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4querem confessar que nenhuuns feytos ssam mayores que os que cada huura faz, & fara seo nysso metessem. F por esta mesma causa muyto alto, & pode- +030 pringepe, muytas cousas de folguar, & gentylezas ssam perdidas sem aver delas notycia.(Citado em Rocha Pinto, 1989, p.134) Pero de Magalhies Gandavo. Homo politicus Um documento encontrado pelo historiador Pedro Calmon no ar- quivo Torre do Tombo suscitou polémica acirrada, a partir dos anos 50, entre os estudiosos no que diz, respeito & biografia de Pero de Maga- Ihdes de Gandavo. Segundo Calmon: E opinido nossa que munca veio ao Brasil limitando-se a redigir a oitva, como propaganda da tera nova, 0 seu livo impessoal.Realments, de uma pes- usa que izemos na Torre do Tambo, oapurado fo bem povco, mas expressi- ‘0: mogo de Cimara, servi a tasladarIivose paps na Torre do Tomb oi romeado provedor da Fazenda real da cidade do Salvador em 29 de abril de 1576 por um prazo de seis ans. Liv37 da chaneclaria de D. Sebastito, £278, rms. Nio hi vestigio, nos documentos do Brasil, de sua vinda. Talvez fzesse, reunindo miltipios informs, levado pela curisidade de saber © que aquele tempo eraa colonia longingua, desprezada pelos cronistas da casa da India (Calmon, 4, v1, p315. Gafo nosso) ‘A maioria dos estudos que se seguem esto imbuidos do propésito de provaro contrério. E evidente que o critério que vigora ds margens da discussao é 0 da autenticidade do relatado, o que prova que a argumenta- «lo que servia de critério para autenticaco no século XVI mantém sua validade até 08 dias de hoje. Se 0 autor Pero Magalhdes de Gindavo tinha a necessidade de afirmar que viu tudo 0 que narra, os historiadores em nosso século, com poucas excegdes, procuram comprovar 0 mesmo. Nascido na cidade de Braga, Pero de Magalhaes era filho de pai flamengo, ao qual deve o nome de Gandavo, ou seja, natural de Ganda (verso portuguesa de Gent). Julga-se que foi instruido numa escola de latim criada pelo infante arcebispo D. Henrique, em Braga, e regida por dois célebres flamengos. Desconhece-se sua data de nascimento e, segundo alguns estudiosos, fixou residéncia na provincia Entre Douro € Minho, casou e abriu escola piblica de latim apés a pressuposta volta do Brasil (Oliveira Machado, 1949, p.417-420). E importante enfatizar que, para nossa anélise, a questo da esta- dda de Gandavo no Brasil tem um peso secundirio. Colocando em se- 40 gundo plano a premissa de documento empfrico, a obra assume um outro tipo de autonomia. Cremos que Gandavo escreveria a mesma obra independentemente de sua estada ou no no Brasil. Gandavo era um latinista, ¢, a0 lado de Ferndo d’ Oliveira, Joao de Barros ¢ Duarte Nunes de Ledo, foi um dos quatro autores que escreveram obra de in- dole gramatical no século XVI. Em 1574, dois anos antes de publicar seu livro sobre o Brasil, edita Regras/ que ensinam/ a maneira de es- crever a/ orthographia da Lingua/ Portuguesa, com hum Dialogo que adiante se segue/ em defensao da mesma lingua. Pero de Magalhaes era o latinista que declarava: quito mais chegarmos a0 Latim estes & outros quaesquer vorabulos Latinos, que corruptamente usamos, guardandolhes fielmente sua orthographia, ito seri ‘nossa Lingua mais poida, de icarA nesta parte mais singular & appurada que as, cutras, (Citado em Pereira Filho, 1959-1960, p.50) "Gandavoé porta-voz.da cultura dominante: Essa determina a sua visio da relagio entre reino ¢ coldnia. E um dos privilegiados que tém aacesso a todo o tipo de informagao e nao necesita viajar ao Brasil para recolher o material compilado em seu livro. Amigo pessoal de Camoes, sua palavra é carregada de autoridade. Tanto Gandavo como Camées freqUentavam a oficina de Antonio Goncalves, impressor da obra de ambos, sendo que Os Lusiadas (1572) precede a ortografia de Gandavo em dois anos. Esse tratado de ortografia de Gandavo obteve grande sucesso e, a0 contrario das outras trés obras de indole gramatical, foi reeditado mais duas vezes no mesmo século, em 1590 e 1592. Como legitimo representante das "belas letras”, seria de se es- perar que todas as suas obras seguissem, principalmente aquelas que foram publicadas apés o seu tratado de ortografia, certos proce- dimentos ret6ricos. Gindavo integrava o efrculo de humanistas de sua época. Na sua Historia da Provincia Santa Cruz a que vulgar- mente chamamos Brasil, sio publicados dois poemas épicos de Cam@es, nos quais o poeta elogia o amigo constatando-Ihe “claro estylo, ingenho curioso”, sendo que Gandavo, na sua ortogratia, re- fere-se a Camdes como “nosso poeta... de cuja fama o tempo nunqua triumphara” (Pereira Filho, 1959-60, p.48). ‘Como escritor consciente de seu status, apela para estratégias re- \6ricas como “name dropping”, procedimento conhecido e muito usa- do pelos autores da época. Gandavo, porém, no apela para as autori- 141 dades gregas e latinas, quer a graca de seus contempordneos. E é assim que 0 vemos citar Joo de Barros na Histéria, onde sustenta que se deve restituir 0 nome de Santa Cruz ao Brasil: “que assi o amoesta tambem aquelle illustre & famoso escritor Todo de Barros na sua pri- ‘meira Década {..." (Gandavo, 1984, f1.7¥.). ‘Conhece-se, de Gndavo, as seguintes obras, em ordem cronol6gica: - Tratado da provincia do Brasil (editado 1965) - Tratado da terra do Brasil (editado 1826) - Regras de ortografia (impresso 1574) - Historia da provincia Santa Cruz (Ms. Biblioteca Escurial) - Historia da provincia Santa Cruz (impresso 1576) E. Pereira Filho dedicou varios estudos a vida e obra de Gindavo, tendo feito um estudo imprescindivel ao cotejar as diversas obras ma- ‘nuscritas aos impressos da Histéria e das Regras, Para o autor, Tratado ¢ Histéria representam duas fases distintas de elaboragao de uma obra iinica (Pereira Filho, 1961, p.83-108). A primeira versdio a ser encon- trada do Tratado, que foi publicada em 1826," apresentava um enigma aps estudiosos. Na dedicatéria ao cardeal D. Henrique, 0 autor menci- ‘onava outra obra até entio ignorada: “os dias passados aprezentei ou- tro Sumario da Terra do Brazil a E! Rey nosso Senhor [..]”. Essa outra obra, que cronologicamente antecede & citada, foi en- contrada anos mais tarde na Biblioteca do Museu Britdnico"e era dedicada & “muito alta e serenissima Sora Dona Catherina Rainha de Portugal”."” Seguindo-se as dedicatérias, constata-se que a versio do Tra- tado dedicada a Dona Catarina necessariamente antecedeu aquela ratado da Terra do Brasil, no qual se contém ainformaco ds cousas que ha nestas partes: {ito por Peto de Magalhdes”. Em Collcdo de Noticias para a Histria e Geografia da Dagoes Ultramarinas, que Vern nos Dominios Pornugueies, othe sao visinhas, Tom D ‘ANY, Lisboa: Academia Real dts Scincia, 1826, ""Céice 1.2026, em pequeno, de 48 fl, enim, constane da cole Stoaniana do British ‘Museum. A este respeto, ver Halo Viana, "A primeira versio do Tratado da Tera do Brasil dd Pero Magalies de Giindavo", em Revista de Histria. Uma reprodugo fac-similar foi ‘orpanizada por E. Pereira Filho. B. Magalhies de Gandavo, Trtado da provincia do Brasil Rio de laneito: Instituto Nacional do Livro, 1965. Essa dedicatia rainha num tratado que se supuna tr sido apresentado ae ey constitu tum dos enigmas até hoje no resolvidos. Hilo Vana supde que Gindavo nZo quis mencionat ‘dedicate a ranha para no meindraro careal. Pereira Filo procura a solugio em ermos Tetércos, sustentando que “apresentar” no sinificariao mesmo que “dedicar™ Segundo ele, constniia apenas um hail sofisma do ator, que apresenta seu io ao rei em cumprimento ‘tum deve, mas dedica-o rina, sua tor 142 dedicada a Dom Henrique, pois, apés a morte de D. Joio II, a ordem na sucessio da regéncia foi D. Catarina (até 1562) e D. Henrique (até 1568). Gandavo jé dé indicios de seus planos de escrever “livro mais copioso” na versio do Tratado dedicada a D. Catarina: (Quiseratractar mais meudamente das particullaridades desta provingia do Brac sil, mas por qsatisfezesse a todos com brevidade guardeime de ser comprido, posto q 0s louvores da terra pedissem outro lixro mais copioso e de maior ‘ollume onde se comprehendessem por extengo as exgellencas ediversidades das cousas q ha nella [.}* ‘Uma das constatagdes mais importantes de E. Pereira Filho foi a de que Gindavo jé havia tido planos de publicar 0 Tratado da provin- cia do Brasil (a primeira versio), pois, a0 pé da folha de rosto do ma- nuscrito, encontrou as seguintes palavras: “Visto e approvado pellos deputados/ da Sancta Inquisigao”, que era a aprovagio necesséria do Santo Oficio & publicagio de qualquer obra na época (Pereira Filho, 1961a, p.12). Através do cotejo dos quatro textos de Gindavo que levaram & ¢laboragao final da Histéria, Pereira Filho assinala as seguintes diver- ‘géncias. O primeiro texto a ser elaborado foi o Tratado da provincia do Brasil, oferecido a D. Catarina, que constava de 17 capitulos (9 + 8). Esse mesmo texto ¢ reelaborado, um capitulo novo the é acrescentado nna segunda parte e sio mudados o titulo e a dedicatéria. Assim surge 0 Tratado da terra do Brasil, dedicado ao cardeal infante, constando de 18 capitulos (9 + 9).° Retoma entio as duas redagdes anteriores, am- plia-as com novos dados e reestrutura a obra em 13 capitulos, dedican- do-a a D. Leonis Pereira. E como se apresenta a primeira redago da Histéria da provincia Santa Cruz, manuscrito inédito até hoje, na Bi- blioteca Escurialense, Essa versdo é reelaborada mais uma vez, sendo ue Gandavo reescreve o segundo capitulo e acrescenta mais um, nar- rando a divisdio do governo-geral do Brasil. E nessa feigo, com 14 capitulos, que finalmente viré a ser publicado em 1576.® “Ganda, 1965, 1.48. A mesmas plas enconram se no eplogo da verso oferecid 0 ‘catdeal D. Henrique. Grifo nosso, aa = 0s dois trad tuna eat. um psago a cor, una dela da cost, una [Pmeia pare com 9 captulsc uma segunda Cos # ou cepts nomen tp eran) "Wa intodo versio fail ranzad po, Pra Pio (Candave. 196, 1013). 143 proprio E. Pereira Filho assim resume a sua teoria a respeito das diversas fases de elaboragdo passadas pelo autor da Histéria: Durante quase 10 anos luta sem tréguas io s6 para publicar como para aper- feigoar sua obra: em busca do primeito alvo, embora sem nenhuma sombra de servilismo, bate a todas as portas sem desanimar. Visando 0 segundo, nlo arre- fece ante as labutas de quatro redagoes diversas (..] Nunca retomou trabalho seu, sem que oreparasse inteiramente,procurando cuidadosamentecorrgir tudo {que fosse passivel de aperfeigoament, inclusive a propria redagio. (op. cit. 1.13. Grifos nossos) Essa obstinagao de Gandavo nos permite constatar que seu dis- curso era determinado pelo objetive de publicé-lo.e nao pelo objeto, que descreve, O objeto que descreve, nesse caso 0 Brasil, serve apenas de instrumento para realizacao de seu sonho de publicar seu livro. Ob- servando-se mais atentamente as correcdes e revises que faz a0 decor- rer da génese literdria de sua obra, constata-se que omite ou acrescenta fatos seguindo principios de um certo oportunismo politico, ou seja, expée a sua obra a0 que for necessério, contanto que seja publicada, 1 A estratégia retérica de usar a experiéncia como garantia de ver- | dade’e a palavra rude sem adornos, utilizando-se 0 conceito de Roland Barthes, o grau zero da escrita por oposicao & palavra de estilo, adorno da mentira, funciona no texto de Gandavo como um dos muitos pressu- postos que orientam a escrita no século XVI. Rocha Pinto assim des- | creve a sua habilidade ret6rica: (Quem mais habilitado do que ele para manipular a eserita, penamente consci- tente do seu saber e do poder da palavra grafads? A técnica era bem conhecida Gos letrados, que sabjam perfetamente que manipulavam os leitores, ¢ Maga- Thies Gindavo alo se fer rogado em aplicé-la na sua Histéria...tratado apologético que apelava, sem equivocos, & colonizasio do Brasil, deixando fazer ener que se propuha um alvo indcuo, que a sua obra obedecia a uma ‘motivagdo espontinea, ou sea, fingia abrir um jogo que estivera longamente ‘culto a0 povo portuguése, com “palavraslibertas de atificios",dava-se-Ihe a fonhecet 8 verdade por ele hé muito esperada. (Rocha Pinto, 1989, p.77) Rocha Pinto lembra ainda que escrever bem era “forgosamente cultivado” na época, e € importante que tenhamos este fato em mente no caso de Gandavo, ‘Um breve resumo de cortes ¢ ampliagdes que a obra sofreu nas suas quatro versdes deixa transparecer a estratégia do autor. Como foi visto anteriormente, a primeira correcao importante foi feita da primeira para a 144 segunda versio do Tratado, quando foi acrescentado um capitulo inteiro (capftulo 9 da segunda parte), Esse capftulo narra a entrada feita a0 sertio brasileiro por “hum Martim Carvalho”, e parece ter sido de extrema im- portncia para o propésito de convencer pessoas a emigrar para o Brasil. Descreve os metais encontrados nessa expedico da seguinte maneira {.-Lentrarto pla terra algumas duzentas vinte legoas, onde as mais das serras ue acharlo ¢ virio ero de mui fino christal e outras muitas serras de huma terra ezilada (..] num ribeiro que pelo pé duma dels descia (..] huns gros ‘miudos amarellos.. Finalmente que todos assentaro ser aquillo ouro nem po- ia ser outro metal [..] (Gandavo, 1980, p.63) Gandavo silencia essa entrada na Histéria. Por qué? Nao elimina © capitulo, mas 0 escreve de maneira vaga, sem dar indicagdes preci- sas. Teria sido vitima da politica de sigilo? ‘Uma circunstancia toma o caso ainda mais enigmético. No manus- crito da Histéria, 0 autor situa a fronteira ao sul do Brasil no Rio de La lata, mostrando-se bem informado sobre o assunto. Jé na obra impres- sa, faz assergdes vagas, alegando que o pats faz fronteira com outras provincias da América habitadas por povos ignorados, o que levou Pe- reira Filho (1961b, p.13) a constatar que essa passagem de Gandavo “é inverdade flagrante e que ele s6 cometeria por imperativos politicos”. J4 abordamos as questdes relativas as flutuagdes econdmico-fi- nanceiras que afligiam Portugal, principalmente ap6s a segunda me- tade do século. Deve-se acrescentar, ainda, a eminente tomada do ‘governo espanhol e a importincia de defender a posigZo lusitana ameagada. Gandavo publica sua obra em 1576, apenas quatro anos antes da tomada de Castela em 1580. Em seu estudo comparativo entre a Gramatica de Joao de Barros e as Regras de orthographia de Gandavo, E. Pereira Filho mostra de maneira exemplar como esses Para um cotejo mais minucioso dos textos, conforme Pereira Fitho, 1961. 45 dois escritores representam dois momentos politicos diferentes da his- téria portuguesa e como obras de indole gramatical faziam parte do que chamou de “expansionismo da lingua” para consolidagiio do im- pério portugués no ultramar. E. Pereira Filho sugere que os didlogos que seguem as duas gramfticas so como uma declaragio de princi- € uma tomada de posigdo. Jé através dos titulos, & possivel sernir as diferentes posturas. Barros declara seu trabalho emt lou- vor da lingua portuguesa, em 1539, enquanto que Gandavo escreve seu didlogo 35 anos mais tarde em defesa da lingua, As palavras ini- ciais, com que oferece sua obra a D, Sebastido, sto as seguintes: “Por ser a presente obra (muito alto & serenissimo Rey senhor nosso) em defensio da lingua Portuguesa (...]" (F1.2v, op. cit. p.20). Seria a conscientizagio do momento politico com a decadéncia do Oriente e 0 crescente prestigio do castelhano, que esté subjacente a tudo 0 que Gindavo, como representante do nacionalismo portugués, escreve? Suas truncagens ou acréscimos sao aleatérios aos aconteci- ‘mentos no Brasil, enquanto obedecem regras intemas do jogo que Por- tugal joga no tablado do mundo. Quanto a recepeo da obra de Gandavo, conhecem-se dois exem- plos que atestam que circulou pelas cortes rivais da Europa. Em sua obra Les Trois mondes, La Popelliniére cita Pero de Magalhdes como ‘uma de suas fontes, ¢ Antonio de Herrera, cronista oficial de Castela e cronista geral das Indias, faz plégio explicito de trechos inteiros da Historia, como foi verificado por J. B. Stetson. Compare-se as seguin- tes passagens que tratam do fndio: Esta gente nam tem entre si nhum Rey nem outro genero de justiga send hum principal em cada aldea, q he como capitd, a0 ql obedecem por vontade & ni por forga. Quido este morre fiqua seu filho no mesmo lugar per successam, & Di serve doutra cousa senam de yr com elles a guerra, & acoselhalos como se hide aver na peleja: mas nd castiga seus erros, nem mada sobre elles cousa alguma contra suas vontades. [No tiene Rey, ni justicia, sino un principal en cada aldea; al qual obedecen por ‘su voluntad, y no por fuerga: y muriendo qda el hijocn su ugar, y no sirve sino de llevarls ala guerra, y aconsejarlos como se han de governar peleando: no ‘astiga sus delitos, ni les manda cosa contra su voluntad.” ™P, Magalhiies de Gandavo, The Histories of Brasil (1922) J. B.Stetvon (org). Reprodugso facsimile do orginal de 1576 (1968, p23). 46 2 yaoi dines cnet ‘Sio varios os fatores que levaram & elaboragio da Histéria. As tués verses que a antecedem, 0 enxerto de ilustragdes alheias, a matriz literdria que condiciona sua estrutura e a autocensura que se impe 0 autor, todos esses so elementos que esto associados de modo indissolivel ao texto. Entre o “tratado” e a “histéria”. ‘Um livro escrito para “provocar as pessoas pobres” No soneto que antecede a Histéria, Cam@es comenta que Maga- Ihdes “teceu uma hist6ria para ilustrar a terra pouco sabida”, ¢, na epis- tola oferecendo o livro a Dom Lionis Pereira, Gandavo afirma ter es- crito “assi por ser cousa nova, & eu a escrever como testemunha de vista”. Gandavo volta a afirmar, no prélogo ao leitor, que a razao que determinou sua obra teria sido a de compensar a inexisténcia de notici- as dessa terra “sepultada em tanto siléncio, pelo pouco caso que os Portugueses fezeram sempre da mesma provincia”, acrescentando, ain- Wendl (1989, p48). Segundo A. Wendt, © folheto, sem data, foi publicado por Matthews Franck em Augsburg 47 Lustrago 20 - Monstra marinho, Pero de Magalhes Gindavo (1576) (em Giindavo, 1984, pata). dda, que “os estrangeiros a tem noutra estima, & sabem suas particulari- dades melhor & mais de raiz que n6s”, Essas razes teriam “obrigado” ‘autora “langar mao da presente hist6ria, & sair com ella a luz” (11.5). As ctagbes da Mitra que se segurso sho de P. de Magalies Gandavo, 1984 148 A intengdo assume uma dimensio didética “decente e necesséria’ de levar noticia: especialmente pera que todos aquelles que nestes Reinos vivem em pobreza ‘nem duvidem escolhela pera seu emparo: porque a mesma terra he tal, & tam favorivel aos que a vam buscar, que a todos agasalha & convida com remedio por pobres & desamparados que sejam. (1.5) Queixa-se da falta de tradigdo dos portugueses antigos e moder- nos “tam pouco affeigoados a escrita”, talvez. sendo essa sua forma de Jamentar a politica de sigilo. Para Gandavo, sem ela nao “ouvera tam profundo esquecimento de muitas cousas”. Ao definir a escritura, Gandavo insiste na sua importancia: ‘Como pois a excriprura sefa vida da meméria, & a memoria uma semelhanga dda immorialidade a que todos devemos aspirar [..] quis movido destas razdes, Fazer esta breve histria (1.5) Nesse prélogo tio rico de informagées, assegura ainda: “Somente procurey escrever esta na verdade, per hum estillo facil & chao” (f1.5¥. Grifos nossos). Inicia 0 primeiro capftulo relatando a chegada dos portugueses a0 Brasil e, ao referir-se aos fndios, faz comparagio imediata aos africa- nos. Segundo ele, os portugueses “nam ficaram pouco admirados, por- que era [gente] differente da Guiné, & fora do comum parecer de toda outra que tinham visto” (f.6v.). Aproveita para ressaltar a diferenga a0 relatar a primeira missa celebrada no Brasil: (Os Indios da terra que ali se ajuntéram ouvido tudo com muita quietagam, usan- do de todos os actos & cerimonias que vio fazer aos nossos. Eassi se punham de giolhos & batiam nos peitos como se teveram lume de fé ou que por alguma via thes fora revelado aguclle grande & inncffabil mysterio do Sanctisimo Sacramento, No que mosiravam claramente estarem dispostos pera receberem ‘a doctrina Christia a todo tempo q Ihes fosse denunciada como gente q ndo ‘inka impedimento de idolos, nem professava outra ley alguna que podesse contradizer a esta nossa ..J (M.6v.7. Grifos nossos) Gandavo procura dar um cunho positivo & terra descoberta pelos ortugueses ¢, fugindo do seu “estillo chao”, explica-nos essa “coinci- déncia” do destino, esse mistério que envolve a predestinagao de Por- tugal “achar” essa terra. Justificando, assim, também 0 nome dado a la por Cabral, de Santa Cruz: 49 arm parce carecer de mysterio, porque asi como neste Reins de Pate tits Gran ato prnsignada rom &cavallana dhs, ER toute elle que esi tena se deseubrive a tompo que otal nome Ihe sodebu sr das neste santo da, pois via de ser possi de Portugese {Shar pr range de patrmonio do mestrato da mesma ordem de Christus (i17-Ghtos oss) As explicagdes sfio dadas dentro do proprio texto, o nome justfi- ccando a propriedade do Estado e da Igreja, ou vice-versa. Adverte que ‘outro nome dado pelo “vulgo mal considerado, depois que 0 pao da tinta comecou de vir a estes Reinos” seja esquecido por ser obra do dem6ni “que tanto trabalhou & trabalha por extinguir a memoria de Sancta Cruz”. ‘Segue com um jogo de ret6rica brilhante através do qual intensifica a ‘comparagao contrastiva entre o valor espiritual ¢ 0 uilitério: ‘milhor soa nos ouvidos da gente Christaa o nome de hum pao em que se obrow O mysterio de nossa redempeam, que o doutro que nam serve de mais que de tingir panos ou cousas semelhantes. (A.7.) segundo capitulo descreve, como sugere 0 titulo, o sitio € as qualidades da provincia. O.cariter némade da escrita, que é uma das caracteristicas de todas as narrativas sobre a América no século XVI, ‘encontra-se expresso na frase introdut6ria do capitulo: “Esta provincia Sancta Cruz esté situada naquella grande America” (f.7v., grifo nos- 0). Dois planos de oposigo poderiam estar embasados nessa assergo. Em primeiro lugar, a oposi¢&o escritot/teferente e, em segundo, a opo- sigio portugueses/castelhanos. ‘A oposicdo América portuguesa versus América espankola parece coneretizar-se ao lado da oposigao ji existente desde a obra de Pero Vaz de Caminha, América versus Africa. Ambas se manifestam claramente na descrigio geogréfica feita pelo autor Apds descrever as “altissimas serras do Peru”, constata: “Destes e doutros extremos semelhantes care- ce esta provincia Sancta Cruz”. Usando do traque ret6tico ex-negativo, ‘enfatiza a qualidade da terra pela “falta” de extremos. Segue: “nam tem serras [...] nem desertos nem alagadigos, q com facilidade se nam pos- ‘sam atravessar”(f.8), donde se deduz que ao falarem desertos ealagndigos tenha a Africa como entidade contrastiva em mente, nao pelo fato de no ‘t8-losna América, mas pelo fato da experiéncia portuguesa com tais con- digdes geogrificas ser africana, No final do parégrafo, expressa, por fim, ‘asuperioridade da América portuguesa ante a hispanica: 150 {.. he esta provincia sem contradigam a methor pera a vida do homem que cada huma das outras de America, por ser commumente de bons ares & fertilssima, &em gram maneita deleitosa eaprazivel d vista humana. (0.8. Grifos nossos) Ressalte-se aqui o emprego intencional do visual como critério de persuasio ao lado do auditivo, que usara a favor do uso do nome de Santa Cruz em vez de Brasil. Esse fato evidencia a instabilidade entre ‘um € outro, ou seja, 0 seu carter de transigao. A primeira vista, 0 texto se apresenta “facil e cho”, como o autor havia prometido, mas, detendo-se em pormenores, 0 leitor vird a des- cobrir que Gandavo imbu‘ra seu texto de esperancas miticas. Ao tratar do rio “das Amazonas”, afirma que “nace de huma lagoa [...] donde partiram ja algumas embarcagdes de Castelhanos” (f1.9). As associa- ‘g0es ao Eldorado mitico dos castelhanos vém & tona. Seriam simples sinais enunciados pelo texto, compreensfveis para os leitores do século XVI? Ao tratar do rio Sao Francisco, afirma: Este rio procede de hum lago muy grande que esté no intimo da tetra, onde affirmio que ha muitas povoacoes, eujos moradores (segundo fama) possu fem grandes averes de oura & pedraria, (f1.9v.-10. Grifo nosso) Alguém que se propusera a relatar a verdade como testemunha de vista surpreende ao ornamentar seu texto com hist6rias segundo fama. A escolha dos tépicos e a ordem de apresentago que determinou fazem parte de sua estratégia de persuasdo. O intento do autor é seduzir o leitor, convencé-lo a emigrar para essa terra. Apés abencoi-la com 0 misticismo do primeiro capitulo, no qual convence que jo nome de ‘Santa Cruz garante a bendigdo de Deus, ao tratar dos rios, passa, como se fosse apenas relatar as qualidades geogréficas, a nos dar indicios das riquezas ainda ndo descobertas. Gandavo nao intitulara em vao seu trabalho de Histéria, sendo que, nos capitulos trés e quatro, procura fazer jus ao titulo, propondo- se acontar a hist6ria dos portugueses no primeiro século de coloniza- go. Chama a atengdo 0 fato de calar, até este ponto, a respeito da existéncia de indios. E uma terra santa, rica ¢ habitada por portugue- ses. Os indios, que servem como argumentacao do carter cristo da terra no primeiro capftulo, aparecem somente quando se trata de um episédio passado hé 76 anos. 151 Gandavo nos conta que as oito capitanias edificadas por vassalos deel Rey esto “ja muy povoadas de gente [ndio de indios] e que possu- em artilharia para defende-los dos immmigos, assi da parte do mar como dda terra” ({1.10v. Grifo nosso). E surge aqui um novo grupo de oposi- ‘glo: ao lado de portugueses versus africanos, portugueses versus indi- 6s (inimigos da terra) e portugueses versus castelhanos, Gandavo it troduz um quarto grupo, portugueses versus franceses (inimigos do mar) E mais uma vez. assegura a0 leitor a condigao de passado da amenga dos indios: Junto dellas aia muitos Indios quando os Portugueses comegaram de as povoat: ‘nas porque os mesmos Indi se levantavam contra elles & faziam thes muitas treigdes, os goveradores & capities da tera distruiramnos pouco & pouco, & tmataram muitos dells: outros fugiram pera osertio, & ass ficou a terra desocu- ‘pada do gentio ao longo das povoag®es. (f.10v. Grifos noss08) Garante, logo adiante, que os poucos que ficaram “sam de paz & amigos dos Portugueses”, 0 que para o leitor habituado com as oposi- Ses significava que pertenciam a alguma tribo aliada aos portugueses € nfo aos franceses. ‘Enfatizamos aqui a imagem pacffica dos indios dada pelo autor nessa primeira parte de seu livro por ser oposta & descrigao que fard na segunda parte, na qual trataré da cultura indigena em capitulo especial E lios num contexto portugués, estereotipac ; E assim descreve capitania por capitania, sempre enumerando 0s seus aspectos positivos, uma é a “mais nobre” de todas (Bahia de todos (0s Sanctos), outra, a “mais fértil” (Spirito Sancto), ou a “mais segura” {Rio de Janeiro), nao deixando de assegurar: “& 0s que 1d forem viver ‘com esta esperanca nam creyo que se acharam enganados” (fl. 13v.) ‘Seu propésito de angariar colonos para esse apéndice de Portugal esta subjacente a toda a sua estrutura discursiva, ‘0 quarto € 0 capitulo mais curto ¢ mais apologético de todo 0 livro. Ao contar da “governanga” dos moradores e da “maneira de como se ho em seu modo de viver”, constata os progressos que se fizeram desde o estabelecimento dos portugueses no inicio do século. As casas, 152 csi assists que a prinefpio eram de “taipa [..Jcubertas somente 6 palma” i ena Sobeasae oped A calves reais deste Reino”, arescentando ainda a existéncia de “ruas muy compri- das & fermosas” (15). Gindavo exprime sua esperanga de que, em breve, “(Segundo a gente vai crecendo) se espera que aja outros muitos eedificios & templos muy sumptuosos com que de todo se acabe nesta parte a terra de ennobrecer” (f.15. Grifos nossos). Ln] & se huma pessoa chega ma tera a aangar dous pars, ov meya dia les ainda qu on couse nam fens dest) logo fem remedio pea pet honradamente sxe so aml: pore fm he pesca te Ihe ca, osc ane as dri ano heen depen mimo cam es avon, em com Pss Afirma que alguns moradores possuem até trezentos escravos, que todos se tratam muito bem e que esto prontos para “favorecer muito os pobres que comecam a viver na terra”, ¢ acaba o capitulo com cconstatacio: “nestas partes [...] nenhum pobre anda polas portas a mindigar como nestes Reinos” f1.15v.). A comparacio explicita entre "estas partes” e “este Reino” sugere uma figura retérica, a sinédoque. © que poderia ser visto como um critério apenas geogréfico assume uma outra dimensio, a de ser parte de um todo, parte dos reinos de Portugal. Ou seja, a terra define-se como tal ou assume uma dimensio histérica na medida em que se assemelha a0 reino de que é parte. ‘Apés esse trecho enfitico, Gandavo segue sua descri¢ao classificatéria, ocupando-se das plantas, mantimentos e frutas da “provincia”. A selegio destas estava prefixada pelo mesmo motivo que © levou a escrever o livro. Assegura ser “cousa infinita escrevelas aqui todas”, assim, faré mengio “principalmente daqllas, de cuja virtude & fruito participam os Portugueses” (1.16). Conseqllentemente, inicia.com a planta basica para um portugués, que é aquela com a qual se faz 0 pio. Note-se 0 jogo de argumentagao usado por Gindavo: “Primeira- ‘mente tratarei da planta & raiz de q os moradores fazem seus manti- ‘mentos q /é comem em lugar de pio” (f1.16. Grifos nossos). | Ojogo retérico, que até entdo se baseava no ex-negativo, se inver- te, jd nfo se evidencia mais a falta de pio, mas o substituto, sendo que ‘valor referencial permanece 0 mesmo, o pao. Relatando em porme- nores o plantio e preparagio da mandioca e do aipim (os substitutos do pio), chega & conclusio de que: “{.] fazem huns bolos em algumas ‘ capitanias, que parecem no sabor que excedem a pao fresco deste Rei- ° que Gandavo promete, basicamente, nio so riquezas edénicas (essas apenas servem para adomar o quadro), mas sim, numa atitude pragmé- tica, casas de pedra e cal, ruas compridas e, especialmente, a auséncia da fome. Os escravos, através de seu trabalho, garantem o “mantimento dda familia, ¢ aquilo que se come em lugar do po chega a superd-lo. Os > portugueses sabem quais so as frutas melhores da terra, e Gindavo ‘descreve-as em pormenores. Eis ainda um trecho, no mesmo eapitulo, fem que reaparece a tendéncia de Gindavo a estimular a curiosidade do leitor, dotando certos aspectos da natureza de qualidades sobrenatu- rais, Referindo-se a plantas que nao dio fruto, esereve: Soment trey de huma muy notavel cua qualidade sida creyoqem ods parte aur pe eopanto, Chomase era vv, dt alguns serehanga Aetytvam masho, Quid alguem Ihetoca com ass, ov om qualgue ota haz qutej, agulletometse nso &murchade mane, qe pares Stat seatva go sean & cee sna com ale came. ig sonsega como cosa js exqureida deste ara, fora log poco srrcoM Swen feacoua ver tam bss & verde como dies. (0.19%) 154 E conclui com a promessa: “Esta planta deve ter alguma virtude muy grande a nds encuberta cujo effecto nam sera pella ventura de ‘menos admiragam” (f1.19v. Grifo nosso). Segue-se a descricdo da “quanta immundicia & variedade de ani- mais” que a natureza espalhou pela provincia, aproveitando para men-

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