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B. J. Barickman Um contraponto baiano Acucar, fumo, mandioca e escravidao no Recéncavo, 1780-1860 Com acréscimos e adaptagies para a edigio brasileira Revisio geral da tradugao pelo autor S CIVILIZAGAO BRASILEIRA Rio de Jancico 2003 Introdugao Monocultura, latifiindio ¢ escravidao — com estes trés elementos, Gil- berto Freyre definiu na década de 1930 a sociedade que surgiu, floresceu € depois entrou em declinio nas regides litor’ineas do Nordeste brasileiro entre meados do século XVI ¢ o final do século XIX.! Nas Giltimas sete décadas, varios esquemas teGricos e interpretativos entraram e safram de moda, mas, até recentemente, © consenso entre os estudiosos permane- ceu sélido: a monocultura, o latifaindio e a escravidio definiram e molda- rama sociedade ea economia do Brasil durante todo 0 perfodo colonial a maior parte do século XIX. Esse consenso produziu o que Maria Yedda Linhares chama, com muita acuidade, de uma “visio plantacionista” da histéria do Brasil Os historiadores dedicaram atengdo quase exclusiva: mente a plantation — a grande propriedade que empregava a mao-de- obra escrava na monocultura de exportagio— c, por extensio, a economia de exportago como um todo. Na pritica, isso significow muitas vezes descrever 0 Brasil como uma vasta plantation — como uma economia li- mitada 20 cultivo extensivo ¢ em grande escala de alguns géneros tropi- cais e a0 comércio destes ¢ como uma sociedade composta de duas classes: 05 senhores que possufam as plantations, e os escravos que nelas trabalha- vam. Os grupos sociais ¢ as atividades econémicas que nao se encaixavam facilmente nesse quadro foram considerados “irrelevantes”, “periféricos”, “insignificantes” e, portanto, sem nenhuma importéncia para a compre. enso da formagio histérica do Bra Apenas nos tiltimos anos a validade da “viséo plantacionista” passou a ser questionada. Os historiadores que langaram seu olhar além dos limi- tes da plantation demonstraram que a agricultura de exportagio nao do- minaya todo 0 Brasil rural e que as maiores cidades brasileiras possufam Vigorosa vida social e econémica. Extensas redes de comércio abasteciam Bod. BARICKMAN essas cidades de provisdes essenciais, tecidos € outras manufaturas, tudo produzido no Brasil. No entanto, apesar de suas valiosas contribuigées, as pesquisas recentes sobre a economia interna 6 contestam a “ plantacionista” de maneira indireta. Grande parte dos novos estudos fo- caliza centros urbanos ou regides em que a agricultura de exportagao nao chegou a criar rafzes firmes, deixando assim intacta a antiga idéia de que a plantation definiu e moldou completamente a vida social e econémica nos principais centros regionais da agricultura de exportacio. De manei- ra semelhante, esses estudos geralmente deixam de investigar com pro- fundidade questées ligadas & possivel diversidade na agricultura escravista de exportacio € 8 evolucdo das relagGes entre a agricultura de exporta- ‘¢40, 0 desenvolvimento da economia interna ¢ a escravidao no Brasil co- lonial e do século XIX. Este livro também procura enxergar além dos limites da plantation para investigar a utilizagao do trabalho escravo no meio rural bra: entre o final do século XVIII e meados do século XIX. Mas, em contraste com grande parte da historiografia recente, ndo se esquiva de examinar as relagGes entre a agricultura de exportagio, a escraviddo e a economia interna. Nem evita abordar a prépria plantation, pois 0 foco deste estudo € a historia agréria do RecOncavo baiano, Um berco da agricultura de plantation no Novo Mundo, 0 Rec6ncavo fazia parte do Nordeste de Gil- berto Freyre.' A regido produziu, entre 1780 e 1860, grandes quantida- des de acicar e famo para o mercado mundial. De fato, no comeco do século XIX, a Bahia exportou mais agicar do que qualquer outra capita nia brasileira; e da Bahia também veio quase todo 0 fumo brasileiro ven- dido na Europa. Este estudo, portanto, enfrenta a “visio plantacionista” em seu pro- prio terreno. Integrando uma pesquisa sobre a economia interna com uma investigagio mais ampla sobre a agricultura escravista, demonstra que, mesmo quando aplicada a uma regido arquetfpica de plantation, a “visio plantacionista” se revela inadequada. A histéria agréria do Recéncavo na primeira metade do século XIX nao €a da difusdo desenfreada da mono- cultura em larga escala. E, isto sim, a histéria de como a plantation ¢ ou- tras formas de agricultura escravista, juntamente com um vigoroso mercado local, permitiram 0 crescimento ¢ a expansio da economia de exportago iso 28 Um CONTRAPONTO BAIANO baiana. £ também a hist6ria de como os agricultores escravistas, adaptan- do-se &s condigées locais, as exigéncias de lavouras especificas ¢ a0s mer- cados externos ¢ locais, criaram e recriaram no Recéncavo rural uma paisagem social ¢ econémica complexa e variada, Ao tentar desvendar a diversidade que caracterizou a agricultura escravista no RecOncavo rural € ao mapear a histéria agrdria da regio, este estudo segue duas estratégias principais. Primeiro, procura examinar a relagao entre a agricultura voltada para o abastecimento local ¢ a eco- nomia de exportacdo dominante, dando atengio especial & farinha de mandioca, componente fundamental do regime alimentar baiano na épo- «a. Isso significa mais do que simplesmente contestar, no caso da Bahia, proposigSes mais antigas, e agora bastante desacreditadas, segundo as q as cidades, por serem pequenas e poucas, eram incapazes de estimular uma demanda substancial de mercadorias produzidas localmente no Brasil colonial e oitocentista. Significa também reexaminar generalizagGes mais amplas que parte da historiografia recente continua a sustentar e que, na verdade, muitas yezes nio passam de simples conjecturas. Entre elas est a idéia de que nao existia praticamente nenhum mercado rural no Brasil, porque os grandes proprictérios produziam em suas terras a maior parte dos alimentos de que necessitavam para si mesmos, suas familias ¢ seus escravos, Outta é que 0 uso generalizado da mo-de-obra escrava impe- diu ou limitou fortemente o desenvolvimento de um mercado interno a0 manter um grande segmento da populacdo num nivel de mera subsistén- cia e ao Ihe negar acesso a uma renda monetétia.$ A idéia de que os mercados para mantimentos basicos eram frégeis € reduzidos, por sua vez, levou com demasiada freqiiéncia a suposicao de ‘que a producao voltada para as necessidades locais era organizada de uma maneira extremamente precéria. De fato, a historiografia raras vezes con- testoua afirmagéo, feita pela primeira vez por Caio Prado Jtinior em 1942, de que a tarefa de abastecer o mercado interno do Brasil recafa sobre “um elemento humano residual” da sociedade colonial: lavradores “decaden- tes” ¢ “degenerados” que raramente utilizavam a mao-de-obra escrava e que praticavam “uma mesquinha agricultura de subsisténcia”” Em vez de aceitar essas generalizagées e presumir que nao se desen- volveu nenhuma economia interna significativa na Bahia, este estudo in- 29 8. 4. BARICKMAN vestiga e analisa como a escravidao e a agricultura de exportagio molda- ram a produgio ¢ 0 comércio de géneros de primeira necessidade no Recéncavo. As evidéncias apresentadas aqui deixam claro que 0 uso generalizado do trabalho escrayo nao impediu que surgisse no Recncavo um mercado urbano ¢ rural bem desenvolvido para viveres bésicos. Pelo contrécio, a expansao da economia de exportagio promoveu, e até exigiu, o cresci- mento de um mercado interno. As centenas de pequenos lavradores que abasteciam esse mercado utilizavam regularmente a mao-de-obra escrava para produzir excedentes substanciais de farinha de mandioca. Fora dos circuitos mais conhecidos do comércio internacional, esses lavradores desempenhavam um papel decisivo ao assegurar a reproducio didria de uma agricultura de exportagéo altamente especializada nos engenhos ¢ fazendas de cana do Recéncavo.' Estando ja ligados a uma economia monetéria e tendo acesso & mao-de-obra escrava, os pequenos lavradores do Recéncavo valcram-se das oportunidades geradas pelo crescimento da economia de exportacao baiana entre 1780 ¢ 1860. Mas, em vez de aban- donarem a agricultura de abastecimento e de se transformarem em donos de plantations, diversificaram suas atividades ageicolas, conseguindo com isso aumentar a produgio tanto de generos de exportagéo quanto de fari- nha para o mercado local. © aumento da oferta de farinha, por sua vez, possibilitou uma expanséo maior ¢ mais répida da producao de acicar nos engenhos da regitio na primeira metade do oitocentos. Nao se pode, portanto, classificar a agricultura eo comércio de abasteci- mento como atividades meramente subsidiérias, simples acess6rios da eco- nomia de exportacdo, ou mesmo, na linguagem cepalina, como “efeitos para tre” (“backward linkages”). Eram atividades indispensiveis ao crescimento Aexpansio de uma economia regional mais ampla, dominada pela agricultu- ra escravista de exportago. No entanto, as relagdes de miitua dependéncia que vinculavam a produgio para a exportagio e o mercado interno impu- nham também limites 20 maior desenvolvimento desse mercado, Restrito em sua maior parte aos géneros de primeira necessidade, o mercado interno da Bahia experimenton um crescimento extensivo entre o final do século XVIIL emeados do século XIX; mas esse crescimento nfo ocasionou nenhuma trans- formagio dinamica da economia regional como um todo. UM CONTRAPONTO BAIANO A segunda estratégia principal que este estudo adota é comparar a posse da terra, 0 uso da mio-de-obra escrava ¢ as préticas agricolas na produ- ‘cdo das trés lavouras mais importantes do Recéncavo: a cana-de-agticar, © famo ea mandioca. A comparagao revela uma economia agraria em que, empregando a mao-de-obra escrava, grandes proprietérios ¢ pequenos lavradores adaptavam o uso da terra e as praticas agricolas nao s6 &s exi- géncias de lavouras especificas ¢ As pressées de uma economia mundial ‘emergente, mas também &s condigdes locais e a expansio do mercado interno. As adaptagbes que fizeram nao criaram um padrao Ginico ¢ uni- forme de monocultura extensiva de exportagio baseada em grandes pro- priedadles. Pelo contrério, essas adaptagSes permitiram na primeira metade do século XIX aumentos na produgao tanto para a exportagéio como para co abastecimento de mercados locais. Também possibilitaram a sobrevivén- cia, no Recéncavo tural, de uma complexa variedade de estruturas sociais € econdmicas. Essa variedade revela-se de modo mais impressionante nos acentua- dos contrastes que se dletectam entre a produgio de agticar e a de fumo na Bahia. Embora 0 acticar e 0 fumo fossem ambos produtos de exportacao vendidos no mercado mundial, as fazendas e sitios de furo do Recncavo no eram simplesmente vers6es menores das plantations acucareiras da regio. Na estrutura fundidtia, no uso da terra, no recrutamento da mao- de-obra, no abastecimento € nas técnicas agricolas, 0 agticar e 0 fumo exibiam diferengas significativas ¢ fundamentais. Assim, a lavoura fuma- geira no representava um mero exemplo a mais da monocultura de expor- ago; nem tampouco constitufa uma atividade estritamente camponesa, O que a produgio de tabaco no Recéncavo demonstra € que no dmbito da agricultura escravista de exportagao havia alternativas viaveis & plan- tation Os argumentos apresentados aqui sto, de certo modo, paralelos as conclusdes a que chegou Fernando Ortiz em Contrapunteo cubano, wim estudo clissico da agricultura de exportagao cubana, publicado original- mente em 1940, “La catia de aziicar y el tabaco”, escteveu Ortiz, “son todo contraste.” Sua obra efetivamente usa esse contraste para tecer um “contraponto” entre 0 agticar € 0 tabaco em Cuba." Do mesmo modo, este livro também destaca as diferengas entre o agticar eo fumo no caso at 8.4. BARICKMAN da Bahia. Mas vai além; compara esses dois produtos agricolas de expor- tago com a mandioca e examina a densa rede de relagées que, na Bahia, ligavam as vidas cotidianas de senhores de engenhos, consumidores urba- nos, roceiros, escravos rurais ¢ lavradores de fumo a mercados externos € também locas. Assim, ao investigar o RecOncavo rural tanto fora como dentro dos nites da plantation, este estudo tenta criar um vinculo necessério entre duas vertentes de pesquisa: o crescente niimero de estudos sobre a econo- mia interna do Brasil colonial e oitocentista e a literatura mais antiga € estabelecida sobre a escravidao e a agricultura de exportacio. Na tent: va de forjar esse vinculo, este livro adere aos esforgos que vém sendo tos para substituir 2 “visio plantacionista” por um paradigma, ou modelo explicativo, que seja mais adequado & interpretagao da formagéo histéri- ca do Brasil, especialmente sua histéria agréria, e que permita compreender melhor como, ao longo de mais de trés séculos, a escravidao e a agriculeura de exportagdo moldaram a vida social e econdmica do Brasil. Em termos mais abrangentes, este livro usa um estudo da produgao de agticar, fumo e farinha de mandioca no Recéncavo para melhor elucidar questdes mais amplas da histéria comparativa da escravidao e da agricul- tura de exportagio nas Américas. Durante varios séculos, a produgao de generos de exportagio baseada na mao-de-obra escrava caracterizou vas- tas reas das Américas, de Maryland ao litoral da Venezuela, da Jamaica a0 Sudeste do Brasil. No entanto, apesar de muitos tracos comuns, as so- ciedades ¢ economias que surgitam nessas éreas diferiam significativamente umas das outras, no apenas em momentos ceterminados, mas também na sua evolugio e desenvolvimento ao longo do tempo. Para comprecn- dec e explicar essas diferengas, nio basta invocar as demandas suposta- mente todo-poderosas da economia mundial ou recorrer a definicées abstratas da plantation. A busca de uma explicacao completa deve incluir, no mfnimo, um exame atento das estratégias que, em cada area, assegura- vam a reprodugao da agricultura escravista: a reproducao didria da forca de trabalho cativa, seja por meio de mercados locais e mesmo internacio- nais para géneros de primeira necessidade, seja por meio de vérias formas de producto interna que se davam & margem das trocas de mercado; a reprodugio anual das plantations, fazendas e outras propriedades escra- a2 UM CONTRAPONTO BAIANO vistas como empresas, 0 que significa atribuir maior importancia 3s roti- nas anuais de trabalho e aos padres de uso da terra; e a reproducdo a longo prazo da populacao escrava, cujo trabalho fornecia os produtos que promoviam o crescimento de uma economia mundial emergente.' A ‘maneira especifica como, em varios contextos politicos, essas estratégias se entrecruzaram com as condig6es locais, com as exigéncias de produtos agricolas particulares ¢ com as demandas mais amplas da economia mun- dial muito pode contribuir para explicar as diferengas entre as regides cescravistas das Américas e dentro de cada uma delas. Sob este aspecto, umn esttido sobre a historia agréria do Recéncavo no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX representa um ponto de partida ideal. © RecOncavo, no fim do éséculo XVIII, nao era apenas uma das areas mais antigas e bem estabelecidas de agricultura escravista do Nove Mundo; dentro de seus limites bastante restritos, exi- bia um grau notavel de diversidade fisica, social e econdmica— como que combinando a Jamaica e $40 Domingos com a Tidewater da Virginia e Maryland* numa dnica economia regional baseada na mao-de-obra es- FONTES Para investigar a economia agraria do RecOncavo da primeira metade do século XIX, este estudo recorre a uma grande variedade de fontes manus- critas, Entre elas estio os registros de propriedades rurais feitos em obe- diéncia a Lei de Terras de 1850, conhecidos na Bahia como. “registros: eclesidsticos de terras”; assentamentos cartoriais, como escrituras e con- tratos de arrendamento; a correspondéncia entre autoridades locais e 0 governo colonial, e mais tarde provincial, na capital baiana; ea documen- tagio do Celeiro Pfiblico de Salvador. Muitas das conclusdes apresentadas aqui se baseiam num levantamento de mais de quinhentos inventitios post-mortem de senhores de engenho Fidewarer, «pl ines ao leste da bala de Chesapeake, fol ne period cofonisl © principal centeo da produgio de famo na América ingles 33 Bd, BARICKMAN, ede lavradores de cana-de-acticar, de fumo e de mandioca. Os inventarios sao, por natureza, uma fonte tendenciosa. Embora a legislagao portugue- sa, conhecida como as Ordenag6es Filipinas e vélida no Brasil (com algu- mas modifigSes) até 1917, exigisse normalmente a feitura de um inventério apés toda morte, a documentagao que resta deixa claro que a grande maio- ria da populacio livre nio recebia essa atengao. $6 quando 0 espélio. clufa bens de raiz ou eseravos, os herdeiros se dispunham a fazer gastos com 0 inventario. S40 extremamente raros os inventarios dos séculos XVIII e XIX que nao arrolam escravos ou terras. Assim, como fonte, os inventé- rios post-mortem lancam luz sobre o segmento da populagéo rural que possufa terras ou escravos. : ; Mas, apesar de sua tendenciosidade inerente, os inventarios constituem uma fonte valiosfssima de informacao sobre as préticas agricolas, o tama- nho e 0 valor dos estabelecimentos rurais, a escravidao e as condigées de trabalho e de vida no campo. Ocasionalmente, esse tipo de documenta- ‘cdo contém contas correntes de despesas e receitas. Quando questées ju- diciais ou outras complicagdes retardavam a partilha dos bens entre os herdeiros, o inventariante continuava responsével pela manuteng4o do |. Antes de se proceder a partilha final, ele apresentava contas m ‘ou menos detalhadas para justificar os gastos que fizera. No Brasil, onde raramente foram conservados os livros de despesas e receitas das fazen- das e dos engenhos, as contas anexadas aos inventarios estdo entre as pouquissimas fontes de informag6es diretas sobre as operagdes cotidia- nas desenvolvidas nas propriedades rurais. Este estudo também faz amplo uso de censos manuscritos (listas nominativas) que datam das iltimas décadas do século XVIII e dos anos 1825-26 e 1835. Juntos, os censos e os inventarios fornecem informa- ‘goes sobre mais de vinte mil escravos que trabalharam nos engenhos, fa- zendas ¢ sitios do Recéncayvo no final do século XVIII ¢ na primeira metade do século XIX. Essas informag6es permitem investigar detalhadamente a estrutura da posse de escravos ¢ o recrutamento de mao-de-obra cativa no RecOncavo rural. © livro que se segue esta dividido em seis capftulos e mais um capitulo final dedicado as conclusoes gerais. O Capitulo 1, que se baseia, em gran- a4 UM CoMTRAPONTO BAIANO de parte, em séries estatfsticas do comércio de exportagio, compiladas a partir de diversas fontes, examina a evolucio da economia exportadora provincial entre 1780 ¢ 1860." Foi necessario compilar essas séries por- que, até hoje, faltam na historiografia estudos detalhados sobre as princi- pais tendéncias na economia de exporta¢ao baiana na primeira metade do oitocentos.' A andlise dessas tendéncias fornece um ponto de partida para discutir as mudangas ocorridas na agricultura de exportagao ¢ as relages entre a economia exportadora dominante e a producao voltada para abastecer o mercado interno na Bahia. A anélise também demonstra que, em geral, a economia'de exportagéo baiana teve um crescimento real no perfodo de 1780 a 1860 (aumentos no volume das exportagdes e nas receitas em termos reais). Esse crescimento contrasta com o declinio so- frido tanto nas décadas anteriores a 1780 quanto nas posteriores a 1860. Portanto, os oitenta anos que se estendem das tiltimas décadas do sécalo XVIII a meados do século XIX constituem um periodo bem definido na historia econémica da Bahia. Esses oitenta anos também representam 0 Gltimo perfodo em que a agricultura escravista de exportagao realmente floresceu no Rec6ncavo antes de entrar em decadéncia a partir de mea- dos do século XIX. Muitas caracteristicas e estruturas que vinham se de- senvolvendo desde os infcios da colonizagio atingiram seu ponto maximo de amadurecimento entre 1780 ¢ 1860. Assim, investigar o Recdncavo rural nesse perfodo é examinar uma economia escravista madura. © Capftulo 2 comeca estabelecendo que a farinha de mandioca era 0 principal alimento na dieta dos baianos, tanto nas cidades como no meio rural. Além disso, procura avaliar 0 tamanho do mercado local para a fa- tinha de mandioca. As crises no prego e no abastecimento de farinha nes- se mercado so discutidas no Capitulo 3, que também apresenta dados para demonstrar que entre 1780 € 1860 a produgo de mandioca no Recdncavo cresceu, apesar da disseminacao da agricultura de exportacéo. © prego real da farinha de mandioca no mercado de Salvador durante esses mesmos anos nio apresentou nenhuma tendéncia de alta persistente € duradoura, Nos Capitulos 4 a 6, 0 foco desloca-se dos mercados, exter- nos ou locais, para o Recdncavo rural, Esses capitulos investiga a diver- sidade interna da agricultura escravista mediante a andlise da posse da terra, da estrutura da propriedade escrava, dos padrées de recrutamento de mao- as 8.3. BARICKMAN de-obra e das praticas agricolas adoradas pelos senhores de engenho e pelos lavradores de cana, de fumo e de mandioca na Bahia. O restante desta introdugao apresenta 0 cenério geografico deste estudo. ‘O RECONCAVO Recéncavo. A palavra significa simplesmente “a terra em redor de uma bafa” — uma bafa qualquer. No Brasil, porém, ela terminou se vinculan- do a regido que circunda uma bafa especifica — aquela que os primeiros exploradores portugueses batizaram de bafa de Todos os Santos.'° A apro- ximadamente 13 graus latitude sul, um promontério assinala a entrada para um amplo golfo que o mar entalhou no litoral do Nordeste brasilei- ro (ver Mapa 1). Com cerca de 50 quil6metros de lado a lado em seu ponto mais largo, esse golfo contém 750 quilémetros quadrados de aguas geral- mente calmas e abriga em seus limites quase cem ilhas. As menores so ‘meros pontinhos de terra perdidos em meio a vastidao de agua azul e ver- de, ao passo que Itaparica, a maior, se estende por uma érea de quase 250 quilometros quadrados. Intimeras enseadas € angras a0 longo das mar- gens da bafa criam um contorno irregular; também contribuem para essa irregularidade as embocaduras de varios rios ¢ ribeir6es: 0 Sergi, 0 Acu, 0 Subaé, 0 Sao Paulo, o Guat, o Jaguaripe, o Paramirim e o Batatd, para ci- tar s6 alguns. O mais importante dos rios € o Paraguagu, que atravessa centenas de quilémetros a partir de suas cabec guar no lado ocidental da bafa. ‘A partir das margens da bafa estende-se uma paisagem suavemente ‘ondulada, em que morros baixos dio lugar aqui e ali a terrenos bastante planos. Somente numas poucas serras baixas ¢ a0 longo dos rios, onde a erosio criou penhascos escarpados, é que a paisagem assume um aspecto verdadeiramente acidentado. Os morros, tabuleiros, penhascos e plani- cies do norte do Recéncavo exibem, em sua maior parte, solos de origem ‘creticea formados de misturas variadas de argila ¢ areia, Hoje, como no pasado, 0 vocabulario do Recéncavo rural dé aos mais leves ¢ arenosos desses solos o nome de “areias”. Os mais pesados, com maior teor de ar- gila, so conhecidos como “massapés” (ou “massapés”)s © © nome “sa- 3, no interior, até desa- 36 UM CONTRAPONTO BAIANO 16es” é utilizado para designar uma mistura intermediéria de argila e areia. Os massapés € saldes so encontrados em varias partes do norte do Recéncavo, mas, fora dali, nos lados sul e ocidental da bafa, predominam solos geralmente mais arenosos e leves. Mapa 1. A provincia da Bahia em meados do séeulo XIX Ao redor dessa baia, os colonizadores portugueses ¢ seus descenden- tes criaram umas das mais duradouras sociedades escravistas do Novo Mundo. Durante mais de trés séculos, homens e mulheres escravizados € trazidos A forga da Aftica e seus filhos nascidos no Brasil trabalharam no RecOncavo em quase todas as ocupagdes imagindveis. Serviram a seus se- 37 nhores como bracos na lavoura, artesdos, cozinheiras, carregadores, ven- dedores ambulantes, barqueiros, criadas, pescadores, feitores ¢ mari- nheiros. 'As feigdes dessa sociedade comegaram a se delinear em meados do século XVI. Em 1549, Tomé de Sousa faridou, sobre o alto penhasco que domina a entrada da baia, um povoado que nasceu jé com os foros de tuma cidade e com o nome de Salvador. Desde 0 infcio, também foi sede do primeiro governo-geral e, portanto, principal centro administrative da ‘América portuguesa. Aventurando-se interior adentro, os primeiros colo- nos obrigaram os indios a limpar terrenos em meio & floresta tropical ¢ a plantar cana-de-agiicar. Construiram engenhos para transformar a cana em acticar, para vender nos distantes mercados europeus. Depois que, em poucas décadas, as doencas, trabalho forgado e as guerras reduziram ‘enormemente a populagéo indigena, os colonos passaram a substituir os Sndios por escravos importados da Africa, Pouco a pouco, a combinagéo do comércio de exportagéo com as atividades administrativas transfor- mou 0 povoado primitivo de’Tomé de Sousa numa florescente cidade que, no infcio do século XVIII, jd contava cerca de vinte mil habitantes. Embo- raa capital vice-real tenha sido transferida para o Rio de Janeiro em 1763, Salvador conservou sua posigo de centro administrativo da vasta capita- nia da Bahia que, até 1820, incluiu atual estado de Sergipe. Apés a Inde- pendéncia, a cidade continuaria a servir como capital da Bahia, agora uma provincia, no recém-consticuido Império do Brasil. No coracdo dessa provincia situava-se 0 Recéncavo, 0 hinterland ime- diato de Salvador. Pequeno em relagio aos mais de 561 mil quilémetros quadrados que formavam a Bahia, 0 Reconcavo manteve-se, durante todo 0 século XIX, como a regiéo mais densamente povoada da provincia ea mais importante do ponto de vista econémico. Contude, sempre foi diff- cil identificar com preciséo seus limites. Os gedgrafos ¢ outros cientistas sociais, usando critérios diferentes, j4 propuseram definig6es diversas da regido.'® Num ponto, porém, quase todas as definigbes concordam: 0 ‘acesso facil 8 bafa de Todos os Santos €, por conseguinte, 0 contato proxi- mio € constante com a cidade de Salvador sempre moldaram a vida no Recéncavo. Essas definigées também coincidem ao distinguir 0 Recéncavo das demais regides da Bahia: por exemplo, do interior, com seus sertdes UM CONTRAPONTO BAIANO semi-&ridos, ¢ do litoral sul, que corresponde as antigas comarcas de IIhéus € Porto Seguro, onde, em contraste, a forte incidéncia de chuvas durante ‘0 permitiu o crescimento de florestas tropicais especialmente Para Luis dos Santos Vilhena, o cronista que, nos tiltimos anos do sé- culo XVII, escreveu uma das mais completas descrigdes da vida na Bahia colonial, o Recéncavo abrangia a cidade de Salvador, com suas freguesias suburbanas, e as cinco vilas (municipios) que cercavam a bafa de Todos os Santos: S40 Francisco do Conde e Santo Amaro da Purificagéo na mar- gem norte, Cachocira no-oeste, ¢ Maragogipe ¢ Jaguaripe no sul. Em meados do século XIX, essas vilas eram nove. Os distritos localizados ao norte de Salvador, que Vilhena classificara entre as freguesias suburbanas da cidade, haviam passado a formar os municipios de Mata de S40 Joao ¢ Abrantes, A assembléia provincial transformou a ilha de taparica em municipio, e das freguesias interioranas de Jaguari Ne, fez Licipic Nasaré. © Reconcavo de Vilena fea compresndid ne Hires gue Manoel Aires de Casal ¢ Ferdinand Denis tracaram para a regio na prix meira metade do século XIX. Segundo ambos os autores, o Recéncavo estendia-se de 6 a 10 léguas (cerca de 36 a 60 quilémetros) em todas as direc6es a partir das margens da bafa.™ Esses limites aproximam-se nota- velmente da definigéo do Reconcavo usada hoje pelo governo estadual da Bahia: uma regiao de cerca de 10.400 quilémetros quadrados em torno da baia de Todos os Santos. Esta é a definigao que, em geral, este estudo: adota.” (Ver Mapa 2.) : No final do século XVIII, essa regido abrigava trés zonas agricolas distintas. Muito cedo, os colonizadores portugueses estabelecidos na Bahia haviam descoberto que os solos pesados do norte do Recéncavo, os ‘massapés, eram ideais para 0 cultivo da cana-de-aciicar. Haviam aprendi- do também que a cana cresceria quase tfo bem— e, na realidade, melhor, em anos chuvosos — nos salées, terras mais leves. A distribuigao de massapés e sal6es teve, de fato, grande influencia na geogratia da indis- tria agucareira no Recéncavo. Onde quer que encontrassem terras com esses solos argilosos em distritos préximos as margens da bafa, os coloni- zadores ¢ seus descendentes plantaram cana e construftam engenhos. A lavoura canavieira veio assim a dominar a paisagem num largo arco que, 39 os ¢freguesias do Recdneavo em mesdos do século XIX GE, Encilopédia dos municipios; Bahia, SEPLANTEC, 22 2's sto aproximados. Os nemes em versal indicam muni Indicam feeguesas. As linhas cheias indicam sites entre as fregucs das freguesias de Cotegipe e Pirajé, nos arredores de Salvador, se estendia para 0 oeste, ao longo da margem da bafa, até abranger a freguesia de Santiago do Iguape, na fox do Paraguacu. Nas vilas de Sao Francisco do Conde € Santo Amaro, os engenhos eram numerosos também nas fregue- sias de Séo Sebastido do Passé ¢ de Séo Pedro do Rio Fundo. Juntas, as freguesias suburbanas de Salvador, as duas vilas de Sao Francisco do Con- de e Santo Amaro e a freguesia do Iguape constitufam os principais cen- tros da produgio acucareira no Recéncavo. Aproximadamente 90% dos 221 engenhos que fabricavam acticar na Bahia em meados da década de 1790 se localizavam nesses distritos.** a0 UM CONTRAPONTO BALANO ‘Muitos dos mais antigos e maiores engenhos da Babia sittuavam-se em freguesias ao longo da margem norte da bafa ou préximas dela, onde 0 acesso facil ao transporte por 4gua tornava o envio do acticar para Salva~ dor menos oneroso do que por terra, Pelo menos metade dessas proprie- dades préximas a beira da bafa pertencia a cerca de vinte familias, que compunham a “aristocracia” agucareira baiana, familias que gozavam de grande prestfgio social e exerciam uma influéncia igualmente grande na politica local e, mais tarde, nacional. Esses ricos e respeitados proprieté- rios rurais erguiam para si, em suas terras, casas imponentes, com grossas paredes de alvenaria, amplas varandas e, com freqliéncia, capelas pompo- sas. Ali passavam a maior parte do ano, supervisionando seus escravos € impondo sua autoridade sobre arrendatarios e vizinhos menos présperos. Raramente perdiam uma oportunidade de chamar atengao para seus | 0s, &s vezes esptirios, com linhagens nobres da Europa; e sempre i tiam em ser conhecidos como senhores de engenho. No entanto, tinham de compartilhar esse titulo com muitos proprietérios menos abastados. Na verdade, a despeito de todas as suas pretensées, a “aristocracia” agucareira baiana nunca formou um grupo fechado. O agticar era um negécio; um “negécio nobre”, mas ainda assim um negécio. Do mesmo modo que a mé sorte nesse negécio podia atolar uma familia “aristocrati- ca” em dividas, resultando na perda da propriedade ¢ relegando-a, por fim, a obscuridade, proprieticios présperos podiam ascender as fileiras da “aristocracia”. Além disso, através do casamento, as farnilias dos gran- des senhores de engenho traziam para o seu seio ricos negoci grados de Portugal e burocratas do alto escalao do governo colonial.” Nas freguesias ao norte da baia e em outras partes do RecOncavo, a cana era cultivada nao s6 por senhores de engenho, mas também pelos chamados lavradores de cana.* Embora a maioria dos lavradores de cana ates imi “Tanco nas fontes quanto na historiografia, multas vezes os lavradores de cana sia chamados plesmente de “lavradores”. Mas, na decumentasio sobre a Bahia colon ‘exino lavrador também € usado pata designar quase qual produsores de famo e de mandioza, Por esta raaio e para evitet possiveis ami ts livzo,adjetivar o rermo (Tavradores de cana”, “Lavradores de fur" sandioes") sempre que 0 contexto nso deixar claro © ourros contextos, wliz “lavradores” para me refese de forma genérca 2 agriculrores que ‘nto eram senhores de engenbo, sem especifcar © que produziam. Bd. BARICKMAN possufsse escravos, o tamanho dos seus plantéis variava enormente, de um ou dois a até trinta ou mais cativos. Alguns também possufam terras préprias. Mas, por nao ser dono de um engenho, todo lavrador de cana — mesmo aquele que tinha uma fazenda prépria — participava da in- dastria agucareira num regime de parceria. Entregava sua cana a um senhor de engenho para que este a moesse € transformasse em agticar. Em troca, o senhor de engenho geralmente retinha metade do agicar pro- duzido pela cana do lavrador; a outra metade cabia a este. E quando os lavradores de cana ocupavam terras arrendadas a um engenho, 0 pro- prietério do engenho também lhes cobrava outra parcela do agticar a titulo de arrendamento. ‘Ao oeste da zona acucareira ficava a grande vila de Cachocira, onde, ‘em quase todas as freguesias, predominavam terras de solos mais areno- sos ¢ leves. Nessas terras, milhares de lavradores dedicavam-se ao cultivo de fumo a ser exportado para a Europa e a Africa ocidental. Os lavrado- res baianos especializavam-se na produgio de fumo de corda, também conhecido como fumo de rolo; ou seja, fumo compactamente trangado em cordas ¢ depois cnrolado em fardos grandes que podiam pesar até 25 arrobas (367,5 quilogramas). A maior parte desse fumo vinha dos chama- dos “campos da Cachoeira”, uma area com poucas matas, que se estendia ‘em diregao ao norte ¢ ao este a partir do rio Paraguacu, atravessando a freguesia So Gongalo dos Campos ¢ avangando para o interior. Cultiva- va-se 0 tabaco também nas fazendas ¢ sitios” das freguesias menos densa- mente povoadas ao sul do Paraguacu, onde os lavradores produziam grande parte do fumo em folha que o monopilio régio portugués remetia da Bahia para Goa, na india Solos leves e arenosos também predominavam nas vilas de Maragogipe ¢ Jaguaripe, ao sul da bafa, onde a mandioca era a principal lavoura, Os roceiros de Maragogipe ¢ Jaguaripe colhiam as raizes da mandioca, que contém quantidades letais de Acido cianidrico. Depois, ralavam, prensa- ‘vam e torravam essas rafzes para retirar 0 dcido venenoso ¢ transformé- “Gonvém avaar que a decumentagio sobre o Recdncave nos séculos XVII e XIX nao estab jo". Ao contrio, as veut, ma proprieda- 9° € como “Fazenda” na mesma fonte. Também convém 5 ¢“eitiante” so exteemamenteraras nas fontes. tece nenlisma distngdo clara ence de chega a sor designads como " fobsarvar que as expresides “Yazende! a2 UM CONTRAPONTO BAIANO Jas em farinha.* Ainda que contenba poucas vitaminas ¢ uma quantidade icante de protefna, a farinha de mandioca é um alimento substan- cial, que satisfaz; com alto teor de amido, é uma rica fonte de calorias. Os nomes das freguesias de Nossa Senhora de Nazaré das Farinhas e de S40 Felipe das Rogas atestam a importincia da mandioca ¢ da farinha nesse lado da bafa, Os pequenos lavradores do sul do Recéncavo produziam farinha para consumo doméstico e para vender nas feiras semanais nos portos de Nazaré © Maragogipe. Ali, comerciantes ¢ revendedores com- pravam as provis6es que enviavam de barco pela bafa para Salvador Esse triplice padrao de especializagéo confirma apenas em parte a idéia comum de que, no Brasil colonial, a agricultura de plantation monopoli= zava as melhores terras, relegando a produgio de viveres e outras lavou- 128 a dreas de solos mais pobres."* Nao ha divida de que os senhores de engenho tentaram controlar os férteis massapés do norte do Recéncavo. ‘Mas os massapés 56 eram as “melhores terras” para a cana-de-agticar. Nem © fumo nem a mandioca cresciam bem nesses solos argilosos e pesados — que durante os meses chuvosos do inverno se transformavam num lama- gal quase intransitavel no verdo formavam uma crosta dura como pe- dra, Ambos desenvolviam-se muito melhor em solos mais leves e mais arenosos.2# Além disso, a especializagao em termos geogréficos estava longe de ser absoluta, A produgio de agticar, por exemplo, mal comegara a se es- palhar pelos distritos litordneos ao norte de Salvador que mais tarde se tornariam os muniefpios de Mata de So Jodo e Abrantes. Ali, em “aldeias” (povoados sob supervisio oficial), remanescentes da populagio indigena original cultivavam mandioca ¢ uma pequena quantidade de algodao. As fazendas ¢ 0s sitios que pertenciam aos demais moradores desses distritos produziam farinha, algodao e fumo; em algumas propriedades criava-se gado. O fumo ea mandioca também eram cultivados em Santana do Catu, Sao Pedro do Rio Fundo ¢ Nossa Senhora da Oliveira dos Campinhos. “Nos séculos XVIII e XIX, quando preciaavam se refer fs como frequentemente disem até hoje farinha-do-reino, A indo a heranga colonial ainda & comm na Bsbis chamar de jnes partes do Brasil €coahecido como Boy. BARICKMAN Embora pertencessem as vilas canavieiras de Sao Francisco do Conde € zavam-se todas a distincias conside- Santo Amaro, essas fregucsias loci raveis da margem norte da bafa.2” ‘Até nas freguesias mais préximas da bata, onde a produgio de acticar estava bem estabelecida, agregados, pequenos arrendatérios ¢ outros la- vradores pobres conseguiam cultivar mandioca em trechos de terra entre os engenhos e os canaviais. A mandioca, a0 que tudo indica, era a princi- pal lavoura da ingreme freguesia de So Domingos da Saubara. Apesar de pertencer & vila de Santo Amaro ¢ de se situar 4 margem da bafa, Saubara nunca se tornou um centro importante de producao de agticar; seus solos eram muito arenosos. A maioria de seus habitantes vivia do corte da le- nha, da pesca, da criagéo de gado ¢ do fabrico de cal.2* De modo semelhante, 0s canaviais haviam comegado a se expandir pelos distritos dedicados ao cultivo do fumo ¢ da mandioca no oeste ¢ no sul do Recéncavo, Mais de uma diizia de engenhos haviam sido exguidos em pontos dispersos desses distritos. Ainda mais numerosas, sem divida, eram as engenhocas — os pequenos engenhos que fabricavam rapaduras para consumo local ¢ destilavam cachaga. Em Cachoeira, 0s lavradores cultivavam no s6 0 fumo como também géneros alimenticios. Além dis- s0, no final do século XVIII, o fumo j& comecara a se firmar em Marago- gipe. Alie na vila vizinha de Jaguaripe, olatias alinhavam-se as margens dos rios, produzindo telhas e louga de barro que chegavam a ser vendidas em mercados tao distantes quanto 0 do Rio de Janeiro. Jaguaripe possufa também uma indistria madeireira que fornecia pranchas para os estalei- ros de Salvador? Contudo, mesmo levando-se em conta essas variadas atividades, fica claro que, de fato, prevalecia um certo grau de especializagao geogratica no Recéncavo. O agicar provinha sobretudo de Sao Francisco do Conde, Santo Amaro e da freguesia de Santiago do Iguape; 0 fumo, de Cacho: inha, das No final do século XVIII, o Recéncavo — com uma economia basea- da na produgo de géneros tanto de exportagao quanto de subsisténcia, com seus engenhos, fazendas, rogas € las, povoados e arraiais— projetava-se como uma das regiées mais densamente povoadas de todo o Brasil. Nao ¢ facil, no entanto, determinar o tamanho do sul, jos € com suas numerosas 44 UM CONTRAPONTO BAIANO da populagio que vivia em Salvador e seus arredores. Embora 0 governo colonial ¢ a Igreja tenham tentado ocasionalmente recensear a populagio da Bahia, viram muitas vezes seus esforgos frustrados pela indiferenca de autoridades locais. Como Vilhena noton, também precisavam vencer aidéia generalizada de que os censos s6 serviam para estabelecer novos impostos ¢ para o recrutamento militar, As décadas que se seguiram a Independén- cia mudaram pouco esse quadro. James Wetherell, vice-cOnsul britanico em Salvador, observou na década de 1850 0 mesmo medo dos censos que chamara a atengio de Vilhena meio século antes. “As pessoas”, escreveu ele, “parecem em geral ter uma aversio firmemente arraigada ‘a serem contadas’.” As autoridades fracassavam continuamente em suas tentati- vas de realizar um censo completo e preciso de toda a provincia.” No final das contas, porém, nao nos resta senio confiar nos dados censitarios que chegaram até nés, Embora raras vezes sejam completamente fidedignos, somente eles fornecem informagées utilizéveis sobre o tama- nho da populagao da Bahia. Os censos indicam que, por volta de 1780, a capitania da Bahia tinha quase 220 mil habitantes. Destes, mais de dois tergos, ou aproximadamente 150 mil, moravam em Salvador ¢ em seu hinterland imediato." Ac longo das nove décadas seguintes, essa popula- ‘slo iria triplicar, para chegar a um total de 451.678 em 1872, ano em que foi realizado o primeiro censo nacional no Brasil. ‘Nos séculos XVIII ¢ XIX, somente uma minoria — talvez menos de um quinto — dos habitantes do Recéncavo era branca.® Os indios tam- bém eram escassos. A grande maioria da populagdo era formada por afti- anos, pretos nascidos no Brasil ¢ “pardos”, “mulatos" ¢ “cabras”." Essa populacio negra ¢ afto-mestica inclufa escravos alforriados, os descen- dentes ingénuos (.e., nascidos livres) de escravos libertos e grande ntime- ro de homens ¢ mulheres cativos. Os escravos que viviam na regio em 1816-17 somavam talvez 89 mil.* Mesmo no inicio da década de 1870, nada menos que vinte anos ap6s o fim do tréfico negreiro, o ntimero de escravos em Salvador € nos municipios em torno da baia de Todos os San- tos continuava provavelmente superior a 70 mil “Na documentagio, "pardo” € 0 termo mais ussdo para designar qualquer pessoa afto ‘2. "Cabra, pelo menos em prineio,eeferia-se um individu com um dos pais preto e © ‘outro pardo, ou 20 filho de dois cabrs. BJ, BARICKMAN Quando, no século XVI, escravos africanos comegaram a trabalhar nos engenhos, fazendas ¢ sitios do Recéncavo, a Bahia era pouco mais que um posto avancado recém-estabelecido nos confins de ume economia mundial em expansdio. Durante os trezentos anos que se seguiriam, 0 co- mércio de agticar e Fumo continuaria a ligé-la economia mundial. O tra- balho envolvido na produgio desses generos, aos quais mais tarde se somaram 0 café ¢ 0 algodio, iria, por sua vez, consumir a vida de milha- res de escravos. O comércio de exportagao €, portanto, um ponto de parti- da adequado para um estudo da escravidao e da agricultara nos municipios que circundam a bata de Todos os Santos. 46

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