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>————— — | SOBRE A GEOGRAFIA CULTURAL MICHEL SIVIGNON - UNIVERSITE PARIS-NORD ‘RESUMO- ESTE ARTIGO SUSTENTA QUE 0 INTERESSE DA GEOGRAFIA CULTURAL ESTA, NO ESSENCIAL, CONECTADO COM 0 DA GEOGRAFIA POLITICA, PELO MENOS NOs PAISES EUROPEUS. A RELGIAO, A LINGUA CONSTTUEM A BASE DE INSTTUICOES QUE PERMITEM ESTRUTURAR AS SOCIEDADES. AS UNICAS SOLUCGES PARA CONFLITOS CULTURAIS SAO POLITICAS. PALAVRAS-CHAVE: GEOGRAFIA CULTURAL, GEOGRAFIA POLITICA, TERRITORIO. Algumas observacées__preliminares permitirdo situar este artigo. Ele parte do prinefpio (ou do axioma) segundo 0 qual "€ geogréfico todo objeto, no sentido estatistico do termo, que diferencia o espago terrestre”. Em um plano mais, concreto, este artigo € fruto de reflexdes desenvolvidas a respeito da geografia da Europa, com uma mengio particular & Europa oriental © meridional, Além disso, cle tem origem na necessidade de uma aplicagio possivel no terreno das reflexdes tedricas Doss Procepinentos Do ponto de vista das consideracées a respeito do campo cultural, existem dois procedimentos, possiveis que, talvez, se excluam. O primeito prvilegia a modernizacio da sociedade ou, se preferirmos, as modalidades da passagem de um modo de produgao antigo a um modo de produgio novo. Nesta ESPAGO E CULTURA, UER), RJ, N. 14, F 23-39, JUL/DEZ DE 2002 EER perspectiva, os tracos que podemos atribuir a uma cultura, entendida como heranga imemorial de uma sociedade, adicionam somente nuangas ao esquema geral da evolucao. Esses tracos, no limite, podem aparccer apenas como as tiltimas resisténcias a nova ordem. E uma geografia que se dedica a descrever essas resisténcias pode ser considerada como A segunda abordagem, a0 contrério, considera como tema central 0 estudo da persisténcia, através do processo de modernizacao da sociedade, de um substrato que, de alguma forma, € 0 niicleo sélido, sustentador, dessa sociedade. Esta € a posigio ilustrada por Bonnemaison, quando escreve em um de scus textos: “pediram-me para analisar os modos de desenvolvimento ~ a irrupgao de qualquer tipo de progresso. Ora, 0 que me fascinava era justamente a resisténcia a0 desenvolvimento, pelo. menos a um desenvolvimento concebido de acordo com nossas © Risco Ersocranico, A preferéncia pelo segundo procedimento presenta alguns riscos que nao sio imaginérios e que, de minha parte, experimentei quando tentei ensinar, nna universidade, aquilo que acreditava serem temas de geografia cultural (O primeiro risco aser evitado esté contido naquilo que P. Dumolard denomina "uma geografia de curiosidades’. Cafmos nessa armadilha quando isolamos determinado aspecto técnico atribuido a uma determinada area cultural. Exemplos disso sio as descrig6es do habitat rural, que estiveram em moda na geografia francesa do periodo entre as duas guerras. E também aqueles capitulos sobre “ragas, linguas, religides’ de nossas geogralias gerais. Isto significa interessar-se apenas por aspectos secundérios herdados. Este € um risco do qual W. Zelinsky (A cultural geography ofthe United States) nem sempre consegue escapar quando tenta definir regides culturais no interior dos Estados Unidos, partindo da casa e indo até 0 pertencimento a uma igreja © & pratica de um regime alimentar especitico. Parece-me que este risco é evitével, & condigio de nio acreditarmos que a combinagio de aspectos heterogéncos seja o bastante para definir uma cultura, © & condigio também de hierarquizar esses aspectos: a prética de uma lingua nio pode ser colocada no mesmo plano que a forma de um telhado. © Risco pe Dinuic’o W. Zelinsky, em seu esforgo para definir uma cultura, apresenta uma representacio esquematica dos sistemas culturais, tais como os vé (op. cit. p.73), Essa representagdo esquemética comporta trés dimensdes, Uma dimensao espacial: a das “regides culturais’. A segunda é a dimensio dos componentes de uma cultura, ou seja: 0s “artefatos” (componentes téenicos), isto é, 0 conjunto da tecnologia que fornece bens ¢ servicos, os “sociofatos" (componentes da vida de relagao), ou seja, parentesco, comportamento politico educagio, e os “mentefatos” (representagoes mMentais), ou seja, religiao, arte, magia, folclore etc. A terceira dimensao provém da combinacao de componentes para gerar as “subculturas", elas mesmas divididas de uma maneira ainda mais detalhada. W. Zelinsky vai bastante longe nessa divisio em subculturas, levando-a praticamente até o indi luo € explicando que as regides industrializadas caracterizam-se por essa espécie de automatizagao das culturas. Encontramos em Bonnemaison ¢ Dumolard, por exemplo, essa idéia de correspondéncia entre culturas © categorias sociais, idéia que nao esté muito distante daquela de P. Claval, que prope passar “dos géneros de vida aos papéis", estes iltimos sendo comportamentos individuais semelhantes a certos modelos sociais. Parece-me que esta diluigao da nogao de cultura € cheia de perigos, se adotarmos a posigio de nio ver sendo subculturas atomizadas, correspondendo as categorias sociais, as classes de idade, aos grupos profissionais, entre outros. Essa operagio retira do conccito toda utilidade: uma vez que admitimos que todo grupo constitui sua prépria cultura no seio de nossas sociedades industrializadas, retiramos aquilo que, a meu ver, é 0 elemento central, isto é, a adesio a um sistema de valores reconhecido pelo conjunto do corpo social Além disso, muito freqientemente, essa multiplicidade de subculturas nao corresponde a uma divisio do espago: portanto, a meu ver, ela nao € suscetivel de um tratamento geogratico. WHEE sraco © CuLrura, UER, RI, N14, P 35.39, JUL/DEZ. DE 2002 Divensto Cururat a GrOGRARA POLITICA, = Talvez seja possivel avangar no estudo do campo cultural nas sociedades _industrializadas, principalmente nas sociedades européias, retomando a distingdo cléssica de Pierre Gourou entre t€enicas de produgio e técnicas de enquadramento. Em nossas sociedades industrializadas © urbanizadas, a5 caracterfsticas culturais intervém pouco nas téenicas de produgio. Esta € uma das razbes pelas quais a nogio de “género de vida" tornou-se completamente inadaptada. E também uma razio pela qual uma geografia cultural, limitada as repercussdes a partir das técnicas de produgio, torna-se uma espécie de etnografia, limitada a um repertério. Este € 0 caso, por exemplo, da repartigio geogrifica das pontes cobertas no Nordeste dos Estados Unidos, utilizada, entre outros critérios, por W. Zelinsky para definir uma "regido cultural” da Nova Inglaterra Mas, por outro lado, é preciso enfatizara extrema importincia das caracteristicas culturais na geografia politica do continente europeu, Essas caractersticas culturais intervém no mais a titulo de técnicas de produgio, mas de téenicas de enquadramento. Neste sentido, a geografia cultural se inscreve aqui em uma gcografia do poder. Com efeito, a histéria da Europa. partir da Idade Média mostra unidades politicasteritoriais (Estados mais ou menos completos) que sempre tentaram smobilizarem seu proveitoasafiliagBes cultura, para fazé-las coincidir com 0s limites de seu proprio poder. © feudalismo pode ser interpretado como uma mobilizagio das relagbes de parentesco em proveito das forgas politicas: a hierarquia do poder entre os feudats reproduz a relagio do filo com 0 pai (submissio, apoio a causa do suserano) earelagio do pai com o filho (a protegio devida ao vassalo). ESPAGO E CULTURA, UER), RJ, N14, P 33-39, JUL/DEZ DE 2002 EE Do Reuicioso ao Pottico_ E se afirmarmos (como faz P. Dumolard) que mais tarde as guerras de religido do século XVI "nao sio lutas de territéries .mas no € pelo mesmo territério’, € preciso nos apressarmos em acrescentar que, exatamente, todo esforgo dos soberanos consistit em unificar a confissao religiosa de seus siditos ¢, conseqiientemente, em fazer coincidir os limites de seus estados com aqueles das diferentes afiliagées religiosas, porque parecia escandaloso que os habitantes de um mesmo pais nao partilhassem da ‘mesma fé. Este é bem o sentido do provérbio “ewius regio, cujus regio". Eis porque 0 desenho das areas religiosas na Alemanha contemporénea corresponde aos limites dos Estados, pequenos ou grandes, do Santo Império. Mas, dir-se-é, trata-se de uma época passada. Nada menos certo do que isso. Nos paises ortodoxos da Europa oriental, a constituigio de igrejas autocéfalas sempre foi encorajada pelo poder politico: a igreja autocéfala russa foi erigida a partir do século XVI, ¢, a medida que os paises baleanicos se livraram da dominagio otomana, no século XIX, constituiram igrejas ortodoxas autocéfalas. A prépria Albania, onde os ortodoxos nio passam de 20%, edificou uma igreja autocéfala em 1937, para escapar da tutela grega. Esta necessidade esté longe de desaparecer depois de 1945: © poder politico intervém para suprimir as igrejas uniatas, é verdade que a Polénia, antes de 1939, ¢a Hungria, antes de 1914, haviam agido no sentido inverso. Mais perto de nés hé uma dezena de anos, 0 governo federal de Belgrado deu seu apoio (quer dizer, sua béngio) & constituigao de uma igreja autocéfala da Macedonia, independente do patriarcado sérvio, procedimento destinado a apoiar © esforgo de edificagao de uma nacionalidade maced6nica que escapava das reivindicagées da Bulgéria. No entanto, a lugoslévia se orgulha do ‘materialismo histérico, Mas isto ndo a impede de considerar os mugulmanos na Bésnia-Herzegovina como uma nacionalidade. Uma reuniao plenéria do Comité Central da Liga dos Comunistas da Bésnia. Herzegovina proclamou oficialmente, em 17 de aio de 1968: “os mugulmanos, como demonstra nossa praxis socialista, so uma nagio 2 parte’ ‘Ao mesmo tempo que poder politico se esforga or controlar a esfera religiosa e orienté-la no sentido de suas préprias finalidades, na Europa oriental ele tenta também limitar 0 rligioso ao interior dos lugares de culto, Tal €0 sentido da luta entre 0 poder politico a Igreja catdlica na Polénia, quanto & questio das ProcissOes: trata-se, para a lgreja, de reivindicar uma tomada de posse simbélica do territério, materializada Por um percurso solene, pontuado por etapas chamadas de repositérios * E 0 poder politico nao pode admitir ‘essa tomada de posse, mesmo que simbélica Sobre papel que os pertencimentos religiosos

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