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Loucura, Género Feminino: As Mulheres do Juquery na Sao Paulo do Inicio do Século XX RESUMO A partir do estudo das mulheres internadas no Hospicio do Juquery, em Sao Paulo, no inicio do séeulo XX, este artigo pretende sugerir algumas indicagdes para ona histéria social das mulheres no Brasil. Seu objetivo essencial & perceber como, por trds dos enunciados genéricos da Psiquiairia (mas ndo apenas dela) sobre a mulher enquanto figura normalizada ¢ higiénica, podem ser detectadas diferencas sociais que remetem a formas distintas de subordinagdo no interior da Maria Clementina Pereira Cunha” ABSTRACT On the basis of the study of women interned in the Juquery asylum in Sao Paulo during the early twentieth century, this article seeks to offer some suggestions for a social history of women in Brazil. The primary objective is to understand how we can detect social differences referring to distinct forms of subordination within the “female condition" behind the generic pronouncements of Psychiatry (though not alone) on women as standardized and ygienic figures: “condicdo feminina”. Niio deixa de ser curioso que, apesar de sua obra vigorosa ¢ original, as primeiras credenciais com que a escultora francesa Camille Claudel (1864- 1943) € geralmente apresentada ao piblico sejam precisamente aquelas que dizem respeito aos homens ilustres com os quais ela manteve diferentes tipos de relagdo ao longo de sua vida: Paul Claudel, seu irmao; Auguste Rodin, de quem foi amante ¢ companheira de trabalho por muitos anos; Claude Debussy, com quem manteve uma convivéncia amiga ¢ afetuosa!. O * Depto. Histéria — UNICAMP. TBleni, Varikas, “L'approche biographique dans T'histoire des femmes", mimeo., 1986, ‘observa que — niio apenas com relagio a Camille Claudel — as biografins de mulheres recorrem em geral as suas condigdes de mie, amante, filha etc., como via de identificagao da personagem e de constr sua hist6ria pessoal. Certamente este dado 6 significativo, no apenas de uma leitura miségina, mas da propria imponancia social destes papéis para a existéncia das personagens femininas. Veja-se, p. ex., a colegio de biografias de mulheres editada na Prange pela “Presses de Ia Renaissance”, que esté sendo publicada em portugues pela Editora Maniins Fontes, na qual te inclui um volume sobre Camille Clandel, e onde este tipo de “referencial” figura nos critérios de escolha das personagens e nas capas dos volumes. Ver Anne Delbée, Camille Claudel, wma mulher, Sao Paulo, Martins Fontes, 1988. [Rev Bras de Hise] 'S.Paulo Tv.9nei8 Tp. 121-144” Tago, 89/s01.89 ] dado de que tenha enlouquecido é também tomado como importante e significativo, tornando-a uma personagem “maldita” e fascinante. Efetivamente, Camille foi internada em 1913 e morreu 30 anos depois no Hospital Psiquidtrico de Montdevergues sem jamais ter voltado ao convivio social, sem jamais voltar a trabalhar por recusar-se a fazé-lo em situago de internamento, ¢ sem deixar de reivindicar seu Sireito,a uma vida fora do Ree ean de uma tanqiiila fz de classe média apoiada nos rigidos padrées morais do periodo, Camille ndo hesitou em concretizar suas escolhas profissionais nem em vivenciar plenamente sua paix4o amorosa por Rodin, seu principal mestre no oficio, incentivador de seu talento profissional e também seu primeiro amante, numa relacZo tempestuosa e semiclandestina entre uma jovem escultora principiante e um homem maduro ¢ estabclecido. A histéria de Camille Claudel é a da dificuldade, compartithada por muitas mulheres em diferentes situages, de vivenciar com sucesso escolhas que se caracterizavam pela transgress&o As normas socialmente definidas. O rompimento de sua ligagdo com Rodin — que durou quase vinte anos ~ agravou um quadro de problemas decorrentes desta escolha, embora assinale também um periodo em que sua produgdo como artista atingia seu ponto mais elevado. Reconhecida por uma parcela significativa da critica — embora provocasse certas desconfian¢as em outras —, Camille teve uma crescente dificuldade em obter o apoio necessario ao desenvolvimento pleno de seu trabalho (do qual fez a prépria razdo de sua existéncia): faltava-lhe dinhciro, sempre escasso para uma alividade dispendiosa como a escultura, que exigia materiais como 0 bronze, o marmore, oficina ¢ artesdos — além da forga fisica que a tomava uma atividade “para homens”; faltou-lhe reconhecimento e confianga em sua capacidade enquanto artista, indispensdveis para conseguir encomendas, patrocinios, etc. que viabilizassem seu trabalho; faltavam-lhe amigos, pois tanto sua inusitada escolha profissional quanto sua relagao 2CF. Anne Delbée, op. cit., que constr6i uma biografin comovente ¢ empenhada, embora se trate mais de uma obra literdria que de investigacio historica. Ver também Jacques Cassar, Dossier Camille Claudel, Paris, Librairie Séguier/Archimbaud, 1987, cuja pesquisa serve de fandamentacéo tanto ao livro de A. Delbée quanto a outras obras sobre Camille Claudel. 122 amorosa com Rodin suscitavam suspeita ¢ desconforto, mesmo no ambiente cultivado e intelectualizado com o qual ela conviveu na Paris da belle époque, Mesmo entre seus admiradores e amigos, como Octave Mirbeau, a lens&o representada por uma mulher como Camille era visivel: diante de uma de suas obras ele comentou, com intengdo t4o elogiosa quanto possivel, que se estava em presenga de uma “chose unique, une révolte de la nature: la femme de génie”>. “Revolta da natureza”: Camille abdicara do casamento ¢ da maternidade, do conforto burgués e do recato feminino para viver intensamente um papel diferente do que lhe estava destinado. Em 1906 comegaram a se manifestar os comportamentos que a levariam ao hospicio: as fugas, 0 isolamento crescente tanto quanto, paradoxal ¢ simbolicamente, a destruic¢fo de suas préprias obras. Aos 49 anos, pobre, sozinha e ressentida, Camille foi internada por sua familia com um quadro clinico marcado pela depressio pelo delfrio persecutério. “Censuram-me (oh, crime espantoso) por haver vivido completamente sozinha” — ironiza a propria Camille em carta escrita no asilo -, “por passar minha vida com os gatos, por ter mania de perse- guicdo”*. Os ténues limites entre a loucura e a consciéncia manifestavam-se ai de forma contundente. No asilo, onde passou os tiltimos trinta anos de sua vida, ela teve finalmente o destino de todos os “loucos”: o esquecimento € 0 abandono, que marcam no apenas sua pessoa, mas também sua obra. Trés anos antes do internamento de Camille, em S40 Paulo, uma longinqua cidade que ela, com seus parametros parisienses, teria certamente achado provinciana e acanhada, Eunice, uma professora de 30 anos, foi internada no Hospicio do Juquery’. inicio deste século, apenas comegava a assumir os contornos de uma grande cidade. As fabricas, o.crescimento dos negécios, a explosio populacional alimentada por levas de imigrantes recém-chegados, as agitagGes operdrias, a concentracSo da pobreza sustentavam a construgao de uma imagem da cidade como o local das multidées ameacadoras, capazes de esconder o crime, o vicio, a imoralidade, a doenga. O esforco “civilizador” acentuou-se com a proclamagdo da Repiiblica, como forma de enfrentamento das novas condi¢des que a cidade oferecia: multiplicaram-se as iniciativas, as especializacGes e as instituigdes destinadas a superar as “mazelas do progresso” através da implantagao e do 3octave Mirbeau, “G4 et 18", Le Journal, 12-05-1895. Apud Jacques Cassar, op. cit, p. 35. 4casta do asilo, de 1917. CE. Jacques Cassar, op. cit., p. 272, SCf. Maria Clementina Pereira Cunha, O espetho do mundo. Juquery, a histéria de um asilo, ‘Sto Paulo, Paz e Terra, 1986, pp. 151-152. Ao longo deste antigo, sero utilizados casos clinicos jf mencionados naquela obre, como outros que nfo figuram no livro citado, Os segundos serio indicados pelos dados do prontuirio existente no Arquivo do Hospital do Juquery; quanto aos primeiros, serio referides de acordo com sua citagae no livro publicado, 123 refinamento dos mecanismos de controle social. A forma por exceléncia através da qual se buscava garantir um crescimento ordenado, gerando disciplinas capazes de aproximar a°cidade da imagem de um imenso aglomerado humano laborioso e pacificado, foi certamente a difusio ¢ intervengdo dos saberes cRancelados como “ciéncia”: mudaram-se concepgdes € praticas de satide, modificou-se a nogdo e a abrangéncia da criminalidade e do sistema penal, criaram-se instimicOes de “corregao” e de “assisténcia”, enfatizaram-se e redefiniram-se as instituig6es educacionais, num amplo processo de disciplinarizacao. Os diferentes “desvios” eram crescentemente separados e classificados — e para cada um deles desenvolven-se uma forma propria de enfrentamento, respaldads nos saberes e na crenga na ciéncia como com o caso de Eunice e das tantas outras mulheres internadas neste periodo em Sao Paulo? Sem diivida, o Juquery representou uma das iniciativas mais importantes ~ ¢ também uma das primeiras — nesta direg4o. Ele veio substituir o antigo Hospicio de Sao Paulo, de pequena escala ¢ diregdo leiga, onde apenas os loucos de maior visibilidade (i.e, os aceitos como tal pela senso comum) eram encerrados. O Juquery significou a criagdo tanto de um “asilamento cientifico” quanto de um campo de serie no interior Ob aalte wicds ao aieatig: Sirs cape So-amelior a escala do internamento Assim, dificilmente Eunice teria sido internada como louca antes que uma instituigéo como o Juquery houvesse sido implantada e que seus diferentes significados pudessem ter sido aceitos socialmente (o que nao significa que ela n&o poderia ter sido submetida a alguma outra forma de punic&o...). Assim como para Camille Claudel, ¢ guardadas as distancias, podemos ter af um outro caso exemplar de loucura feminina, embora Eunice no nos tenha legado qualquer obra que tome possivel cham4-la, como Mirbeau, de uma “femme de génie”. De qualquer forma, sua histdéria tem muitos pontos de semelhanga com a de Camille, inclusive 0 rétulo que a classifica no interior da nosografia psiquidtrica; loucura maniaco-depressiva. O caso é bem simples — sem personagens célebres, sem discussdes estéticas, sem qualquer brilho que permita resgaté-la do anonimato a que ficou implacavelmente reduzida, Se; seu SCf, Maria Clementina Pereira Cunha, op. cit. No cabe aqui desenvolver em detalhes este Processo, que esté tratado sobretudo no primeiro capitulo da obra citada. 124 estruturada, havia revelado uma precoce e estranha vivacidade intelectual. “Muito inteligente”, destacara-se na Escola Normal onde estudou em Sao Paulo, e os constantes elogios de professores ¢ colegas a teriam tomado (afirma o psiquiatra) “orgulhosa”, Talvez, num certo sentido, com algum fundamento, pois apenas trés anos apds sua formatura ela jd dirigia um grupo escolar piiblico cm Santos, para onde se mudara, passando a viver s6¢ por sua propria conta ¢ onde, segundo o alienista responsdvel pelo diagnéstico, “sempre se distinguiu” entre seus colegas ¢ companheiros de wabalho. A partir de ent3o, Eunice comegou a multiplicar suas atividades, “trabalhando demais”. O alienista anota que, desde este periodo, ela havia comegado a ter estranhos comportamentos: escrever livros escolares, fundar escolas noturnas para alfabetizaco de adultos, comprar “livros ¢ livros para ler...” Pior que isto, comegava a revelar-se “completamente independente”, no admitindo a intervengo de pais ou irmao em suas escolhas pessoais. O alienista nao deixa, é claro, de agregar outros elementos na construgdo de seu. diagnéstico: tal “hiperexcitagAo intelectual” € expressamente relacionada com © fato de que, aos 30 anos, Eunice permanccia solteira, tendo rompido anteriormente 2 ou 3 “noivados” apesar dos conselhos paternos, O desfecho da hist6ria foi rotineiro. Apés cinco meses de internamento, praticas terapéuticas e disciplina asilar, Eunice finalmente cedeu, aceitando voltar & casa paterna para viver o papel socialmente destinado a uma mulher com 0 seu perfil. Triste papel, o de uma “solteirona” amarga, ressentida, dependente e frdgil, ao qual ela parece ter-se adaptado de alguma forma, j4 que no h4 qualquer anotag4o de retorno em seu prontudrio. O que pode haver em comum entre as trajetérias de uma brilhante artista que conviveu com 0 “grand-monde” intelectual e artistico de Paris ¢ um obscura professora prim4ria paulistana — além da dor, da “loucura” e da proximidade das datas de intcrnamento? A despeito das diferengas entre as duas personagens, 'sio os mesmos os critérios a partir dos quais os psiquiatras — tanto quanto os demais agentes envolvidos nos dois episédios — Iéem os “sintomas” de loucura nestas duas mulheres: a independéncia em ‘suas escolhas pessoais, 0 excesso de trabalho ou a dedicagSo imoderada as suas Carreiras profissionais, postas a frente das “inclinagGes naturais” das mulheres, a “hiperexcitago intelectual”, o “orgulho”, o celibato. A excegao do tiltimo elemento — que nao consta de prontudrios masculinos como “sintoma”, a ndo ser como uma espécie de “prova circunstancial” para homossexuais -, todos os outros seriam antes tomados como qualidades positivas (ou pelo menos “circunstancias atenuantes”) se identificados em um paciente do sexo masculino. Basta passar os olhos pelos prontudrios masculinos do Juquery para perceber que seriam precisamente a auséncia destes atributos, ou o seu 125 inverso — a dependéncia, a falta de disposigao ou aptidio para o trabalho, a excessiva modéstia, a incapacidade intelectual — os argumentos arrolados pelos alienistas do periodo para delinear o perfil “patolégico” ¢ justificar 0 internamento da maioria dos homens levados ao hospicio. Parametros diferentes orientam a construcéo da “loucura” — e, portanto, da “normalidade” — para cada um dos sexos, remetidos a um desenho idealizado dos papéis sexuais ¢ dos diferentes atributos de género. Assim, cabia ao homem “normal” a tarefa de provedor da familia, de trabalhador dedicado e disciplinado voltado para o sustento da mulher ¢ a educagio dos filhos, tanto quanto © “exemplo” de uma vida morigerada ¢ livre dos vicios e dos “excessos”. A mulher, restavam as tarefas estratégicas da reprodugao ¢ da conservago da familia do lar, de “ser-para-os-outros” conforme exigiriam sua pripria determinaco bioldgica e as inclinagdes naturais do seu espirito. Evidentemente, uma concepgao subordinada da natureza feminina esti implicita nesta definigdo de papéis sexuais e sociais em que se igualam todas as mulheres. Em qualquer situagao social (e também na escala do internamento) elas serao sempre inferiorizadas quando confrontadas aos homens com os quais convivem. Alguns exemplos podem ilustrar esta afirmagéo que talvez, por sua obviedade, dispense maior esforgo ic i considerado pelos apologistas da ileizo” ¢ fundador do ‘asilo cientifico” paulista, o Juquery, observ: “... das observagdes que temos sob os olhos, um fato se destaca imediatamente: 0 niimero de dementes do sexo feminino € superior aquele do sexo masculino. £ 0 contririo do que se observa entre os brancos. Nio hé nada de estranho nisto. A mulher branca & menos exposta que 0 homem as contingéncias da vida; sua existéncia € menos atormentada que do homem em nosso meio social. Isto nko acontece para a mulher negra; esta se expe nfo somente aos trabalhos como aos desvios de conduta © as extravagincias de toda espécie. O alcoolismo, por exemplo, € mais freqiiente ‘entre as negras que entre os negros (ao menos nas minhas 285 observagiex); entre os brancos, 40 contrério, este iitimo € mais freqiente entre os homens”®. Em outras palavras, mesmo entre os setores sociais considerados mais “primitivos”, brutos, inferiores na escala social ¢ na escala da “civilizagaio”, as mulheres revelam-se menos aptas que os homens a enfrentar as “contin- géncias da vida” — e portanto enlouquecem mais quando submetidas ao tipo TPranca Basaglia Ongaro, “Mulheres e loucura” in Gradiva, Rio, nov-dez. de 1983, p. 14, Sanco da Rocha, “Contribuitions a l'étude de ta folic dans la race noire” in Annales medico-psychologiques, série, tomo XIV, ano 69, Paris, 1911, p. 375. 126 Episédios asilares reforgam a hipétese de que estas concepgdes nado podem ser reduzidas a um mero discurso cientffico, revelando o quanto a nogdo desta diferenga natural e basica entre os sexos est4 arraigada nas praticas sociais. Maria, uma imigrante de 37 anos, teve a desagradavel experiéncia de permanecer durante pouco mais de dez dias no Juquery9. Eis as anotagdes do psiquiatra em seu prontudrio: Alcoolista. Veio da Ruissia como colona para o Brasil em busca de bem-estar ¢ fortuna. Nos primeisos tempos tudo Ihe correu bem. De uns tempos a esta parte, seu marido que usava de bebidas alcodlicas passou a abusal-as € naturalmente trabalhava pouco. O seu ganho era insuficiente para as necessidades do lar. A paciente desgostosa passou a imité- Aleool suas mégoas. Os efeitos maléficos do sbuso nfo se fizeram esperar e determinaram sua reclusio na cadeia de Sorocaba. De ld, foi removida para ccd, A longa permanéncia na cadcia foi bastante para eliminar a toxina © hoje esté completamente boa (...)” Aparentemente, um caso corriqueiro de alcoolismo em um casal de imigrantes no interior do Estado. O curioso, no entanto, é que o marido de Maria nunca foi internado — ¢ € provavel que tenha passado varias noites atrds das grades da mesma cadeia de onde ela foi enviada para o hospicio. Possivelmente seu destino teria sido diferente, caso se tratasse de um dos bébados contumazes da capital do Estado, que ocupavam muitos leitos dos pavilhdes masculinos do Juquery. Nas cidades interioranas, no entanto, a tolerncia era maior para este tipo de episédio, ou pelo menos pode-se sugerir tal hipétese tendo em vista a quase total auséncia deste tipo de interno no Juquery do periodo. Mas o alcoolismo de Maria pareceu intolerdvel para a policia de Sorocaba indicando que, no caso das mulheres, os limites entre o permitido (ou tolerado) ¢ o interdito tinham margens bem mais estreitas, mesmo para mulheres das classes populares, trabalhadores “tudes” das lavouras no interior do Estado. No caso de mulheres de extratos sociais mais elevados, os prontuérios do hospicio revelam o mesmo sentido, embora de forma mais sutil. Lavinia, por exemplo, queria casar-se, finalmente, aos 27 anos, enfrentando a férrea 5Prontuario. Maria V., 37 anos, russa, branca, vitiva, indigente, procedente de Sorocaba — SP, internada em 27-08-1910. Saiu em 08-09-1910, 127 oposigaio do seu pai, que a internou no Juquery!®. Diante do psiquiatra, Lavinia acusou o pai de ser “irascivel”, “sovina” ¢ “violento” (segundo 0 alienista, ele efetivamente fora réu em crimes de linchamento ¢ assassinato), ¢ explicou coerentemente a intengao paterna de, através da internacdo, impedir 0 casamento. O pai, por sua vez, alegava que “hd mais de dez anos observara na filha uma ‘notdvel falta de juizo’” ¢ a acusava de ser “desobediente” ¢ desaforada. Confrontado com as duas versOes, 0 psiquiatra nao deixa de tomar partido: “Bxame psiquico: Apresenta-se ao exame cuidadosamente trajada, com {g2st0s trengililos, com 2 vor suave, denunciando uma educacSo bem cuidada (...) Nenhuma perturbagio se tem notado em seu estado ment “perversidades’ fa que din vio Cn .) comem por conta de um estimulo ‘delirante, nd nos tem si juilatar da veracidade ou imy de tais asse Ainda que imerso em diividas sobre a classificagdo nosografica adequada, impossibilitado de definir um diagndstico preciso, como recomendavam os canones do saber, e embora suas anotag6es no prontudrio revelem diversos indicios de diivida quanto & propria “loucura” de Lavinia, o psiquiatra optou por manté-la no Juquery indefinidamente, até que sua propria famflia viesse retir4-la, um ano ¢ meio depois, encerrando o que parece ter sido um castigo excessivamente duro para seu desafio A autoridade paterna. 10proptuério. Lavinia P.M., 27 anos, branca, solteira, pensionista. Intemads em 19-07-1925. Sain sem alta em 23-09-1926. 128 geralmente na esfera da vida privada, dominada pelas questées do corpo e da famflia, que a loucura é perseguida. E precisamente neste registro que casos como os de Eunice ou de Camille sdo traduzidos pelo saber psiquidtrio: mulheres que se furtaram ao seu papel “natural”, que insistiram em viver ‘suas escothas, que nao se conformaram ao papel que lhes era destinado, Nao € & toa, portanto, que o celibato seja identificado como um “sintoma” ou, por vezes, como a “origem” de um mal maior e quase sempre incurdvel: ele, &s vezes, leva as mulheres A loucura, mas sempre produz infelicidade frustragao. Para as mulheres, se h4 um espaco social menor a ser ocupado, ha também menores oportunidades de transgress&o — o que permite identificar as transgressoras como casos eminentemente patolégicos. H4 igualmente uma maior rigidez das fronteiras entre 0 permitido ¢ 0 interdito e, nestes casos, 0 comportamento auténomo e independente de Eunices, Camilles, Lavinias e tantas outras aparece como muito mais perverso: no apenas 0 universo do anti-social, como para a maioria dos homens internados, mas também a esfera perigosa e ameagadora do antinatural. Do ponto de vista dos padrées construidos pelo saber psiquidtrico, em suas tentativas de generalizagao e tcorizagdo sobre o “normal” e 0 “patolégico”, a quebra do modelo normalizado de comportamento feminino significard sempre alguma forma de recusa ou resisténcia ao papel “natural” de mie-e-esposa, Estratégia de reforco da familia, a psiquiatria conta com sua cumplicidade: “erigidas em instancia juridica, gozando das prerrogativas de um tribunal” a quem cabe julgar as condutas, efetuando a divisdo entre raziio e loucura ¢ transformando-se num dos critérios essenciais da Razdo triunfante!, sio elas que pedem e obtém, com uma facilidade que hoje pode parecer espantosa, 0 internamento de mulheres desviantes. Estas iltimas, alids, freqiientemente constituem, na escala do internamento, os maiores contingentes — dado que pode ser parcialmente explicado pela maior facilidade das familias em livrar-se de seus fracassos afetivos do que em abrir m4o do responsdvel pela sua manutencio financeira!?. H pouca hesitagao para a internacao de mulheres, decidida por seus maridos, pais, immaos & menor “suspeita” ou desconforto causado por seu comportamento; os homens, ao contrario, em geral precisavam tornar-se muito incémodos, “reincidir”, adquirir uma visibilidade incontest4vel em sua loucura antes que as familias decidissem envid-los ao hospicio. Isto talyéz explique uma outra caracteristica da populagao asilar: € bem mais dificil encontrar nos pavilhdes masculinos casos equivalentes aos de Eunice ou Lavinia. Em sua maioria, \Michae! Foucault, Histéria da sexualidade f. A vontade de saber, Rio, Graal, 1977, p. 90. lef, p.ex., Elaine Showalter, “Victorian Women and Insanity” in A. Scull (org.), Madhouses, mad-doctors and madmen. The social history of psichiatry in the victorian era, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1981, pp. 315-317 e passim. 129 os intemos deliram, sdo incoerentes, agressivos, enfim, deixam poucas diividas sobre seu estado psiquico, embora suscitem muitas quest6es sobre suas histérias pessoais. Mas nos pavilhdes femininos, os casos de uma espécie invisivel de Joucura embutida em comportamentos morais sio bastante mais freqiientes ¢ evidentes, Alids, € sobretudo para este tipo de Paciente — aquele de uma loucura indcfinivel, imperceptivel para os leigos ¢ portanto mais “ameagadora” ~ que o hospicio “cientifico” € criado e implantado enquanto estratégia de controle social!3. A naturalizacao do papel socialmente atribuido as mulheres levou a uma definigao da condig&o feminina calcada sobretudo nas determinagdes bioldgicas de seu sexo — ¢ é precisamente para este campo que a medicina e 0 alienismo, em suas origens, voltam suas atengSes. Bem antes de Freud, a loucura das mulheres foi remetida diretamente a esfera da sexualidade, € era nas particularidades do corpo feminino que se ia buscar sua etiologia. Neste sentido, o saber alienista retomou a antiga representagiio do corpo feminino como um estranho ser ciclico, de fluxos circulares de um sangue menstrual impuro e denso de humores perigosos, das “revolugdes” biolégicas de um corpo inquietante desde a adolescéncia e depois em cada parto, nos Puerpérios, nos alcitamentos ¢ no climatério que, uma vez superado, indica- va enfim sua possibilidade final de pacificagdo - ao mesmo tempo que anunciava a morte. O alienismo, no final do século das luzes ¢, pelo menos, ao longo do século XIX, projetou a partir desta imagem do corpo feminino a visio inguietante ¢ turbulenta do seu espitito: nervosa, ciclica, excitdvel, presa facil das paix6es e desvarios, de poucos pendores intelec- tuais, de sensibilidades a flor da pele e sujeita a todo tipo de perturbagdo da Tazilo que, cm Ultima instancia, decorriam de sua propria “instabilidade” Nas origens do saber psiquidtrico marcadas pelo “otimismo terapéutico” de Pinel e Tuke, uma tinica exceg4o era admitida sem rebugos: a incurabi- lidade de mulheres imorais ou onanistas!*, Algumas priticas médicas do periodo ilustram bem a relagdo direta e imediata que se estabelecia entre 0 corpo feminino ¢ a loucura: a injegdio de 4gua gelada no Anus, a introdugdo de gelo na vagina, a extirpacao do clitoris ou dos 6rgaos sexuais internos apa- Tecem nos relatos das técnicas de cura do alienismo europeu do século pas- sado!, indicando a importancia estratégica do controle da sexualidade feminina. 13iista idéia est desenvolvida por mim em O espetho do mundo, particularmente nos sapiinlos Ie IL 14Cr, Robeno Castel, A ordem psig 154, Mer, Elaine Showalter, op.cit., pp. 327-329 e passim. ica: a idade de ouro do alienismo, Rio, Graal, 1978, 130 O paulatino abandono das técnicas violentas ou mutiladoras nas primeiras décadas deste século nao significou uma transformacdo fundamental nas formas de percep¢So da loucura feminina. Substituidas pelas tecnologias do “tratamento moral” ou, mais tarde, pelas técnicas derivadas do organicismo, mudadas as formas e designacdes diagnésticas, a mesma ‘imagem da normalidade feminina relacionada A scxualidade manteve-se como ponto de referéncia nas representagdes a saber psiquidtrico. No eutanto, io aparecer redimensionada para além do registro estrito da culpa e do pecado, para desenhar um modelo de normalidade sujeito ao estatuto de satide/doenga. Seu desejo estaria agora voltado para as fungdes ¢ necessidades naturais da procriagao e, neste limite, comportaria 0 prazer. Mas um prazer aprisionado ao leito conjugal na projegao do conceito de felicidade familiar, que j4 estava presente em Rousseau e nos ideais do iluminismo. Definida como um ser-para-os-outros, ammulher s6 faz sentido ¢ s6 pode se realizar ¢ se manter sadia no interior de uma relacio amorosa, objeto do amor sexual do marido ¢ do amor filial da prole, aos quais ela tem o pendor e a obrigacdo de retribuir com a gencrosidade, a dogura ¢ a resignaco que 2 ee eat Neste sentido, as tantas mulheres que tiveram no hospicio 0 ponto final de suas tentativas de autonomia e independéncia podem encontrar af as raz6es de sua punigao radical. Resta lembrar, no entanto, um elemento importante, até aqui negligenciado na argumentag4o desenvolvida: Camille, Eunice, Lavinia, internadas por seus parentes, tinham também em comum uma origem social semelhante. Filhas de familias estruturadas segundo os padrées da higiene ¢ da moral do final do século XIX ¢ inicio do XX, transgrediram frontalmente as normas que regiam a condig&o feminina, segundo os parametros aceitos e defendidos em seu meio social. Mas certamertte elas néo cobrem toda a gama de possibilidades e diferengas 131 socialmente colocadas para as mulheres no mesmo periodo. Até que ponto pode-se generalizar a partir deste tipo de exemplo, ou dos paradigmas gerais criados no interior do discurso médico, psiquidtrico e de outros saberes? Esta é uma quest4o que permanece de pé, intocada por boa parte da literatura especializada sobre 0 tema. Matizar ¢ relativizar social e historicamente 0 tema da opressao feminina, indicar hipdteses, ainda que iniciais, sobre as formas através das quais estas representagSes operam historicamente no interior de uma sociedade marcada pela desigualdade social, surge como 0 principal desafio a ser enfrentado pelas andlises relativas & histéria social das mi 7 De inicio, nfo se pode esquecer que as figuracées relativas a essa mulher idealizada segundo os padrées da medicina alienista ¢ da ordem social sdo imagens datadas e dirigidas a um piiblico particular. Datadas, Soot 6. Nao é fortuito que temas como o da valorizagao da maternidade e do alcitamento matemo, dirigidos essencialmente as mulheres da aristocracia e da burguesia européias, ganhem tanta énfase no interior do discurso médico politico na passagem do século XVIII para 0 XIX, e muito menos que elas venham marcadas tio fortemente pela visio, ao mesmo tempo naturalizada e socialmente valorizada, do género feminino!7. Assim, a afirmagao positiva da condi¢ao feminina vem sempre associada, na fala do saber, a metéforas da natureza ~ como a da terra, das drvores que dao fruto e sombra ou, por vezes, a divertidas analogias com o reino animal: “Quando poe ovo, a galinha nao tem a pretensdo de ser me por t4o pouco (...)” — afirmava no comeco deste século um médico francés, “O mérito da galinha come¢a quando ela choca com consciénci Erivanio-se de sua querida liberdade”!8 16CE. Jacques Donzelot, A policia das familias, Rio, Graal, 1980... 17Cf. Elizabeth Badinter, Um amor conquistado. 0 mito do amor materno, Rio, Nova Fronteira, 1985, 183, Gérard, Le livre des méres, 2*ed., 1904 apud B. Badinter, op. cit, p. 242. 132 No entanto, este mérito galindceo compreendido na nobre tarefa de dedicar-se integralmente aos filhos ¢ a famflia nao seria compativel com as necessidades cotidianas e concretas da grande maioria das mulheres das classes trabalhadoras, impossibilitadas de permanecer no ninho por longos perfodos ou de se dedicar completamente a sua sagrada missfo. Assim, este enobrecimento do papel e da natureza femininos, enunciado na fala da medicina e da politica, como dos demais saberes concernidos pelo tema, além de ser datado, pode revelar um sentido histérico mais preciso: ele se volta em primeiro lugar para o piblico especifico capaz de aceit4-lo, difundi- lo ¢ lev4-lo & pratica. No 6, pelo menos inicialmente, um enunciado dirigido a proletarias, a mulheres da rua, a ex-escravas ou a Criadas, senao uma fala da e para as classes dominantes das cidades, e destinada a diferencia- las das chusmas imorais ¢ anti-higiénicas que infestavam as fabricas, as ruas, as habitagdes coletivas, longe do modelo de privacidade e bem-viver que a “boa sociedade” criava para si. Neste sentido, seria sobretudo como um fator de distingao social, de desigualdade — embora também de exemplo — que ele teria sido lido e praticado no interior das familias burguesas. Dai a verdadeira ferocidade com que as “boas familias” tratavam suas mulheres desviantes, ¢ a facilidade com que estas eram enviadas ao hospicio, freqiientemente como uma forma disfargada de puni-las ou de escondé-las dos olhos curiosos da vizinhanga: elas representavam uma espécie de fracasso do modelo idealizado da familia, nédoas que perigosamente atentavam contra a pureza da satide moralizada. Além disso, a adogio do padrao diferenciado de comportamento pelas familias “de bem”, contribuiria para estabelecer parametros de superioridade e, simultaneamente, reforgar os elementos de suspeigao contra as classes populares. Suspeigdo que, de resto, estava explicitada nos préprios pressupostos do saber psiquidirico do periodo. Desde meados do séculos XIX, a teoria da degenerescéncia de Morel era o referencial que balizava toda a elaboragio tedrica e as formas de intervengo da medicina mental. Em esséncia, tratava- se de uma concepgao da loucura como uma manifestagao mérbida transmitida hereditariamente ¢ originada por determinados habitos cotidianos pertencentes tanto 4 esfera da moralidade (“promiscuidade sexual” ou uso do dlcool, Pp. ex.) quanto as condigées de vida. Propensas & degeneragdo por suas dificeis condigSes de existéncia, as classes populares transmitiriam estas marcas 4 sua descendéncia com muito mais intensidade que as parcelas mais educadas e higiénicas da sociedade. De um lado, reforgava-se “cientificamente” a suspeigdo contra as “classes inferiores”; de outro lado, 133 fundamentava-se a necessidade de diferenciago entre as parcelas sas ¢ mérbidas da sociedade, como garantia de sua prépria preservagiio!, Através da teoria da degeneragdo, a amplitude alcangada pelo saber psiquidtrico enquanto instrumento de intervengao social vinha associada A defesa da familia — de resto, também enfatizada na fala dos politicos, na retérica do Estado e em diversas outras que, fundamentadas nos mesmos pressupostos, sé constituem ao longo do século XIX, Este viés teérico, reforgado mais tarde pelas teorias da eugenia, foi 0 eixo essencial através do qual se montaram as chamadas estratégias ¢ dispositivos disciplinares. Ao colocar sobre a hereditariedade toda a carga da desorganizaco social e da ameaca a ordem, do perigo que rondava toda a sociedade, o saber psiquidtrico estava claramente investindo sobre a questo da mulher ¢ do controle de sua sexualidade através do reforgo ao padrao familiar higiénico, entendido como uma forma de profilaxia social. Bebida diretamente em suas fontes originais, a teoria da degenerescéncia encontrou, no contexto brasileiro, cores ainda mais vivas, a indicarem a urgéncia imperiosa de moralizar os cidadaos para evitar que a degeneracZ0 pudesse contaminar todo 0 tecido social: argumentava-se com os fatores “agravantes” da tendéncia intrinseca das classes populares & degenerescéncia, com fatores como a “exuberncia do clima” que exacerbaria 0 erotismo ¢ a promiscuidade”°, com a “natural” inclinagao dos negros A pervers&io ¢ ao exercicio destegrado da sexualidade”!, bem como com os desequilfbrios na distribuigao dos sexos evidenciada na predominancia de populagao masculina entre Os escravos ¢, sobretudo, entre os imigrantes. O contexto histérico em que a teoria da degeneracdo penetrou mais profundamente no meio cientifico brasileiro é extremamente significativo. O final da escravidao, o crescimento acelerado das cidades alimentado por levas de imigrantes potencialmente contaminados pela degeneragao (entre os quais a psiquiatria nao deixa de incluir explicitamente os anarquistas), o fim da monarquia ¢ a nova configurag4o politica do regime republicano correspondem a um momento importante de redefinicdo institucional ¢ social. Segundo a 6tica das classes dominantes, tratava-se de guindar 0 pais 4 modernidade ¢ A civilizagao, enfrentando as quest6es sociais suscitadas pela urbanizagao, pelo.crescimento 19Sobre a teoria da degencrescéncia ver Robert Castel, op. cil, especialmente pp. 259-260, © Gareth Stedman-Jones, “Le Londres des réprouvés: de la démoralisation a Ia dégénérescence” in “L'Haleine des Faubourgs". Recherches, n® 29, Paris, Cerfi, dez. 1977. arta Esteves, Meninas perdidas: os populares e 0 cotidiano do amor no Rio de Janeiro da “belle-époque",(tese de mestrado), Niter6i, ICHF-UFF, 1987, mimeo., pp. 49-50. 2Roben W. Slenes, “Lares negros, olhates brancos: histérias da familia escrava no século XIX", in Revisia Brasileira de Hisidria, n® 16, Sio Paulo, ANPUH/Marco Zero, mar/ago 1988, pp. 189-203. 134 industrial e pela necessidade de incorporag4o de grandes massas despossuidas cidadania e ao mercado de trabalho. A questo do controle social aparecia, nestes termos, como um aspecto central na reordena¢ao das relagdes sociais € politicas do periodo republicano, Os temas da mulher ¢ da familia aparecerao ent4o como pontos cruciais de intervengao, Se iniciativas destinadas a “metropolizar” as classes dominantes locais podem ser identificadas bem mais cedo — sobretudo no Rio de Janeiro, sede da Corte — através da cumplicidade entre as maes de familia e os médicos®?, com a implantagao da Republica o tema vai assumir quase que foros de prioridade incorporada aos objetivos do Estado. Nao cabe aqui desenvolver mais demoradamente este argumento. Basta, por ora, apontar pequenos indicios nesta dire¢o, dos quais a produc&o historiografica mais recente sobre © periodo est4 repleta: pode-se lembrar a importancia da quest&o da familia ¢ sua defesa nas discussdes da primeira constituinte republicana, ou iniciativas como a criagdo do Instituto da Protegao ¢ Assisténcia & Infancia do Brasil, em 1889, que figuram entre as primeiras do novo regime. Pode-se mencionar a proliferagao, neste mesmo periodo, de institutos disciplinares, de iniciativas de educagdo e satide piiblicas, que mantiveram 6 mesmo objetivo de preservac&o e reforgo a familia higiénica que presidiu a reforma da assisténcia aos alienados, com sua ampliagdo da nogSo de loucura calcada nos pressupostos da teoria da degenerescéncia. O objetivo de defender e preservar a familia passou a estar presente em preambulos de leis, em discursos do poder, na fala da ciéncia ¢ dos juristas, sintetizado & perfeicio na célebre frase de Rui Barbosa (que alids, por muitas € sucessivas décadas, fez parte dos compéndios escolares): “a Patria é a familia amplificada”. Para a garantia do bom funcionamento da nagao, era necessirio preservar ¢ defender a familia — base de todo 0 edificio de “ordem e Progresso” a ser construido pela nova ordem politica. Nesta medida, naquilo que dizia respeito especificamente & mulher e ao seu papel central na preservacao da familia, o regime republicano tratou de legislar: entre as modificagdes inscritas no Cédigo Penal de 1890, ressalta a introdugao dos “crimes contra a familia”, como o lenocinio, o atentado ao pudor e a corrupgao de menores, que antes figuravam nos capitulos relativos a injiiria ou ao estupro?3, Ao legislar sobre os “crimes contra a familia”, os juristas republicanos nao deixavam de, sintomaticamente, impor as classes populares © seu préprio padrio de mulher “honesta”: sO puderiam figurar como vitimas, ¢ portanto serem legalmente ressarcidas, aquelas mulheres capazes de se caracterizar enquanto objctos de “sedugao”, isto é, de engano ou frande 22cf, Jurandir Freire Costa, Ordem médica ¢ norma familiar, 2 ed., Rio, Graal, 1983. Mana Esteves, op. cit, p. 30 ¢ ss. 135 por parte do sedutor, nos casos de defloramento. Segundo o interessante trabalho de Marta Esteves, j4 citado anteriormente, o aparelho judicidrio, assim como a policia, foi reformado neste perfodo, nao apenas para punir os infratores ou reprimir os desordeiros, mas para se tornar um importante veiculo de difusdo das normas ¢ preceitos da moral dominante, passando “imagens positivas da ordem” para as classes populares”4, Nesta tica, cabe- tia 4s mulheres queixosas de crimes sexuais provarem, diante do juiz, sua “honestidade”, Quais as condigées a serem demonstradas por estas mulheres? Para além da perda da virgindade (confirmada por sinais externos como dor, sangue e dimensées da vagina, que faziam parte do arsenal de “provas” da medicina legal) e do engodo por parte do sedutor, havia ainda que comprovar caracteristicas como a “ingenuidade”, a prdtica da constante e atenta vigilan- cia matema sobre a donzela-vitima e os antecedentes familiares “recomen- daveis” (indicio de tratar-se de uma mulher ndo contaminada pela degenera- Ao). A suspeicio marcava os veredictos dos juizes em relacio as habitagdes coletivas onde elas geralmente moravam, ao hdbito de andarem sozinhas pe- las ruas, sobretudo em determinados hordrias, e partes da cidade, ao costume de freqiientarem gaficiras, cafés, bailes, ou de se fantasiarem no carnaval’, Para além da suspei¢ao generalizada sobre prdticas da cultura popular revelada na estigmatizacao dos bailes, gafieiras e do camaval, havia ainda a imposi¢ao de um certo padrao de moralidade pela exigéncia de “garantias” que 86 eram possiveis para as mulheres higiénicas das classes dominantes. Identifica-se af a imposig3o de um preceito que pode estar fielmente retratado na fala de um promotor piiblico em deniincia de crime de defloramento: “Os crimes contra a honra da mulher tém por fundamento a violagao do direito individual da fung4o sexual que se torna interesse geral, quando atenta contra a trangiiilidade e a conservagao da familia, base da ordem social”6, Para operar com este objetivo de defesa da familia e da ordem social, a pratica juridica trabalhou com dois esterestipos opostos e irreconcilidveis: a mulher “honesta”, mae de familia, de um lado, ¢ a prostituta degenerada, de outro. Mas, em face destas tentativas “civilizatérias", Marta Esteves revela uma faceta importante: as mulheres vitimas de crimes sexuais procuravam adequar-se ao estereétipo de “honesta” diante do juiz, mas a andlise do cotidiano, que emerge dos processos através dos depoimentos de partes e testemunhas, denuncia uma outra histéria moral, contraposta aos padrées definidos a partir “de cima”. 24tdem, p. 46. 5para os homens indiciados, ha critérios de outro tipo, interpretados como “circunstincias atenuantes": 0 aval do patrio ou outras testemunhas respeitiveis, quanto a seu comportamento como “bom trabathador”, p. ex. Cf. Marta Esteves, op. cit, p.. 59-60. 26 pud Marta Esteves, op. cit., p. 196. 136 Se o discurso juridico trabalhava com a oposigao — aliés, amplamente- difundida socialmente — da “honesta” e da “prostituta”, era possivelmente porque, accitando os parametros de diferenciacdo social implicitos no préprio saber médico, reconhecia que apenas uma parcela das mulheres dispunha de um “capital sexual” a ser preservado e defendido. De resto, esta representaciio polarizada da condi¢do feminina entre a santidade ¢ a imoralidade nao poderia ter sido imposta sem 0 concurso ou a adesdo entusidstica de uma parcela das préprias mulheres. Esta adesio foi possibilitada por uma fala médica, coroada de cientificidade, capaz de ao mesmo tempo naturalizar a opressao e a inferioridade, ¢ valorizar a “‘natureza” c o papel social a ser desempenhado por estas mulheres na gestao da ‘celula mater’ da sociedade, enobrecendo uma condicao de subordinagdo ¢ dependéncia. No entanto, na andlise mais “fina” do saber psiquidtrico, as variagdes nos comportamentos ¢ priticas sociais de mulheres de classes diferentes cram expressamente identificadas, para reconhecer a necessidade de utilizar parametros especificos para a avaliacdo da “loucura” manifestada por diferentes mulheres, da mesma forma como reconhecia a diferenciagio no tratamento entre mulheres ¢ homens. Segundo Franco da Rocha, “6 preciso notar a restrig&o do meio social, porque um ato que é loucura no Brasil pode nao o ser na China (...) Nao € sem fundamento esta observacao. O exemplo € fécil: se um homem de espirito cultivado atribuir qualquer insucesso de sua vida & feitigaria © procurar conjurd-la por meio de rezas, chamaré sobre si a suspeita de loucura; se 0 fato se der com um individu ristico, ignorante, ssa suspeita seré fitil, porque no raciocinio de tal individuo essas idéias nada tém de extraordinério. Nas diversas camadas de que se compSe uma sociedade civilizada, se acham representadas as tres fases da evolucao mental, desde o fetichismo até ao estado cientifico, sendo os representantes da fase positiva um ‘minimum’ em comparagio com of ontros”™2?, Recorrendo aos principios do positivismo — que, em grande medida, vam igualmente as concepg6es politicas do perfodo no Brasil, atribuindo a este “minimum” as tarefas civilizatorias — a psiquiatria tratou de teorizar sobre as diferengas de classe e apontar a necessdria diferenciagdo de critérios para avaliagio dos comportamentos considerados mérbidos nos diferentes segmentos que compunham o tecido social. Mas nao sé diferengas entre individuos “cultivados” ou “risticos” funcionam como critérios de avaliagdo da medicina mental. Critérios raciais e sexuais eram também explicitamente invocados como signos de diferenga a serem levados em conta: 27 Franco da Rocha, Esboco de psiquiatria forense, Sio Paulo, Typographia Laemmen, 1904, p3. 137 “Todos nés estamos tanto mais facilmente sujeitos ao erro, quanto mais se nega o objeto das idéias 4 experiéncia que constitui a base do conhecimento cientifico. As ragas inferiores, os povos no civilizados —¢ as criangad mais que os homens civilizados ~ sio exemplos que vém a propésito, para comparaco. As mulheres, mesmo entre 08 povos civilizados, slo ainda mais sujeitas a convicgdes erréneas do que os homens™*. As diferencas sociais, raciais e sexuais podem ser detectadas também no. interior da relacdo asilar, que, apenas num sentido limitado, nivela pobres e ricos, homens e mulheres, negros e brancos, na mesma condigao de sujci¢ao. As diferengas de percepgao com relagdo as mulheres internadas no Juquery aparecem claramente remetidas as suas origens sociais e tipos raciais, que Ihes definem diferentes expectativas de cumprimento de papéis sociais. Havia certamente um cuidado muito maior, por parte dos psiquiatras e demais agentes terapéuticos, com o tratamento dispensado a mulheres de “boas familias” internadas no hospicio. Elas nao tinham seus cabelos raspados, nao eram obrigadas ao trabalho, podiam dispor de alojamentos individuais, freqiientemente escapavam até de procedimentos habituais de identificagao como a fotografia, &s vezes inexistentes em seus prontudrios, as vezes feitas em poses estudadas ¢ aristocrdticas, bastante diferentes das fotos em “close” que serviam como elemento de identificagdo para todos os loucos??. O cuidado aparecia também na forma de preencher os prontuarios clinicos, de organizar as informagées e justificar minuciosamente o internamento daqueles “‘casos extremos” que eram as mulheres que fugiam A sua vocagio natural. Os prontuérios, nestes casos, revelam um extremo cuidado e, muitas vezes, quase um pudor do psiquiatra na forma de descrever e analisar 0 caso, resguardando as familias de toda “culpa” e de toda suspeigao. As diferengas de parametros aparecem ainda mais claramente nas rubricas nosogréficas habitualmente' utilizadas para o diagnéstico de loucas de diferentes classes sociais. As mulheres das classes populares cabiam sempre designagSes diagndésticas que as aproximavam do estado “primitivo” do meio a que pertenciam: degeneragdo inferior, idiotia (que forneceria os maiores contingentes da prostituic#o) ou fraqueza de espirito, caracterizada pela vaidade, pela inteligéncia rudimentar, pela predominancia dos instintos e desejos?°, No caso das negras, a concisio dos diagnésticos € ainda mais acentuada, bastando apontar para as suas caracteristicas raciais e agregar as Bidem, pp. 83-85, 29Maria Clementina Pereira Cunha, op. cit., p. 122. 30Franco da Rocha, Esbogo..., pp. 44-45. 138 tubricas da imbecilidade ou da degeneragao inferior>!, como se nelas a inferioridade do “espirito” estivesse inscrita em suas peles escuras, em seus narizes achatados ou em seus cabelos duros. Assinale-se que nfo h4 nestes casos qualquer referéncia a desvios de comportamento sexual como indicadores de loucura. Para as mulheres de uma origem social marcada pela respeitabilidade, sao bem diferentes as designagdes nosograficas: elas cram quase sempre classificadas nas rubricas da loucura moral ou, mais freqiientemente, da histeria, rétulo no qual sio quase invariavelmente incluidas as solteironas, as mulheres casadas portadoras do imperdodvel sintoma da “anesthesia sexual” — significativamente capaz de explicar sua “loucura” - ou de todo comportamento sexual ndo condizente com as expectativas das “boas familias”. Curiosamente, as caracterfsticas gerais com que o saber psiquidtrico descreve a histeria esto pontuadas de adjetivos que apenas potencializam algumas das caracteristicas fernininas “normais”: “ "na sensibilidade e emotividade, imaginagdo “desregrada”, incapacidade “absoluta” de reflexfo intelectual, vaidade “extrema” e assim por diante?2, como a enfatizar pela adjetivag4o que, entre as parcelas “civilizadas” da sociedade, mesmo as formas de enlouquecer se diferenciavam da rudeza ¢ primitivismo das classes populares. A questio do controle da sexualidade, para as mulheres destes segmentos, aparece ent4o como a questfio mais importante. Casos como o de Imma, beanca, com 22 anos, oriunda de uma familia estruturada de classe média®, seriam muito dificeis de encontrar entre negras ou operdrias. Segundo © psiquiatra, 0 quadro clinico de Irma podia ser classificado como “Joucura moral”: “vaidosa, independente, voluntariosa, atrevida por vezes em suas expressdes (...) procura exibir as pernas o mais que pode quando sentada, realgar 0 contomo dos quadris quarido anda (...), mostras cabais desta ‘coquetterie’ doentia que motivou sua reclusdo”. Irma defende-se argumentando, segundo 0 registro do proprio psiquiatra: “Eu nao sou louca (...), meu pai me pés aqui porque eu gosto de dangar, de ir ao cinema com os ‘pequenos”. Que mal hd nisso?” Severamente, o psiquiatra decide por sua internacdo definitiva, mesmo reconhecendo que “para além desta mostra de ‘daltonismo moral’ ndo se tem constatado nada que afete a integridade de suas faculdades”. Mas a questo do controle da sexualidade inclui tanto as “loucas morais”, como Irma, quanto as histéricas solteironas, levadas 4 loucura pela auséncia de qualquer exercicio “normal” (leia-se, as fungSes de procriacaio) da 31 Maria Clementina Pereira Cunha, op. cit., p. 124. 32Franco da Rocha, Esbogo..., p. 379. 33Maria Clementina Pereira Cunha, op. cit., pp. 152-154. 139 sexualidade, Neste amplo leque, ele inclui todas as mulheres “de familia” cujo comportamento sexual, mesmo quando velado, foge aos padrdes da sacrificada e feliz. mae e esposa. “Nestes entes degenerados, cuja fantasia vor constantemente superexcitada, também. constantemente se verifica o desenvolvimento nic sé da masturbagko, como da inversio sexual etc. Perturbada por exagero, a fungSo sexual converte as vezes em Messalinas mulheres casadas e de boas familias, Quem nao teré visto um destes fatos? As desculpas féteis com que muitas delas tentam justificar 0 mau comportamento que tiveram sio como as excusas de bébados: “Tenho sofrido muito; sinto-me aborrecida com a vida, € or isso busco este meio de ameniz4-la’, desculpas estas que revelam 0 ‘embolamento dos sentimentos morais (...) Felizmente, a porcentagem de tais fendmenos nio é grande entre nés porque, dada a elevacao do nosso meio moral ¢ a educagio das nossas familias, as hiséricas se mantém corretas na maioria dos casos"*, Curioso discurso de uma medicina miségina, em que a contradigao revelada entre a interrogagdo indicativa de que sc trata de algo comum (quem no terd visto?...) ¢ a afirmagao final de que as “nossas” histéricas costumam manter-se “corretas”, no deixa de ser indicativa da intenco de denunciar 0 perigo i inte, mas também csconjurd-lo em nome da boa imagem da familia civilizada e higiénica, que serve como parimetro de distingao de classes e de controle social. No fundo, todo o discurso ¢ a pratica psiquidtricos em torno da mulher apontam para 0 reforgo de certos papéis ¢ esteredtipos sociais garantidores da domina¢io de género e da dominacdo de classe — o que significa atribuir diferentes papéis a diferentes mulheres e exigir delas que, silenciosamente, os cumpram. Assim € que, no dia 28 de outubro de 1915, o jornal O Estado de S. Paulo noticiou a prisio de uma mulher de cerca de 20 anos, uma mulata bonita de nome Antonia, de poucas posses, e que fora capturada pela policia quando viajava de trem vestida com roupas de homem, Quase tés anos depois, vamos encontré-la no Juquery, onde um psiquiatra um tanto perplexo nos conta a sua hist6ria. Tendo sido sempre uma pessoa “normal”, Anténia entrara ainda jovem na posse de uma pequena heranga pela morte de seu pai e nico parente, ficando totalmente entregue a si mesma. “Incapaz de gerir seus bens (.,.) sua conduta comegou a manifestar singularidades”: comprou roupas masculinas e, com elas, sain a viajar pelo Estado. Ela alegava, muito Tazoavelmente, que era a melhor forma de uma mulher viajar sozinha sem ser importunada. Mas, reconhecida como mulher, foi presa e conseguiu até a discutfvel notoriedade de ser noticia de jomal. O psiquiatra ndo relata, em sua observag’o, qualquer comportamento ou sintoma indicative de uma loucura 34Franco da Rocha, Esbogo..., p. 381, 140 muito visivel, tanto que sua conclusao diagndstica formulada com bastante cuidado: “Achamos, pelo exposto, que se trata de uma degenerada fraca de espirito em que vai se instalando pouco a pouco a deméncia”5, Que alternativas seriam consideradas aceitaveis para uma mulher como Anténia? Ou gerir seus bens de forma “adequada”, arranjando um casamento que Ihe permitisse usufruir do ideal feminino de felicidade e normalidade das mulheres higiénicas, ou adaptar-se a um outro papel condizente com sua cor e condicao social. Mulata, Ant6nia poderia ter-se adequado a antiga imagem de sensualidade posta ¢ reposta nas canges populares e no imagindrio sexual brasileiro: “mulata ¢ doce de c6co / no se come. scm cancla / camarada de bom gosto / ndo pode passar sem ela”, dizia uma cantiga popular do século XTX; nas ruas, durante 0 camaval de 1903, 0 povo reafirmava que “quem inventou a mulata / foi direitinho pro céu/ fez um produto de prata / de se tirar 0 chapéu”37, ¢ os exemplos podiam multiplicar-se indefinida- mente, até os dias de hoje... Mas, ao invés de casar-se, AntOnia resolveu “yirar o mundo”. Ao invés de proceder como uma “gostosa mulata”, produto de prata para se comer com canela, objeto de deleite e desejo masculinos, Ant6nia escondeu seu corpo em Jargas roupas de homem. Nem branca nem negra, nem rica nem pobre, nem domesticada nem fonte de descjo, restaram poucos lugares sociais para Ant6nia, que terminou seus dias no Juquery, onde, com certeza, acabou por confirmar os progndsticos psiquidtricos. Diferenciando os critérios de avaliagéo dos comportamentos para mulheres de diferentes classes sociais, o hospicio, de certa forma, revela ainda, por detris dos seus procedimentos terapéuticos, a visdo triunfante da mulher higiénica que se pretende impor também as classes populares. No caso do Juquery, instituigao organizada a partir dos prinefpios mais modernos da laborterapia prescrita como a forma por exceléncia de curar a loucura, 0 regimes de trabalho indicam esta intengdo. Se as mulheres de “boas familias” nao trabalham, exceto por vontade prépria (para as classes dominantes, aparentemente, o trabalho n&o tinha qualquer valor “terapéutico”), as mulheres das classes populares estavam rescrvadas tarefas condizentes com a condigao feminina “sadia”. Nao importa que a interna seja uma operdria fabril, uma trabalhadora do campo, uma comercidria, uma vendedora ambulante, uma prostituta: o hospicio as igualaré todas nas atividades do fogao, da agulha, do bordado, para controlar seus instintos 35Maria Clementina Pereira Cunha, op. cit., p. 143. 36josé Alipio Goulart, Da Palmatéria ao Patibulo, Rio, Conquista { INL, 1972, spud Sonia ‘Maria Giacomini, Mulher e escrava, Petropolis, Vores, 1988, p. 67. 37 Cangoneta de Emesto de Souza recolhida por Edigar de Alencar, “O camaval no Rio em 1900 ¢ na década seguinte” in Brasil 1900-1910, Biblioteca Nacional, Col. Rodolfo Garcia, série A ~ textos, Rio, 1980, vol. 3. 141 perversos ¢ suas condutas desviantes, impondo-lhes pedagogicamente 0 caminho da normalidade feminina®®. Imitando um “lar” coletivo, simbolo de ordem e satide, a psiquiatria do perfodo confere & “cura” da loucura das mulheres a conotag4o imediata da domesticagao. Entretanto, se mesmo dentro de uma instituigao como o hospicio, a convivéncia entre mulheres desqualificadas pela “loucura” nao prescinde do reconhecimento da diferenca social, esta sem diivida aparecerd ainda mais claramente nos espagos “normais” de convivéncia entre mulheres de diferentes condigdes sociais. Afinal, a “imoralidade” das classes populares nao penetrava apenas nos espagos piblicos das ruas, das festas populares ou nos cortigos onde habitava a gente pobre. Ela penetrava também no “rec6ndito dos lares”, na esfera da vida privada onde a mulher higiénica convive diretamente com os criados ¢ servigais de todos os tipos. Alguns trabalhos recentes tém constatado que esta convivéncia entre mulheres abrigava conflitos em torno da prdpria representagiio normalizada da natureza ¢ da condigéo femininas. As empregadas domésticas, por exemplo, constituem setor privilegiado para a abordagem desta questfio. Sob a vigilancia implacavel das patroas, morando no interior dos lares higiénicos, elas viviam conflituosamente a diferenga de padrées de comportamento social e sexual, escondendo os indicios da sua “promiscuidade”. Em situag6es- limite, como uma gravidez indescjada, restava-lhes muitas vezes, entre as poucas alternativas disponiveis, o recurso extremo ao infanticidio para “esconder” a evidéncia de seu comportamento “promiscuo” = ¢ garantir 0 emprego...3? Tentando demonstrar “honestidade” em face ao douto discurso Juridico que delas cxigia procedimentos incompativeis com suas praticas culturais e/ou com os imperativos da vida cotidiana, as “meninas perdidas”9, queixosas de crimes de defloramento, acabavam por revelar um. universo moral bastante diverso daquele que servia de parametro para as sentengas judiciais - e, por isto mesmo, geralmente perdiam a causa... Manter relagdes sexuais antes do casamento, esbaldar-se no carnaval, circular livremente pelas ruas sem a atenta vigilancia materna, “ir ao cinema com os ‘pequenos’”, como pretendia Irma, internada no Juquery, aparecem como comportamentos habituais ¢ socialmente aceitdveis no interior destas parcelas da sociedade. 38para os homens intemados, havia o mesmo procedimento de impor uma jnica forma de trabalho: © trabalho agricola, entendido como uma espécie de antidoto contra as turbuléncias do trabalho urbano (particularmente, o fabril) ¢, portanto, do “progresso”. Assim como para as mulheres, uma espécie de “volta i natureza” era prescrita como forma terapéutica... 39CE. Raquel Soihet, “E proibido nio ser mie” in Ronaldo Vainfaz (org.), Histéria ¢ sexualidade no Brasil, Rio, Graal, 1986, pp. 191-212. 40Marta Esteves, op. cit. 142 No entanto, quem poderia afirmar que estas “meninas perdidas”, ou estas domésticas infanticidas do inicio do século XX, ndo desejassem para si ‘o mesmo padrao das classes dominantes? Quantas jovens defloradas, quando reclamavam ressarcimento a justiga, ndo o fizeram também por considerarem © casamento como um padro desejével, capaz de fazé-las ascender socialmente ou adquirirem uma respeitabilidade com que podem ter sonhado nas raras horas vagas? Pode-se afirmar, sem correr muitos riscos, que as mulheres das classes populares conheciam perfeitamente as regras do “bem- viver” feminino que thes cobravam magistrados e patroas, ¢ tentavam conviver com elas, Difundidas nao apenas através da fala médica, mas sobretudo popularizadas nas figuras lombrosianas das mulheres desviantes que aparecem nas paginas criminais dos jornais, nos folhetins avidamente lidos, nos romances do periodo*! onde aparecem também as figuras femininas idealizadas da virtude, da castidade resguardada para o casamento, das doguras da familia ¢ da maternidade, a concepeo polarizada da condiga0 feminina era certamente uma imagem de ampla circulagSo social. A imprensa operdria, embora indicativa de um padrZo moral prdprio a0 universo dos militantes, est4 repleta de exemplos em que a dentincia da exploragdéo do trabalho feminino vem acompanhada do pressuposto — certamente usado em beneficio da prépria classe operdria — de que a elas caberia estar em casa, cuidando do lar ¢ dos filhos*?, Correndo agora o risco de cometer injustigas, pode-se sugerir que 0 nfo reconhecimento deste quadro de conflitos, que inclui as relagdes entre os géneros ¢ também entre as classes, tem levado a historiografia brasileira sobre as mulheres a limites ¢ impasses: a condi¢ao feminina, tratada abstratamente, sera sempre um objeto vazio de historicidade. Tomar apenas ‘os enunciados generalizantes dos saberes sobre o papel subordinado da mulher, a inferioridade inscrita na natureza feminina etc., nao parece, nesta medida, um caminho capaz de avancar mais em direg4o a uma retomada hist6rica da “questo feminina” — embora possa ter sido util para a (nossa) propaganda feminista. Evidentemente, a investigagio sobre mulheres em situagao de internamento nfo serd suficiente para oferecer respostas, mas ainda assim 4\cf. Lis Matistany, B! gabinete del doctor Lombroso, Delincuencia y fin de siglo en Espana, Barcelona, Cuardemos Anagrams, 1973. Ver também artigo de Magali Engel, neste mesmo nimero da RBH. 42Veja-se, a propésito, o sugestivo artigo de Bric Hobsbawm, “Homem ¢ mulher: imagens de esquerda” in Mundos do trabalho, Sto Paulo, Paz ¢ Terra, 1987, pp. 123-148, que mostra ‘como, na iconografin do movimento opersrio inglés do século XIX e infcio do XX, as figuras femininas vio se wransformando: de co-participantes dos movimentos as alegorias simbélicas das “virtades mais elevadas” do liberalismo (a Verdade, a Justiga, a Liberdade), até assumirem o papel coadjuvante das “mies proletérias”, sacrificadas vitimas do capital. 143 pode-se deixar esta questo como um tema de reflexio e uma indicagie de pesquisa: se efetivamente a definicao higiénica da natureza ¢ da condigao femininas foi lida ¢ praticada como um fator de diferenciagdo social e de suspei¢ao sobre as classes populares, nao se pode escapar das perguntas a Propdsito da circulagao social destes padrOes, das formas ¢ limites da sua introjecao ¢ da sua prdtica pelas diferentes mulheres ¢ homens, E mais que Pprovavel, nestes termos, que © mesmo padriio claustrofébico da mulher burguesa tenha operado como um parfimetro de aspiracao e reivindicagao para as classes populares, assinalando um horizonte de direitos a serem conquistados. Exemplos hist6ricos significativos podem ser invocados em favor desta hip6tese. Basta lembrar a atitude dos negros do sul dos Estados Unidos que, no periodo de Reconstrugio-— adotando o “culto da domesticidade” que, no século XIX, definiu o lar como 0 espaco feminino -, tiravam suas mulheres do trabalho assalariado no campo apesar dos prejuizos financeiros que isto acarretava‘3, ou ainda as negras “aristocratas”, ridicularizadas pelos brancos do sul dos Estados Unidos, por “fazerem-se de senhoras” ou imitar 0 modo de vida doméstico dos brancos de classe média, mas que adotavam estes valores como meio de afirmagao de sua liberdade“, Distanciando-se das simplificagSes que operam com antagonismos do tipo dominagao/resisténcia, ou com o simples engendramento de priticas discursivas abstrafdas de sujeitos sociais, uma histéria social das mulheres poderia ganhar densidade se enveredasse pela trama sutil de serviddes voluntérias e pequenos assassinatos, das oposigdes explicitas ¢ secretas solidariedades, da subordinagdo ¢ insubordinagdo que se mesclam e confundem as relagdes de género ¢ as relag6es sociais. 43Cr. Bric Foner, “O significado da liberdade”, Revista Brasileira de Histéria, n° 16, pp. 9- 36. Note-se ainda que, segundo o mesmo autor (p. 19) a maioria das mulheres negras do Mississippi, em 1870, registravam como sua ocupagio as de “dona de casa" ou “do lar", apesar de trabalharem no campo em geral, com suas criangas — nas épocas de colheita do sped idem, p. 18. 144

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