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Simone de Souza (Org.) —- € oy | (eS CM ete lice) N mer Marea Cy 7 Frederico de Castro Neves Retell st Lisle -t) Te RCC hi) Régis Lopes PCCM le ate etsy *, 1 m marco de 1889, acontecia, pela primeira vez em ptiblico, 0 “Milagre de Juazeiro”. A héstia transmutava-se em sangue «set quando a beata Maria Madalena do Espirito Santo de Aratijo (1863-1914) recebia a comunhdo da missa celebrada pelo Padre Cicero. A partir de entdo, os sertanejos comegaram a alimentar crengas sobre o poder miraculoso do Padre Cicero, criando rituais € narrativas em torno das forcas do sagrado que aliviam os sofrimen- tos do viver. Desse modo, apareceram as primeiras romarias para.o pequeno povoado de Juazeiro. A medida que Juazeiro tornava-se um centro de romarias ¢ de desenvolvimento econdmico, Padre Cicero assumia @ condicéo de poderoso dono de terras, conquistando grande prestigio ro jogos da politica. Foi o primeiro prefeito de Juazeiro (em 1911), influen- ciou o resultado de eleigdes e promoveu 0 crescimer:to da cidade, com seu carisma religioso e suas ligagées pol“'cas Enquanto 0 bispo do Cearé, dasa Joaquim Vacira, lancet vatios protestos contra o “fanatismo dos sertane}oS » ees as ctencas sobre a existéncia de milagres em torno do Padre Cicero ormava-se um lugar Maria de Ar woado transf ta Maria de Aratjo. O povoa e numero de romeiros. Mesmo Sagrado, atraindo um impressionant , foi, paula- Com as varias proibigées da Igreja, 0 fluxo de a! ur inamente, aumentando. em 1926, a i iu, No movimento religioso de Juazeiro emer ae CR comunidade do Caldeiréo. Liderados pelo beato José yrios devotos do Padre Cicero construiram uma irmang Lou : produgao agricola era dividida entre todos. Em 1936, 9 ¢, - Onde 3 destrufdo pela policia. : deity foi Hoje, Juazeiro é uma das maiores cidades do Cearg ruas esto as marcas do sagrado e do profano: no territé, Nas sy, romeiro pede ou agradece “uma graca do Padrinho Gas, Onde desenvolvida atividade comercial, que se destaca pela vari héy mercadorias em circulagao. Aariedade de mPadre Cicero ao | 7 oe . : fado de um colega ee a 7 By do seminario. 2 : mn 7 a oy : feud : A terra da salvagéo ical Em 1865, Cicero Roméo Batista iniciou sua formacé° cleric? tte Seminério de Fortaleza. Por volta de 1870, pouco antes de rece a as ordens, ele fez pose para uma fotografia. Era @ postu . ce que nao escapava do desejo de ver a sua propria 4 Produzida nos recursos da técnica fotografia. ea Criado em 1841, 0 proceso de reproducao fotografica transfi arse em uma das grandes novidades do avanco cientifico Poues poucd; o retrato pintado passava a ser substituido pelo ret Ico forage, de custo bem menor. etrato Como ocorria em varias outras partes do mundo, Fortaleza, no final do século XIX, era uma cidade de habitantes seduzidos pelas Jentes da camara fotogréfica. Ao instigar o sentimento de auto-esti- ma,a fotografia ganhava uma popularidade de larga proporcéo, fis- ando desejos de reprodugso da imagem. Naquele tempo, cada foté- fo aprendia que os clientes usavam a fotografia como concretiza- fo da imagem que eles desejavam, nao s6 para os proprios olhos, mas, sobretudo, para o olhar dos outros. i Com a fotografia ao lado do colega seminarista, C{cero Romao marcou 0 primeiro passo de uma longa e diversificada produgao de imagens. Absorvido pelo fascinio de ser fotogratado, ele teve uma vida pontuada de poses e cendrios. De 1870 até sua morte em 1934, Cicero figurou em um largo conjunto de fotografias, revelando seus ideais de construgao da aparéncia. : Depois de passar cinco anos no seminério, Cicero Romio rece- be as ordens em 1870. No decorrer de 1871, Padre Cicero dedica-se ao oficio de lecionar em um colégio do Crato. £ 0 retorno a cidade de seu nascimento. No final daquele ano, a convite de alguns amigos, celebra a Missa de Natal na Capela de Nossa Senhora das Dores, localizada em Juazeiro, um povoado composto por dois pedagos de mua e uma pequena Capela. Para os que moravam no lugar € arredo- tts, era uma dadiva do Céu a presenga de um padre. Como acontecia ¢m varias outras paragens do interior, Juazeiro estava sem capeléo. Pouco tempo depois, em abril de 1872, Padre Cicero foi morar 10 povoado, levando sua mée e duas irmas. Ao fixar residéncia em Juazeito, contava vinte e oito anos. A partir de entéo, dedicou-se imtegralmente ao trabalho de guiar as almas para o “bom caminho”. Acada dia, cumpria sua missdo: celebrar missa, receber confiss6es, Zer batizados, dar a extrema-ungao € disseminar conselhos. ‘Spettava admiracdo e respeito. ' Durante o resto de sua vida, eta di i lave em Juazeiro fora concen a oe i conta aoe durante um sonho, Cristo reve ie a minis ears famintos do sertao. Além desse, cise, 2igo day sonhos que haviam gusts ot da as revel la alma de seu pai dando conselhos ou a1" Soby "©©S pecados do mundo. izer que a decisso ido de Cristo. reciso tomar gostava de como a lagdes jwazeiro @ caldeirdo: espa% Para muitos habitantes do sertao, eram verdadeiras as noticias sobre a héstia transformada em sangue na boca da beata Maria de Araijo durante a missa celebrada peto Padre Cicero. Seduzidos pelo desejo de entrar em contato com 0 to extraordinario acontecimento, varios devotos fizeram de dJuazeiro um grande centro de romarias. .gos de sagrado © profane 347 ae S visiondrio confidente. Para © espirito mistico qo Bd ee bastava vet ef preciso falar, era preciso Confidencia, desejo de sentit-se como parte de um projet Di ‘ar cumplicidade. Tratava-se de uma questig ite ‘omo dono do poder de vislumbrar os oh te ae da verdade. Ao falar sobre as aa Se © padre de . Tri. azuis mostrava a si é aos outros a legit lade de sua missig Em 1889, Padre Cicero comegou a ficar conhecido em Outros lugares. Fara muitos babitantes do sertao, eram verdadeiras ag note. cias sobre a héstia transformada em sangue na boca da beata Maris de Aratijo durante a missa celebrada pelo Padre Cicero. Seduzidos pelo desejo de entrar em contato com 0 tao extraordinério acontecimen. to, varios devotes fizeram de Juazeiro um grande centro de romarias ‘Maria de Aratijo, Padre Cicero e os peregrinos acteditavam ser Juazeiro um espago de comunicagao entre a Terra e o Céu. A trans. formacao da héstia em sangue anunciava que o remoto povoado era um territério de purificacao e salvagao da alma. Nessa religiosidade, o milagre significava um aviso de Deus para a converter os desvia- dos e alimentar a fé dos devotos. O Padre e a Beata acreditavam que suas vidas eram instrumentos de Deus para alertar a humanidade. O sangue que misteriosamente surgia durante a comunhdo representava um sinal sobre 0 “fim das eras”. Pensava-se que, em breve, o mundo iria se acabar. Todos deveriam rezar e pedir perdao a Deus, pois 0 julgamento final estava proximo. No imagindrio dos romeiros, as revelagées de Deus sobre 05 pecados da humanidade eram de primordial importancia. Muitos sertanejos conclufam que, diante das ofensas a Deus, 0 “milage” pr nunciava o “Dia do Juizo Final’. No entanto, havia outras idéias, como a fé na cura de doengas ou em uma melhoria nas condicées de vida. Quase todos os peregrinos procuravam sarar alguma enfermi- dade. Acreditavam, que, naquele “santo lugar”, Deus estana de uw dos abertos para atender aos pedidos. Fazendo peniténcias ¢ oragits, cada devoto tentava mostrar que merecia a atencéo é Dest I [uazeiro era um lugar onde se construfa mais confianga em tone realizacao de milagres, alimentando esperanca em dias mes i Os fiéis estavam preocupados com a resolugao de prot . a oe Além de ser uma forma de criar cetido Pai do aes ae ein teligiosa fazia-se com o desejo ae ast aliviar os ne eae — Laie ja com we ee timentos do viver. A religiosidade a a rado fornec# ae ini Em outros termos: a vivencia 40 § e eal ful 0 entendimento do mundo e, ao mes™ ” soca i te a ‘Ao ganar a condigao de tertitério religioso, Juazeiro passa um lugar sobre 0 qual o devoto tem forte esperanga de teas gu dirninult as dores e desventuras de cada dia, como doencas, falta getrabalbo, falta de chuva ou ainda desavencas ligadas ao casamen- oa questées em torno da posse de terras. O milagre e a reagao da Igreja Em novembro de 1889, 0 bispo do Cearé dom Joaquim Vieira esereveu uma carta a0 vigério de Juazeiro, Cicero Roméo, pedindo explicacOes sobre os fatos vivenciados por Maria de Aratijo. Estava reocupado com a auséncia de um comunicado oficial por parte do Padre Cicero. Seguindo os passos da burocracia canénica, a interpre- tagdo do bispo foi incisiva e autoritdria: afirmou que o siléncio sobre um fato tao extraordindrio era uma quebra do voto de obediéncia. Somente em 7 de janeiro de 1890, depois de sofrer repreensoes de dom Joaquim, Padre Cicero escreve um telatério sobre os “mila- ges de Juazeiro”, pedindo perdao por nao ter comunicado 0 “fato extraordinério” com maior rapidez. Argumenta que sua atengao dada aos peregrinos deixava-o com pouco tempo. Cheio de fé nos poderes de Deus, Padre Cicero informa varios detalhes sobre a trans- formagio da héstia em sangue na boca da beata Maria de Aratijo. Im seguida, esclarece que sua intengao era no divulgar esse fato, mas a notfcia logo se espalhou. Sem provas suficientes, dom Joaquim fica com duvidas sobre significado desse “fato extraordindrio”. Sua primeira idéia no sen- tido de esclarecer 0 noticiado “milagre” € pedir a0 Padre Cicero que providencie a transferéncia da beata de Juazeiro para a Casa de Catidade do Crato. No entanto, essa determinacao nao écumprida € obispo interpreta a situagio como grave desobediénci. Em carta enviada ao Padre Cicero em julho de 1890, dom Joaquim escreve que, diante da insubordinacio, no pode haver nee “Maria de Araijo desobedeceu-mell! Para mim, esté tudo abado, no ha sobrenaturalidade nos factos acontecides com be de Aradjo ... meu juizo esta formado”. Em ot bar , " i adverte que © milagre passa a ser um ci ae ie ne isso, iniciava-se uma longa trajetoria 0° Tidades da Igreja Catélica e 0 capeldo de Juazeio de hi Partir dos relat6rios apresentados por duas eae 0, que foram a Juazeizo em 1891 e 1892, dom Joad de sagrado @ profane + A partir dos retatorios: apresentados por duas comissdes de inquérite, que foram a duazeiro em 1891 @ 1892, dom Joaquim conclui que nao ha milagre ao acontecimento examinado, Diante disso, Pate Cicero € proibido de preger. confessar, dar conseiho aos ficis @ rar missa em Juezeira, 349 clui que néo ha milagre no acontecimento examinado, Dian i ui : ' : ; le pregar, confessar, dar co i Padre Cicero € proibido a gi ce ta celebrar missa em Juazeiro. : Com base nos documentos enviados Por dom Congregacéo do Santo Oficio (em Roma) negou, em abriges a possibilidade de milagre em Juazeiro. Ficava Proibida Qlg 4, manifestagéo em torno do sangue derramado, Contudo, — Wer diminuiu o movimento dos peregrinos. Pelo contrArio: 9 Volum, romarias ampliava-se em um ritmo cada vez acelerado, da O conflito entre Igreja e Juazeiro nao pode ser yi isolado ou somente uma mé vontade de dom Joaqui tismo do Bispado do Cear4 guarda intima ligacao com a8 politic, implementadas pelos altos funciondrios de Roma. Tal Postura = de acordo com os rumos do processo de “romanizagio?, Em linhas gerais, os historiadores usam 0 termo “tomaniza ao” para caracterizar as diretrizes adotadas pelos dirigentes a Igreja Catdlica na segunda metade do século XIX. Sobretudo depois do Concilio Vaticano I (1869-1870), as politicas da Santa Sé dese. volveram varias acdes no sentido de fortalecer a ierarquia no fun. cionamento da estrutura clerical. Nesse projeto, hd uma profunda valorizagdo da obediéncia, Os “Teigos” tém a obrigacéo de buscar pardmetros na voz dos padres e de todos os outros membros da ordem eclesidstica, Os padres deve obe- diéncia aos bispos e outros Superiores, assim como os bispos sio subor- dinados a membros do corpo clerical que ocupam cargos de maior poder Obviamente, o topo dessa complexa estrutura é ocupado pelo papa. Desse modo, o Céu ser4o lugar dos submissos (dos que obede- cem) € o Inferno, a prisdo daqueles que nao seguem as determina §6es da doutrina catélica. Com a “romanizagéo”, a Igreja tomnase Mais repressiva. Procura desenvolver, com mais profundidade, ume pedagogia do medo, Ou melhor: reafirma com mais énfase que % desobedientes agem porque estéo dominados pelo deminio. Todos deviam redobrar os cuidados em face das tentagdes de Licifer i Sobretudo depois do Concilio de Trento, uma das politicas Igreja era reafirmar que o Diabo tinha um grande poder. Afinal, Se Sto come faty im. Q aUtorita. Sra necesséria para a coletividade crist a existéncia € @ - ado do Mal. Era preciso que fosse visto, tateado, tocado, ie que o Bem surgisse como a graca suprema - 0 Belo eo DO €™ oposic¢ao ao Horrivel e Demonfaco. : stir Com 0 alargamento do medo, a Igreja poderia — ar 0 500 pele Ons I de combater o mal, Era preciso lemb ; vi % jrimigo se assan a, sem descanso, Para atormenta, rar que a sua infeliz vitima: © homem”. (Nogueira, 1986 7) € prejudi- a valorizagéo da obediéncia tinha 0 objetivo cpamada *jgnorancia dos fandticos’, ou seja, as ae ve ye nao estavarn submetidas ao controle da Igreja. Era u fea sed mini acao. Fortalecendo © poder de mando do a ae fico, a “romanizacao buscava mais poder sobre 4 vida dos fi i. ‘Alem disso, tencionava reconquistar devotos que haviam ab; ne nado 0 catolicismo. Aestrutura de pod ae ler da Igreja construt . Bee Tufa supor- te para combater 0 protestantismo, as idéias baseadas no Tacionalis- mo moderno, a magonaria e 0 liberalismo. A orientagao bésica era reprimir as prdticas que, de alguma forma, estivessem fora dos pos- tulados oficiais. Para a Igreja, os devotos de Juazeiro eram “fandticos ignoran- tes’, que desobedeciam as ordens do bispo e inventavam crengas sem fundamentagéo na doutrina catélica. Ou melhor: conforme a Igteja Romanizada, os peregrinos estavam agindo de modo incorre- to, pois operavam rituais sem a permissdo da “autoridade compe- tente”, ou seja, o bispo. A burocracia clerical nao aceitou a iniciativa popular de cons- truir um espago sagrado em Juazeiro e um santo chamado Cicero. Deacordo com a Igreja, definir os limites do sagrado seria uma tare- fa exclusiva de “profissionais qualificados”. Os “leigos” ndo pode- tiam afirmar o que era uma manifestacéo divina. historiador Gershom Sholem afirma que “o misticismo implica por sua propria rlatureza o perigo de um incontrolado e incontrolavel desvio em face da autoridade tradicional’. Com a cer- teza de estar em contato mais direto com as forgas do sagrado, 0 mistico sente-se com legitimidade para enfrentar os poderes insti- tuidos, Padre Cicero, Maria de Aratijo e todos os devotos que acre- ditaram na sacralidade do sangue derramado desobedeceram 4 lgteja porque sentiam-se em contato com as revelagées da Divina Providéncia. Diante de Juazeiro, a Igreja agiu para ce Poder institucional. Depois do Decreto da Sagrada Inquisiga0, que, €™ oe "85 “milagres?, Maria de Aratijo entra em progressivo 8 ST ‘©. Comeca a viver em reclusao e siléncio, sem despertas dias, ocu- “eto, a atencdo dos peregrinos. Os devotos que, sa ne para as S as tuas de Juazeiro acabam escolhendo ad — Re “8 Préticas de devocdo: a casa do Padre Cicero, 4 eo apie ‘ota das Dores e as paredes da Igreja do ore Depois do Decrato da Sagrada Inquisigao, que. em 1894, condena os “milagres", Maria de Aragjo entra em progressivo recolhimento. Comega a viver em reclusao e siléncio, sem despertar, de made direto, a atengaio dos peregrinos. and que ficara inconcluso em face das proibi¢ées de dom j No entendimento do Fadre Cicero, a document, aqui Roma néo havia permitido uma avaliagéo mais ae iad “gcontecimentos de Juazeiro”. Diante disso, ele ois . i por uma revisdo no proceso: envia um recurso para o § a trabay : ‘A to esperada resposta de Roma sé chega a Juaze ant iy de 1897. O documento informa que a apelacio fora . ILO em, in disso, 0 Santo Offcio determina que o Padre Cicey Sead, Ale Juazeiro em um prazo de dez dias. Caso contratio, ser deve de 7 do. Surpreso e aflito, Padre Cicero refugia-se em Salgueing de do interior pernambucano. Na esperanca de peed Uma cid celebrar missa em Juazeiro, viaja para Roma no infcio i Em Roma, o Padre Cicero encontra-se novamente aa 0 dese. S Padre Cicero A gg em Fama, 1888 ’ 382. MA Nova Historia do Coars ee uit ra gu que evoca retrato dos santos. aa im detalhe significativo do seu vestudtio nessa f ase no uso da estola. Conforme as regras da Ipre; fotografia ste 50 de um profundo simbolismo, Trata-se de a ‘ja, a estola 7 do quando os membros do corpo clerical desde » te 7 _ celebram 0s sacramentos ou em outras ocasides 5 a £ uma parte do vestudrio que entra em cena durante tote clude como pega indispensével. » Vale frisar que o Padre Cicero vai para a Cidade Santa suspen- sodeordens e sob a ameaga de excomunhio. Nessa situagio, a foto- fia representa a imagem de um padre que deseja mostrar com- yomisso com a Igreja € que se coloca como receptor Privilegiado de mensagens da Divina Providéncia. Na estola, Cicero reafirma aféna Igeja e, no olhar para o crucifixo, ritualiza sua intima relagio com ofilho de Deus. E a postura de quem anuncia que recebe revelacdes do Salvador em companhia dos Doze Apéstolos. De acordo com a Santa Sé, Padre Cicero esta perdoado, mas continua proibido de manifestar qualquer opiniao sobre “os fatos de Juazeiro”. De volta ao Ceard, recebe de dom Joaquim a licenga para novamente celebrar a missa, menos em Juazeiro e arredores. Em Juazeiro, Padre Cicero liderou uma politica de siléncio acer- @ do sangue derramado, No entanto, assumiu explicitamente a condicao de promotor das romarias, alegando que todos os peregri- 40s estavam movidos pela fé em Nossa Senhora das Dores. Desse odo, procurava colocar o fluxo de romeiros que teve inicio com os nilagres do Sangue de Cristo nos quadros da legalidade can6nica. No final das contas, 0 que aconteceu foi um rearranjo de bes Pressionado pelas interdigées da Igreja, Padre Cicero bia prin 'as as formas, preservar ° movirnento dos peregrinos. Me 7 ido de exercer o sacerdécio, continuou a ter contato com os dar . car da tarde, costumava aparecer & janela 7 Obes cad ‘640 aos romeiros. Na sua curta homilia, a ‘os caset0s. Manto Py Mensagem evangélica e ensinava rem sin dos ids, eas ene dre Cicero ganhava largo espa¢o 7 a * nebulosa rel loquase a i um terreno marcado pela lembran¢ leclmento. i bij ante toda a sua vida, Padre Cicero conservou a es 2h Io 48 manifestacdes de Cristo que nao foram ¥ tos de 72. A trajetoria da urna contendo os panos mane No final das contas, © que aconteceu foi um rearranjo de Tituais. Pressionado elas interdigdes da Igreja, Padre Cicero tentou, de todas as formas, preservar 0 movimento dos eregrinos. Mesmo proibido de exercer 0 sacerdécio, continuou a ter contato com os figs, Ao cair da tarde, costumava aparecer a janela de sua casa para dar a béngao aos romeiros. nc de sagrado e profane = 353 sangue é um dos indicios que mostram a aces Telacio do p, ce com o milagre que fez de Juazeiro uma terra de tomaria ceeilment, of panos do “milagre” eram a princi fonte devogio para os fiéis. Em 1892, D. Joaquim a 2 urna com as“ jas” no tabernéculo que ficava em um altar da Igreja do Crato, Sey ae era evidente: pretendia obliterar a meméria do milagre 7 com pouco tempo, a urna foi roubada. Em 1894, © decreto do Santy Oficio determinou que o autor do roubo deveria devolver a uma, Mas, essa ordem de nada adiantou. A urna continuou em lugar ignorado, O mistério sobre a autoria desse furto s6 foi revelado em 1919, com a morte de José Marrocos, que era um dos grandes defensores do “Milagre de Juazeiro”. A reliquia estava cuidadosamente Buarda- da no meio de seus pertences. O intuito do Padre Cicero era tomar posse da urna e de outros objetos do amigo falecido. Alegava que José Marrocos havia-lhe dado esse direito, j4 que nao possuia herdeiros. Mas, no meio de uma acirrada querela, a urna foi parar nas méos do coronel Anténio Luiz, o mais importante lider politico do Crato. A partir de entio, os vestigios do sangue derramado transformaram-se em objeto de negociagdo entre Juazeiro e Crato. . Naquele tempo, Padre Cicero trabalhava pela emancipacéo de Juazeiro, que, nas esteiras do desenvolvimento comercial, havia se transfigurado em cidade com ‘ares de progresso”. A intencéo do coronel Anténio Luiz era barrar as pretensdes do Padre Cicero. Nesse embate, Padre Cicero decidiu aceitar a proposta do ini- migo: recebeu a urna e, em troca, desistiu da luta pela autonomia de Juazeiro, No entanto, a desisténcia foi apenas momenténea Pressionado pelos comerciantes de Juazeiro, Padre Cicero nao ficou ausente do movimento politico que, a curto prazo, conquistou a independéncia. Em 1911, ele assumiu o cargo de primeiro prefeito de Juazeiro. Fadre Cicero escondeu a urna na casa de uma beata, soba mesa de um altar. Mesmo com as pressdes da Igreja, Padre Cicero sempre declarava que nada sabia sobre o destino das relfquias. Até s¥# morte, em 1934, guardou esse segredo. Em 1948, a professora Amélia Xavier entregou a urna a0 mom senhor Joviniano Barreto, ento vigério da cidade. Quando caiu 29 ir do cleto, 0 vestigio do sangue derramado foi completament destruido. Ao entregar os panos, a professora Amalia Xavier tent Wa Mostrar que Juazeiro era uma terra obediente a Igreja. A0 trutlos, a Igre; ¢ nas J baseava-se na sua politica de jogar o milegr malhas do esquecimento, 354. Uma nova Historia do Ceara O sagradoea Sobrevivéncig azoivel, e muitas vezes inevitdvel, Canudos, ¢Juazeiro, até hoje, ocupam lugar de destaqu spent0s. Sao centros de atracao para os migrantes spelhor condigao de vida. Muitos dos que foram para Juazeiro encontraram trabalho na ultura. le nesses desloca- em busca de uma aggic' Nao havendo em Juazeiro trabalho para todos, o padre enca- rminhou muitos roneiros para os campos inexplorados do Carin, particularmente para a Serra do Araripe e de Sao Pedro, recomen- dando-lhes que aforassem, arrendassem e comprassem aquelas terras € ali vivessem sob sua protecéo espiritual. (Brito, 1956) Em fins do século XIX, Juazeiro parecia um “Novo Canudos’: sua regido periférica aumentava de tamanho todos os dias. Em 1890, havia no povoado cerca de 2.245 habitantes. Numero que se elevou 15.000 em 1909. Enquanto muitas localidades do sertdo perdiam habitantes, Juazeiro vivia em significativo aumento da densidade demogrfica. No inicio do século XX, 0 povoado possufa, na sua regio central, um aglomerado de atividades comerciais e de casas dos mais abastados, de maior tamanho e com fachadas que lembra- vam a arquitetura das grandes cidades. Na “cidade sagrada” dos fiéis comecava a crescer a “cidade pro- fana’ dos comerciantes e artesdos, que negociavam com estabeleci- mentos de outros Estados. Uma larga e diversificada producao de objetos desenvolvia-se com grande félego e justificado entusiasmo em face das vendas: panelas; sapatos; objetos de couro ou barro; chapéus; sacos de guardar alimentos; bem como uma imensa quan- tidade de utensilios do meio rural, tipo enxada, foice, p4, faca, ‘pingarda e pélvora. No meio da intensa confeccdo de artigos religiosos ~ como ‘Statuetas, oragdes, tercos, velas, medalhas e retratos da corte Celestial — estava ainda a crescente inddstria de foguetes. Afinal, 0 : a mee havia desenvolvido o costume de saudar aru * Does e © Padre Cicero com o estourar de fogos em Hen rantida. Até hoje Mat eat © produto tinha, e ainda tem, venda garanticl Tem itulhento ritual se opera, com o mas Tum indo Sra homenagem ao “padrinho” e outros santos. Mais um A grande maioria dos migrantes que faziam a cidade aumentar de tamanho estava Movida pela fé nos Poderes do Padre Cicero, Muitas vezes, a busca por uma methor condigaio de vida misturava-se com vivéncias do sagrado. A experiéncia religiosa era o grande motor das migragdes, mas ‘0 crescimento do comércio foi, paulatinamente, transformando-se em grande atrativo. do intercambio que se faz no mercado da Protecéo, Agrande maioria dos migrantes que faziam a cidade a de tamanho estava movida pela fé nos poderes do Padre Cheeta Muitas vezes, a busca por uma melhor condi¢éo de vida Misturaya, se com vivéncias do sagrado. A experiéncia religiosa €18 0 grande motor das migragdes, mas © crescimento do comércio foi, Paulat. namente, transformando-se em grande atrativo. As Atlvidades arty. sanais ou industriais e as transac6es de compra e venda VEO assy. mindo uma proporcao mais significativa para quem desejaya mon. tar um negécio ou arranjar um emprego. Em outros termog, Juazeiro continuava a ser uma “cidade sagrada”, mas também desenvolvia-se como “cidade profana” Mencionar a existéncia de uma “cidade profana” e uma “cida. de sagrada” nao significa estabelecer uma fronteira rigida entre ambas. Pelo contrario, percebe-se que h4 uma complexa sobreposi- fo de territérios. Como ressalta 0 antropélogo Anténio Arantes (1994: 191), os espacos néo possuem fronteiras plenamente defini- das ou definitivas, nao formam simplesmente um “mosaico’. Em Juazeiro, 0 movimento das romarias e dos migrantes constituiu espagos sobrepostos e de limites transitérios. Fazendo-se em espacialidades flexiveis, marcadas por cruza- mentos de temporalidades e fronteiras méveis, o Juazeiro profano crescia em conflituosa simbiose com 0 Juazeiro sagrado, em um pro- cesso de urbanizacio marcado por romarias, movimentos migraté- ios e 0 répido crescimento da pobreza nas regides periféricas. A teportagem “Maos que produzem milagres’, publicada no dia 27 de fevereiro de 1949 pelo jornal Correio do Juazeiro, afirmava que a cidade era a “Sao Paulo do Carri”. Para mostrar que a inferéo- Gia era corteta, 0 repérter mostrava que o alto ndimero de “pequenas indtistrias” colocava Juazeiro em posigao de destaque diante de outras cidades do interior Pelos sertées, dizia-se que esse e14 U lugar onde nao havia falta de emprego. De acordo com a descrigao do socidlogo Sylvio Rabello, Juaz#i® em fins da década de 60 era uma “cidade oficina’, Suas Tuas ao Pontuadas de atividades ligadas ao artesanato, em uma inves que chamava a atengo dos visitantes, Era uma (con)fusdo de wid e Gas, oficinas e pontos de comércio, como uma “aldeia do orient? ‘Umenta le Ruas residenciais ou de comércio ainda abrigam oficinas é artes4os, sobretudo as mais bem-organizadas — a dos Out® as dos sapateiros, dos marceneiros, dos fabricantes de armas 4 costureiras de roupa de homem, 356= Uma nova Historia do Ceara Boa parte dessa produgéo estava el ‘M crise. No va, feta visivel a decadéncia: final dos anos essen Vio rareando os ourives, que no su ouroea concorréncia das “fantasias” fa do Pats. Também os sapateiros nao por dos sapatos de plastico, mais vistosos 4967: 73) Portam 0 alto custo do. bricadas em série, no su) dem agtientar a invasio © mais baratos,Rabello, A ‘cidade oficina” era um espaco constituido Por trabalhado. res temporarios. O grande contigente de homens, mulheres ecrian- as que procurava suprir a sobrevivéncia de cada dia caminhava em terreno frouxo e escorregadio. No comércio ambulante, nas negocia- cées com outras cidades ou no trabalho das Oficinas, as flutuagdes domercado de oportunidades faziam com que o improviso de novos campos de atuagéo fosse uma prética comum e imprescindivel, Muitos desses trabalhadores estavam nos limites da sobrevivéncia, envolvidos em um cotidiano espremido pela escassez, pelas crises petiddicas - como as secas de 1915, 1932 ou 1958 ~e a concorréncia do mercado, que, a partir dos anos 60, obliterava a producio das ‘inddstrias domésticas” com as inovagGes tecnoldgicas para o aque- cimento da produgdo em série. Sylvio Rabello (1967: 105) percebia que era impossivel calcular Ondmero exato da “populagdo juazeirense que faz do artesanato e da inddstria caseira o meio de vida principal’. Nao poderia ser dife- tente. Sobretudo entre os mais pobres, reinava uma enorme mobili- dade. Mudar de “ocupagéio” era fato comum, Tudo era vélido na Peleja da sobrevivéncia: procurar outro emprego, montar o préprio negocio no fundo da casa ou ainda fechar uma oficina e abrir outra. Nessa economia marginalizada, a estatistica néo conseguia pene- tar Era um trabalho que acontecia na reclusdo dos quintais e nada "a muito permanente. Além de economizar o dinheiro do aluguel, 2 "abalho no recolhimento das casas era uma forma de evitar 0 "oubo do governo”. Longe da contabilidade estatal, tomava-se Mais Facil enganar do fisco. : ‘maior aquecimento nas vendas dos produtos ee cali durante as duas grandes ee ate dal Padoe Piling Padroeira em setembro 7 30 de fazer compras em hase mente, os fiéis cultivaram 7 tradi¢é como uma prdtica de devocdo. 7 Tomarias estimularam a criatividade de ee “arte uma forma de expressar vida e £6. Por outro (20, artesanais que fize- sur- se saarado e profane» 357 giv, também, uma produgao de estétuas que se distancia doa, 5 Thess, nato mais tradicional, ou seja, esse artesanato que uss Ha como madeira € barro, realizando-se em um trabalho solitag’® artista e sua matéria-prima) ou de forma coletiva sob a tiene 6 de um mestre, como acontecia na oficina do Mestre Noza, Tr tid da inddstria do gesso, que modela a imagem do Padre Cicero ase tir de uma forma. A mio-de-obra, nesse caso, 6 pouco pecan, ea produgao é em maior quantidade. ; la Hoje, jé no hd, no comércio religioso de Juazeiro, eg retratos da beata que recebeu o sangue de Cristo. Por o Padre Cicero transformou-se em tema central para variada indiistria de imagens. tatuas oy UttO lady Para nao aumentar ma larga e as rivalidades entre *nativos" 6 A politica dos coronéis ea “forasteiros", Padre sedigao de Juazeiro Cicero resolve que 0 Acreditando que a cidade era um lugar mais ou menos seguro para quem procurava um “meio de vida”, muitos Sertanejos pobres prefeitura da cidade —_ foram residir na “Terra do Padre Cicero”. Poucos conseguiam escapar cH cle icine! da pobreza. O centro urbano desenvolvia-se com as desigualdades do capitalismo: uma pequena quantidade de ricos e um grande niimero de trabalhadores despossufdos. Na cidade sagrada dos que emancipagao politica, acreditavam nos poderes do Padre Cicero, crescia uma cidade de con- constituida por uma _ tastes sociais. candidato para Depois da luta pela iceensacauin ao Foi na onda do crescimento econémico que Juazeiro, em 1911, ¢r*" |ficou independente do Crato, Para os romeiros, a situag&o nao se modi- yo" |ficava. O lugar permanecia sagrado: territério onde morava o ‘santo Gominantes do Crato, |padrinho”, que protegia os necessitados e alimentava as esperancas. Padre Cicero 6 ® Sof con 0 crescimento do espaco urbano, iniciaram-se as rivalide ne ie al a entre “nativos” ¢ “novos moradores", em geral romeiros que nid obttf diam “ganhar a vida” em Juazeiro. Alguns desses “romeiros” trans a wo} formaram-se em comerciantes de destaque. Seguindo os desejos es ‘classes dominantes, Padre Cicero procurava - com o seu prestgi junto ao oligarca Nogueira Accioly — orientar a luta da independé™ cia por um caminho pacifico e, na medida do possivel, conciliadot @ (fo Fara ndo aumentar as tivalidades entre “nativos” € "forasteiros' p ee Padre Cicero resolve que 0 candidato para prefeitura da cidade 7 ster Jele mesmo. Depois da luta pela emancipagio politica, constitul® e \17_ | Por sucesséo de atritos com as classes dominantes do Crato, Ba Cicero € empossado como o primeiro prefeito da cidade, em ane eae a politica conciliatéria do Padre Cicero a . lo, dando mais apoio ao grupo dos “estrang com as classes primeiro prefeito a: Cidade, em 1911. 358» Uma nova Histéria do Coc < sso 8 deve, eae forte influéncia parrolorned sobre os destinos de Juazeiro e de Floro Bartolomeu, que trabalhara como pees sees do Bahia e Gaia ay chegou a essa Epoca até O ano de sua mort ao de grande aliado do Padre Ci ere Con Floro assumiu Ge foi eleito deputado estadual e posteriormente fol do sacer- so, ocupou 0 cargo de principal comandante da ibs ra jus", que derrubou o governo de Franco Rabelo em 1 9s 10 de Em 1912, Franco Rabelo ganhou as eleigdes Para o goverr Ceard gragas a0 apoio da “Politica das Salvagées", stipe a Hermes da Fonseca e acolhida por alguns setores da “classe mé de fortaleza, das “oligarquias dissidentes” e da Associagdo Comercial Cearense. Conforme a presidéncia da Republica, a finalidade da “Politica das Salvag6es” era combater os grupos que, em seus estados, desen- yolviam praticas oligérquicas. No Cearé, esse plano foi instalado com 0 objetivo de depor a oligarquia de Nogueira Accioly, que, desde os finais do séc. XIX, manipulava a maquina do Estado, por meio de fraudes eleitorais e toda sorte de falcatruas. Nogueira Accioly dominou 0 governo do Cearé de 1896, quan- do foi eleito para o cargo de presidente do Estado, até 1912, diante da revolta de habitantes da capital, que desembocou na eleicao de Franco Rabelo para a presidéncia do Estado. Atrelando-se aos mecanismos e traméias da “Politica dos Governadores”, Nogueira Accioly constitufa seu poder na troca de favores com o Governo Federal: os chefes locais apoiavam o poder cen- tale, em contrapartida, o poder central oferecia os seus beneficios. Uma importante pega nessa engrenagem era a “Comisséo de Vetificaco dos Poderes”, sempre composta por politicos da situagao. Diplomar ou no os eleitos era a tarefa dessa “Comissio’. O candi- dato aprovado nas urnas, mas nao afinado com 0 poder institufdo, tta rejeitado. Alegava-se que a teprovagéo ocoria quando alguma Taude na votago era percebida. Garantia-se, desse modo, 0 fine Tamento da “Politica do Café com Leite”, ou seja, © predominio if Prsidentes paulistas e mineiros na Presidéncia da nenteee ee A cleicéo de Franco Rabelo néo representou uma nal fea ae Bovernar que se utiliza das praticas ee eoeL hee uma mudanga de grupos poe com suas velbas tame 2 a8 velhas préticas do coronelismo NS, feitas de violéncia e arbitrariedade. sidencia do fle lembrar que Franco Rabelo assumiu @ pres do forasteiro® loro Seu patriarca, ae € jornalista 'Wazeito em maio de ado e profano «359 5 acordo com Nogueira Accioly, Em 191 Estado mediante Oro com grande quantidade de votos Mas, ! Franco Rabelo foi aa ndo era suficiente. Para ser empossy, io Iegislagéo em vigot, 'S Fo de 16 dos 30 deputados da Assemble necessitava da — faminada por homens ligados a Noguei Legislativa, que as o ntimero suficiente de votantes, decidiy eee rol rca. Receberia, na vota¢ao, 0 apoio de 16 ae er a ora ‘alguns cargos ptiblicos aos “, accalys. nee a avordo foi cumprido de modo parcial Apenas 19 oe oe vor de Franco Rabelo, pois alguns homens deoutades eye a Jo aceitaram a negociagéo. Mesmo ferin- fiéis a Nogueira —— om i elo foi e ‘ea Kee Rabelo e Accioly logo i a abrindo espago para um forte movimento de nie ie li era : Pelo velho oligarca. Em represdlia, Franco Rabelo decide evar a “salvagao’ pata co mais articulado niicleo de apoio ao acciolysmo 1 OU Seja, 0 Carini, Padre Cicero e Floro Bartolomeu eram os dois grandes Ifderes na alianga entre os poderosos da regio e Nogueira Accioly. © mais famoso dos acordos entre as classes dominantes do Cariri e Nogueira Accioly foi o “Pacto dos Coronéis”. Nesse docu- mento, assinado em 1911, dezenove coronéis assumiram o compro- misso de estabelecer a paz no Cariri, ou seja, colocar um ponto final nos seus conflitos armados. Desse modo, procurava-se controlar dis- putas e desafetos, para evitar a grande recorréncia de embates san- gtentos € pontuados pela morte. A unio era proposta sob a égide do total apoio a Accioly. Em outros termos, o acordo reafirmava a troca de favores entre poderosos da tegiao e o governo do Estado. O plano de Franco Rabelo era desmontar o “accyolismo” no Cariri. Em nome da ordem o do “combate ao banditismo’, as for- gas tabelistas invadem a cidade de Crato e prendem o prefeito Anténio Luiz Alves Pequeno, que era primo de Accioly. Em seu lugar foi colocado o rabelista José André. A partir de entdo, Juazeiro ficou sob ameaga de invasio, Ao apoiar 0 “bloco do Norte” ( égide do pernambucano Dantas Ba: Como opositor a ci coligacao de governadores sob @ rreto), Franco Rabelo colocava-s¢ ‘andidatura de Pinheiro Machado ao cargo de pres ica. Pinheiro Machado apresentava-se como herde- Fonseca. Desse modo, Franco Rabelo rompia com Hermes da Fonseca, ou Seja, com as forcas federais através das qualis canes © decisive apoio para a sua vitéria eleitoral em 1912, 4% em certa medida, havia derrubado a “oligarquia Accioly’. A partirde entéo, Hermes da Fonseca Passa a combater o seu antigo aliado- 10 de Hermes da 360 Uma nova Historia do Ceara vw do novo arranjo das forcas polit is eee oe eee Floto via eer ra desmontar a “salvagdo” de France Rabel oo °F plano era O seguinte: em Juazeiro, Floro ¢, ey om a ‘Assembléia do Estado do Cearé em oe uJ bla que legalmente funcionava em Fortale ontraposigéo a i Floro deveria ser eleito o presidente dessa a ie eta decretada a inconstitucionalidade do cous re 7 gavel pois sua eleigdo havia sido homologada por Dd ae Sor 16, como a lel exigia; feito isso, era s6 ade at : de uopas federais, para depor Franco Rabelo, em nome delle ce ge cecretada pela Assembléia de Juazeiro. egalida- Em fins de 1913, falava-se que, a qualquer momento, a cida- de do Padre Cicero seria invadida pelas forgas de Franco "Rab I ‘Ante a ammeaga, @ efetivagdo dos planos de Floro paige antecipada. Com apenas seis deputados, foi constituida uma ‘Assembléia em Juazeiro. Enquanto isso, espalhavam-se pelo sertao noticias sobre uma ossivel destruigao da terra do Padre Cicero. Muitos sertanejos foram para Juazeiro. Pretendiam, a qualquer custo, defender o lugar saptado. Falava-se que Franco Rabelo queria levar para Fortaleza a cabega do Padre Cicero enfiada em um pedaco de madeira. Para os devotos,o conflito entre Cariri e Fortaleza era uma luta entre o bem eomal, entre Deus e o Diabo. Nodia 20 de dezembro de 1913, Juazeiro sofreu o primeiro ata- t das forcas rabelistas. A defesa foi realizada com a ajuda do ise da Mie das Dores’, ou seja; um conjunto de grandes trin- que os romeiros haviam construido ao redor da cidade. Depois das vit6rias sobre as forgas de Franco Rabelo, um enor- Re co ; a ntingente de sertanejos armados iniciou, sob 0 comando de coin, Pererinacio” que s6 teve fim em Fortaleza. Pelo meio Blico da mie oe varios embates ‘Animados com o poderio ans comb tidéo revoltada e incentivados pelas ordens de Floro, ‘ante as Iu tentes esqueciam os conselhos do Padre Cicero e ties ie saqueavam ou destrufam os bens dos inimigos duutte ¢ 7 idades foram invadidas, como Crato, ‘Miguel Calmon, Nenege amobim. Em 14 de marco de 1914, fot decretada ee Fang federal no Ceard. Em seguida, Hermes da Fonseca ‘no na Rabelo e nomeia o general Setembrino de Carvalho a ‘entor do Estado. aa "con ahistéria politica do Cearé, a “Sedica0 de Juazeiro” €mais to entre as classes dominantes, mais ume lut@ pelo poder ja a0 Rio feral, um im linhas convocar 13005: a. sagrado e pro! ano « 361 A morte do Padre Cicero nutriu 0 aparecimento de um largo territorio de orengas e rituais. Varias historias sobre a “Volta do padrinho” comegam a circular no imaginario dos romeiros. A sacralizagao do tumulo na capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro veio acompanhada por uma fé no retorno do “patriarca” titufda por interesses particulares e de grupos politicos OU ee Ht c : oe Para os que lutaram em defesa de Juazeiro, a Cuena fae ssumia varios significados. A multidéo dos Combatentes Ay 1 a por uma massa muito heterogénea. Muitos acteditavan com] ue se tratava de uma guerra em nome de Deus. ‘ qi No entanto, nem todos eram romeiros do Padre Cicero, Além t Et itos combatentes eram disso, entre devotos ou nao, muitos cangaceios ou ‘capangas” dos coronéis do Cariri. Para esses, 0 conflito significa. va mais uma luta entre potentados, na qual deveriam exercer suag profissdes, manifestando habilidades para atirar no inimigo e defen. q der-se do pipocar de balas. Trilhas e atalhos da devogao Em carta pastoral de 1891, o bispo do Cearg Mostrava-se tevoltado com uma “grosseira supersticéo” que agitava Juazeiro: ° crescente uso de medalhas cunhadas na Europa e a difusio de retratos com as figuras do Padre Cicero e Maria de Aratjo, Comunicava que, na sua posigao de “Pastor e Buarda da £8”, deci- dia tomar providéncias para impedir “este ultraje atirado a face da purissima Religiao”. Indignado, o bispo lancava mais um protesto contra os “fanaticos”. Como outras, essa condenagio episcopal nao diminuiu a £6 dos peregrinos. O movimento de romeiros e crengas em torno do Padre Cicero continuou mostrando sinais de profunda vitalidade. Sem con- tole eclesidstico, espalhava-se pelos sert6es 0 habito de colocar, na Parede da sala, os retratos da beata Maria de Aratijo e do Padre Cicero, Proibidas de entrar na Igreja, as imagens dos protagonistas do milagre encontravam calo; roso abrigo no santudrio doméstico, lugar de significativa importanci volveu nas terras brasiliana tos momentos, constr6i rel, ta, sema Presenga de um i s. Indicio da teligiosidade que, em cer- laces com o sagrado de forma mais dite- ntermediario oficial, isto é, sem a neces- Sidade de um padre, No depoimento dos figis, a imagem do “padrinho” é a materi lizagdo do sagrado, s , tealidade com a qual efetuam pedidos e promes- sas. Na estétua ou no retrato do Padre Cicero esté 0 “padrinho’, que ameniza 0 softimento dos necessitados. No oratério doméstico, © Santo de Juazeiro” costuma ocupar o lugar central em relacSo @ Outras imagens. Entre flores e velas, compondo uma estética qué aa a forga do Sagrado no espaco dos martais. 'm Juazeiro, 0 devoto Compra estatuas do “patriarca” model 3628 Uma nova Historia do Ceara asso de tamanho pequeno, médio OU grande: de 8 cm, adm gst Nas estampas coloridas, 0 “padrinho” sempre srg rodea- we ond ou anjos, tal como os santos Canonizados pela Igreja. go nu mente, uma das estampas mais Populares traz 9 “padi. so de Nossa Senhora das Dores, #30 flutuando sobre nuvens i 5 por um amarelo que revela energia € sactalidade Nesta dea taco, ele ocupa o mesmo espaco de uma sa esentage™ Para a teologia oficial, emerge daf uma a or, nada hé de anormal, pois o “padri : estonével poder. Je in inta canonizada Mensagem erra- inho” € um santo de ee eee ene "9 Na estampa " 1 Popular, padre | Cicero aa lado de | Nossa Senhora | das Dores. weg Lobe JRE SE * yy « +363 Com a morte do Padre Cicero, em 1984, 0 Dia dos, transformou-se na data de maior romaria para Juazeiro, A pant entio, 0 dia dois de novembro ergue-se COMO 0 tempo do 9 morto. Tdo grande que nao morreu de verdade. Ainda hoje, os grinos afizmam que, em 1994, 0 padrinho se mudou’, |» Pe Depois de 1934, 0 dia dois de novembro em Juazeirg evox morte € perenidade, com uma forca singular. i como se nada ins se um ponto final. Explode, em éxtase, 0 desejo de permanencia, de sempre deixar visivel € palpavel a encarnacio do sagrado, Os olhos azuis, que antes invadiam 0 corpo dos etegtinos estavam fechados, e sob 0 peso da lapide de mérmore. Mas meméria tem seus engenhos. O mesmo azul continuava presente estava impresso em estdtuas de gesso e estampas coloridas, coma detalhe penetrante de um rosto levemente reclinado, em tom de acolhimento e ternura. Azul com destaque garantido no espago do altar doméstico, na sala de cada devoto que faz o interminével ross. tio da romaria. Morto nas tramdias do tempo, 0 padrinho foi salvo nas pelejas da meméria. ‘A morte do Padre Cicero nutriu o aparecimento de um lrgo territério de crencas e rituais. Varias historias sobre a “volta do padrinho" comecam a circular no imagindrio dos romeiros. A sac lizagdo do témulo na capela de Nossa Senhora do Rerpétuo Socor veio acompanhada por uma fé no retorno do *patriarca”. Na crenga dos peregrinos, a biografia do Padre C{cero nao termina em 1934 Na Literatura de Cordel, nos pequenos livros de versos que 0s sertanejos compram nas feiras, Juazeiro comp6e um tema de inega- vel destaque. Os “cantadores” ou os autores desses folhetos nao eco- nomizaram palavras para divulgar as virtudes e milagres do vener do “Padrinho”. Na poética popular, encontramos as narrativas que 0s romeiros guardam no acervo das informagées vitals. caso do chapéu agarrado a parede € uma referéncia quase obrigatéria. E quando no seminério / os seus colegas ocupava / G tornos 14 da parede / na hora que ele chegava / que tomo nela 80 via / nela o chapéu sacudia / e pregado ele ficava’. No folheto Nascimento do Padre Cicero na cidade de Crato ~ Ceam I Bernardo nos conta um milagre do “padrinho”, “quando Tevante: um morto na serra de Séo Pedro. att Na cultura dos peregrinos, a biografia do Padre Cicero faz ie dos planos da Divina Providéncia. O poeta Joao de Cristo ioe gura que ele “ veio habitar neste mundo / com a ordem 2° Pe sev Para redimir os crimes / de todo povo moderno / € defender devotos / do castigo do inferno.” 364. Uma nova Historia do Ceara vo ‘asimagens do “padrinho® ganham o contorno que est am. AS narrativas dos milagres dio forma s 8 peregri- 90 0 de veh concretamente, © que jé existia nos ideas Palpavel ao oe _ issiondrios catélicos A (te)producao de histor Na prega- (oe Cicero guarda intima telacdo com a vontade Srias sobre o atm grande protetor € ter bem pro. yimo pistOrias de fé em torno de Juazeiro sao feitas d As a ‘1 le mudan pmanéncias. A partir de novos acontecimentos, os devotos ref, \Gas e azem_ mem6tias. Nesse proceso descontinuo e ambiguo, sao elab erpretacdes em torno de parametros institutdos a on exernplo: € 1961, no calor da Guerra Fria, o poeta Toto los da iva puolicou © folheto Palavras do Padre Cicero Sobre a Guerra Naea, ‘Abraso Batista escreveu Receita do Padre Cicero contra o Célera publicado | on 1992, quando o Ceard estava ameagado por essa epidemia, Outros titulos revelam que a fé se renova das mais variadas maneitas: A voz do Padre Cicero contra a Guerra das Malvinas, escrito or Joo de Barros; Encontro de Tancredo com Pe. Cicero no Chu, do ro Bandeira ou A visita de Luiz Gonzaga ao Padre Cicero to por Lucas Evangelista para narrar a chegada do “Rei do $ roves int poeta Ped Romdo, feit Baido” ao Parafso Celeste. Depois das notfcias sobre os milagres da beata Maria de Aratijo em 1889, um grande desejo das populacées sertanejas era conhecer o sagrado Juazeiro e assim pedir algum beneficio aos poderes do ‘Além?. Quando nao podiam enfrentar a viagem pelos caminhos da caatinga, mandavam cartas ao venerado padre de olhos azuis, em busca de alfvio para os inforttinios da vida A partir de finais do séc. XIX, a casa mou-se em um endereco que, todos os dias, recebia cartas dos fiéis. Solictavam toda sorte de ajuda para amenizar ou eliminar os males docorpo e da alma, Apés a morte do Padre Cicero, em 1934, o ritual dos pedidos nao desapareceu. Os devotos continuaram a fazer do adte Cicero 0 protetor de todas a horas. do Padre Cicero transfor- Imagens do poder: entre 0 segrado eo profano angio do Padre Cicero pata carg0 de prefeito em ee Cr Por uma fotografia em forma de medalhao. Bea ed asap Ofettato apresenta a imagem oficial de um Paar a, rsto ae sighificativo lugar nos jogos 4a politica: Tata mest tem, lurado que foi colocado nas paredes da preter do Padre , foi um do retratos que mais despertaram™ 0 gos! WM Retrato oficial FO para a prefeitura - de Juazeiro do Norte * De Cicero Romo Baptista — Ave So aa # CULO 2 By Cicero. A Partir dessa matriz, ele mandou imprimir uma infinidade de cartées-postais, Seguindo moda de entao, desenvolveu o habito de Q foo + bo Oferecer a prépria Imagem como “prova de amizade e estima” ygiee © ; ae Parte das fotografias nas quais o Padre Cicero aparece o Ye aaa. a a ode politicos é Composta por registros das visitas de trés presi- peo “ates de Estado a Juazeiro: Joo Thomé de Saboya, em 1917, Jose Moreira de Rocha, em 1925, e José de Mattos Peixoto, em 1929. Os envolvidos nas tramas da politica dos coronéis sabiam que 366 © Uma nova Historia do Coara 9 40 Padre Cicero tinha inestimavel importancia. As poses 3 gas ciante do flash constitufam ritos de sacrali Bie a que caracterizavam as classes dominantes, oe inte ¢ 80 an08, Padre Cicero serviu de modelo para uma estat pyonze e™ tamanho natural. Seguindo as orientagdes de A de yomeu, 0 escultor Laurindo Ramos fez uma imagem que i a sera mais realista posstvel, com. grande riqueza de deualhes to 628 mios, bem como o caimento da batina, foram esculpi- modo a reproduzis, com perfeicdo, os tracos fisicos do ome que havia comandado o progresso da cidade. Como estava pesto, © Padre Cicero em bronze foi fixado no centro da mais stante praca de Juazeiro. O lugar, antes chamado de “Praga da Independencia”, ganhou outro nome: Praga Almirante Alexandrino. Realizada em janeiro de 1925, a inauguragao da praga e de sua esidtua assumiu Uma atmosfera de ceriménia oficial e patriética. Contou com a presen¢a de varias autoridades e desfiles de um des- tacamento da Escola de Aprendizes Marinheiros da capital. Aug Lome te ye aa 1 Presidente Joao Thomé e Padre Cicero, em 1917. No centro: gente Moreira 03 Rocha, a esquerda Pe, Cicero a direita Foro Bartolomeu EO ae Bi ot Desse modo, o deputado Floro Bartolomeu tentava redimen- sionar a imagem de Juazeiro aos olhos das elites estaduais e nacio- nais. Sua grande preocupacéo, como deputado federal eleito sob direta influéncia do Padre Cicero, era combater os comentarios sobre © “fanatismo” e a “barbérie” da cidade que lhe dava sustentagéo politica. Com efeito, procurava equipar Juazeiro com representa: goes do mundo civilizado. Assim, mostrava legitimidade de sua cat reira no poder legislativo. A estétua de bronze transformou-se em um dos simbolos do progresso da cidade. Para as classes dominantes de Juazeito, Padre Cicero nao poderia ser visto como um “santo dos fandticos”. A exal- taco que muitos membros das classes média e alta desenvolver@™ em torno do Padre Cicero, até mesmo chamando-o de santo, cons: truiu-se com a preocupaco de nao apresentar “manifestagces & destaque 2 ae Eum “culto racionalizado”, que ane sobrenatural fi ’ ee — ne od adre VE tuoso fe perse ar Be recOndito. Ergue-se a figura a rae Pans aos ope la maldade da Igreja), juntament® dot ov ainda datuce aa lonesto, do homem caridoso e ei * ‘Até hoje “ Promoveu 0 desenvolvimento da cidat “je bro / 0S romeitos nao rezam aos pés dessa estatua se encontra no meio da Principal oe imagem de gesso colocada em j300 3 yg intcio da década de 1940 lo, 5o00K"” para a teligiosidade dos fiéis, es; aan qual realizam oragGes e pedid si tra imagem que desperta expre t§tua do Padre Cicero feita de Cimento e ferro, colocada em Gna da Serta dO Pate lugar préximo da tegigo central da cidade Com 95 metros de a ay Monumento foi inaugurado em 1969 als especificamente, no dia Primeiro de novembro, isto é& pouco antes de uma grande tomaria: o Dia de Finados, No tempo de lem- rar os mortos, 4 cidade sempre est cheia de peregrinos, operando Com medo de situais em torno do “padrinho”. Em 1969, a romaria dos finados recebeu outros significados: 0 movimento dos figis misturou-se com louvagées eivadas de propa- ganda polftica em torno do prefeito Mauro Sampaio. Naquele ano, 6 romeiro encontrou a cidade com uma programacio diferenciada, Wansformagies Politicos de todo o Estado, varios jornalistas e intimeros convidados _sociais e culturais do do prefeito foram para Juazeiro a fim de inaugurar a grande est4- tua do “Patriarca”. As 20 horas do dia primeiro, a cidade teve todas as luzes apa- gadas. Logo depois, a grande estdtua foi iluminada por 24 holofotes, 40 Perder feis, era quando o vice-governador acionou um sistema eletrénico, montado _ preciso negociar com na Praca da Matriz, onde havia cerca de oitenta mil pessoas. manifestagbes antes Escutou-se, entdo, o caloroso aplauso da multiddo que admirava 0 monumento iluminado. . Nos jornais de Fortaleza, a festa foi amplamente divulgada. A 0 ca0 das 1 idéia mais presente era mostrar que Juazeiro néo poderia ser chama- de Juazeiro. do de “centro do fanatismo’, pois tratava-se uma cidade em acele- tado desenvolvimento. Veja-se, por exemplo, a propaganda de uma indistria de aparelhos eletrénicos: ra da Cidade, Por Outro , 4 fente ao “Cemi 8° ganhou a Simpatia dos si a é uma Imagem sagrada ‘0S a0 santo protetor ‘ Sslva atengdo dos Peregrinos tétio do eae perder figis acompanhando, em certa medida, as século XX, a Igreja Percebeu que, para marginalizadas, como romarias | 7 J4 se foi o tempo em que Juazeiro s6 eta conhecido pela fabticacio de espingardas, fogos de artificio, calcados, j6ias, AN2bis, relogios, estatuetas, chapéus, redes, brinquedos, lampa- “nas, bolsas e um cem ntimero de obras artesanais Hoje «st Mos na era'da eletrénica, por isto fabricamos Radios ¢ Motores Heticos de alta qualidade! (Gazeta de Notas 01/11/1969) ussdo na imprensa ‘dade com base em mento no qual So inteuguagio do monumento e sua reper lores do ais que reafirmam definigdes pata 4 © ‘ Progresso capitalista. Trata-se de um m fano » 369 ng de sagrado € pro! é posstvel vislumbrar valores que, cee eae stavam pre 1925, na inauguragao adre Ciera 9 ee A dministragso do Padre Cicero na prefeitura fo; tele bronze 1908 como 0 inicio do progresso. Juntamente com a m fi idéia de “Reois - 2 do desenvolvimento urbano, a ice ce Regio Nordeser entrava em cena como argumento p: eBociagses entre 4 émica e a Sudene. alte oe medida, grande parte da multidéo de quase 20 mil pessoas que aplaudiu a inauguracao do ar néo estava em sintonia com a propaganda politica das classes dominantes, Qs peregrinos que vibraram com 0 Fadre Cicero do Horto estavam, antes de tudo, participando da fundagao de uma imagem sagrada, A grande est4tua branca logo foi transformada em lugar de devocio, Antes, 0 Horto j4 era um espaco sagrado religioso. O monumento veio reforgar a sacralidade. ; Enquanto o Padre Cicero em bronze, inaugurado em 1924, permaneceu na praga Almirante Alexandrino como uma represen- taco do prefeito virtuoso, o Padre Cicero do Horto, também feito como estandarte da elite polftica e econdmica, logo assumiu a con- digdo de imagem religiosa. O Padre Cicero em bronze foi fundado e conservado com rituais do profano: representacéo, nem sempre nitida, das artima- nhas de uma politica sacralizada. O Padre Cicero do Horto foi feito como parte do jogo de interesses politicos (e empresariais) e como lugar de devogio. E sagrado e profano. As narrativas sobre os milagres do Padre Cicero guardam inti- ma relacéo com o desejo de encontro com o sagrado, ou melhor, 0 desejo de ter a vida sob os cuidados de um grande protetor.O Padse Cicero que mora no coragéo dos devotos e gera um largo territério de rituais é criador e criatura da cultura teligiosa dos sertées. Cultura que, nas vivencias cotidianas historicamente constituidas, se faz de mudangas e permanéncias, AAs méitiplas faces que compdem o Padre Cicero evidenciam a8 igilidades que marcam toda a sua vida, de 1844 a 1934. O enig- ma Padre Cicero constitui-se em paradoxos: um homem da Igieja¢ por ela expulso; venerado por “coronéis” e d lespossuidos; prefeito de Iuazeito e taumaturgo visionério; forga de conformismo e espera” fa latifundidrio membro da oligarquia Accioly e centro de utoF 8 € igualdade social a partir da fraternidade biblica; santo da prot $80 € da punicéo. Impulso de vida e morte. O espaco sagrado construido Cicero fot, i pelos devotos do Padre Cic até finais da década de 1950, violentamente reprimido pela Igreja ambi 370s Uma nova Histéria do Ceard outro lado, os fiéis nao desistiram: continuaram auais qe fazem de Juazeiro um lugar saprado, yitica quase sempre conciliatéria, og Petegrinos nao catolicismo. No entanto, lutaram ~ nem semy “para defender as virtudes e os milagres do ‘A pattir dos anos 60, a Igreja abandona a em face das romarias, Mas continua a negar Cicero. Nao combate a existéncia desse “sani modo quase sempre implicito, nao reconhece ho” como fonte de milagre. Mais de cem anos atras, quando dom Joaquim exercitava sua jntolerancia, a Igreja ainda tinha uma posicao privilegiada, mas com osignificativo crescimento do protestantismo, do espititismo e das religides afro-brasileiras, que aconteceu nos Processos de urbaniza- gio do Pals, a situagao ficou diferente. Hoje, 0 poder de manipula- cio da Ipreja esta ameagado diante de um grande nimero de outras eligides. Ao mesmo tempo, o Vaticano II, a Teologia da Libertacéo, omovimento contrario promovido pela “Renovagao Carismética’ e arelagdo estreita entre meios de comunicagao e catolicismo (ver, por exemplo, o caso do padre Marcelo Rossi) deram a Igreja uma outra cara, que néo combina com repressio mais violenta. Com medo de perder fiéis e acompanhando, em certa medida, as transformagoes sociais e culturais do século XX, a Igreja percebeu que, para nao perder fiéis, era preciso negociar com manifestacdes antes marginalizadas, como € 0 caso das romarias de Juazeiro. Hoje, Juazeiro continua a ser o lugar onde o os peregrinos bus- cam os milagres Padre Cicero. For outro lado, a terra dos romeiros é, também, o lugar de politicos em busca de poder, de comerciantes que procuram sobreviver ou aumentar os rendimentos, de homens emulheres que acreditam na ordem do progresso, de pobres que pro- curam vencer a fome ou de catélicos que acreditam (ou nao) nos Poderes do Padre Cicero, Além disso, a cidade passou a abrigar varias tligises, como o protestantismo e 0 espiritismo, mostrando que 0s caminhos do sagrado séo variados, e sinalizando que as experiéncias religiosas nao cabem dentro de regras congeladas. Praticando og entro de uma pred abandonaram re de mod, . "Pedrinho" : explici- Politica de Tepressio 4 santidade do Padre to popular”, mas, de a imagem do “padri- ° A utopia da mandade José Lourengo chegou a seu pai que jd estava nsformava-se em um tes, O ambiente nais- No meio de varios outros devotos, Juazeizo por volta de 1890, no intuito de visitar Torando na cidade, Naquela época, a cidade tra Sande centro de romarias e de atracdo para migran! ge sagrado e profane #371 Falava-se que 0 boi do beato José Lourengo operava toda sorte de milagres, curando qualquer tipo de doenga ...sob as ordens do deputado Floro Bartolomeu, 0 animal foi abatido em frente da cadeia, onde estava encarcerado 0 beato José Lourengo Lourenco se dedicasse ao trabalho Mssionsrig fazendo pregagoes calcadas na Biblia e longas eae de oragioe ae téncia, A partir de entio, ficou conhecido como beato José Loure Mostrando forte espirito de lideranga carismatica, ele formoy le de camponeses no sitio Baixa Danta, im idad uma pequena comunida ° axa nen eaves na agricultura € a produgdo era dividida de acon, do com a caréncia de cada um. Ninguém Passava necessidade Organizava-se uma sociedade religiosa na qual o trabalhador ng, era espoliado pelo dono das terras. Com pouco tempo, os seguidores do Beato transformaram 9 terreno deserto em um lugar cheio de plantacoes: tico fez com que José alguns milhares de laranjeiras, mangueiras, jaqueiras, limeitas, coqueitos, limoeiros, bananeiras e cafeeiros, a0 lado de uma bem cuidada cultura de algodéo, cereais e outras diferentes qua- lidades de plantas hortaligas. (Figueiredo, 1934) Por volta de 1920, um extraordinrio acontecimento marcava presenca em Juazeiro. Falava-se que 0 boi do beato José Lourengo operava toda sorte de milagres, curando qualquer tipo de doenca. Nas redondezas e na capital do Estado, o “animal sagrado” era visto, por muitos, como mais um ind{cio do fanatismo em tomo de Padre Cicero. Acusado de ser santo, 0 boi foi transportado do lugar onde tinha seu pasto, no sftio Baixa Danta, para a cadeia ptiblica de Juazeiro. Nao para ficar preso, mas para ser julgado e condenado morte. Sob as ordens do deputado Floro Bartolomeu, o animal foi abatido. Em frente da cadeia, onde estava José Lourengo. Quando o beato José Lourengo comecou tomar conta do touro reprodutor, que era um presente oferecido pelo Padre Cicero, apare- ceram as noticias sobre “o Boi Santo”. Dizia-se que a urina do ani- mal era distribuida como medicamento. Afirmava-se, ainda, que os “fandticos de Juazeiro” ajoelhavam-se diante do touro, pois acredi- tavam que se tratava de um animal milagroso, Ao tomar conheci- mento dessas noticias que se espalhavam por Fortaleza, Floro Bartolomeu percebeu que “O Boi Santo” era uma acusacdo que feria sua imagem, pois colocava, mais uma vez, Juazeiro como um cen tro de fanatismo e Padre Cicero como o santo dos fanéticos. A fim de mostrar que 0 boi no era santo, Floro mandou matar o animal Fara os seguidores do beato o “Boi Santo” era apenas 0 boi waits tenon pri um Pt . reditavam que o animal fosse capaz 4 Operar milagres. Depois da morte do boi Mansinho, passaram a lem 372m Uma nova Historia do Cearé so como Mais uma perseguica i brat a ee Coes er ee Pelas classes regalo noticias sobre a santidade do animal oe is erga agao de algum Seales Z }Ouve a pro- certo é que alirmar a existéncia do “Boi Santo” serviu para ;mentar acusagoes contra o “fanatismo de Juazeiro”, sendo a ‘eitado pelos inimigos de Floro para colocé-lo na condicéo de de its tado dos fanaticos”. Além disso, 0 caso acabou despertando a fe acio de varios folcloristas e cronistas que procuravam registrar as Fqoisas exOticas do sertéo”, criando esterestipos que nao correspon- diam 4 complexidade da questao. Para parte da elite letrada, aceitar a sacralidade do animal sig- pificava Mostrar, com. mais esse “dado”, que Juazeiro era re yma “terra de fandticos”. Para outros, significava dizer que a cidade, apesat de tudo, possufa impulsos da civilizacéo, expressos, a exemplo, na atitude de Floro Bartolomeu. Os significados sobre 0 ‘Boi Santo” so, também, formas de definir o espago de Juazeiro, _ colocando-o como “cidade normal” ou “antro de fanaticos”. Depois de ficar algum tempo detido na cadeia de Juazeiro, José Lourenco volta para a sua comunidade, em Baixa Danta. Retoma, entdo, 0 cotidiano de oragao e trabalho. Em 1926, € obrigado a pro- curar outras terras para o seu povo. O sitio Baixa Danta, onde tra- balha como arrendatério, é vendido e o novo dono exige a posse do terreno. Para solucionar o problema, José Lourenco consegue, com 0 Badre Cicero, outro espaco para 0 reinfcio do trabalho comunitrio: 0 ‘Caldeirio dos Jesuftas”. Uma 4rea cheia de elevacées, porém irri- gada e fértil, circunscrita no sopé da Chapada do Araripe. Sem perda de tempo, mios calejadas e cheias de fé ergueram novas plantagdes. Além de milho, arroz € feijao, cultivaram laran- jeiras, ateiras, bananeiras, coqueixos, umbuzeiros, romeiras, jam- bolées, mamoeiros e eucaliptos. Mais uma vez, 0 camponeses conquistaram uma impressionante produtividade. Repetiu-se, em maior proporcdo, a experiéncia comunitéria de Baixa Danta: tepattia-se o resultado do trabalho coletivo conforme a necessida- de de cada familia. i te Ao assumir a condicao de beato, sob direta influéncia go ee to teligioso de Juazeiro, José Lourengo abragou, tam! oa Sea politico para a sua vida. ire a — pinel Bios: hs ad ed nase ae de a viver a partir fii nee oragéo € trabalho Todos = fama de rou : e falada na Biblia. A hora de rezar | aque étca de igradecer as gracas da Divina Providéncia. Naq cos de sagrado @ profano = Floro Bartolomeu percebeu que “O Boi Santo” era uma acusagao que feria sua imagem, pois colocava, mais uma vez, Juazeiro como um centro de fanatismo e Padre Cicero como o santo dos fandticos. A tim de mostrar que 0 boi nao era santo, Flore mandou matar © animal. 373 base cristd, 0 trabalho era a nica forma eres : cada dia, ois ninguém deveria viver as custas do trabalho alheio, Um ia no poderia ce rico explorando o semelhante. Era um, Jo-capitalista. ‘ ae de vmé de todos, e nada & de aaa ~ falava Jose Lourengo em suas pregacées. Coma uaa los profetas, anun- ciava que nao havia diferenca entre os seres humanos, Porque todos eram filhos de Deus. Ninguém teria o direito de espoliar 0 irméo, Era um pecado a existéncia de pobres e ricos, em outros termos, de dominados e dominantes. Contrapondo-se a existéncia das desi. gualdades sociais, o Caldeirao era uma ee de camponeses, orientada pelos prinefpios da solidariedade crista. Juntamente com a agricultura, desenvolveu-se uma diversifi- cada producdo artesanal. Na medida que a populagéo da comunida- de aumentava, criava-se uma complexa rede de mao-de-obra espe- cializada: pedreiros, carpinteiros, ferreiros, ceramistas e artesios dedicados ao fabrico de objetos com cipé, couro e flandre (como ces- tas, celas, vestimentas do vaqueiro, copos, panelas e baldes). Além disso, produzia-se sabao de tinguf e tecidos de algodao, com os quais eram confeccionados lengéis, redes, roupas e sacolas. No interior da comunidade, 0 dinheiro pouco circulava. Era mais usado pelo beato, no comércio com outros sitios. Mas, tal conexao econdmica nao possufa finalidade lucrativa. O objetivo era ter sustentagéo financeira para a compra’ do que faltava no Caldeiréo. Nada se fazia com a intengao de acumular riqueza. Nas vivéncias cotidianas, néo havia exploragdo da mao-de-obra, nem comércio espoliativo. © Caldeirdo era uma irmandade. Além de atender ao sustento did mantimentos serviu para salvar famintos da seca de 1982, quando © beato acolheu e alimentou quase quinhentos sertanejos tangidos Pela falta d'gua. Em contraposi¢éo ao individualismo capitalista, a religiosidade do Caldeirao procurava Seguir a fraternidade dos evan- gelhos: “amai-vos uns aos outros ..” tio, © grande armazém de Em 1982, muitos nao voltaram para a terra de origem. Comoveram-se com as Pregacoes do beato e comecaram a compor a Populagao da comunidade. Integrar-se ao cooperativismo de base crista fazia parte das taticas de sobrevivéncia. Assumir a condigé0 de peregrino ou migrante em busca de Juazeiro ou Caldeirao era uma tentativa para melhorar as condigées de vida. Para devotos que fizeram Canudos ou Caldeiréo e que ainda fazem as romarias de Juazeiro ou Canindé, a religiéo nao é simples: mente um esquema de crengas abstratas. Nessa religiosidade, cre 374 = Uma nova Historia do Caars nifica alimentar forca e esperanca para enfrentar as des ¢ sofrimentos do cotidiano. Analisando a questio, Aledo Bosi die que, as classes populares, a vida do corpo, a vida do grupo, om te tho manual é 2s religiOes confundem-se de tal modo que se as a falar 9a existéncia de um. materialismo animista: “no a es cada homem do povo convivem uma resignacgo fundamental e uma esperanga sempre renascente”. (Bosi, 1992: 326) No testamento do Padre Cicero, feito em 1923, 0 Caldeirao é doado para a Ordem dos Salesianos. O beato e seus seguidores foram para o Caldeirao em 1926, ano em que o testamento jéesta- ya feito. Em 1934, quando o Padre Cicero morreu, o beato ficou sem a posse legal das terras. Tudo indica que o Padre Cicero tinha con- fianga no espirito de caridade crista dos Salesianos. Mas essa previ- so estava equivocada: em 1936, os padres salesianos comecaram a reprimir o “fanatismo de Juazeiro” e deram amplo incentivo para a operagao militar que expulsou os camponeses do Caldeirao. Conforme o jornal Gazeta de Noticias do dia 17 de setembro de 1986, a policia do Ceard acabava de cumprir uma honrosa tarefaem nome do progresso. Sob as ordens do tenente Cordeiro Neto, um destacamento militar havia destrufdo “um grande niicleo de fana- tismo em pleno Cariri”. Com o apoio da Igreja e alguns latifundié- tios, 0 Estado decidira que a melhor forma de evitar complicagées futuras na terra do Padre Cicero era dissolver o grupo de sertanejos que vivia no Caldeiréo. Nas palavras do Gazeta, esse era “um fato digno de encémios e que diz bem ao carinho com que as nossas autoridades olham para os nossos sert6es, numa obra de profilaxia social, capaz de garantir a ordem e o bem-estar das populacées”. Naquela época, o Caldeirdo possufa cerca de mil habitantes. De acordo com os militares, 0 governo no poderia permitir uma Teunido de tanta gente. Sob a ameaca das baionetas, todos foram expulsos do lugar onde rezavam e tiravam 0 pao de cada dia. A operacdo bélica de destruigao iniciou-se na madrugada do dia 15 de setembro de 1936, Para evitar um novo ajuntamento, °° Tilitares incendiaram todas as moradias. Nesse mesmo on ao ae ae os seguidores do beato ficaram ae mere ce esperando as ordens do tenente e vendo, Fe P arbas longas ‘Asumia as casas, O grito de um velho sertanejO e ; “Vossa a calvo ecoou pelas quebradas da Serra do ae te8 poderoso, mas acima de tudo, esté o poder de ie . da Serra do Araripe- Muitos fi i ta s ficaram sobrevivendo nas mal sais m 7 de policiais € eagnaio de 1937, houve um conflito entre um grupo ee Bezerra, abitantes do Caldeirdo, no qual mozreram 0 CAP “iyazeiro @ caldeirao: espagos de sagrado © Pr A ordem era seguir uma diplomacia crista, onde a violéncia nao seria enfrentada de modo violento. Alm de rememorar a mensagem dos evangelhos, 0 beato Lourengo estava propondo uma estratégia de preservacao da vida. Afinal, a experiéncia Vivida, ndo s6 pelos sertanejos, sabia que - em muitas situagdes — reagir contra a policia significava suicidio. Era preciso ter cuidado, sobretudo diante da repressao oficial rotano #375 trés militares, o beato Severino Tavares e trés devotos. Severino era um andarilho que pregava 0 evangelho pelos sertdes e chamaya ° a visitar o Caldeirao. aoe toe depois da [uta na Chapada do Araripe, uma tropa de mij. tares vasculhou os arredores do lugar, prendendo quem andava com roupa preta (desde a morte do Padre Cicero, em 1934, era costume no Caldeirdo vestir 0 luto). Muitos foram torturados e mortos, Em 1988, depois de provar que nao era responsivel pela morte do Cap. Bezerra, José Lourengo conseguiu a autorizacao do governo para retornar ao Caldeiréo com alguns seguidores. Naquele mesmo ano, rei- niciou os trabalhos. Mas, no final de 1939, foi novamente expulso, Para as autoridades, era preciso evitar o ressurgimento de Canudos, Nao era seguro admitir o aparecimento de lideres que, de alguma forma, lem- ‘brassem 0 apostolado de Anténio Conselheiro. Tornava-se necessdrio combater qualquer “aglomeracao de fanatismo”. No imaginério das classes dominantes, a utopia da irmandade ndo era bem recebida. Pelejas da memoria Entre os anos de 1989 e 1992, gravei alguns depoimentos de sobreviventes do Caldeirao. Desse modo, ficaram tegistradas narra- tivas sobre o viver na comunidade e memérias em torno da invasio policial. Lembrangas sobre a abundancia de alimentos em contraste com a fome ou a escassez depois da expulsdo em setembro de 1936. Durante as entrevistas, a fraternidade entre os seguidores do beato Lourengo entrava no fluxo narrativo em contraponto ao desassossego do viver sob a ameaca da perseguicao. A dignidade de estar conforme os preceitos do “bom cristéo” — em harmonia com os ensinamentos do Padre Cicero - chocava-se com a humilhagio de ser taxado de fanatico. A certeza de ter vivido “no caminho correto” entrava em contradigéo com as acusagdes que colocavam a expe- niéncia Comunitéria como manifestagao criminosa Nas rememoracées de D. Maria Lourenca, era um tempo de bonanga: “eu vivia tao feliz que eu nem lembrava que existia mundo 1é fora” (Maria Lourenca, 1990). O mundo é fora era 0 mundo do pecado, da ambicao e da vaidade: “Ele (o beato) falava da Pessoa que quer ser grande, Quer ser grande, mas pra Deus néo valia nada. Que o pé-de-pau quanto mais alto, mais a queda era grande” (Maria Lourenga, 1990), Nessas lembrancas, reside a seguinte idéia: ndo mereciam 4 Perseguigao. O tragico fim do Caldeirao fica quase incompreensivel Ou quase inaceitavel. 376 = Uma nova Historia do Ceara fu num sei o que foi de fazerem essa Perseguicg ente num tava matando, Num tava Suicho. Por que a Toubando. N, gesonrando. Num tava fazendo mal. Tava trabalhado ev tava e tezan. do. Al, por isso fomos perseguido e sent ae seein ntenciado de morte icar? Com« i Como explicar? Como conviver com a lembr, fanca de tao pro. Os it ex-habitantes do funda injustiga? Ao que parece nao hé resposta Satisfatéria, f Caldeirao Java [4 cantando, rezando, tao feliz! ... Sem ni " 7 at inguém preci- desenvolve sar de ocupat, pedir. Porque tudo tinha. Nada faltava, thas Ti geet comum. O que era de um era de todos, e tudo... Bat vern uma petsepuigao! (Marina Gurgel, 1989) politica do siléncio. No imagindrio dos O Sr. Jodo Silva confessa: “se os padres concordassem com eles St ido CaldeirSo ... Vocé sabe, da uniao nasce a forca e da ambigio ... Nao d4, né? LA sabe o que foi? Os padre Salesiano. Todo fuxico nas- ceu do bispo do Crato. Eu tenho essa mégoa de padre’, D. Marina melhor, uma forma de asseguta que “ ... tudo foi feito por inveja, por caltinia, historias mal evitar novas contadas. Até mesmo a Igreja perseguiu.” Z Os depoimentos de remanescentes do Caldeiréo aqui enfoca- oe dos constituem-se em miiltiplas dimensées. Em certos momentos, hé uma trama de imagens que procura dar uma certa coeréncia para odesenrolar dos acontecimentos. A destruicao, por exemplo, ndo€ 4936 gerou o efeito vista como um fato cadtico, pois o Padre Cicero jé havia dito: “o Caldeiréo s6 dura dez anos”. Em outras situagdes, as operagées da fee meméria desenvolvem-se sob o impulso da dentincia, fazendo emer- gir a incoeréncia, o injustificado e 0 inaceitdvel. Por outro lado, ha era uma estratégia de sobrevivancia, ou certa medida, a repressao policial de autoridades: no houve um aumento citcunstancias nas quais os testemunhos desse Lae tentam no nimero de mo ato Lourengo € strar que, apesar de tudo e antes de tudo, 0 be is seguidores de seus seguidores conservaram a dignidade crista: José Lourengo. 1s se a gente quisesse | O beato dizia: eos pobrezimn Quando passou a perseguicao, as veze: falar: aquele soldado fazer uma coisa dessa . “sabe duma coisa, vocés num digam nada ndo, 44 ‘tum sabe nem o que faz”. Foi, ele dizia. Num queria que a o que faz, isso gente falasse mal. Ele dizia: “Eles num sabe nem : fizeram e pronto, foi porque Deus consent ¢ deixa pass Pronto, & ele num queria vingenca de nada. Quando nés gamos no Caldeixéo era uma riqueza extraordinéria Todo tinha e era muito, Mas com as perseguicéo foi tudo Por Muito gado ... Acabaram com tudo. Foi ruim, Foi assin O° Uma seca, Af acabaram com tudo, tudo, tude. Tocaram 69° cerca. Tocaram fogo em casa. Corria gente Pra todo canto. aigeirdo: espagos 6 sagrado @ profane ® 377 uma coisa mais medonha do mundo. (Marina Gurgel, depo. mento gravado em 1990) Nas palavras de D. Marina, 0 beato aparece encarnado na ima. gem cristolégica. Assim como Cristo, 0 beato também anuncioy: “eles ndo sabem o que fazem”. O respeito, mesmo diante da Policia, era a orientacao: Entéo, chegou um rapaz e disse: meu padrinho, 0 Caldeiréo est cercado com 200 praca. A ele disse: *t4’”? Ele respondeu: "6!" Ale foie sentou. E disse: ‘Olhe, o que eu tinha de dizer, eu jf disse, ensinei a todos, dei o bom conselho, saibam respon. der bem a policia, respeitar ...” Aordem era seguir uma diplomacia crista, onde a violéncia nio seria enfrentada de modo violento. Além de rememorar a mensa- gem dos evangelhos, o beato Lourengo estava propondo uma estra- tégia de preservacao da vida. Afinal, a experiéncia vivida, nio s6 pelos sertanejos, sabia que — em muitas situagGes ~ reagir contra a policia significava suicidio. Era preciso ter cuidado, sobretudo dian- te da repressdo oficial. Joao Silva conta que seu pai, durante a expulséo, nao levou nada que estava guardado nos armazéns, e ainda afirmou para os comandantes que tudo era propriedade de todos. Ninguém poderia mexer nos bens da comunidade: ‘Meu Pai contou até que 0 capitio José Bezerra ofereceu cinco burro para ele trazer carregado de mantimento do jeito que ele quisesse. Ele agradeceu, sabia que meu padrim José Lourengo tava pro mato pasando fome. “Af, também eu néo vou querer nada de vocé" — ele disse. (Jodo Silva, 1989) Nessa lembranca de Jodo Silva, percebe-se que revelar dignidade € também, rebater as acusagées. E construir significados do passado nos quais hé espaco para uma Tesposta, uma reagdo digna em face 20 agressor. Assim, essa “diplomacia crista” pregada pelo beato Lourenco ¢ seguida pelos membros da comunidade nao se traduz, nas memé ras, como simples aceitaco do outro. Essa passividade aceita nega do, mostrando coeréncia e, de modo implicito, desqualificando as for 6as da repressao. Afinal, sabe-se que, além de invadir e destruir, a pol Cia apropriou-se, sem pedir licenga, de bens do Caldeirao. ‘As memérias dos devotos que viveram sob a lideranga do beat José Lourenco sao alguns indicios sobre a constituigéo do espe? (378 = Uma nova Hist6ria do Cearé sagtad0 de Peeprenipetiaa as da comunidade eram dey do acre Cicero. O Caldeirao era um Pedaco do terrtén otos de Juazeit0. A lideranga do beato José Loutengo se f 10 simbélico ligiosidade que movimentou as Tomarias de Juazej eZ a partir da Por outro lado, 0 Caldeirao era diferente mae I a hegeménica € nao permitia a interferencia de ae enh sem quebrar a igualdade entre todos os devotos, O ou de a comunitério fazia do Caldeiréo um espaco singular. Nao tis ni la desigualdade social presente em outros Centros de vivéncia religi au como as cidades de Juazeiro ou Canindé, Para as autoridades ane, ascendente do quadro demogréfico do Caldeiréo significava o cres- cimento de algo que se tornava inaceitavel: a singularidade do repi- me comunitario, que lembrava Canudos, @ Os exchabitantes do Caldeirdo desenvolveram uma politica do silencio. No imaginario dos devotos, o calar-se era uma estratégia de sobrevivencia, ou melhor, uma forma de evitar novas perseguicdes. Em certa medida, a repressdo policial de 1936 gerou 0 efeito deseja- do pelas autoridades: nao houve um aumento no némero de segui- dores de José Lourengo. Por outro lado, o fluxo de peregrinos para Juazeiro continuou crescendo. Depois da morte do beato, em 1949, no interior de Pernambuco, as lembrangas dos bons tempos na comunidade, bem como as imagens da destruigao transformaram-se em assunto {nti- mo. Assim como a vida da beata Maria de Aratijo, 0 Caldeirio entrou nas malhas do esquecimento. Mas, na década de 1980, as lembrangas comegaram, pouco a Pouco, a circular em um espaco mais amplo. Em 1986, com o docu- Mentério O Caldeiréo da Santa Cruz do Deserto, o cineasta Rosemberg Cariry deu uma importante contribuicéo para diminuir © esquecimento em torno da questo. Ao trazer 0 depoimento de Senerais responsdveis pela destruicdo e de sobreviventes da comuni- dade, o filme mostrou que o Caldeirao era um passado com perso- Ragens vivas, com experiéncias e recordagées que nao poderiam ser apagadas da nossa historia. Na teligiosidade dos devotos do Padre Cicero, que fizeram 0 eitito, € que até hoje fazem as romarias de serene ses i Plexa rede de experiéncias socials. Em suas vidas, ia wr exploragio em aome do capital ea esperangs em om BEE = Fatemo, como fala a Biblia. Se a imi gi i comeor s ee ‘do exclui o espaco da fe em um "MTU simbiose: ade de superar as desigualdades sociais. espagos do sagrado e protano «379 conformismo e rebeldia, sagrado e profano, como a luta dos devotog na “SedigSo de Juazeiro”, em defesa de um lugar sagrado, Trata-se de uma religiosidade que se faz em peniténcia para salvar alma e em pedidos para diminuir 0 sofrimento do corpo. Espirito e Matétia, Fragile forte, tal as pequenas estatuas do Padre Cicero feitas de Beso,

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