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Nesse momento de democratizacdo das viagens de amplo acesso 8s novas teenologias, a midia nos faz entrar em contato quase cotidiano com as mais diversas Iinguas. Simultdnea, literdia, jornalistica, ou ainda técnica, a tradugo constitui a tinica me- jagio, nfio apenas entre as Imguas, mas também entre as culturas. ‘Muito além do cliché traduttore, traditore, quais sto ‘03 mecanismos postos em aco quando se trata de traduzir uma lingua? B preciso que a traducao se apague para que obra pareca tersido concebida na Tingua de chegada, ou se devem preservar as parti- cularidades da lingua de origem? Esta obra apresenta a histOria, as teorias e as ope- ragdes linguisticas « literdtias dessa atividade tio especifica: a traducio, NA PONTA DA LINGUA 1. Eurangeinsme—uernacem tra da lon Carlos Alberto Fons [oe] 2. Lingua mterna — leoramenta, sariacoeexsino ‘Marcos Bano, Michael Stubbs & Gills Gagné Histriaconcia da lingustica, Bachata Weediwood ‘Sociolinguistioa —uma sntrodngaocritea, LonisJean Calset Histria cowci daesria, Cases Higownet Paes Para entender a ingnitica — epstemologiaelementar dewma ‘iseplina, Robert Martin Te Inerodupto aus estado clears, Armard Maweaet, Bik Neven 8A pragméticn, rangose Armengal 9. Histvia concen da somstica, Anse Hénasit 10, Histiria concion da seondntcn,ieae Tema 1, Linguistica computacional —teora & prea Gabriel de Avil Other e Seno de Moura Meuiazi 12, Linguistica hisuiica — Uma trvdugio a estado da histvia das Tinguas, Carlos Alberto Faroco 1 Latur com patavnas — eve ecvettela, and Antunes 14, Andliseda discurso — Histira pdtcas, Pracine Maxitxe 18, Maco que émesmo “gramética”? Carlos Branch 16. Anise da conversa: principase métodos Catherine Kerbnat Oresehiont 17, AtpulitcasHngndteas, LauisJensCalvet 1S. Pratieas de etramento wa ensino Kura escritaedscxnso Crlos Alberto Femaco, Maria co Risiro Gregnla, Gilvan Maller de Olive, elma Gimene, Laie Caos Travagtia 18. Relevincia social da tingusticaligauagery, teria eens Luiz Percival Leme Britto, Mareos Bagno, Neiva Maia Jung, Eats de Lourdes Savell, Maria Marta Furlanetto 20, Tudo mundo devia escever, Gongs Picard 21. A aryementapo, Christian Panto 22, Tradipio oral & tradigaecrta, ouisJean Calvet 23, Tradupia histria eriase metalos,Micho8) Oustino!T 24. Gramdtioa de bolo do potas bail, Marcos Bag Michaél Oustinoff TRADUCAO Histéria, teorias e métodos ‘Marcos Marcioniloy ray? ‘hal gna docin hyeses Unive deFanc, 2002 ‘redone 2009, novembre ‘Sansone 2130576752 reigo mse ea sro arco Cort vano tess Ani Cte fase on ante‘ Mip./natamatulbiogspetcon/2011/0Vaducoes hes: ‘mss ivesmesiohind Coven ans Ana Stal les (Unsnos ‘anglais DinsifUFFE] (aio Abr Face (FE gonde Olvera Ranga PUCSP, ivan ler de Ota USC po Henrique Votespudo Unis deSaagn de Compost anal ajsgopatan{UNICAMP) aeos Boge (Une). Inara tat Pesta Scere [UES] achel Gaols de Arras PUCSPI ‘abartoMulnsc(Unversidc d olonh Roxane Rojo UNICAWE) Sima Tans Mucha PUCS Si Possent UNICAN Stola Mors orton lard (Un) ‘canna. cemosngto wa rove ‘Sotcavo nacOMNL 00s COvTORES OE URS R rec att se “Tol ta, woe «made / ch Out sedis twotanan sa eon car 3 Rete \aoygoe eps tla ues rena GOLA FOAL ine tire cere 394 -ptanga Sear-oo Sera foe Ss 2968] 25536 | we 19 5619075 ome page wosababetralcem br al pacbapontecdtotaconbe TTR als tm peonesa preted bree Pane tase ern i dette ot ye sen, 97605.5940284 ‘ekgto - ¥cimpeso: io do 2015 (da cio asl: artela Er Sao Paul abi do 2017 SUMARIO. Introdugio Cavtruto I: Diversidade das linguas, universalidade da tradugao 1. Babel ea diversidade das linguas 2. Linguas e visbes do mundi 3. A traduiio, operagto fundamental da Linguagem Caviruto Mi: Histéria da tradugio. 1. Ocspirito ea letra. 2. As belas infiéis. A epoca contempordnea Caeiruto IIL Teorias da tradugio. 1, Lingua-fonte ¢ linguacalva. . Linguistica ¢ traduca 8, Puctica da traducao, 1 Critica das waducies Canmore We Op 1, Dadugio es ragdes da tradugio ., ov MLLACEO «a ransposicies ¢ modalacies 4, Traidugao on deformagao? 4, Hilinguismo de escrita ¢ antotradngéo. uw ul 16 23 30 30 36 46 53 53 87 61 a7 72 a 7 86 m0 Cariruro V: Tradugio e interpretagao 1. Do escrito ao oral 2. Tradugao e restiruigao. 3. A tradugito “ancomdtica” Caréruxo VI: Os signos da teadugao 1. Deum sistema de signos a outro 2, Traduca e globalizagao. 3. Semidtica da tradugio . 4, A traducio a servico das linguas Conelusao ... Bibliografia. indice onoméstico. ‘TRADUGKO - HISTORIA, TEORIAS E METODOS 109 ud 4 uz 121 125, 130 134 141 INTRODUGAO. Nesse momento da democratizagao das viagens e do acesso as novas tecnologias, que nos faz entrar em contato com as mais diversas linguas, a tradueSo no apenas se amplia, como se diversifica, para assumir noyas formas que € imprescindivel levar em conside- raciio, seja no Ambito do especialista, seja no do leigo. Nao obstante, os mecanismos da tradugao perma- necem desconhecidos, especialmente porque se acha que a traducZo esti reservada exclusivamente aos es- pecialistas. Mas, na realidade, seu campo é muito mais vasto: antes de se transformar em um assunto para tra- utores ou intérpretes, ela constitui, em sen préprio principio, uma operagio fundamental da lingwagem, no disso, nos tornamos mais capazes até mesmo de entender suas diferentes manifestagées, se- clas exeritas (tradugdo literdria, traducao jornali ties, traded 1), ow orais (tradugio consecutiva ou sinuultdinea, feita por intérpretes).. Seis partes serao aqui abordadas, uma por vez. A prineisa ressaltard que a aparente diversidade di ivan no nos deve fazer esquccer as correspondén «que a» figom em profundidide, o que permite entender Jhor o-que torna possivel a passagem de uma ti un para outta, Pereebemos, entao, que a tradugdo tem a TRADUGRO - HISTORI, TEORIAS E METODDS uum alcance bem mais geral do que costumamos pensar, porque ela esti presente no proprio seio de toda fingua, por meio da reformulacdo, Toda e qualquer comunica- Gio pressupde o exercfcio de uma faculdade como essa, utilize-se uma s6 lingua ou utilizem-se varias. “O que é traduzir?” 6 uma pergunta imposstvel de responder sem levar em conta a dimensio histo: rica, Distinguiremos trés grandes eixos: 0 da proble- ‘mitica do espirito e da letra, distinedo que podemos fazer remontar & tradugio dos textos gregos pelos ro- manos ou dos textos biblicos, primeiramente para 0 Jatim (a Vulgata de sio Jeronimo), depois para as lin- guas vernaculares (a Biblia de Lutero para o alemfo, a Authorized Version para o ingles ete.). Nesse primeiro perfodo, que vai até o Renascimento, o que se busca 6 certa fidelidade ao original, mas, nos séculos XVII e XVII, opera-se um movimento de péndulo na direcao posta: partindo do principio de que uma traclugao s6 podia ser bela se fosse infiel, os tradutores passaram a dar as costas a letra do original como bem hes aprou- vesse. Atualmente, essas transformagGes no so mais aceitas (elas seriam consideradas como adaptagoes), 0 que exige demonstrar uma literalidade muito maior. ‘A histéria da traduedo ¢ indissociavel dos escritos sobre a traducdo. A maioria desses escritos é resultado da critica textual, o que é evidente no caso dos textos teligiosos ou literdrios. I nesse quadro da critica, en- tendida em sentido amplo, que devemos reposicionar as teorias contemporineas da tradugiio, demasiado nomerosas. Blas podem se ordenar em duas grandes categorias: aquelas que se fundamentam na linguistica wtRoDUGRO 3 € aquclas que ultrapassam esse quadro, reservando-se co direito de nele se inspirarem, em caso de necessidade. As diferentes maneiras de traduzir, tanto quanto 08 quadros te6ricos, apresentam uma imensa diversi- dade. Dai decorre a importancia de pér a descoberto os ‘mecanismos subjacentes & tradugao, da maneira mais objetiva possivel, Privilegiaremos a abordagem descri- tiva (“como se traduz?"), em detrimento da aborda- gem prescritiva (“como se deve traduzir?”), ou pura- mente te6rica (“o que é traduzir?”), Em matéria literdria, foi o escrito que prevaleceu sobre 0 oral, pelo menos na civilizagéo ocidental. Essa € a razao pela qual os estudos referentes a tradugaio oral sio mais raros e mais tardios que aqueles que inci- dem sobre a tradugao escrita. Como esse desequilibrio std atualmente resolvido, a tradugao oral é um campo ‘que no podemos esquecer, dada sua importancia, Por conta da diversidade de suas formas, a tradu- iio precisa ser examinada em um quadro mais amplo, 0 da tradugao “intersemiética” (R. Jakobson), onde no se (rata mais de passar de uma Iingua para outra, mas le um sistema de signos para outro, Essa modalidade de tradugao assume uma importancia toda particular Ho momento em que as novas tecnologias, especial- jnenle com as transmissées via satélite e por internet, ‘vos mergulliam em um mundo multilingue e proteifor- io, cmt todas as suas modalidades, snc, no qual a trad © convoeada a desempenthar um papel detesminante, A tradugio se transformou em uma faceta im- portunte das atividades dos grandes organismos in- lornacionais, que revorrem a tradutores e a interpre 10 TRADUGHO - HISTORIA, TEORIAS = NETODOS tes altamente habilitados. E, além ¢ acima disso, no podemos esquecer a importaneia que ela assume na aprendizagem de linguas estrangeiras e, mais funda- mentalmente, no conhecimento da propria lingua, porque, como dizia Goethe, grande tradutor: “Quem no conhece linguas estrangeiras nao sabe nada da sua prépria”!, Esta é uma férmula que podemos inverter: © conhecimento que cada um tenha da prépria lingua contém, em poténcia, o conhecimento de todas as ou- tras — por intermédio da tradugao, A tradugio € mais que uma simples operagéo linguistica: as linguas sdo insepardveis da diversidade cultural, essa diversidade vital que a ONU, por meio da Unesco, pretende defender, a fim de evitar a proli- feracdo de contlitos decorrentes do choque de culturas neste século XXI. 1 Apud George Kersaudy, Langues sans fronttres. A ta dow verte des langues d’Burope, Paris: Autrement, 2001, p. 147. CAPITULO I: DIVERSIDADE DAS LiNGUAS, UNIVERSALIDADE DA TRADUGAO A torre de Nimrad fei construida de palavras. George Steiner, Language and Silence, 1986 1, Babel e a diversidade das linguas Estima-se que atualmente se falem mais de 6.000 linguas, Ha quem diga que so menos, mas isso fiz pouica difetenga: seu niimero exato é tamanho que se- tia quimérico pretender aprender todas elas. A torre de Babel constitui a figura emblematica dessa profu- sito, para além de suas diversas representagdes piet ticas, e mesmo que a torre tenha realmente existido cm Bubildnia (seus vestigios ainda sio visiveis no Tra- \jtie), mt mito € feito de palavras. No livro do Genesis (11,9), 0 telato se conclu assim: Iahweh os dispersou de I para toda a superficie da tera, e eles nua de constr a cidad. Foi assim que passarem a cham ‘ce Buh, pore fii que Iweh eonfindin a Kinguagem de ‘ovloses habitants da terrae fa que ee os dspersou por toda «superficie ca eve rf, 1908, Hea 2002. rs: Falitions dy 0 Pate: Pah La ibe de Jerse, ositten Bia de erate eee 2 TRADUGHO - HISTORIA TEORIAS € NETOOOS Em: parte alguma, encontraremos referéncia a traduco, mas ler a Biblia a pressupde: raros so os lei- tores capazes de ler 0 Antigo Testamento “no texto”, isto é, em hebraico. E impossfvel falar de traducdo deixando de levar em consideragio 0s textos biblicos, seja-se ou niio cren- te, especialmente porque eles foram e continuam a ser, de longe, o cbjeto do maior empreendimento de tradu- io na histéria da humanidade: atualmente, a Biblia est traduzida em 2.233 linguas. Nenhum outro texto de igual importancia é enunciado em tantos idiomas. A di- versidade das inguas, é preciso ainda superpor a diver- sidade de versdes: mesmo que tenhamos tomado como referéncia a Biblia de Jerusalém, existem muitas outras. Independentemente da dimensio religiosa, a tra- ducio da Biblia faz surgirem trés dados fundamentais que se aplicam a toda modalidade de tradugdo. Para co- mecar, a questo, evidente, da mudanca de lingua: tra- duzimos porque a Kingua original nao é ou nao é mais compreendida. Se, no século IIT aC., a col6nia judaica de Alexandria traduz para o grego a Biblia dos Setenta € pata torné-la acessivel ao maior mtimero possivel, 0 que implica recorrer & lingua dominante da época, & por razées andlogas que o Novo Testamento seré redigido em grego € nao na lingua do Cristo, o atamaico, Inteiramente traduzidos ou redigidos em grego, os textos biblicos serio, por sua vez, traduzidos para o latim, que se tornara a lingua dominante da cristandade. A primeira fungao da tradugao 6, entdo, de or- dem pratica: sem ela, a comunicacao fica comprome- tida ou se torna impossivel. Vemos imediatamente DIVERSIOADE OAS LINGURS, UNIVERSALIDADE 0A TRABUGKO 13 todo 0 proveito que podemos extrair dessa faculdade: os intérpretes tinham 0 status de prineipes no Egito, em razio da importéncia primordial que eles podiam assumiir em matéria de diplomacia. Em contrapartida, podemos compreender por que a tradugio pode se revelar, na plena acepgio do termo, como a condigao de sobzevivéneia de uma Kin- gua, Se a pedra de Roseta néo contivesse a tradugio de tum texto rediigido em hierdglifos e em demético (uma verso simplificada dos hierdglifos) para uma lingua couthecida, 0 grego, Champollion nao teria chegado a decifié-los, e a Lingua dos farads teria permanecido, sem diivida, tio impenetravel quanto a dos etruscos. ‘Uma lingua que ndo se consegue mais traduzir é uma Iingua morta, antes de a tradigdo vir a ressuscitéla, segundo aspecto a considerar é a questio da lingua — nesse caso especifico, das linguas em pre- senga, Nao é a mesma coisa traduzir do hebraico, lingua camito-semitica, para o grego, lingua indo-eu- ropeia, ou do grego pars o latim, Iinguas pertencen- mesma familia, ou do espanhol para o francés, smo que © mecanismo de base permanega 0 mes- 1B desse modo que, em Jona et le signifiant errant, Henri Meschonnie nos fornece a retranserigao do ori- inal hebraico “mechamrim / havté-chay /// hasdam ya ‘sivw (Jonas 2,9) e sua traducdo literal: “Guar- dines orvalhos-vaidades sua piedade abandonarao”, Hen Meschannie, Jo et fe siifian errant, Parise Gal get KD, “4 TRADUGHO - HISTORIA, TEORIAS E METODOS traduglo que pressupde claramente 0 conhecimento do hebraico, mas que vai dar, em portugues, num dis- parate, A Biblia de Jerusalém traduz: “Os que server a vaidades, é sua béngdo que eles abandonam”: Po- deriamos perfeitamente multiplicar os exemplos nos quais 0 “decalque” de uma lingua sobre outra dé um resultado absurdo, quaisquer que sejam as linguas consideradas, sejam elas préximas ou distantes. Sem diivida, ¢infinitamente mais dificil para um falante do portugués brasileiro ou do francés aprender o hebrai- co do que o inglés ou 0 espanhol, mas a tradugdo no poderia ser reduzida, como vemos frequentemente, a ssa tiniea dimensio linguistica, Segundo essa concep- Gio, bastaria ser, ao mesmo tempo, um bom linguista para conhecer a “lingua de partida” (0 hebraico, ou qualquer outra lingua) e dominar suficientemente a “lingua de chegada” (em nosso caso, 0 portugués bra- sileiro) para chegar a uma traducio que representa 0 original sob uma forma equivalente, sem considerar a diferenga das Iinguas. Trata-se de uma condigao ne- cessaria, mas ndo suficiente, Com efeito, a fungio comunicativa da traducao € a sua dimensio linguistica aerescenta-se um tercei- 10 fator, vinculado aos anteriores, o da pluralidade das versoes de um mesmo texto. O exame de outras tradugdes dadas por Henri Meschonnic dé testemu- nho disso. Além da tradugio da Biblia de Jerusalém, ele cita a do rabinato frances, sob a diregio de Zadoc Kahn (1899): “Aqueles que reverenciam fdolos men tirosos fazem pouco de sua salvagao”; a de Louis Se gond (1910): “Aqueles que se apegam a idolos vios / DERSIOADE DAS LINGUAS, UNVERSALIDADE DA TRADUCKO 15 Afastam de si a misericérdia”; a tradugdo dirigida por Edouard Dhorme para “La Pléiade” (1969): “Aqueles que reverenciam 0s idolos vos, / abandonam sa pie~ dade”; a da Tradugao Ecuménica da Biblia (1975): “Os fandticos pelos idolos vis, / que renunciem a sua devocio!”, Por fim, duas traducdes deliberadamente mais proximas da formulacdo hebraica, a de Choura- ui (1976): “Os conservadores das fumagas do pro- blema sua dilecéo ahandonam”, ¢ a do préprio Henri Meschonnic (1981), cuja dispasiglo grifica busca re- produzit a postica do ritmo do original: “Sentinelas de vento vapores: Sua fé abando- nardo”, Nao é a luz de consideragdes de ordem unica- mente linguistica que podemos distinguir as verses ‘entre sis nao é quem quer que pode se Jangar a tradu- cdo da Biblia. A competéncia dos tradutores nao est em causa na multiplicagao das variantes. Realmente, essas variagdes so impressionantes, como também destaca Julien Green, escritor e po- liglota, Ele registra em Le langage et son double que, ali onde a Vulgata de sio Jerdnimo trazia: “Nam et si ambulavero in medio umbrae mortis, non timebo inala” (Salmo 23,4), que ele traduz como: “E mesmo «que cut ande em meio as sombras da morte ndo temerei tal alyum”, a Biblia de Lutero dé: “Und ob ich schon \wanerte im finster Tal, fiirchte ich kein Ungliick” (*E tmesmo que cu vague pelo vale das trevas néo temerei ‘wal algum”), enquanto a Authorized Version tradun por: “Yea, though [walk through the valley of the sha- 6 TRADUGNO - HISTORIA, TEORIAS € METODOS. dow of death, I will fear no evil” (“Sim, mesmo que eu ande no vale da sombra da morte, néo terei medo do mal”). A versio latina contém “a sombra da morte”, ras no “o vale”, a versio alema contém o “vale”, mas fo “a sombra da morte”, enquanto a versio inglesa contém os dois’, Diante dessas diferencas, podemos adotar varias atitudes. A primeiza consiste em concluir pela intra- duzibilidade radical de toda lingua por outra. Para 05 muculmanos do mundo inteiro, 0 Cordo nio deveria ser traduzido: ele deve ser lido na lingua original, seja 6 leitor falante do drabe ow nao, Podemos também concluir pela relativa intraduaibilidade das Iinguas: traduzir é, forgosamente, trair, para retomar o ad:igio italiano traduttore, traditore. A traducao arrisca-se, assim, a ser considerada como um mal menor, man- tendo-se @ consulta direta ao original como melhor que qualquer outra forma de acesso, mesmo quando existam traducées que todos concordem em classifi- car como excelentes. Uma terceira solucgao consiste em inverter a interpretacdo habitual do mito de Babel ¢ em ver na diversidade das Kinguas qualquer coisa, ‘menos um dado negativo. 2. Linguas e visdes do mundo “Jamais deveriamos calar a questio da lingua na qual se poe a questo da lingua e se traduz um disestrso 5 Fallen Green, Fe langage son double. Paris: Le Seuil, 1987, p.iseisy, DIVERSIDADE DAS LINGUAS, UNIVERSALIDADE A TRADUGKO ” sobre a traducZo”, diz Jacques Derrida, A questo da lingua é, realmente, determinante, em virios sentidos. Na Escécia, no século XVI, ao lado do gaélico, a Lingua nacional era o escocés (Lingua falada ainda hoje, que est para o inglés assim como o portugués ests para o espanhol ou o holandés para o alemao, ou até mesmo o dinamarqués para o seco) e que desfrutava de um prestigio compardvel pelo menos ao do inglés briténi- co até a introducdo, em 1560, da Biblia traduzida por protestantes ingleses refugiados em Genebra, A tra- ducio para o escoces veio tarde demais. E essa foi sua perdigio®: ele figura no Bureau européen des langues moins répandues [European Bureau for Lesser-Used Languages (EBLUL)} entre as Kmguas “minoritérias” (1.500.000 falantes), enquanto, se as coisas tivessem se desenrolado de outro modo, teria, nao hé diivida, permanecido como “majoritério” (0 gaélico, sim, esti em vias de extingZo: 67.000 falantes em 1991, 55,000 em 2001): 0 escocés nfo estaria listado entre as cerca de cinquenta Iinguas que devem ser protegidas no seio da Unido Europeia, Se o impacto da tradugaio, Bs ve- ves, se aptesenta como salvador, sua auséncia é quase sempre fatal, 0 que representa um problema de vulto quando pensamos que 96% das linguas existentes so faladas por apenas 4% da populagao do globo. As ex- pressies “Iingua majoritéria” e “lingua minoritaria” Jacques Derrida, Des tours de Babel in: Difference tn Trans ‘ution Org: Joseph F. Graham, Ithaca: Cornell University Press, 15, p, 210, Yor ‘Tom Medsthur, The Status of Bn of Scotland, in: A.J. Aitken, 'T, MeArthar (ons), lanl. io: Chambers, 1979, in nd fut ‘TRAOUGKO - HISTORIA, TEORIAS & METODOS so completamente relativas: a equagio pode muito hem se inverter, a depender da época considerada. O contraste oferecido pelas linguas célticas a esse respei- to é surpreendente, quando recordamos que no século Ta.C. elas se estendiam pela maior parte do continente ‘europeu, atingindo até a Asia Menor’. Por isso, antes de dar exemplos em linguas majoritérias, e até mesmo internacionais, como o Francés ou o inglés, a seguinte pergunta, feita pelo escritor italiano Andrea Camille- 1, merece ser respondida em um quadro mais geral: [+] sera que nao sobreviveu um snivo tradutor, um 56 int pete dessaslinguas desapaecides,alguém que pulse con- fa aos outros o que css palavias signficavam para aquele que as pronunciava?” E exatamente essa a pergunta inicial que todo leitor de uma traducio esta no direito de fazer, a per- gunta pela diferenga que distingue o original do tex- to traduzido. Se a tradugao da Biblia suscita tantos problemas de interpretagao e de variantes, 0 que vex de outras formas de textos? As divergéncias no sero menores quando as linguas em presenga forem da mesma familia? Uma tradugio é eapaz de evocar a ‘mesma coisa que 0 original? Sio todas interrogagies que exigem que comecemos pela questéo da lingua, avangando depois também pela questao das linguas. Com efeito, uma lingua, a exemplo da torre de Babel, nio é feita exclusivamente de palavras: cada 5 Vor Henitte Walter, Laventure des langues en Occident. Pu ris: Robert Laffont, 1994, p. 66-67. +" Andrea Cansillei, Le destin de Babel. Courrier interuato ‘nal, w extra, marge-abril-maio de 2003, p. 12. DWERSIDADE OAS LINGUAS, UNNERSALIDADE DA TAADUGKO ® uma encerra uma “visio” de mundo propria (“Welt- ansicht"), concepeo elaborada por Wilhelm von Humboldt no século XTX e retomada por Edward Se- pir ¢ Benjamin Lee Whorf no século seguinte e que veio a dar naquela que costumamos chamar a hipstese “Sapir-Whor?™, 0 exemplo tipo para ilustrar o “recorte” especifi- co que toda lingua efetua sobre 0 “real” é 0 das cores. Ao termo portugues “azul” o russo fax corresponder “goluiboj” (“azul-claro”) ou “sing” (azul-escuro”); por sua vez, nas linguas célticas, a “verde” ea “azul” cor- responde apenas um termo, “las”. I fato que aquilo que se aplica ao léxico das cores aplica-se ao conjunto da lingua. A incidéncia disso sobre a tradugio € evi- dente: se Marie Bonaparte traduz por L’inguiétante étrangeté o texto de Freud intitulado Das Unheimli- che, isso nao esta desvineulado do fato de que Freud indica nao ter encontrado equivalente exato em latim, em grego, cm inglés, em francés, em espanhol, regis trando que 0 portugués ¢ o italiano se contentam com “perifrases", que em drabe e em hebraico “unheinli- ch” coincide com 0 demdnico (“dimonisch"), aquilo ue causa calafrios [“schaurig”]. Ele conclui: “Chega- mos até a pensar que, em muitas linguas, essa nuance lo aterrorizante nao existe”, Em chines, “China” se diz. “zhnggué”, mas um sinéfono pode aqui reconhecer as palavras “zhong” Ver Henjantin Lee Whosf, Language, Toought and Reality ‘Camividge (Mass.):"The MIT Press, 1056, © Signuind Freud, Das Cnlcinliche an andere ‘Teste ingutconte ctrangeté et autres textes, teal K. Carbon, Pats Gallina, 2008, A7, ‘TRADUGKO - MISTORIA, TEORIAS METODOS (meio) e “gud” (“pais”): a China é “o pafs do Meio” ou, como se dizia na época da China Imperial, “o im- pério do Meio”. O poder de evocagiio de “China” e de “zhonggué” no é, entdo, completamente semelhan- te. Jacques Derrida assinala, mas em um quadro de anilise diferente, que “Babel” nao é apenas um nome préprio, porque ele também significa “confusio”, € também pode ser lido como “ba” (“pai”) e “bel” (“ci- dade”); Babel, mas também confusao, cidade do pai, cidade de Deus Pai. Temos aqui algo bem diferente de uma mera questo vocabular. Em um artigo célebre, Emile Benveniste demons. trou que as categorias de Aristoteles, enquanto “cate- gorias de pensamento”, sao manifestamente o espelho das categorias da lingua grega: Ele pretendia defini os atributos dos abjetos; ele si estabe- lecesereslingusticos: a lingua que, gragas a sues préprias categoria, permite rconhect-los¢especifcé-los*. ‘Quanto & nogao do “ser”, ela foi construfda a par- tir de um verho grego, igualmente presente nas outras linguas indo-europeias. Mas o que teria acontecido, ‘questiona-se Emile Benveniste, se Aristételes tivesse se expressado em uma lingua semelhante ao jeje, fa- lado no Togo e no qual o verbo “ser” se divide entre ‘cinco verbos, “nyé”, “le”, “wo”, “fa” e “di”, que ge- ralmente nada correlaciona no seio dessa lingua? Isso. ‘Des tours de Babel, op. cit, p. 210-211. 3 Bile Benveniste, Catégories de pensée et eatégories de lan ‘Bue, in: Problémes de tinonistique générale, t. 1. Pars: Gallimard, 1966, p. 70. DIVERSIDADE DAS LINGUAS, UNIVERSALIDADE DA TRADIGKO a ndo quer dizer que Aristételes nao teria conseguido conceber sua filosofia se 0 grego obedecesse a outras estruturas, mas que ela teria tomado caminhos dife- rentes: a Hngua da forma ao pensamento. Portanto, a lingua ndo é um simples instrumen- to, uma operagdo intransitiva entre 0 pensamento ¢ sua expresso, Tomar consciéncia dessa densidade da lingua certamente nao estava ao alcance da Grécia antiga, visto que ela possufa uma “visio de mundo” essencialmente monolingue, como indicado pela eti- mologia de “bérbaro”: aquele que pronuncia silabas incompreensiveis (“bar-bar”) porque fala uma lingua estrangeira, Nao que os gregos nao tivessem tido con- tatos com outras linguas, mas simplesmente porque les consideravam sua prépria Iingua como superior a todas as demais. Outra razio, mais fundamental, é que hd a tendéncia de cada um identificar sua lingua com a realidade, algo que André Martinet nos leva a obser- var, 0 que explica que tenha sido necessétio esperar fim do século XIX para ver surgir uma disciplina que se atribui a lingua como objeto de estudo auténomo ¢ para chegar ao Curso de Linguistica geval de Ferdinand de Saussure, publicado em 1916, depois de sua morte”, 1; mais facil tomar consciéncia desse etnocentrismo linguistico quando entramos em contato com linguas © culturas distanciadas das nossas, como 0 basco ou 0 ndré Martinet, Bléments de lings ‘wind Colin, 1980, p. 2 cidinand de Saussure, Cours de lingnistigue génrale, ed ‘ilo por Tullio de Mauro, Paris: Payot, 1982. Fé edigdo brasileira: (rsd ingustien ger. Sto Paulo; Cate, 2008. Doravante citi Uv ubvoviodamente como CLG. igue générale. Pais: A 2 TRADUGKO - MISTORIR, TEORIAS € METODOS kavi (ingua malaio-polinésia) no caso de Wilhelm von Humboldt, figara emblematica dessa posigio. Ao retomar uma distingao aristotélica, W. von Humboldt insiste no fato de que a lingua nao é um “er- gon” (raiz indo-europeia “*werg”, que encontramos no inglés “work”: “uma obra realizada”), mas uma “energeia” (“uma atividade em vias de se fazer”). AS concepgées humboldtianas tém implicagdes epistemo- l6gicas e filosdficas considerdveis, que transbordam o quadro da presente obra, mas tém também repercus- sdes ndo menos essenciais para a traducdo. ‘A mais fundamental é, ndo hé davida, a seguin- te: nao existe tradugéo “neutra” ou “transparente” através da qual o texto original apareceria idealmen- te como em um espelho, identicamente. Por isso, aqui nfo hé espaco para “decalque”, em razdo do préptio trabalho (“energeia”) da lingua, seja aquele que se opera no interior da lingua “tradutéria” ou aquele que se produz no proprio seio da lingua original, Desse ponto de vista, escrita e tradugio devem ser situadas exatamente no mesmo patamar. Em Crise des vers, Mallarmé diz: “Sendo as lin- {guas imperfeitas pelo fato de serem muitas, falta a su- prema”. E adiante, ele acrescenta: ‘A diversiade, na terra, dos idiomas impede toda pessoa de proferi as polavras que, de outro mado, se encontraram, por ‘uma cumhagem s6,el-mesma materialmente a verdad". Wilhelm von Humboldt, Sur fecaractére national des anges et autres écrits sur fe langage, editado por D. Thoward, Paris: Le Seuil, 2000, p. 171 1 Stépinane Malla 1945, p. 963-364, Guvree complies, Paris: Gallinanl, DIVERSIOADE DAS LINGUAS, UNNERSALIDADE DA TRADUGKO 2 Portanto, nfo deveriamos censurar traducdo pelo fato de ela proceder a todo um conjunto de trans- formagées: isso esté na propria natureza da linguagem, A traduco, operacao fundamental da linguagem Em um artigo fundamental, “Aspectos linguis- ticos da traducio” — o titulo exato em inglés € “On Linguistic Aspects of Translation” —, Roman Jakob- son atribui a tradugo um valor primordial que até entiio geralmente passava despercebido. Para chegar a isso, ele distingue trés espécies de tradugio: a “tra- ducdo intralingual” ou “reformulagao” (em inglés, “rewording”); a “tradugdo interlingual”, de uma para outra lingua, ou “traducdo propriamente dita”; a “tea- dugio intersemistica”, que “consiste na interpretacdo dos signos linguisticos por meio de sistemas de signos nio linguisticos”", De fenomeno marginal, a tradugio passow a ocupar um lugar central: “Tanto para o lin- guista quanto para o usuario comum da linguagem, 0 sentido de uma palavra nao é nada além de sua tradu- «Gio por outro signo que possa substitui-lo"". ‘A terceira modalidade de tradugao sup6e um exa- me & parte: ela serd examinada no capitulo VI. Contu- do, convém esclarecer desde j4 varios pontos. Roman van JoKobson, Aspects linguistiques de 1s traduction (1959), in: Bois de linguistique générale, trad, Nicolas Ruwet. Pa- ‘0 Falfions de Minuit, 1983, p. 7-86 Ident, p. 79. u ‘reebugKo - HISTORIA, TEORIAS € MérODOS Jakobson parece limitar seus exemplos a0 dominio artistico, onde a “transposicio criadora” permitiria passar “da arte da linguagem A amtisica, & danga, a0 cinema ow a pintura”™®, Bssa nfo é uma extensio abusiva da nogio de tradu- eo? Comegaremos dizendo que esse conceito tem valor operacional claro, Por meio dele, a obra Ponto elinka sobre plano, de Kandinsky, pode ser lida como um verdadeiro tratado de “tradugao intersemnidtica”’ o termo “traduggo” € utiizado virias vexes para estabelecer correspondén- cias, esquemas de apoio, ente as diferentes artes", Mais fundamentalmente, podemos nos interro- gar sobre o fato de saber se todo sistema de signos no é, por sua prépria natureza, intersemitico. Ao postu- Jar que o sentido de um signo é sua traduedo por outro signo, pouco importa que ele seja visual (lingua escri- ta ow “lingua de sinais”), fonética (lingua oral), tétil (alfabeto braile) ete., isto é, ele é resultante de varios sistemas de signos ao mesmo tempo. Essa terceira dimensdo, sempre presente, aparece com uma intensidade toda particular no caso da tradu- 20 da poesia chinesa: ‘Na China, as artes ndo sio compartimentadas: um artista se apliea a triplice pritica poesia-caligrafia-pintura como a ‘uma arte completa na qual todas as dimens6es espitituais iden. ™ Yer Wassily Kandinsky, Poin tte ser plan (1926), tl: S.eJ. Leppien. Paris: Gallimard, 1991, p. 5253.166s. Hedi bra pri tiles: Pinto ena sobre plano -Contribuigia & andi dos efrmentes a pintura. Trad: B, Brando, Sao Paulo: Martins Fontes, 2011) DWVERSIDADE DAS LINGUAS, UNIVERSALIDABE DA TmADUGKO 2 desen ser sto exploradas: canto linear e figuragi espacial, estos encantatérios e falas visualizadas®, Ao operar sobre signos, a traduco ndo decorre apenas da linguistica, mas de um dominio mais vasto, 0 dominio do estudo de seus signos, a semistica, Ao utilizar termo “semiética”, Roman Jakob- son inspira-se explicitamente nos eseritos de Charles Sanders Peitce®, mas, ao falar de “signos”, de “signi- ficantes” e de “significados”, ele se insereve na linha- gem de Ferdinand de Saussure, Nesse aspecto, a obra de J-P. Vinay e J. Darbelnet, Suylistique comparée du frangais et de Vanglais (“Esti- listica comparada do francés e do inglés”, doravante ci- tada como VD), publicada em 1958, marca época®: com cefeito, trata-se do “primeiro método de traduedo basea- do em uma anilise cientifiea"®, Quase todos os manuais de tradugio atualmente disponiveis Ihe so devedores, Mas, mesmo tendo marcado época, ele também ficou da- tado: tributirio das concepedes dla época, os avangos da linguistica operados a partir de entio sfo tantos que boa parte das andlises desses autores estavam condenadas a obsolescéncia. Mas sua contribuigio, nem por isso, € menos considerdvel, como veremos adiante, rangois Cheng, Léritnre potique chinvise, Paris: Le Seuil, Ver Anne Hénault (on), Questions de sémiotiqne. Pats PUR, 2002, Jean-Paul Vinay e Jean Darbelnet, Séylistigue compare de Jnaniset de Vauglais (1958). Paris: Didies, 1977. Ins Osehi-Dépné, Tories er pratiques de a traduetion sé ‘wine, Paris: Armand Colin, 1999, p. $6. "TRADUGNO - HISTORIA, TEORIAS € MérODOS ‘Assim como R. Jakobson (os textos “On Linguis- tic Aspects of Translation” e VD foram publicados pra- ticamente ao mesmo tempo), Vinay e Darbelnet se vin- culam a Ferdinand de Saussure, As consideragoes sobre a tradu¢do estdo praticamente ausentes clo CLG, novos conceitos precisam ser elaborados, entre os quais um dos mais importantes é 0 das “unidades de traducao” Exatamente como evidencia Saussure, a “delim tagdo” das unidades é fundamental: contrariamente & opinido corrente, ela nfo deveria se reduzir a fazer das “palayras” as unidades basicas. Com efeito, uma con- cepedio dessas tem como consequéncia fazer da lingua uma simples “nomenclatura”, isto é, “uma lista de ter- mos correspondent a tantas outras coisas”. Contudo, anogdo de “palavra” tem de ser levada em consideragao: Seria necessério pesquisar sobre que se funda a divisio em palavras — porque # palavra, a despeito da dificuldade que temos para definila, é uma unidade que se impbe ao espiti- to, algo de central no mecanismo da Kinga Fm tradugio, nfo se traduzem as palavras isola- damente umas das outras: a traducio “palavra a pala- yra” é muito frequentemente impossivel. Para Vinay e Darhelnet, a unidade essencial 6, no plano dos signifi- cados, a “unidade de pensamento”, no plano dos signi- ficantes, a “unidade lexicolégica”, 8 qual corresponde, em perfeita simetria, a “unidade de tradugao”, com cesses és termos sendo considerados como “equiva- lentes”, Desse modo, eles chegam a seguinte definiga 5 C1G,p.97. 5 Clap 15h. DIVERSIOADE OAS LINGUAS, UNNERSALIDADE DA TRADUGKO Poderfamos ainds dizer que a unidade de tradugfo é 0 me- nor segmtento do enunciado, com uma coesto de signos tal ue cles ndo devem ser traduzidos separadamente, ‘Vamos dar um exemplo conereto, o da eitacao de George Steiner escolhida como epigrafe para este cay tulo: “Nimrud’s tower was built of words”, Ao divi -la em “unidades de tradugao”, chegamos a “Nimrud’s tower / was built of / words”. Se a compararmos a sua tradugio brasileira, encontramos a mesma divi sio: “A torre de Nimrod / era feita de / palavras™ ‘Uma “decupagem” dessas tem um aleance pritico evi- dente: ela permite, uma vez ue as unidades estejam delimitadas, proceder & andlise das relagdes que vin- culam 0 original e sua tradugdo (relagdes que sero examinadas no capftulo IV: a relacdo entre a unidade de tradugéo n° 2, “was built of” e sua traducio por “era feita de” desiaca a tendéncia do inglés de recor- rer a um termo especifico (ou “hipdnimo”) no mesmo lugar em que 0 portugués out o francés manifestam a tendéncia inversa, ao traduzir por um termo genérico (ou “hiperdnimo”): em vex de utilizar “construir” (“to build”), 0 tradutor preferiu “fazer”. Como cada Iingua tem sua propria visio de mundo, logo, sua prépria “decupagem” da realidade, essas correspondéncias sto sistematizaveis. O mesmo método pode, entao, ser aplicado tanto no nivel puramente linguistico quanto tio estilistico. Fatos de Tngua, fatos de estilo e fatos de nidugao, a partir disso, se resinem, Vd p.37, “Traducio eitala por Jacques Viear, La taur de Babel, aris: PLE, 2000, p. 5 TRADUGRO - HISTORIA, TEORIAS E METOEOS A despeito de suas vantagens de ordem pritica, uma abordagem desse tipo suscita dois grandes in- convenientes. O primeiro é aquele que consiste em conceder espaco demasiado aos aspectos linguisticos da tradugdo, de onde vem a critica formulada por Ed- mond Cary: “A traducao literéria ngo é uma operago Tingnistica, ¢ uma operagao literaria”™, O segundo inconveniente é deixar de ter na devi- da conta a nogdo das “unidades linguisticas” no pré- prio Ferdinand de Saussure. Os Escritos de linguistica _geral (E1LG), publicados originalmente na Franga em 2002, acentuam todo o tempo a importincia que deve ser atribufda a dimensao diferencial da linguagem: Como nfo existe nenbuma wnidade (de nenhume oniem ede nenhunna natureza que possamosimeginar) que repouse sobre algo aim das difereneas, na realidade a unidade 6 sempre imagindsi,s6 a diferenga existe. Sem diivida, a nog de “unidade diferencial” pa- recerg abstrata e dificil de delimitar, mas voltamos a encontré-la quando se trata de estabelecer “unidades de leitura” em um texto, que so chamadas por Roland Barthes de “lexis”: Essa deenpagem, deve-se diné-lo, serd sempre mais arhitré- ria [J A lexi compreenderd ora poucas palavras, ora algu- mas Fases®, Comment faatit madaire? (2958), apul Georges Mounin, Les problems soriques de a rrauerion, Paris: Gallimard, 1963. 2" Rerdinand dle Soussste, Bevits de lingnistique générale, el S. Bouguet, R. Engler. Paris: Gallimard, 2002, p. 83. Hi edigio Drasileca: Bseritos detinguticu eral, Sao Paulo: Culrix, 2004, 0" Roland Barthes, SZ, Pais: Le Seuil, 1970, p. 20. DVERSIOADE DAS LINGUAS, UIVERSALIDADE BA TRADUGAO 2 Se a traducdo é justamente uma “propriedade fundamental” da linguagem, cla pode, por razdes priticas, ser considerada de maneira linear, fazendo intervir apenas umidades simples. Mas nio se pode es- quecer, contudo, que, tanto quanto a Iingua, @ tradu- Gao também faz intervirem “unidades diferenciais” Se nao fosse assim, nfo se poderia compreender por que as maneiras de praticé-la e de apreendé-la puderam va- riar tanto ao longo da historia, Ver Clauile Hagege, La structure des tongues (1982). Pats POR, 2001, 1, CAPITULO II: HISTORIA DA TRADUGAO Poderiamos examinar, um a um, virios perfodos na histdria da tradugo: Antiguidade, Idade Média, Renascimento, os séculos XVII e XVII, a época con- temporanea, Uma abordagem desse tipo arriscase a mascarar as sobreposigGes que vinculam as épocas en- tre si, de onde a necessidade de recorrer a uma apre- sentacdo que seja mais tematica que estritamente cro- noligica. Os problemas de hoje sio muito claramente ‘os mesmos quee se apresentaram ontem. As respostas é que variam, E dai é que vém as diversas concepgies da ‘tradugao que foi possivel constrain 1. O espirito e a letra Na tradigdo ocidental, geralmente distinguimos uma dupla origem para a problemética da traducdo, que se encarna na realidade em uma tinica lingua, 0 latim, Por tim lado, a traduedo dos textos religiosos, € da Biblia em particular, que tem so Jerdnimo como figura tutelar, Por outro, a traduedo dos textos liter- Yer Michel Pall PUL, 1995, De Cietton @ Benjaanin (199%). Lille tszORIn 06 TRADUGKO a rios, na Roma antiga, e aqui lembramos a adverténcia de Cicero, em seu Libellus de optiran genere oratorum (46 a.C,), segundo a qual nao se deve traduzir“verbum pro verbo”, “palavra por palavra”, e que seré retomada por Hordicio em seu Ars poetica (10 a.C.). Essas duas perspectivas esto ligadas: Cicero anuncia sao Jerd- nimo. Percebemos isso quando so Jerénimo escreve, em De optimo genere interpreiandi (895): Sim, quan- to a mim, néo apenas 0 confesso, mas ew o professo sem nenhum ineémodo em alta voz: quando traduzo ‘08 gregos — exceto nas Sagradas Escrituras, onde a ordem das palavras também € um mistério —, nao é palavra por palavra, mas uma ideia por outra ideia que exprimo™. A distincdo introduzida por sdo Jeronimo é cssencial: ela destaca a diferenca entre textos religio- sos ¢ textos seculares no que diz respeito a traducao. No primeiro caso, deve-se preferentemente avancar palavra por palavra, Esse é 0 método preconizado por Filon (13 a.C.-54), membro da comunidade jiudaiea de Alexandria: unicamente a tradugao literal seria capaz_ de nao alterar os textos sacros. Fem nome da tradugéio literal que sio Jeronimo critica a tradugdo grega dos or ser muito livre, ela ¢ julgada como infiel original hebraico. Mas uma tradugao estritamente literal também é rejeitada por sfo Jeronimo, de onde «eventual adogao dos principios cizeronianos, que ele cselarece na firmula célebre: “Non verbum de verbo, sed scnsum exprimere de sensu”. A distingdo entre a (raducio de textos religiosos e a tradugdo de textos Aye Valery Latha i Gallimard, 14,9. 15, Sons Pinsocution de sauté, Pa 2 TRADUGKO - HISTORIA, TEORIAS E MEroBOs rofanos nio é, portanto, tio demarcada quanto pode- riamos achar & primeira vista, q De fato, os inconvenientes de uma tradugao mui- to literal nunca foram negligenciados. As tradugdes cfetuadas pelos romanos remontam ao século Ill a.C. com Livio Andrénico, primeizo tradutor europeu co. ahecido, Cicero inscreve-se, portanto, em uma longa tradicao de prética da traduedo, que ele perpetua ¢ aperfeicoa, especialmente no plano das consideragies te6ricas, praticamente inexistentes antes dele, A esse Fespeito, uma passagem capital éa seguinte, a respeito de suas prdprias traducoes: Eu no as fz como simples tradutor (ut interprets), ras como otador (sed us orator), respeitand sass frases com as figures de pslavras ou de pensamentos, is veres ueondo feos adaptads nos costs latinas, Po so 9 considereinecesstio verter toda palavra por ume peleven (verbo verbum redder costa, nage queda ees 30 gino de todas as plavras ca seu valor, x os conserve Realmente,aeroditei que aquil que importava para o letor era oferecer a le ndo 0 mesmo nero, mas, por assim di eh o mesmo peso (Non enimtadnumerare sed tangquam adpendere}. ee Dessa maneita, Cicero distingue duas formas de traducdo: em primeiro lugar, aquilo que poderfamos chamar de a tradueao propriamente dita, a que é fei. ta pelo “interpres”; em segundo lugar, a do “orador” slugio francesa de Ment? Bornecq = le Hensé Borneeque, apud Inés Ose ‘Dépré Theories et pratiques de ta traduction litte i ict ieee. Boss: istORIA 08 TRABUGKO 8 Com isso, ele faz essa forma superior de tradugao pas- sar para o campo da retérica — e, mais exatamente, da imitatio. Traduzindo em termos modernos, dirfamos hoje que se trata de adaptacio, e nao mais de tradugao. Contudo, isso significaria abstrair a fiuncao de que a traducdo estava investida em Roma, fun¢do radicalmente diferente daquela que ela podia ter no mundo grego. A partir da morte de Alexandre (323 a.C)), a irradiagZo da civilizagio helentstica é tamanha que 0 grego se torna a lingua dominante: a Setenta é traduzida em Alexandria muito naturalmente do he- braico para 0 grego no século III; a pedra de Roseta, que permitiré a Champollion decodificar os hierégli- fos, & uma tradugdo do egipeio para o grego, realizada em 196 a.C,), no Fgito ptolemaico; o Novo Testamento € redigido em grego, quando o Cristo se expressava em aramaico (0 hebraico, lingua da mesma familia, néo era mais de uso corrente)', Roma no escapa a essa re- fra: as elites sio perfeitamente bilingues e concedem primeiro lugar, ao menos por um tempo, ao grego. ‘Nao tendo, de inicio, nada de comparavel no do- io dos textos filosGficos ou literdrios, o empreendi- nto de tradugao, massiva, dos escritos gregos para © latim est perfeitamente subordinado, em Roma, & emergéncia de uma lingua capaz. de rivalizar com seu modelo, até mesmo de ultrapassé-lo, processo que se cstende por varios séculos, fazendo do latim a nova lingua dominante no seio do Império, papel que se porpetuard durante toda a Tdade Média, e até mesmo Vor Clade Hage, atte fa mare des fangues, Paris: Odile h, 2002, cap. X, p. 2555 ‘aAoup%o -hisr6mn, ToRIAs € uétobos para além dela, O termo “adaptagio” pressupie uma Tingua literdria plenamente constituida, algo que, ini- cialmente e em comparagao com o grego, a lingua la- tina no er Uma ver concluida essa gestacao, 0 termo “bi- linguis”, € 0 que Claude Hagege destaca, torna-se um termo pejorativo, sentido que, por sinal, ele guarda em francés medieval’: 0 grego vai sendo, pouco a pouco, abandonado, em proveito exclusivo do latim. Um ciclo desses niio se da isoladamente: encontramos numero- sos exemplos dele na historia. Trata-se de um esque- ma semelhante ao que vamos reencontrar no Renasci- mento, quando, dessa vez, 6 0 latim que se vé suplan- tado pelas linguas vernaculares, Na Franca, vé-se uma multiplicagdo das tradugdes das linguas clissicas para © francés e de “imitagdes” dos modelos gregos e lati- nos, até mesmo italianos, fendmeno amplificado pelo desenvolvimento da tipografia. Também vemos Joa- chin du Bellay, em Defense et illustration de la lan- gue francaise (1549), desenvolvendo um raciocinio que retoma o raciocinio de Cicero, aplicado a lingua nacional: a imitagéo dos antigos nao deve ser servil, cla deve ser feita a servigo da Ifngua francesa, igual, quando ndo superior a todas as outras. A época que vé a instauragdo do francés como a tinica lingua do reino (ordenanga de Villers-Cotteréts, 1539) é a mes- ma na qual, por meio da tradugao, so feitos massivos empréstimos das linguas estrangeiras, isso quanda nao sio obtides por imitacao direta, como, por sinall, Thidem, p. 773-174, HISTORIA DA TRADUGKE 38 Ronsard nao hesita em recomendar em seu Abhregéde Vart poétique (1565): “Tu compords palavras intrepi- damente, & imitagdo dos gregos, ¢ latinos”. Esse terceiro aspecto da traduedo, que no se contenta em “verter” palavra por palavra (“verbum de verbo”), ou sentido por sentido (“sensum exprimere de sensu”), mas ainda se permite transformar delibe- radamente 0 texto original no quadro da “imitacdo”, nao corresponde mais & ideia que habitualmente fa- zemos da traducdo hoje. E nesse sentido que Jacques Amyot, em sua célebre traducao das Vidas paralelas de Plutarco (1559), em vex de traduzir 0 grego “este- phanoi” pela tradugdo literal “adornados de flores”, prefere: “Com chapéus de flores em nossas eabecas”; em vez de se contentar com: “A alma esté encerrada ‘no corpo como em um moinho que roda sem cessar em \wrno da necessidade de alimento”, ele traduz: “A sma de muitos esté escondida e contrafeita pelo medo de Ita, dentro do corpo, como dentro de um moi- uuho, girando sempre em torno de uma mé depois de penxuir algum alimento”. As transformagies intro- chividlay abedecem a uma légica que Antoine Berman «ca conio a “visada tradutéria” do Renascimento hlesse cinsn preciso, “0 esclarecimento € a adaptaciio \\)iupriadora clo original, considerado como tum tesou- Calo por Mille Htchon, Le fiugais de te Remaisance (AWN), Haris PUY, 1098, 9.7 Hxeinplos tonal de Amtoine Berman, iaecentaation etl im: Palionseste uly i la Sorbo Naw pe dubandane en 1 leroy Th, Vouitrin Pans: Pres Wl, 100), pa 38 ‘TRADUGHO - HISTORIA, TEORIAS € MéroDOS ro" que é preciso anexar a lingua cultura nacionais”’, Para compreender a tradugao em toda a sua diversida- de, ndo basta opor as “palavras” aos “sentidos”. 2. As belas infiéis Nessa mesma época, na Inglaterra, a situagao é semelhante, com uma diferenca a ser notada: 0 fran- és, por sua irradiagao, desfruta de um prestigio com- pardvel ao do latim e do grego. A traducdo a partir do francés constitui uma soma de obras considerdvel. Al- umas maream época: é 0 caso da tradugao dos Ensaias de Montaigne por John Florio em 1603. Ela é destacada pelo The Cambridge History of English and American Literature (CHEAL) em 18 volumes’ (0 volume IV, consagrado ao periodo clisabetano, comega dedicando dois longos capitulos & questéo da traducao, tamanha € sua influéncia). As transformagGes introduzidas por John Florio no texto de Montaigne parecemse com as que sio introduzidas por Amyot em sua traducdo de Plutareo, Para traduzit “je n'y vauls rien” ele utiliza © equivalente “I am nothing worth”, mas acrescenita: “and I never can fadge | = ‘do'] well”; para “soutflet”, ele vai recorrer a “whirret | = ‘blow’] in the ear”, exemplificando assim a tendéncia da época & verbor. hide, p. 12, * Ward e "ent et ali, The Cambridge History of Buglish and Americar Literature. New Yorks Bartlehy.com, 2000 < wow: Heby.com/eambridge > SE me peur jamais bien face” (tadugdo do autor). % Bxemplosdados por Charles Whibley, CFTEAL, wo. V, 1 p. 12 isto Ok TRADUGKO ” ragia (Florio também é conhecido por seu dicionério italiano-ingles de titulo evocative, A World of Wordes, “um mundo de palavras”) preconizada por Erasmo em De copia (“Sobre a abundancia”), Contudo, a mais célebre das traducées elisabeta- nas no é essa: é, em todos os aspectos, a traducio de Plutarco feita por Thomas North, Lives of the Noble Grecians and Romans (1579), na qual Shakespeare (que era acusado por seus detratores de nao conhecer suficientemente o latim, muito menos o grego) se ins- pirou para suas pecas romanas (Jiilio César, Antonio ¢ Clespatra, Coriolano) ¢ Timon de Atenas. Pelo fato de no dominar o grego, North faz.sua tradugao a par- tir da traducdo das Vidas paralelas de Plutarco feita para o francés por Amyot. Pritica comum na época: im comparagéo como latim e, com mais forte motivo, conto grego, o francés era de longe a lingua que mais we sabia, O francés 6, entao, a “avenida” que tera per- do aos cléssivos penetrar na lingua e ne literatura the avenue through which many of the passed into our language and ous literature") 0,21 tradugio de Amyot serve de original para Nowth, Por sinal, como enfatiza Montaigne, o texto de \inyot tent valor de modelo mo que se refere 8 lingua uu dou com razio, me parece, a palma a Jncijuew Aniyat, sobre todos os nossos eseritores fran- cones [ | NOs, outros ignorantes, estariamos perdidos se ome livro nao nos tivesse tirado do impasse; gragas a Herman, Laewontnation et te principe fart ily 9B 1, CHUAL, vol Ny He pet 32 ‘TRADUGHO - HISTORIA, TEORIAS E WETeROS cle, nés hoje ousamos falar ¢ escrever: € nosso brevid- tio” (Essais, livro Il, cap. IV). A tradugao de North também recebe o estatuto de obra literdria, 0 que ex- plica, sem diivida, 0 fato de Shakespeare recorter cons- tantemente a ele em busca de suas proptias palavras. De modo mais genérico, nessa época, as harrei- ras que estabelecemos hoje entre original ¢ tradugio, autor ¢ tradutor, eram hem mais ftidas, para no di- zer francamente abolidas. A “apropriagao”, concei- to chave do Renescimento, pode tomar na Inglaterra roporgées tio extremas que parecem remeter ao espi- rito de conquista de navegadores elisabetanos, como Drake ou Hawkins, mas também a seus bem pouco recomendéveis métodos. Dessa maneira, as pessoas se apoderavam sem o menor eserdipulo das obras de outros, seja para transformé-las segundo seu prdprio arbitrio, néo recuando diante de nenhuma infidel dade, seja apossando-se delas, fazendo-se passar por seu autor. O caso € tio frequente que Charles Wibley ‘do hesita em dizer: “Nao parece que os elisabetanos tenham considerado 0 pligio como um pecado od so, Se o tivessem feito, quem nfo teria sido declarado culpado?”"s Bem ao contrario, eles justificam esse pro- cedimento invocando o exemplo dos romanos. Ao fa- lar de sua traducio do De Officiis de Cicero, Nicholas Grimald afirma que ela & para ele o que sao para Te- réncio e Plauto as comédias que eles fizeram a partir do grego (“made out of Greek”), Grande ntimero de 5 Miewlle Huchon, op cit, p. 119. * Charles Whibley: CHEAL, vol. 1V, 4, p. 28, Ver Charles Whibley, CHEAL, vol IV, 1, p. 28. HisrOAIA DA TRADUSKO 29 sonetos clisabetanos foram “feitos” assim por Wyatt, Lodge, Spencer e tantos outros, sem que ninguém se opusesse: dessa maneira, era posstvel traduzir e trair na maior impunidade. O termo “plagio” sé vai se tornar pejorative no século XVII, “isto é, no momento em que a originali- dade passa a ser um valor literrio””. Com efeito, as fronteiras entre imitacdo, tradugao e adaptacio variam conforme as épocas. A “infidelidade” &, entio, uma nogio absolutamente relativa, Nao que os tradutores nunca tenbam criado para si regras a esse respeito, justo 0 contrério: um dos primeitos teéricos da tradu- «ao durante o Renascimento é Etienne Dolet (a quem devemos a palavra francesa “traduction”, surgida em 1540). Nao que as tradugées dessa época se equiva- Uham todas, sejam quais forem as liberdades tomadas cm comparagio com o original. Em contrapartida, se medirmos pela “visada tradut6ria” (A. Berman) da ‘cpoea, elas tém a pretensao de se mostrar figis. E por isso que Chapman defende sua tradugio da Tifada e da Culiseia declarando: “If my countrey language were vw «anes, hee would thanke me for enriching him” (oe a flopua de meu pais fosse um usurério, ele me oynuleceria por té-lo tornado mais rico”)*. A exemplo lo clogio feito por Montaigne a Amyot, Keats expri- inaciv pela tradugio de Chapman, que bie 0 jv” (“demesne”) de Homero e “stia in puroaa (“its pure serene”), no poema On first mini th is: amnion, 200 phe Wain Ltevtevnati, p23) es Whibley, CLEAR, woh AY, 40 TRADUGNO - HISTORIA, TEORIAS E METODOS Looking into Chapman's Homer (“vendo pela primeira vez0 Homero de Chapman”), composto em 1816. Com efeito, 0 que vemos nas tradugdes da época € o ingles clisabetano se configurando diante de nossos olhos, Poderiamos dizer a mesma coisa das tradugies na Franga, assim como nos outros paises na época do Renascimento, Trata-se da consequéncia do principio que Amyot enuncia nos seguintes termos: (© oficio proprio de um tradutor [| ni est apenas em ver: ter fiekmentea sentenca de seu autor, mas tamsbém em incor- ‘porar a forma ce set estilo e sua maneira de falar ‘Nao poderfamos exprimiclo mais claramente: a “fidetidade”, necesséria, nao é suficiente. & indispen- sdvel acrescentar-the a beleza, sem a qual a tradugio estaria condenada & exclustio do campo das letras. O que vale para a linguagem literdria vale tam- bém para a lingua como um todo. Kfetivamente, a tra- dugao permite a compreensao de um mtimero maior de pessoas: Erasmo é 0 primeio a desejar ver 08 textos sagrados traduzidos, Lutero seré seu primeiro grande artesdo, Lutero afirma, com efeit ‘Nao é ds palavras da Kinga latina que devemos perguntar como se deve falar alemo, como fazem esses asnos; mas & e-em seu ar s eriangas nas ruas, 0 homem do povo na praca fo mercado que é preciso perguntar,lendo em seus lio com eles alam, e & depois disso que se deve radu, = Ama Génbve: Geory, Cay, Les grands traduectewrs franca, 1sTORIA O& TRADUGKO porque assim cles compreenderiia ¢ se darfio conta de que JThes estamos falando em alemo™. ‘A tradugao da Biblia por Lutero foi além disso: cla representa o registro de nascimento da lingua alema, mesmo que Dante representa para a lingua italiana, Diferentemente de Dante, que defende a causa da expresséo em “lingua popuilar” em De vulgari elo- quentia (1303-1305) e no decorrer de sua obra, Lutero fosja a lingua alema no decorrer da tradugao: como se trata da Biblia, 6 evidente que a parte de “invengio” pressuposta pela imitatio dos latinos nao tem vez. Ninguém aventaria “transformar” a palavra divina, algo que, a época, levava diretamente 4 fogueira, des- tino reservado a Etienne Dolet, enforcado ¢ queima- «lo em 1546 na praca Maubert, em Paris. Poderiamos, ‘consequentemente, pensar que a exigéncia de litera- lidade se situa acima de qualquer outra considera \gio, Durante a maior parte da Idade Média, alids, era sl a maneira mais difundida de traduzir os textos twligiosos, mas também os textos seculares. O Renas- vimento toma o partido contrério, por conta da falta ‘le cleineia das tradugdes feitas desse modo. Como Iulero nao desconhecia o preceito de sio Paulo: “A. letra mata, mas 0 espirito vivifica” (2 Corfntios 3,6), tunis trac “literal” nao deveria se reduzir ao estri- {w palavea por palavra, como fazia sao Jeronimo. Com feito, Litera escreve em 1530: “Eu no me afastei Ay Hews van Hol Histone de ta traduction en Occident. yc woL, HHL, p. 2h Tis Osek Dspréy Tories et pratiques dela traduction i) Armand Calin, HHH), p23 ernie, a ‘TRADUGKO - HISTORIA, TEORIAS € METODOS muito deliberadamente das letras, antes tomei o m cuidado, no exame de uma passagem, para ficar tio pr6ximo quanto possivel dessas letras, sem delas me afastar muito livremente. |..] preferi forcar a lingua alemé, antes que me afastar da palavra”®, Aspectos semelhantes aos que se reencontram em lingua inglesa na Authorised Version. Ela é publicada em 1611, mas, na realidade, é¢ obra essencialmente de William Tyndale (enforcado e queimado por heresia em Antuérpia em 1536, onde se refuugiara). Tanto quanto Lutero, ele tem a intengao de ser entendido por todos e, em vez de traduzir a partir da Vulgara, como Wydlif o fizera no caso da primeira Biblia traduzida para o inglés e publicada em 1388, ‘Tyndale consulta os textos originais hebraicos e gre- gos. Tyndale considera que 0 grego est mais em har- ‘monia com o inglés do que com o latim (“The Greek tongue agreeth more with the English than with the Latin”); quanto ao hebraico, ele combina “mil vezes mais” com o inglés (“And the properties of the He- brew tongue agreeth a thousand times more with the English than with the Latin”), apesar de que em “mil passagens” basta traduzi-lo “palavra por palavra” em inglés (“The manner of speaking is both one, so that in a thousand places thou needest not but translate it into the English word for word”). O raio de influén- cia da Authorised Version sobre a lingua ¢ a literatura anglo-saxénicas é impressionante: Ver Michel Ballard, De Ciavron & Benjamin, op. city p. 149, Citado por Albert S. Cook, CHEAL, vol. 1V,2, p. 83. 2 isTéRIA 8A rRADUGKE Sua agio sobre todo 0 povo é imensa, Sua prosa compacta, mais aproximada do estilo oral que dos escritos latinos, a riqueza de suas imagens, que um erro aqui eaeolétransfor- ‘mam singulares ou misteriosas, mareardo muitos produtos da imaginagao em um pais onde a vida ser frequentemente ritmada por sua litera cotdiana A conclusio é automética: a Biblia “autorizada” pelo rei James Té um monumento da literatura de lin- gua inglesa. Se clharmos para o Renascimento, até mesmo as traduc6es que precisaram ser mais fiis tem a virtude de serem elas. Em matéria de traducdo, os séculos XVII XVIII pordo as consideragGes estéticas em primeiro plano. Realmente, a relagdo com a lingua nfo é mais 1 mesma: na Franga, é criada a Academia Francesa (1634) e, seguindo Malherbe, que sistematiza e apura » francés, Vaugelas define o que deve ser 0 “bom uso” «lu francés em suas Remarques sur la langue francai- se, Logo, ninguém se admirard ao ver as traducdes se iluhrarem ao gosto classico e se transformarem em “Be- las Infigis™®, Desse modo, Nicolas Perrot d’Ablancourt, \quecntrou para a Academia em 1637, transforma auto- ty hatinos, gregos ou espanhéis ao traduzicos, mesmo \ine considere que aquilo que ele faz no é “propria- whe Maisonneuve, Littératune anglaise, in: Histoire des 1, vot: R, Queneat, Paris: Gallimard, 1968, p. va Vor Claude Haine, Le Paancais histoire d'un combat, Paris: 1 Helles Init leo lassie Pais Allin Miche, 100% a ‘TAADUGKO - HISTORIA, TEORIAS & MéroDOS mente tradugao” porque “vale mais que a traducdo, eos Antigos nAo traduziam de outro modo”". Na época das Belas Infiis, também existem de- fensores da fidelidade ao texto. E 0 caso de Lemaistre, que estabelece a seguinte regra: A primeira coisa a que & preciso estar atemto na tradugio francesa: é ser extremamente file literal, isto & exprimir em nossa lingua tudo o que est em latim ¢ verté-lo to bem que se, por exemplo, Cicero falasse nossa Lingua, ele teria falado do modo como o favemos falar em nossa tradugso*, A fidelidade ¢ a literalidade esto subordinadas a0 respeito ao estilo da lingua cléssica: ni se trata mais de a tradugao “enriquecer”, como no séeulo ante- rior, a lingua francesa, que nessa época jd fora promo- vida a categoria de modelo insuperdvel do bom gosto. O fosso entre os adeptos da tradueio literal e os adeptos da tradudo “livre” ird se aprofimdando, até cle- gar& polémica que opord, no século XVIII, Mme, Dacier © Antoine Houdar de la Motte, polémica que posterior- mente ser chamada de segunda querela dos Antigos ¢ dos Modernos". Seria bastante dificil criticar Houdar de la Motte por seguir Homero a0 pé da letra, nem na ‘mais ampla escala: sua Iiade en vers frangais (“Iiada em ‘versos fraanceses” — o canto I foi publicado em 1701, o8 outros em 1714) desbasta alegremente o texto homéri- 0, que passa de vinte ¢ quatro para doze cantos, com = Citado por P. Horguelin, Anthologie dela manire de tradui: 16 Domaine francais, Montreal: Linguatech, 1981, p. 94, ® Citado por Inds Oseki-Depré, op. ct, p38. © VerGeonge Moumin, Ls Belles Infdles (1955). Lille PUL, 1994, HistonIs ox TeADUGKO 4s a supressio das passagens qualificadas de supérfluas ou inconvenientes. Ele também nio hesita em introdugir comentdrios de sua pr6pria lavra, ou até em modificar 0 conterido ou a trama dos episédlios, entre outras coisas”. Houdar de la Motte distingue as traducdes “literais”, como a que foi feta, em prosa, por Mme, Dacier (1711),¢ as “imitagbes elegantes”, que “ficam a meio caminho en- tre a tradugao simples (literal) e a pardfrase”™, Homero situa-se, segundo ele, muito longe das normas cléssicas para ser “traduzido” de outra manera. Se, por comparagio, a traducdo de Mme. Dacier pode, sem grandes prejutzos, ser chamada de mais iteral, falta muito para ela ser totalmente literal. Basta para isso cotejar a traduedo de Leconte de Lisle (1967) de uma pas- sagem do canto TIT (cena entre Pétis ¢ Helena) e a dela: Vem! Deitemo-nos eamemo-nos. | E36 pensamos em O desejo nunca me fez arder assim, | prazeres... Na itha mesmo quando navegando em minha | de Kranaé, voce nave répida, depois de te ter titado | voluntariamente «la feliz Lacedeménia, eu me uni | consentia me tomar npr eontigo na itha de Krenaé, | como marido...B me tHe tanto que amo agora e estou falando assim, ele onudo de desejos. Fle falow assim e | se levantoa para ir ‘unin iow para seu leito, e 2 esposa | a outro aposento, & ‘vein e cles se deitaram no leit | Helena o seguit, hom constr, ‘Mme. Dacier* Leconte de Lisle 1 Goran Gonette, Palinpestes, La literature au second de- 1, 1982, p42, idem, p. 443. op. cit, pT nb Se Ayal Genatl Genet Ayu tts One DEp hide 46 ‘TRAOUGKO - HISTORIA, TeaaIAS © weToDos Se as transformagdes introduzidas por Mme. Da- cier hoje nos parecem tao estrarthas e as de Houdur de la Motte tio extravagantes, € porque elas nao seriam ais consideradas tradugdes propriamente ditas, sim adaptagoes, A linha diviséria entre esses dois campos deslocow-se posteriormente, tornando impensdvel que alguém busque, por meio da tradugio, “emibelezar” ou “cortigir” as faltas de estilo pretensamente presentes em Homero, porque isso passou a ser considerado como um atentado a obra em si 3. A época contemporinea Em 1680, em seu prefiicio as Ovid's Episiles", Dryden dé uma definigdo decididamente moderna de traducdo, em sua rejeicéio da imitagao. Dryden distingue trés formas de traduglo: a primeira é a traduedo literal (que ele chama de “me- tifrase”); a segunda é a traducdo propriamente dita (inicialmente chamada de “paréfrase”, mas rebatiza- da simplesmente de “tradugao” no prefiicio de 1697 a suas tradugoes de Virgilio®); a terveira, a “imitagio” (posteriormente chamada de “parafrase”), A tradugio literal é rechacada por referencia a Hordcio e a seu “nec verhum curahis reddere, fidus Dryden, Proface to Ovid's Epistles, ine Dryden. A Selection, cditad por John Conaghan. Londres Methuen, 1978, p, 569-575, ° Vor George Steiner, Apris Babel. Une pottique di dive et de 1 traduction, ted: Lucienne Lotringer: Paris: Albin Mickel, 1978 (After Babel. Aspects of Language and Translation, Oxford: OU 1975; ed. br: Depuis de Bale! — Ouesthes de Hnguagem e tradacin, trad: €. A. Faraco, Curitiba: Faltora UFPR, 2005), p. 241, HisTOnIA BA TRaDUGKo cn interpres”, que ele cita na traduezo feita por Roscom- mon (“Nor word for word too faithfully translate”), ela propria ilustragdo da melhor ¢ tinica maneira ver- dadeira de traduzir, a segunda, que consiste em se con- centrar mais no sentido do que nas palavras. A imitagdo consiste em tomar a Hberdade de nao seproduzir nem as palavras, nem o sentido, mas “se autores |... sdo tratados dessa maneira, no podemos mais dizer que ainda se trate de suas obras”, porque {sso equivale a substituir o original “por algo de novo, que € quase a criagao de algo diverso”®. Isso significa assinar a sentenga de morte das Be- Jas Infiéis. ‘Uma reviravolta de perspectiva, na verdade, vai se operando progressivamente: A questo da pertintuia do texto teri valorizagio da indvidualidade ede orginalidade na crag artista so 0 resultado de uma esttica romantica que remonta ao fim do séeulo XVI" De imediato, a imitagdio, mesmo leve, surge como tun trayestimento, o que Montesquieu ridiculariza em nttals Cartas persas: As tradlugdes so como essas moedas de cobre que tm 0 meso valor de una moeéa de ouro [..] mas elas so sempre Thigeise de ms qualidade. Isso é a inversio da metéfora do enriquecimento wounitio da lingua pelo viés da tradugio utilizada por Heyen,op cit p. 572 (nossa ie Robs, ps et 1B, Caria CXX VIE tala por Inés Osek xlugio} Dépréson cits v.35.

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