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Uma nova Histéria do Simone de Souza (Org.) Celeste Cordeiro Francisco Josénio Parente Frederico de Castro Neves aT Rte Clete PeU TR eC TT) Se a Rly Sebastido Rogério Ponte tae con camscet Frederico de Castro Neves A seca na histéria do Ceara clima do semi-drido constitui-se em um problema para ocupagao efetiva do territério e para o estabelecimento d unidades econémicas permanentes. A irregularidade chuvas, caracteristica mais marcante deste clima, limita as possibi lidades de aproveitamento do solo e de desenvolvimento de produgao em larga escala. O Estado do Ceara encontra-se quase todo no interior do espa- go que se costuma denominar de “pol{gono das secas” - 0 semi-4rido ~e, assim, sua hist6ria é marcada pelas secas e suas conseqiéncias. No entanto, esta irregularidade de chuvas nao seria um pro- blema se as relagdes estabelecidas entre os homens estivessem de acordo com as possibilidades da natureza. As estruturas sociais organizadas no interior dos limites do semi-rido - incorporando também as caracteristicas naturais ~ jamais permitiram uma rela- 40 com tais limites de modo a garantir para todos os homens uma vida segura diante da irregularidade de chuvas. Ao contrério, estas estruturas caracterizam-se especialmente pela vulnerabilidade. Ao longo do tempo, as transformagées sociais ocorridas nestas estruturas sociais vao transformar também as relagdes com a natu | teza do sertao, agravando ainda mais as dificuldades de sustentaga0 permanente de uma populagdo sertaneja que aumenta constante- mente, mas que no encontra alternativas para sobreviver fora de uma economia vulnerdvel e pobre. E sobre estas relac6es entre a sociedade cearense e a natute24 tae con camscet MA falta de chuva no eriodo regular forga gado, em busca de na reciprocidade e na lealdade pessoal — com “seus moradores”. A “quarta” — divisdo das reses nascidas entre proprietario das terras e vaqueiros na proporcdo de quatro para um — garantia uma possibilidade, embora remota, de ascensao social para os moradores, que cultivavam, especialmente, plantas de ciclo curto — milho, feijao e mandioca ~ que garantiam uma colheita répida, apesar de frégil. Essa agricultura no representava uma produgdo que conse- guisse uma “reproducdo ampliada’, um aumento continuo das potencialidades produtivas que gerasse um excedente comercializé- vel; mas, por vezes, se a regularidade de chuvas permitisse, alcanca- va uma “teprodugéo simples”, em que a familia poderia subsistir, em sua pobreza, até o ano seguinte para a proxima colheita. A produ Go agricola era, portanto, muito pouco integrada as regras do mer- cado. O objetivo dessa produgao de tipo tradicional, pode-se dizer, era conseguir uma “seguranga alimentar”, uma garantia de manu- tengdo dos padrées de pobreza vigentes, ligados aos lagos paterna- listas de submissao, de lealdade e de protecio. Em casos de uma eventual quebra desse ciclo, seja pela mo! de um dos membros da familia ou por uma praga na producdo, esses lagos, baseados também na caridade crista, poderiam garantir a sobrevivéncia dos moradores subitamente levados 4 misér forma, era um dever do proprietério proteger os dores durante um inforttinio. A falta de chuvas no perfodo regular, no entanto, dest tamente esas pequenas colheitas e ameacava o gado, desfaze do o cf culo da produgao tradicional. O proprietdrio da fazenda des gu as ond homens e deslocava seus bois para outras ar se preservado 78 = Uma nova Historia do Ceara tae con camscet | : Esse foi, contudo, um perfodo de chuvas re, eS: en € 1877, anos em que as mudangas se intensifcavam yay 8 invernos regulares se sucediam, amenizando ou ocultand ne ae % pemniciosos que essas transformacées iriam ter sobre 88 popul a do sertao. Por isso, o ano de 1877 se tornou um marco na com, Goes, so do problema da seca e o impacto causado pelas cenas aie se desenrolaram fixou-se profundamente na cultura, Neste eee to, a irregularidade de chuvas deixa de ser “apenas” uma questio i, matica para se tornar uma questao social, que a todos afeta e queo Estado brasileiro nao poderd mais ignorar. De fato, inaugura-se neste instante a seca tal qual a entende. mos hoje: miséria, fome, destruigao da produgao, disperséo da mio. de-obra, migracées, invasées as cidades, corrupcdo, saques . A seca de 1 As mudancas ocorridas nao deixavam espagos para a m2 tengo da antiga ‘ordem” econdmica sertaneja, No entanto, © io foram suficientemente amplas para criar uma nova orem cata na “rpredsho ampliada’ e na produgio para 0 Mer Um at ge t¥@ tradicional da “seguranca alimentat”s€ sand0 ? Passado. Os homens permaneciam agindo ¢ pe rca r| tae con camscet tae con camscet ‘Em um ano, mais de 400 mil desses ‘focuparam as pracas as ruas, as caicadas @0 Passelo Pilblico de uma cidade que procurava adaptar-se 20s padrées civilizados ‘co caos nao se estabeleca definitivamente smpordneos bem-informados, em um, one wasores” esfarrapados ocuparam as Ee Mais de Passeio Ptiblico de uma cidade que Procurava’s ty se aos padrdes civilizados dos grandes centros ¢ que nao une tar mais do que 27 mil habitantes. Noticias diérias de cenas impacn°™ aterrorizaram os provincianos cidadaos da capital: roubos, prostit cdo, suicidios, assassinatos, antropofagia, mendicancia a ‘A reacéo das autoridades e da populacio urbana foi de perp xidade! Sem planejamento, surpresos, os dirigentes ro meios de manter os retirantes fora da cidade, seja em obras piblicas na periferia (como a Estrada de Ferro de Baturité) ou seja embarcan. do-os para a AmazOnia. Indtil! A chegada diéria dos retirantes impressionava pelo ntimero, pela miséria e pelo deploravel estado de satide. A luta pela sobrevivéncia foi Jevada aos extremos e a carida- de dos particulares foi incapaz de conter a onda migratéria e muito menos de amenizar a situagdo dos que chegavam a Fortaleza. Na capital, os retirantes maltrapilhos acampavam nas pracase ruas, formando “abarracamentos” que as autoridades tentaram manter sob algum controle, dividindo-os em distritos e delegando poderes para “comissées” formadas por cidadaos respeitdveis da cidade, com o objetivo de racionalizar a distribuicéo de comida, 0 atendimento médico e o alistamento para o trabalho. As principais obras efetuadas pelos retirantes em Fortaleza foram a Estrada de Ferro de Baturité e o calgamento das ruas cen- trais da cidade. Para isso, eram formadas turmas que se deslocavam para as 4reas de construgio da ferrovia, abrindo picadas na matae colocando os dormentes, ou caminhavam diariamente até a pedrei- 1a localizada no “Mocuripe’, distante cerca de uma légua do centro da cidade, e retornavam com uma pedra as costas. Segundo os rela tos, o trabalho era extremamente arduo e a disciplina imposta co™ © maior rigor. Homens, mulheres e criancas trabalhavam continu mente para poderem receber a sua racdo de comida. Qualquer falta ou reclamagao era motivo para a exclusdo da lista de pagament©- Jé em 1878, portanto, se desenvolvia entre as autoridades, co” 9 apoio da populagao urbana, a idéia de que a distribuigéo de * mentos feita pelo Estado — a protecdo paternalista em tempos ae am ~ no poderia se efetivar sem um retorno a sociedad » : ie trabalho ptiblico. Os jornais denunciavam 0 écio ¢ @ re sega ea se ein ceo naldade eda ean Ou furtando alimentos. O aumento da icdo também era tema freqiiente nessas ™ 82 » Uma nova Historia do Ceard tae con camscet Aseca de 1877-79 provoca, com seu impacto que marca profundamente a cultura local, uma mudanga significativa nas estruturas de sentimentos com relagdo & pobreza, as migragdes, & caridade, ao trabalho eas responsabilidades sociais perante os pobres. comissérios e funcionérios, antecipava, assim, aquilo que ficoa conhecido como “indtistria da seca”, tao comum no século XX. 4, mesmo tempo, alguns saques de alimentos no porto de Aracati pre. nunciavam um novo tempo nas relacdes mantidas entre as autori. dades e as populacdes do semi-drido, modificando o modelo pater. nalista classico e ampliando 0 espago para a revolta popular. De qualquer maneira, a seca de 1877-79 provoca, com sey impacto que marca profundamente a cultura local, uma mudanca significativa nas estruturas de sentimentos com relacao & pobreza, as migracées, a caridade, a0 trabalho e as responsabilidades sociais perante os pobres. A partir de entao, a seca passa @ fazer parte per- manente da histéria do Ceard, determinando novas relagées politi- cas e sociais e mobilizando a cultura e as. manifestagGes da arte. As multidédes e as primeiras politicas publicas de controle Depois da seca de 1877, outros perfodos de estiagem se sucede- ram, provocando cenas ¢ distairbios semelhantes, enquanto algu- mas tentativas de controle s4o realizadas pelos governantes. Em 1889 e 1900, poucas modificac6es sao efetivamente coloca- das em prética. O despreparo das autoridades manifesta-se princi- palmente na auséncia de medidas preventivas e no caos administra- tivo provocado pela presenga dos retirantes famintos novamente em Fortaleza, As obras piblicas encaminhadas nao possuem qual- quer planejamento na execuco, ficando a mercé das levas de ope- rérios que chegam diariamente do interior. Sao efetivadas a partir de um sistema de mao-de-obra extensiva, com base na imensa disponi- bilidade provocada pela destruicao da agricultura de subsisténcia Por outro lado, os conflitos em torno do pagamento e do for- necimento de alimentos para os retirantes tornam-se mais frequen- tes, nao s6 em Fortaleza, mas nas cidades proximas aos locais de t@- balho, como Baturité — onde as obras de extensio da estrada de ferro ainda permaneciam atraindo os retirantes — e Barbalha, no Sul 4° Estado. Os retirantes, aos poucos, vao desenvolvendo a consciénci# a fe ee Bees as normas caracteristicas do modelo Ese erin a Reese se ae de crise € parte ee . elo datintees a : ea forma, passam a questionar a distr " ace pornos de crise, quando a fome e a mS igem uma postura solidéria mais efetiva, baseada na caridad® cristé i €num certo comunitarismo popular caracteristico das peqU nas comunidades rurais, 84 @ Uma nova Histéria do Ceara O debate em torno da imigrag4o torna-se, neste momento, intenso e gera uma grande divisdo de opini6es. Em primeiro lugar, ha divergéncias com relagéo 8 oportunidade da imigragao, j4 que isso significa o afastamento da mao-de-obra de seus locais de traba- Iho e dos eleitores de seus locais de voto, num momento em que o processo eleitoral é completamente controlado pelos proprietdrios de terras e pelas oligarquias estaduais, Em segundo lugar, nao ha concordancia em relagao aos locais para onde devem ser enviados os imigrantes: para So Paulo ou para a Amaz6nia. ‘Apesar da criagéo de uma Hospedaria Geral dos Emigrantes, em 1889, a chegada dos retirantes Fortaleza ainda é inteiramente aleatéria e improvisada. As familias se instalam em pragas e ruas, sem qualquer preocupacio higiénica ou sanitéria, em batracas improvisadas ou embaixo das 4rvores, dando a cidade uma atmos- fera de campo de refugiados, com milhares de pessoas famintas vagando pelas ruas em busca de comida De certa forma, o desenvolvimento urbano de Fortaleza se diri- gia cada vez mais para uma preocupacio estética com o “aformosea- mento”, em que a criagao de uma estrutura de equipamentos so- cioculturais pretendia dar a cidade um clima moderno de civilizagao e progresso. A chegada dos retirantes, assim, agredia essa nova sen- Asecana m0 gado dos pequenos proprietarios que se “retiram” muitas vezes 6 deixado & prépria sorte. tae con camscet invasao de Fortaleza, mas o terror novamente tomou conta da populagio urbana Assim, uma grande expectativa tomou conta da populagao e dos dirigentes do Ceara quando se avizinhava, em 1915, mais um perfodo de escassez de chuvas. Decidido a no correr mais 0 risco de um aumento descontrolado da criminalidade e da prostituigao, 0 presidente Benjamim Barroso cria uma instituigao que ira nova- mente modificar as relagGes entre a populagao urbana e os retiran- tes das secas: o Campo de Concentragéo do Alagadico. Pensado como uma forma de proteger a cidade da “invasao” dos retirantes, o Campo concentrou, em média, cerca de 8.000 pes- soas em um terreno especialmente cedido para 0 governo, nas pro- ximidades da estagdo de trem do Otévio Bonfim. Os retirantes ~ que, nesta seca, j4 sabiam 0 melhor momento para abandonar o ser- to e conseguir uma passagem — eram conduzidos, assim que che- gavam, diretamente para o.“curral’ de arame farpado de onde nao poderiam mais sair. La, o governo procuraria racionalizar a distribui- cao dos alimentos e 0 atendimento aos enfermos; pensava-se que somente este mecanismo poderia evitar os conflitos provocados pela presenca dos retirantes na cidade ‘No entanto, a concentragéo de pessoas num ambiente pouco higiénico acabou por facilitar a proliferagao de doencas, o que transfor- mou o Campo num local para onde os retirantes iam apenas para mor- rer. Os cadéveres, empilhados ao lado do cercado & espera da turma de carregadores que iria jogé-los em valas comuns, conferiam ao Campo um ar soturno e macabro, que afugentava até mesmo as almas mais Asecana sertaneja em locais préximos aos seus locais de origem, impedindo uma mobilidade mais intensa dessa populagao faminta caridosas que iam distribuir alimentos ou consolar os doentes, O che. ro de sujeira e morte assustava até mesmo 0 experimentadb f; Ff tico Rodolfo Teéfilo, que instalou na porta do Campo, embaixo de idm cajueiro, o seu posto de vacinagao contra a variola. A campanha de vacinagao havia sido iniciada em 1900 ¢ esta. va conseguindo bons resultados, apesar dos litfgios do farmactutico com as autoridades governamentais. Ele, alias, contrariando as opi- nides predominantes no governo, nado concordava com a ctiagao do Campo, convencido de que a concentrag4o de retirantes famintos propiciaria um ambiente favoravel a transmissao de doengas que poderiam ser fatais, como de fato o foram. Alguns meses depois da instalagao do Campo, Rodolfo Teéfilo iria afirmar que “o Campo de Concentragao transformara-se num Campo Santo”, num “cemité. tio de criangas’ ... Mas, apesar de uma nova experiéncia impactante da cidade em face da presenga de retirantes das secas, alguns conhecimentos acu. mulados podiam permitir um avango nas formas de encarar o pro. blema da seca. Em primeiro lugar, ficou sedimentado na opiniao de técnicos ¢ autoridades que a cidade de Fortaleza deveria ser protegida da migragdo descontrolada de retirantes em tempos de seca. O Campo de Concentragao, como primeira experiéncia, serviu para demons: trar que o controle urbano era fundamental na estruturagdo de uma sociedade moderna e civilizada. Contudo, a simples concentragéo de pessoas fracas e famintas em condigées de pouca assisténcia poderia agravar ainda mais o problema. Cada vez mais ficava claro que seria preciso criar mecanismos de prevengao e planejamento das atividades governamentais no sentido de dirigir ou controlar as rotas de migragao dos retirantes. Em segundo lugar, o trabalho em grandes obras publicas foi-se tornando o principal mecanismo para manter a populagio sertane ja em locais préximos aos seus locais de origem, impedindo uma mobilidade mais intensa dessa populagdo faminta. Ao lado do prin cfpio técnico de construgao de reservatérios d4gua para combater seca ~ a “solucdo hidrdulica” -, estabelece-se o objetivo de *fixar 0 homem no campo’, ou seja, estabelecer um controle dos processos migratrios para que o alcance da “retirada” Seja o mais curto poss! vel. Em 1919, essa foi a tonica geral da agdo das autoridades esta We © que, se ndo evitou completamente a chegada de retirantes ortaleza, diminuiu-Ihe o impacto: os canteiros de obras em cida des do interior passam a atrair og tetirantes, redirecionando os fu OS Migratrios. 88 = Uma nova Historia do Ceara tae con camscet Os retirantes procuravam as cidades, especialmente a capital, ©, revoltados, comegavam a atacar mercados e carregamentos de alimentos. do governo ou nas frentes de distribuigao de alimentos. Sabiam, também, que as agdes coletivas, rapidas e violentas, produziam um efeito imediato quando a prote¢do nao aparecia no momento ou na quantidade necessitada pelas familias famintas Através de invasdes coordenadas, ameacas, ocupagées de prédios e, em tiltimo caso, saques dos mercados de alimentos, conseguiam rea- lizar uma intensa pressdo sobre as autoridades, sobre chefes de obras e sobre a populagao das cidades, o que resultava, na maioria dos casos, numa tensa e silenciosa negociagao em que se conseguia uma distribuigao de alimentos, um alistamento para uma obra, uma pro- messa; enfim, a multidao formada pelos retirantes famintos, funda- mentada em um profundo senso de justica, consegue reimpor alguns elementos da ordem paternalista que lentamente se desestruturava Em 1982, portanto, aos primeiros sinais de movimentac4o dos retirantes, o governo decide intervir direta e rapidamente para impe- dir a mobilidade dos moradores deslocados das terras pela falta de chuvas. Os retirantes procuravam as cidades, especialmente a capi- tal, e, revoltados, comecavam a atacar mercados e carregamentos de alimentos. Logo em janeiro, em Orés, 0 saque a um trem de manti- mentos foi amplamente divulgado pela imprensa e, no contexto da imposigao de uma legislacao autoritéria do Governo Provis6rio, um processo contra alguns saqueadores e incitadores foi aberto. ‘A guerra civil em S40 Paulo demandava as atenc6es do gover- no e exigia respostas rdpidas; no entanto, ndo se poderia admitir um descontrole social — que poderia atingir um alto nivel de violéncia e desordem ~ nas 4reas néo atingidas pelo esforgo militar. Assim, a0 contrario das secas anteriores, uma perfeita articulagéo entre os governos federal e estadual garantiu uma ago répida e eficaz ainda nos primeiros meses do ano. De um lado, 0 Ministério de Viagao € Obras Publicas, que tinha a frente 0 paraibano José Américo de Almeida, e 0 IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas - o antigo IOCS). De outro lado, a Interventoria Federal no Cearé cria uma Secretaria das Secas, que controla todas as atividades e inicia- tivas no setor. Apesar de organizada e articulada, a intervengio do Governo Provis6rio no inova as prdticas usuais nem incorpora outros prin- cipios de atuacao. Permanece presa ao arsenal técnico e conceitual acumulado nos anos anteriores: (a) proteger Fortaleza da “invasio” dos retirantes, (b) criar mecanismos para “fixar 0 homem no ae 5 ene een Sets dos migrantes com obras , atégia estabelecida em 1915, quan 90 « Uma nova Hise do Coard do apenas um campo foi criado em Fortaleza, em 1932 foram cria- dos sete Campos de Concentracdo espalhados por todo o territério do Cear4. Crato, Caritis, Quixeramobim, Ipu e Senador Pompeu, além de dois pequenos campos em Fortaleza, foram os locais esco- Ihidos, cobrindo as principais rotas de migragéo do Estado. Para o Norte, seguindo a Estrada de Ferro de Sobral, o campo do Ipu; para o Sul, ocampo do “Burity”, em Crato; para o Sertao Central, Caritis e Senador Pompeu, além de Quixeramobim, um pequeno campo de apenas trés meses. Os campos concentravam milhares de retirantes, chegando a um total de cerca de 90,000 em janeiro de 1983; somen- te o campo de Crato, que atrafa ndo s6 trabalhadores de todo o Sul do Estado, mas de outros estados vizinhos, chegou a ter quase 60.000 “habitantes”. ‘Além da estratégia mencionada — cobrir os principais trajetos migrat6rios — os campos exigiam rigorosa disciplina e a adaptagéo continua a novas tecnologias sociais: vida em comum, banheiros, horérios rigidos, higiene pessoal, vacinacéo etc. A vida no interior dos campos era vigiada permanentemente por uma guarda armada e tomou-se um aprendizado de novas hierarquias, que se refletiam nas formas de trabalho empregadas nas obras ptblicas. aren do Das0 FOVO Todos os campos deveriam ter obras a que estivessem ligados. Por exemplo: o campo de Senador Pompeu utilizava as instalagbes construidas para os operarios do acude do Patu, cuja construgao havia sido interrompida, ¢ os retirantes ali instalados retomaram as obras Asecana de Concentragao Senador Pompeu. historia do tae con camscet Brasil no esforgo de guerra aliado contra o nazi-fascismo. Uma das mais importantes formas de participago foi a chamada “Batalha da Bortacha’, organizada pelo governo para promover a ocupagio da ‘Amazonia e a produgo intensiva da borracha a ser fornecida aos exéreitos aliados na batalha. A seca ofereceus ao governo a oportuni- dade (mpar de obter uma ampla ¢ dispontvel méo-de-obra para os seringais amazOnicos; imediatamente, os retirantes foram transfor mados em seringueiros. Isso, porém, aconteceu depois que uma série de conflitos, desencadeados pela presenga das multidées ameagando os mercados das cidades interioranas e os barracées de abastecimento das obras do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas antigo IFOCS), aconteceram por todo o Estado, As cidades, pouco a pouco, ganham uma populagao extra de famintos que a caridade particular nao consegue sequer avaliar. A presséo que essa popula- cdo exerce sobre os equipamentos urbanos faz com que os prefeitos e mesmo o interventor federal no Cearé, Menezes Pimentel, recla- mem constantemente ao governo federal uma série de medidas urgentes que amenizem a situagao. Uma campanha minuciosamente preparada foi empreendida em Fortaleza para obter 0 apoio da opiniao publica ao novo projeto governamental, Programas radiofonicos e passeatas de adesdo a0 SEMTA (Servigo Especial de Mobilizagéo de Trabalhadores para a ‘Amaz6nia), ao estilo militar, envolviam a populagéo num clima de solugéo dupla: tanto 0 problema de auséncia de méo-de-obra para os seringais quanto o problema de auséncia de trabalho para os reti- rantes eram resolvidos no mesmo proceso. A abundancia da flores- ta amaz6nica aparecia como solugéo e como contraponto para a escassez do sertao. “Exército da Borracha” passou a recrutar os sertanejos reti- rantes, sob o rigido controle de funciondrios norte-americanos. Um novo campo é criado em Fortaleza somente para receber, inspecionar, examinar e selecionar os mais aptos para O trabalho nos seringais amazénicos. Administrado pelas irmas marianas do Dispensério dos. Pobres, o “albergue”. do Alagadico servia como ponto de atracao, voluntéria ou nao, para sertanejos candidatos a seringueiros, onde eram examinados pelos médicos do Servigo Especial de Satide Piiblica. Tudo sob a supervisdo geral do escrit6rio central da Divisao de Migracao, resultado de um acordo entre 0 Brasil e os EUA, dirigi- do pelo Dr. Charles Wagley, sociélogo da Universidade de Coliimbia. © sucesso da campanha néo foi acompanhado, porém, por uma diminuic&o correspondente dos conflitos nas areas de abasteci- ‘A seca | 0 "Exército da Borracha" passou 4 recrutar 06 sertanejos retirantes, sob 0 rigido controle de funcionarios norte- americanos. Um novo campo é criado em Fortaleza somente para receber, inspecionar, examinar e selecionar os mais aptos para o trabalho ‘nos seringais amaz6nicos. tae con camscet A politica de “fixar 0 homem no campo” ganha, agora, um novo e fundamental significado, j4 que a “retirada” passa a represen- tar um declinio no controle politico dos eleitores por parte dos gran- des proprietérios; e a “solugdo hidréulica’, baseada em obras que ocupam milhares de retirantes, passa a representar uma ampla pos- sibilidade de manipulacdo politica na distribuigéo de alimentos e das vagas para alistamento. As “obras piblicas” possibilitam impedir o abandono dos “cur- rais eleitorais” — 4reas sob controle dos proprietérios (coronéis) — durante os perfodos de secas e, ao mesmo tempo, sao novas arenas de lutas polfticas pela definigao dos locais prioritdrios e pelos crité- rios de alistamento dos retirantes. Os grupos politicos fixados no Cearé, portanto, encontram nas obras de “combate as secas’ uma fonte s6lida de poder e influéncia, em torno da qual passam a digla- diar-se permanentemente. Os retirantes, por seu turno, também passam a identificar nas obras um momento de atendimento as suas mais urgentes reivindi- cages e reconhecem nelas um mecanismo importante de negocia- 4o com as autoridades estaduais. Com a multiplicagao das obras, multiplicam-se também as possibilidades de trabalho, distribuicao de alimentos e assisténcia médica, temas centrais nas lutas dos reti- rantes e dos sindicatos de trabalhadores rurais. ‘As obras passam a significar o instrumento através do qual as relagdes paternalistas persistem no interior da politica representati- va. A troca de lealdades por vagas nas obras em tempos de crise € a nova forma da reciprocidade desigual caracteristica do paternalismo. Esta nova configuracao das relagGes entre retirantes e autori- dades se estabelece definitivamente durante a seca de 1952-3, quan- do estava no governo federal, pela via do voto direto, o mesmo Ge- ttlio Vargas. ‘A ptessio das migragées das acdes das multidées sobre os equipamentos urbanos e sobre as cidades e seus mercados se fazia sentir por todo o Estado do Ceard. A implementacao de obras pon- tuais, que atendiam aos anseios e aos receios dos partidérios poltti- cos do governador e seus aliados, comegava a empregar os retirantes sem um planejamento global, respondendo 3s demandas localiza- das, aos conflitos e as reivindicades, e marcava uma negociago igualmente pontual e localizada. A distribuigao de alimentos e vagas, de fato, é realizada confor- me as aces da multidéo. A eficiéncia destas ages pode ser medida pelo mapeamento dessa distribuicdo, seguindo 0 roteiro das cidades invadidas e dos mercados saqueados. Os responsdveis pelas acdes de A A politica de fixar homem no campo ganha, agora, um novo e fundamental significado, ja que a “retirada” passa a representar um declinio no controle politico dos eleitores por parte dos ‘grandes proprietarios; 7 assisténcia, perdidos em seu pragmatismo de tiltima hora, reg, dem com novas obras e novos projetos as necessidades nam, La que os acontecimentos se sucedem. Neste momento, as aGbes multidéo — invasbes, ameagas € Saques ~ tornam-se efetivamenrs uma tradiga0 incorporada ao arsenal de opgées de luta dos retiran, tes e serdo uma presenga constante nas secas até hoje. 7. Em sua maioria, além dos tradicionais agudes, eram obras dg construgdo de estradas de rodagem, em que os retirantes se emprega. vam preferencialmente no proprio local de moradia. Os chefesadmi. t tiam-nos em turmas de 25 a, no maximo, 40 operdrios liderados por um deles. Os alistados acampavam ali mesmo nas imediacées da estrada em construcéo. Os “feitores” fiscalizavam o trabalho das tur. mas e os “apontadores” passavam diariamente nas barracas para anotar nas “cadernetas” a presenca de cada retirante. Apesar da proi- bicéo, algumas familias pobres conseguiam empregar, além do pai de famflia, alguns dos filhos menores, aproveitando as ligagdes pessoais com os politicos e liderancas locais. As migracées, de fato, ganham uma nova e indefinida rota: a das obras que so construfdas onde houver mais conflitos e maior influéncia das liderancas politicas. ‘Ao lado de cada obra, instala-se um amontoado de barracas de Jona e de palha, formando confusos acampamentos de retirantes que se assemelham aos antigos campos de concentracao. De fato, se no havia mais a obrigatoriedade em permanecer no interior do campo, qualquer abandono ou irregularidade no trabalho era puni- da com o desligamento imediato. Para os retirantes, a expressao “curral” ainda permaneceu definindo a forma de acomodacéo nas obras de “combate as secas” Todavia, as criticas de favorecimento politico sao frequientes O alistamento é direcionado para simpatizantes do partido no governo e é ritualizado: torna-se um grande acontecimento, com a presenca de prefeitos e outras autoridades e com a distribuicéo ¢ alimentos em locais ptiblicos, onde os discursos e a longa espet combinam para reforcar o valor da dadiva. Milhares de retirant’s sao alistados em obras de qualidade sempre duvidosa, nas quais icra oe een eae ai le fame construfdo Ce a de ey as ae - 8 Gh las frentes de trabalho sao om Em Pee ve se aes logo com as primeitas ¢ wae heey eatats levas de retirantes ocupam. era Coane anes ee a Hospedaria Get M onl eae en 200 pessoas ‘com relative oF lac —considerado “imponente’ "4 96 = Uma nova Histéria do Ceard tae con camscet BM inauguragao do ‘agude de Ords, em janeiro de 1961 98 nomiista Celso Furtado, traziam mais uma vez a preocupagio com as migrac6es. Uma das linhas de atuacdo deste orgio deveria programar e reorientar as migracdes para 4reas de “vazio demogréfico”, como o MaranhJo ou a Amaz6nia, desafogando a pressio demogrifica sobre as grandes cidades do Nordeste e do Sul do Pais. E certo, porém, que © plano inicial continha indicag6es precisas para a necessidade de uma reforma agréria sintonizada com as “reformas de base” pregadas pelos governos desenvolvimentistas. Os recursos para a assisténcia aos migrantes, por outro lado, safram da rota “governo federal — governo estadual — liderancas locais’ para serem concentrados na Sudene, que, planejadamente iria distribut-los entre as “4reas critics’, Nao é estranho, po constatar que os representantes das elites nordestinas no Cong Nacional tenham sido os principais adversdrios do projeto de cris $0 da Sudene, temerosos diante de um novo 6rgio que esti fora do seu estrito controle politico. nto, A seca e a Sudene rs definigéo destas tais “Areas criticas’, desde o in‘cio, fo Problema sério, porque o que definia a calamidade e a conseqien** Recessidade de recursos nao era simplesmente a falta de chev®s cares, bttaséo social e a mobilidade das massas de agricultores. AS ree ft ” is n as criticas” eram os locais abandonados pelos migrantes OU i" didos pel ; : dos pelas multidées. A crise, na verdade, se definia pela ause0! = Uma nova Historia do Ceard da m&o-de-obra ou pela sua tendéncia a revolta. Este foi o caminho para a incorporacdo da Sudene ao circuito de poder estabelecido pelo modelo paternalista: ao serem definidas as “4reas criticas”, os recursos eram destinados diretamente aos municfpios, a fundo perdido, sob o controle das prefeituras. As obras beneficiam as propriedades, com mao-de-obra quase gratuita dos retirantes, passando a fazer parte das relagdes econdmicas € politicas do semi-drido, Assim, novamente as liderancas locais tra~ dicionais, praticando uma politica paternalista e tradicional, conse- guem controlar os 6rgaos de planejamento — instituigoes modelares de uma politica representativa e moderna. Isso ocorreu desde a primeira seca enfrentada pela Sudene, em 1970. Mas foi na grande seca de 1978-82 que estes mecanismos de “captura” foram efetivamente implementados. Em vao, uma imensa rede de beneficios foi montada em todos os estados do Nordeste, procurando neutralizar ou evitar a irrupcao de novas agées da multidao e a conseqiiente criagdo de novas “dreas criticas’. As invasdes se sucediam, porém, conforme as obras 0 alistamentos iam sendo organizados, fugindo sempre do controle das autoridades, auxiliadas nesta tarefa, muitas vezes, por tropas do Exército. Nem mesmo a represséo aos movimentos sociais — carac- teristica do regime militar — conseguia alcangar estas agoes que se justificavam pela fome e pela miséria, fugindo, assim, de uma iden- tificacdo com “ideologias” subversivas ou coisas do genero, As ten- tativas de abrir processos contra supostos saqueadores esbarravam. na silenciosa solidariedade social para com os famintos e na perma- néncia de mecanismos jurfdicos que impedem a criminalizagao de acées motivadas pela necessidade de sobrevivéncia. ‘As formas encontradas para controlar e ocupar a massa de famintos retirantes mudaram de nome ~ “frentes de emergéncia’, “bolsdes da seca”, “frentes de servigo” etc — mas permaneceram com. a mesma intengfo de associar esta mao-de-obra “disponivel” a obras pliblicas e atividades arduas e mal-remuneradas como forma de, através do trabalho, prevenir novas manifestagdes de rebeldia ou insubordinacao. O trabalho foi sempre pensado como o instrumen- to pedagégico privilegiado para neutralizar ou impedir a formacéo de um ambiente de insatisfagao e/ou sedigao. Ao mesmo terfipo, grandes projetos de apoio ao pequeno pro- dutor foram sendo implementados ou estimulados pela Sudene, procurando criar uma infra-estrutura produtiva capaz de tornar as estruturas econémicas do semi-4rido menos vulnerdveis a irregula- A seca na tae con camscet tica ete, Certamente, esta escassez relaciona-se com a irregularidade de chuvas, mas este fendmeno climatico, por si s6, nao causa des- sociais nem favorece o desenvolvimento, Como indagaria o estudioso Tomaz Pompeu Sobrinho: “o que nos importa uma estia- gem no deserto?” Na verdade, estamos falando de certas caracterfsticas da socie- dade brasileira ~ a economia tradicional de subsisténcia, o paterna lismo, © controle coronelistico da politica etc - que tornam uma extensa populagdo que habita o semi-drido nordestino extrema- mente vulnerdvel diante da irregularidade de chuvas e de outras ‘aco de Dae0 POVO © Os efeitos d poderiam ser suprimidos houvesse Aseca na tae con camscet

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