto. E para cle evidente que 0 sujcito, a consciéncia cognoscente, apreenda o objecto. Tal posigio assenta numa confianga na tazio humana, que ainda ndo esti enfraquecida pela dévida, Este facto do conhecimento nfo constituir um problema para o dogmatismo assenta numa nogio deficiente da esséncia do conhecimento. O con- tacto entre o sujeito € o objecto n3o pode parecer problemitico a quem nio veja que o conheci- mento representa uma r E isto € 0 que acontece com o dogmatic. Nao vé que o conhe- cimento € essencialmente uma relagio entre um sujeito © um objecto. Cré, pelo contririo, que 38 TEORIA DO CONHECIMENTO 608 objectos do conhecimento nos sio dados absolu- tamente ¢ niio meramente por obra da funcio intermediiria do conhecimento. O dogmitico nio Vé esta fungi. E isto passa-se nfo s6 no terreno da percep¢io mas também no do pensamento. Segundo aa do dogmatismo, os objectos ja percepgio © os objectos do pensamento sio-nos dados da’ mesma maneira: directamente na sua corporeidade. No primeito caso passa-se por cima da prépria percepgio, mediante a qual tnicamente nos sio dados determinados objectos; no segundo, da fangio do ponents, E © mesmo acontece no que se refere ao conhecimento dos valores. Também os valores existem, pura ¢ simplesmente, para o dogmitico. O facto de que todos os valores pressupem uma consciéncia avaliadora, sperr nece tio desconhecido para cle como o de que todos 0s objectos do conhecimento implicam uma consciéncia cognoscente. © dogmitico passa por cima, tanto num caso como no outro, do sujeito € da sua fungio. Em relagio com o que acabamos de dizer, pode entio falar-se de dogmatisino teérivo, ético © reli- gioco. A primeira forma de dogmatismo refere-se 20 conhecimento tedrico; as duas tltimas, a0 conhe- cimento dos valores. No dogmatismo ético trata-se do comhecimento moral; no religioso, do conhe- cimento religioso. Como atitude do homem ingénuo, o dogma- tismo ¢ a posicéo primeira e mais antiga, tanto psicolégica como historicamente. No periodo origi- nério da filosofia grega domina de um modo quase A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 39 geral. As reflexdes epistemolégicas nio aparecem, em geral, entre os présocréticos (os filésofos jénios da natureza, 0s cledticos, Herdclito, os pitagé- ricos), Estes _pensadores acham-se animados ainda por uma confianca ingénua na capacidade da razio humana, Virados totalmente para o ser, para a natureza, no sentem que 0 préprio conhecimento 6 um problema. “Exe problema pécsc com os sofistas. So estes quem coloca pela primeira vez © problema do conhecimento ¢ fazem com que © dogmatismo, em sentido restrito, resulte impos- sivel para sempre dentro da filosofia. A partir de entio encontramos em todos os filésofos reflexes epistemolégicas debaixo de uma ou de outra forma. fvenlads que ‘Kant julgou dever aplicar 3 denominagio de «ogmatismo» aos sistemas meta~ fisicos do século xvm (Descartes, Lutsxrrz, Wourr). ‘Mas esta palavra tem nele um significado mais estreito, como se vé pela sua definicio de dogma- tismo na Critica da razdo pura (6O dogmatismo € 0 proceder dogmitico da razio pura, sem a critica do seu proprio podem), O dogmatism & para Kanr a posicio que cultiva a metafisica sem ter examinado antes a capacidade da razio humana para tal cultivo. Neste sentido, os siste- mas prekantianos da filosofia modema sio, com efeito, dogmiticos. Mas isto no quer dizer que neles ‘falte também toda a reflexio epistemol6- gica ¢ que se nio sinta ainda o problema do conhecimento, As discusses epistemoldgicas em Descakres e Letsnrrz provam que mio acontece assim. Nio pode falar-se portanto de um dogma- ey TEORIA DO CONHECIMENTO tismo geral ¢ fundamental, mas sim de um dogma- tismo especial. Nio se trata de um dogmatismo légico, mas sim de um dogmatismo metafisico. 2. O cepticismo Extrema se tangunt. Os extremos tocam-se. Esta afirmagio ¢ igualmente vilida no campo epistemolégico. O dogmatismo converte-se muitas vezes no seu contririo o cepticismo (de oxérecQas —enganar, examinar), Enguanto que aquele con- sidera’ a possibilidade de um contacto entre 0 sujeito © 0 objecto como algo compreensivel por si mesmo, este nega essa possibilidade. Segundo © cepticismo, © sujeito nio pode apreender o objecto. © ‘conhecimento, no sentido de uma apreensio real do objecto, & impossivel para cle. Portanto, nio devemos formular qualquer juizo, mas sim abster-nos totalmente de julgar. Enguanto que o dogmatismo desconhece de certo modo o sujcito, o cepticismo nio vé o objecto. A sua atengio fixa-se tio exclusivamente no sujeito, na fungio do conhecimento, que ignora comple tamente a significagio do objecto. A sua atengio dirige-se inteiramente aos factores subjectivos do conhecimento humano. Observa a forma como todo © conhecimento sofre a influéncia da indole do sujeito e dos seus érgios do conhecimento, assim como das circunstincias exteriores (meio, circulo cultural). Desta forma escapa i sua vista © objecto, que é sem divida, necessério para A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 41 que tenha Jogar © conhecimento, pois este repre- senta uma relagio entre um sujeito e um cbjecto. Do mesmo modo que o dogmatismo, também © cepticismo pode referir-se tanto 4 possibilidade do conhecimento em geral como i de um conhe- cimento determinado. No primeiro caso, esta~ mos perante um cepticismo Iégico. Também se The chama cepticismo absoluto ou radical. Quando o eepticimo se refere sOmente 40 conhedimento sico, falamos de um cepticismo metafisico. No domfnio dos valores distinguimos um cepti- cismo ético © um cepticismo religioso. Segundo © primeiro, é impossivel o conhccimento moral; segundo o iiltimo, o religioso. Finalmente, hé que distinguir 0 cepticismo mesédico © 0 cepti- cismo sistemdtico. Aquele designa um método; este, uma questio de princfpio. As classes de cepti- cismo que acabamos de enumerar nio sio mais do que formas distintas desta questi. O cepti- cismo metédico consiste em comecar por por em davida tudo 0 que se apresenta 3 consciéncia natural como verdadeiro ¢ certo, para eliminar deste modo todo o falso ¢ chegar a um saber absolutamente seguro. © cepticismo encontra-se, principalmente, na antiguidade. O seu findador Pitnow te Bus (360-270). ‘Segundo cle, nio se consegue chegar a um contacto do sujeito com o objecto. A cons- cincia cognoscente imposstvel apreender o seu objecto. Nao h4 conhecimento. De dois juizos contraditérios, um é, finalmente, tio exactamente verdadeiro como o outro. Isto significa uma 2 TTEORIA DO CONHECIMENTO negagio das leis légicas do pensamento, especial- mente do principio de contradi¢io. Como nio existem conhecimento nem juizo verdadeiros, Pixon recomenda a abstengio de todo o juizo, atnoyh. O cepticismo intermédio ou académico, cujos principais representantes sio Arcesiao (f 241) © Canneapss (f 129), no € to radical como ste copticismo antigo ou pirrénico. Segundo o cepticismo académico, & impossfvel um saber rigo- roso. Nao temos nunca a certeza de que 0s nossos juizos concordem com a realidade. Nunca pode~ remos dizer, pois, que esta ou aqucla proposigio seja verdadeira; mas podemos afirmar que parece set verdadeira, que & provével. Nao existe, portanto, certeza rigorosa, mas somente probabilidade. cepti- cismo intermédio distinguo-se do antigo precisamente porque sustenta a possibilidade de chegar a uma Opinio provivel © cepticismo posterior, cujos principais repre- sentantes sio ENssipemo (século 1 a. C.) ¢ Sexro Empmuco (século 1), segue novamente pelo caminho do cepticismo pirtdnico. Também na filosofia moderna encontramos © cepticismo. Mas 0 cepticismo que cncontramos aqui nio & a maior parte das vezes, radical e abso- luto, mas sim um cepticismo especial. No filésofo francés Montarene (t+ 1592) apresenta-se-nos, prin- cipalmente, como um cepticismo ético; em Davip Hume, como cepticismo metafisico. Também em Bayte nio podemos falar apenas de cepticismo, no sentido de Pier, mas sim apenas no sentido do cepticismo intermédio. Em Dsscartes, que ‘A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 43, proclama o dircito 4 dfivida met6dica, nio existe um cepticismo de principio, mas sim justamente tum cepticismo metédico. £ evidente que o cepticismo radical ou abso luto se anula a si préprio. Afirma que 0 conhe- cimento é impossivel. Mas com isto exprime um conhecimento. Por consequéncia, considera © conhecimento como possivel de facto ¢, no entanto, afirma simultincamente que é impossivel. © cepticismo cai, pois, numa contradigio consigo prdprio. © céptico poderia, sem diivida, recorrer a um subterfigio. Poderia formular o juizo: « conhe- cimento € impossiveb por duvidoso, dizendo, por exemplo: mio h4 conhecimento ¢ mesmo’ isto € duvidoso». Mas também da mesma forma expri- mia um conhecimento: 0 de que é duvidoso que haja conhecimento. A possibilidade do conhe- cimento é enfim, afirmada e posta em diivida ao mesmo tempo pelo céptico. Encontramo-nos, pois, no fundo, perante a mesma contradico ante~ rior. Como jé tinham verificado os antigos cépti~ cos, 0 que pretende defender o cepticismo, sdmente abstendo-se de juizo pode fugir i contradicio consigo préprio’ que acabamos de notar. Mas isto ainda no é tudo, se virmos as coisas em todo © seu rigor. O céptico nio pode levar a cabo qualquer acto do pensamento. Logo que o faca, supde a possibilidade do conhecimento e, portanto, envolve-se nessa contradigdo consigo proprio, A aspi- ragio. a0 conhecimento da verdade carece de “ ‘TEORIA DO CONHECIMENTO sentido e de valor debaixo do ponto de vista de um rigoroso cepticismo. Mas a nossa cons- citncia dos valores morais protesta contra esta con- cepcio. O cepticismo, que nio ¢ refutivel ldgica- mente, enquanto se abstém de todo o juizo e acto do pensamento — coisa que é, sem dévida, priticamente impossivel—sofre a sua verdadeira derrota no terreno da ética. Criticamos, em iiltima anilise, o cepticismo, no porque 0 pode- mos refutar Idgicamente, mas sim porque o desfaz a nossa consciéncia dos valores morais, que considera como um valor a aspiragio & verdade. Ja tomimos também conhecimento com uma forma mitigada do cepticismo. Segundo ela, nio ha verdade nem certeza, mas apenas probabili- dade. Nio podemos nunca ter a pretensio de gue 0 osos Jjufzos scjam verdadciros, mas apenas je que sejam proviveis. Mas esta forma de cepticismo ‘acrescenta A contradigio, inerente em rincipio a posicio céptica, uma nova contra~ Uigio. © conceito. de ‘probabilidade pressupde 0 de verdade. Provavel € aquilo que se aproxima do verdadeiro. Quem renuncia ao conceito de verdade tem, pois, de abandonar também o de probabilidade. © cepticismo geral ou absoluto é, assim, uma posicio intimamente impossivel. Nao se pode afirmar 0 mesmo do cepticismo especial. O cepti- cismo metafisico, que nega a possibilidade do conhecimento do supra-sensivel, pode ser falso, ‘A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 45 mas nfo encerra nenhuma intima contradicio. © mesmo se dé com o cepticismo ético e religioso. ‘Mas talver no seja Iicito incluir esta posigio no conceito de cepticismo. Por cepticismo entende- mos, em. primeiro lugar, efectivamente, 0 cepti- cismo geral e de principio. Temos, além disso, outras denominagées para as _posigées citadas. © cepticismo metafisico é chamado habitualmente positivism. Segundo sta osigo, que remonta a Aucusto Comrs (1798-1857), levemos limitar-nos 20 positivamente dado, aos factos imediatos da experiéncia, fugindo de toda a especulacio metafisica. S6 hé um conhecimento eum saber, aquele que é proprio das cigncias espe- ciais, mas nio um conhecimento ¢ um saber filo- s6fico-metafisicos. Para o cepticismo religioso usamos a maior parte das vezes a denominagio de agnos- ticismo. Esta posicio, fundada por HERBERT SPENCER (1820 2 1903), afirma a impossibilidade de conhe- te G,abiohio. © gus eile podert daccodkcs era a denominacio de «cepticismo ético». Mas, agora, encontramo-nos aqui perante a teoria que vamos conhecer adiante debaixo do nome de rela- tivismo. Por mais errado que o cepticismo seja, nio se The pode negar certa importincia para o desen- volvimento espiritual do individuo e da Huma nidade. E, de certo modo, um fogo purificador do nosso espirito, que o limpa de prejuizos ¢ ertos ¢ 0 auxilia na continua comprovacio dos seus juizos. Quem tenha vivido intimamente o princlpio fiustico eu sei que no podemos saber 46 TEORIA DO CONHECIMENTO nada», procederi com a maior circunspeccio ¢ cautela nas suas indagagSes. Na histéria da. filo- sofia, 0 cepticismo apresenta-se como o antipoda do dogmatismo. Enquanto que este dé aos pensa~ dores ¢ investigadores uma cor ‘Go ingénua como exagerada na capacidade da razio humana, aquele mantém desperto o sentido dos proble- mas. O cepticismo espeta o aguilhio da davida no peito do filésofo, de modo que este no se con forma com as solugdes dadas aos problemas, mas Juta continuadamente por novas ¢ mais satisfatérias solugies. 3. © subjectivismo e o relativismo O cepticismo diz-nos que nao hé nenhuma verdade. O subjectivismo e 0 relativismo nio vio tio longe. Segundo cles, hé uma verdade; mas esta verdade tem uma validade limitada, Nio h& qualquer verdade universalmente vélida, © subjectivismo, como o seu préprio nome indica, limita a validade da verdade a0 sujeito que conhece e julga. Este pode ser tanto 0 sujeito individual ou 0 individuo humano como 0 sujeito geral ou o género humano. No primeiro caso temos um subjectivismo individual; no segundo, um subjectivismo geral, Segundo o primeiro, juizo & vilido inicamente para o sujeito indivi- dual que o formula, Se qualquer de nés julga, jor exemplo, que 2 x 2= 4, este julzo s6 é verda~ Soo para © préptio segundo © posto devia ‘A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 47, do subjectivismo; para os outros pode scr falso. Para o subjectivismo geral ha verdades supra- ~individuais, mas no verdades universalmente vili- das. Nenhum juizo é vilido mais do que para o género humano. O juizo 2x 2=4 € vilido para todos os individuos Thumanos; mas é pelo menos duvidoso_que 0 seja para seres organizados de modo diferente. Existe, no entanto, a possibili- dade do mesmo juizo que é verdadeiro para os homens, ser falso para seres de espécie diferente. © subjectivismo geral & assim, idéntico a0 psico- logismo ou antropologismo. (© relativismo est’ aparentado com 0 subjecti- vismo. Segundo ele, nio hi também qualquer verdade absoluta, qualquer verdade universalmente valida; toda a 'verdade é relativa, apenas tem uma validade limitada. Mas enquanto que o subjectivismo faz depender o conhecimento humano de factores que residem no sujeito cognoscente, © relativismo sublinha a dependéncia de factores exteros. Como tais, considera, em primeiro lugar, a influéncia do meio e do espirito do tempo, 0 per~ tencer-se a determinado cfirculo cultural ¢ os factorcs determinantes nele contidos. Do mesmo modo que 0 cepticismo, o subjecti- vismo ¢ o relativismo encontram-se ji na anti- guidade. Os representantes clésicos do. subjecti- vismo, sio, nesta época, os sofistas. A sua tese findamental tem a sua’ expressio no conhecido principio de Protdconas (século v a. C.): I dvtav ipnisoy ubspv avBpunoc (0 homem ¢ a medida de todas as coisas). Este principio do homo mensura, * TEORIA DO CONHECIMENTO como se Ihe chama abreviadamente, esti formu- ado no sentido de um subjectivismo individeal com a maior probabilidade, © subjectivismo geral que & idéntico 20 psicologismo, como se disse, tem encontrado delensores’ mesmo. na actiel dade, (© mesmo se, ode dizer do. elativsmo, : ter defendew-o na sua Decadénd do Ocidente. «S6 hd verdades — diz-se nesta Si em relagio a uma humanidade determinada». © cir- culo de validade das verdades coincide com o circulo cultural e temporal do qual procedem os seus defensores. As verdades filosdficas, mate- miticas ¢ das cigncias naturais s6 sto vilidas dentro do circulo cultural a que pertencem. Nio hi uma filosofia, nem uma matemética, nem uma fisica universalmente vélidas, mas uma filosofia fiustica ¢ uma filosofia apolinea, uma matemi- tica fiustica e uma matemitica apolinea, etc. subjectivismo e o relativismo incorrem numa contradicio andloga do cepticismo. Este julga que nio hi nenkuma verdade e contradiz-te a Si mesmo. O subjectivismo ¢ o relativismo julgam que nfo hi nenhuma verdade universalmente vilida; mas também ha uma contradigio, Uma verdade que nfo seja universalmente valida repre- senta um contra-sensor, A realidade universal’ da verdade funda-se na sua prépria esséncia. A ver~ dade significa a concordincia do juizo com a reali- dade objectiva. Se existe ssa concordéncia nio tem sentido limita a um néimero determi nado de individuos. Se existe, existe para todos. O dilema é: ou o juizo é falbo, e entio nao é vilide ‘A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 49 para ninguém, ou é verdadeiro, ¢ entio é vilido para todos, é universalmente vélido. Quem man- tenha o concvito de verdade e afirme, apesar disso, que nto hi nenhuma verdade wniversalmente vélida, contradiz-se, portanto, a si proprio. (© subjectivismo ¢ o rclativismo sio, no fundo, cepticiomo. Pois também cles negam a verdade, se nio directamente, como 0 cepticismo, indi- rectamente, quando ‘atacam a sua validade uni- versal. ‘©. subjectivismo contradizse também a si mesmo, quando pretende de facto uma validade mais do que subjectiva para o seu juizo: toda a verdade & subjectivar. Quando formula este juizo, nao pensa certamente: «6 ¢ vilido para mim, para os outros nio tem validade. Se alguém dissesse: acom 0 mesmo direito com que t dizes que toda a verdade € subjectiva, digo cu que toda a verdade & universalmente valida, de certo que no estaria de acordo com isto. Isso prova que atribui efectivamente ao seu juizo uma validade universal, E procede assim porque esti conven- cido de que © seu juizo reproduz uma situacio objectiva. Deste modo, supde priticamente a validade universal da verdade que nega em teoria. © mesmo se passa com o relativismo. Quando 6 selativismo assenta na tese de que toda a ver~ dade & relativa, esti convencido de que esta tese reproduz uma situagio objectiva e 6, portanto, vilida para todos os sujeitos pensantes. Quando Sronci, por exemplo, formula'a proposisio acima itada — sd hi verdades em relagio a ume huma- 50 TEORIA DO CONHECIMENTO nidade determinad» —, pretende dar expressio a tuma situagio objectiva, que deve reconhecer todo o homem racional. Vamos a supor que alguém respondesse: «Em relagio com os teus prdprios principios, este juizo s6 é vilido para o circulo da cultura ocidental. Mas cu. pertengo a um circulo cultural completamente diferente. Seguindo © impulso invencivel do meu pensamento, tenho de opor a0 teu juizo estoutro: toda a verdade & absoluta. Em harmonia com os teus proprios principios, este julzo € io plenamente justficivel como o ‘teu. Portanto, dispenso-me, de futuro, dos teus juizos, que sé sio vilidos para os homens do circulo da cultura ocidental. f Se alguém falasse asim, SrENGLER protestaria com todas as suas forcas. Porém a coeréncia légica no estaria do seu lado, mas sim do seu opositor. 4. pragmatisme © cepticismo € uma posicio essencialmente nogativa. Significa negeclo ‘da possbilidade do comhecimento. O cepticismo toma um aspecto positivo no modern pragmatismo (de npayya acco). Como o cepticsmo, também o pragma- tismo abandona o conceito da verdade no sentido da concordincia entre 0 pensamento © 0 ser. Porém, o pragmatismo aio se detém nesta nega io, mas substitu’ 0 conceito abandonado por um’ novo conceito de verdade. Segundo ele, A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 51 verdadero significa Gti, valios, fomentador da vida. © pragmatismo modifica desta forma o con ceito de verdade, porque parte de uma determi- nada concepcio do ser humano. Segundo ele, co homem nao é essencialmente um ser teérico ou pensante, mas sim um ser pritico, um ser de vontade ¢ de accio. O seu intelecto esté integral- mente a0 setvico da sua vontade e da sua acsio. © iintclecto € dado 20 homem, nao para inves tigar © conhccer a verdade, mas sim para poder orientar-se na realidade. O ‘conhecimento humano recebe 0 seu sentido e o seu valor deste seu destino pritico. A sua verdade consiste na congruéncia dos pensamentos com os fins priticos do homem, em que aqueles resultem teis ¢ proveitosos para © comportamento pritico deste. Segundo cle, o juizo a vontade humana & livres & verdadeiro porque —e enquanto — resulta til e proveitoso para a vida humana e, em particular, para a vida social. Como verdadeiro fandador do pragmatismo considera-se 0 fildsofo americano Wuxtam Jams (f 1910), a0 qual se deve também o temo’ «pra~ gmatismo». Outro notivel representante desta cor Tente € © filésofo inglés Scams, que propos para cla o nome de shumanismo.” ©. pragma- tismo encontrou também adeptos na Alemanha, Entre eles conta-se, em primeiro plano, Funpenico Nuerzscue (f 1900). Partindo do seu conceito natu- ralista e voluntarista do set humano, diz: «A verdade nao € um valor tedrico, mas apenas uma expres- 32 TEORIA DO CONHECIMENTO sio para designar a utilidade, para designar aquela fangio do juizo que conserva a vida e serve a von~ tade do podem. De modo mais paradoxal cle exprime esta mesma idcia quando diz: «A falsi- dade de um juizo nao & uma objeccio contra esse juizo. A’ questio esti em até que ponto estimula a vida, conserva a vida, conserva a espécie, mesmo, educa a espécier, Também a Filosofia do como se, de HANs VAIHINGER, pisa terreno pra~ gmatista, VaUNGER apropria-se da concepsio de Nierzscus. Também, segundo ele, 0 homem é, antes de tudo, um ser activo, O intelecto nao Ihe foi dado para conhecer a verdade, mas sim para actuar, Mas, muitas vezes, serve i accio ¢ 08 seus fins, justamente porque cmprega repre~ sentagdes falsas. © nosso intelecto trabalha de preferéncia, segundo VAIKINGER, com pressupostos Conscientemente falsos, com ficgSes. Estas apte~ sentamese como ficgdes preciosas, desde o momento em que se mostram Gteis e vitais. A verdade é, ‘ois, «© efro mais adequado». Finalmente, tam= Bem Jonce Simmer defende o pragmatismo na sua Filosofia do dinheiro. Segundo cle, si0 «verda- deiras aguelas tepresentagées que resultaram em motivos de accio adequada ¢ vital. ‘Agora bem; evidentemente que nfo & licito idenuficar 05 conccitos de «verdadeito» ¢ de «itil. Basta examinar com alguma atengio 0 contetido destes conceitos para ver que ambos tém um sentido completamente diferente. A. experiéncia revela também a cada paso que uma verdade pode actuar nocivamente, A guerra mundial foi A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 53 singularmente instrutiva sobre este aspecto. De um ec outro lado se acreditava ser um dever ocultar a verdade, porque dela se temiam efeitos nocivos. Estas objeccdes no atingem, sem davida, as posigdes de Nrerzscuz e de VAIHINGER, que man- tém, como se viu, a distingo entre 0 «verda~ deiror e 0 «ith, Conservam 0 conecito de verdade no sentido da concordincia entre 0 pensa- mento ¢ 0 ser. Mas, na sua opiniio, no alcan- amos nunca esta concordincia. Nio hi qual- quer jufzo verdadeiro, a nio ser que a nossa cons- Gignela cognoscente trabalha com representagdes conscientemente falsas. Esta posicio é, eviden- temente, idéntica ao cepticismo © anula-se, portanto, a si mesma, VAIHINGER pretende, com feito, que a tese de que todo o conteddo do conhe- cimento 6 uma fic¢io, & verdadeira. Os conhe- cimentos que cle expe na sua Filosofia do como se pretendem ser alguma coisa mais do que ficydes. Na intengio do autor, pretendem ser a tinica teoria exacta do conhecimento humano, e nio um «pres suposto conscientemente falso». © erro findamental do pragmatismo consiste em nio ver a esfera légica, em desconhecet 0 valor proprio, a autonomia do pensamento humano. © pensamento e 0 conhecimento estio certa~ mente na mais estreita conexio com a vida, porque estio inseridos na totalidade da vida psiquica humana; 0 acerto ¢ valor do pragmatismo radi~ cam-se justamente na continua referencia a esta conexio, Mas esta estreita relagio entre o conhe- 4 TEORIA DO CONHECIMENTO cimento e a vida nio deve induzir-nos a passar por cima da autonomia do primeito e a fazer dele uma simples funcio da vida. Isto s6 & possivel, como se provou, quando se falsifica 0 conceito de verdade ou, como fiz 0 cepticismo, quando se nega esse mesmo conceito. Mas a nossa cons- ciéncia légica protesta contra ambas as coisas. 5. O criticismo _ © subjectivismo, 0 relativismo ¢ 0 pragma tismo so, no fundo, cepticismo. A _antitese deste & como vimos, 0 dogmatismo, Mas hi uma terceira posisio que transformaria a anti- tese numa sintese, Esta posigio intermédia entre © dogmatismo e 0 cepticismo chama-se crificismo (de xpivcrv = examinat). © criticismo partilha com © dogmatismo a confiana fundamental na razio humana. O criticismo est convencido de que é possivel o conhecimento, de que ha uma verdade, Mas enquanto que esta confianga leva 0 dogma- tismo a aceitar desprcocupadamente, por assim dizer, todas as afirmagies da razio humana e a no reconhecer limites a0 poder do conhecimento humano, criticism, neste caso mais perto do cepticismo, junta 3 confianga no conhecimento humano, em geral, a desconfianga perante todo © conhecimento determinado. O criticismo examina todas as afirmagdes da razio humana e nio aceita nada despreocupadamente, Onde quer que seja pergunta pelos motivos ¢ pede contas a razio ‘A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 55 humana, © seu comportamento nio & dogmé- tico nem cfptico, mas sim reflexivo € ctitico. um meio termo entre a temeridade dogmética € 0 desespero céptico, Existem sinais de criticismo onde quer que aparegam reflexes epistemol6gicas. ‘Assim acontece na antiguidade com Pxatko ¢ Amstérexss © entre 0s estbicos; na Idade Moderna, em Descartes ¢ Letpnrrz ¢ ainda mais em Locke e¢ Hume, O verdadeiro fundador do criticismo & sem davida, Kant, cuja filosofia se chama pura e simplesmente

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