You are on page 1of 9
Pe piv eat ela tee! Salon ickegaeig. sear Digest atta, CN A WE AGI Shedhaer a pee om. Por a vi aes > Para dar conta dos didlogos entre a clinica e a politica, no pensamento de Frantz Fanon, tenho proposto como experimento tedrico 0 conceito de “Mal-estar colonial”. Freud fala em das Unbebagen in der Kultur, comumente traduzido para a lingua portuguesa como “mal-estar na civilizago”, para tematizar a tensio entre as pulses e as regras sociais internalizadas pelos individuos em tum dado contexto cultural. Embora o pai da psicandlise entendesse a cultura como “as realizagdes e os regulamentos que distinguem nnossas vidas das dos nossos antepassados animais” — 0 que pressupde uma certa universalidade da Unbebagen ~ Mirian Debieux Rosa em suas reflexes sobre a psicandlise, a cultura ¢ a politica, nos lembra que embora todos encontram restrigées pulsionais em troca da protegio ¢ pertenga, que nem todos pagam 0 mesmo prego pela chamada civilizagao. ‘Mas qual éa questo que nos interessa aqui? Frantz. Fanon, em seus didlogos a partir de uma encruzilhada entre a psicandlise, a fenomenologia existencial, 0 marxismo ¢ o movimento de negritude, nos alertard para a importincia da dimensdo sociogénica da linguagem, sobretudo, dos caminhos singulares pelo qual se constitui a subjetivacio. Por isso, ainda quando se propée a fazer uma andlise psicoldgica do racismo antinegro e dos seus efeitos subjetivos, alerta em “Pele negra, méscaras brancas”: “a verdadeira desalienacao do negro requer um reconhecimento imediato das realidades econdmicas ¢ sociais”. © que Fanon est dizendo € que, originalmente, o sujeito analisado pela psicandlise € esse individuo da sociedade moderna do século XIX para o XX, uma sociedade vitoriana, onde o capitalismo jd est deixando transparecer as suas crises sociais ¢ culturais, agravadas, no Ambito individual por novos ¢ intensos conflitos subjetivos provocados pelas transformagdes de toda ordem nas formas de sociabilidade ¢ laco social. E, sobre esses conflitos que a psicandlise vai se debrugar. Esse Unbehagen, esse mal-estar, esse desconforto, embor vivido individualmente, é de origem social e, portanto. localizado no tempo € no espaco. Ainda que o capitalismo. va progressivamente se universalizando progressivamente ¢ se impondo como tinico registro vélido na organizacio social em todo 0 globo, ele ndo chega da mesma forma em todo canto, pelo contrério, se universaliza a partir de um desenvolvimento desigual e combinado. Tsso implica particularidades na forma de viver esse Unbebagen, retratadas pelo Freud. Hé, ento, um mal-estar préprio ao processo histérico de individuagao na sociabilidade burguesa. Se é histérico — inclusive ele nem se apresentava daquela forma 100 anos antes em Viena, ou onde for — essa histéria também est4 sujeita aos atravessamentos da geografia (espaciais). O trabalho de Christian Dunker em “Mal-estar, sofrimento e sintoma” é muito interessante, neste sentido. Ele mostra o quanto as transformagées na sociabilidade burguesa ao longo dos anos obrigaram, ou estimularam, debates de toda ordem sobre as 30 € verdade do ponto de vista da histéria, Fanon nos convoca a considerar também a perspectiva geogréfica ¢ os seus arranjos particulares em cada parte do globo terrestre, hoje dominada pelo capital. No entanto, em ncia do mal-estar. Se i alteragdes histéricas na experi Fanon, a tematica geogréfica no remete apenas a uma desigualdade nas formas ¢ expresses da individuagdo, mas, sobretudo, no quanto a consolidagao do capitalismo dependeu da criagdo de espagos de exploragio e violéncia total nas coldnias cujo o eixo de coesio no é a pressuposigio de acolhimento do sujeito no lago social, mas a impossibilidade quase absoluta de reconhece-lo como sujeito contratante do pacto social, mas apenas como bem produtivo a ser negociado por outrem. Algo que tenho chamado em meus trabalhos de “interdigio do reconhecimento”. Fanon esté partindo da ideia de que as formas de poder dominagao na colénia tém uma natureza radicalmente distinta das formas de dominagdo nas metrépoles modernas, implicando, também, em formas distintas de expresso da experiencia psfquica. Se a dominago burguesa, na metrépole era mediada pela incluso do sujeito no Iago social a partir do reconhecimento de sua cidadania e individualidade — trago que constitui a emergéncia do direito moderno, mas também a sociologia ¢ a psicandlise -, nas coldnias 0 colonizado nao ¢ sequer visto como individuo, ¢ seu status juridico de propriedade o coloca para fora direito, uma vez que cle sequer & reconhecido como humano. Entio quais sio os efeitos subjetivos dessa sociabilidade, tanto para colonizado quanto para colonizador? Essa é uma das perguntas que Fanon se faz. E para isso ele parte de uma ideia de que colonizador ¢ colonizado sao relacionais, como ‘Mannoni ja havia adiantado. Essa foi uma grande contribuigao de Mannoni, inclusive com Fanon, embora depois cle “cancele” ‘Mannoni lé no capitulo quatro de “Pele Negra, Mascaras Brancas”. Um outro questionamento importante que Fanon faz & psicandlise e outras dreas de saber euro-descendentes é: até que ponto esse saber que surge na metrépole dé conta de explicar a realidade social, [até que ponto] ele nao est preocupado s6 com a dimensao psiquica, mas também com a experiencia subjetiva? Até que ponto essa matriz epistémica nao generaliza colonialmente ~ de maneira metalinguistica e identitdria ~a experiencia ocidental? Essa pergunta cle faz para a psicandlise — que aqui é apenas um dos espantalhos mais qualificados ~ mas ele também faz para a filosofia, para a sociologia, para o marxismo, para a fenomenologia, etc. Para responde-la, de um Jado ele denuncia a participagio colonial desses saberes, seja pela universalizagao da experiéncia europeia, inviabilizando a diferenga, seja por colocar 0 colonizado fora da ideia de Kultur, ou de civilizagio. Dato texto de Freud “Reflexdes sobre os tempos de guerra ¢ morte”, por exemplo, quando ele est espantado de ver branco se matando. F, interessante pensar como os varios saberes ocidentais, quando dio conta dos nao ocidentais — pensando que o préprio ocidente é um mito criado pelo colonialismo —, esses povos, essas experiéncias nao entram como experiéncia no sentido humano, mas sim como um outro tematico. E. um terceiro elemento para pensamos € quando Fanon se pergunta qual a abrangéncia e os limites desses saberes para dar conta da experigncia colonial. Ele aposta nesses saberes, mas também se pergunta quais so os limites. Podemos pensar tanto a experiencia colonial em termos socioldgicos, de contradigoes sociais, de violencia, mas também podemos pensar em termos antropoldgicos, em termos de preveem outros tipos de lagos sociais ou mesmo de pactos lar com outros arranjos no campo da linguagem, da cultura, que civilizatérios, que sequer eram vistos como civilizatérios, € bom Jembrar. ‘Mas, quando a revolugao argelina explode, Fanon se volta para a prética revoluciondria, para a aposta na revolugao social, e uma questo que salta aos olhos € que ele aposta na revolugio como momento de claboragio coletiva dos traumas que tem origem politica, e que tem efeitos subjetivos. Ele nfo faz uma relagio mecinica entre sofrimento politico e sintoma, mas est pensando tempo inteiro como hi uma dimensio do politico que no préprio campo do politico que deve ser enderecada. Mas ele ndo abandona a clinica em nenhum momento. [..] E af eu gostaria de fazer alguns apontamentos sobre a pritica clinica do Fanon, ¢ deixar mais palavrdes para a gente pensar e algumas perguntas em aberto. Uma delas ¢ que, em primeiro lugar, a clinica, para Fanon, é apenas um dos momentos da préxis desalienadora. Ele aposta em uma desalienagao, mas ela nao se esgota na clinica. A clinica é fundamental, mas cla é s6 um momento. Um outro ponto ¢ que hé diferenga entre as clinicas de Fanon ao longo do tempo. Hé diferenga entre a clinica que ele esté fazendo na tese de doutorado em 1951 para a que ele participa com Frangois Tosquelles em Saint-Alban na psicoterapia institucional, ¢ hd diferenga depois na clfnica que ele vai empreender na Tunisia, na qual cle rompe com Tosquelles. E 0 que esté por trds dessas diferencas é 0 lugar do social no subjetivo e o lugar do social na clinica. Ea pergunta que a gente sempre ouve quando vai falar de Fanon e da psicologia: mas ¢ a clinica? Fanon se debrugou sobre essa questo ¢ deu respostas diferentes ao longo da vida. Esse é um elemento importante. Um terceiro elemento & a relago entre organogenese e psicogenese. Nessas varias clinicas, Fanon, que nao é psicanalista — mas é um psiquiatra que langa mao da psicandlise em alguns momentos -, tem que lidar com a questo do cérebro ¢ de seus equilibrios neurolégicos ¢ bioquimicos, pois esse é um dos objetos de sua profissao. Ea partir daf que ele vai tematizar a relagio existente entre a dimensio biolégica ¢ a dimensio mental. Entao, novamente, o social € a sociogénese sao chaves para pensar essa relagao. Em sua tese de 19s1, Fanon vai estudar as degeneragdes espinocerebelares ¢ se pergunta: por que hd pessoas com essa degeneragdo que ficam loucas? Seré que existe alguma relagio entre 0 cérebro e a Ioucura, ou a loucura € algo da ordem do simbélico? Essa pergunta o obriga a dialogar com todo mundo que estava disponivel (8 leitura] na época, que vai do prdprio Freud, ou da tese do Lacan sobre o delitio ~ a grande questo sobre a qual Lacan se debruga em 1932 ~ até Vygotsky, Wallon, Merleau-Ponty, Goldstein, e Ajuriaguerra, 0 que permite a Fanon mostrar que o debate estava em aberto, que existiam diversas posigées. Entre clas, ele vai tentar achar uma posigao de encruzilhada. Dessa maneira, uma posigo que est em jogo éa de Goldstein, que, para Fanon, aponta para uma Idgica organogeneticista, quase biologicista, e, de outro lado, a de Lacan, que aposta tudo no simbélico como explicago & loucura. Fanon vai entio propor uma costura a partir de Henry Ey, se posicionando ao lado dele no debate. ‘Mas o que Henry Ey defende que Fanon traz de volta? Em primeiro ugar, a loucura para Henry Ey é uma patologia da liberdade; Fanon partilha dessa posigio e isso muda o jeito dele de lidar com a loucura, Segunda questo, a loucura tem origem na linguagem, para ele ~ se aproximando entao de Lacan ~, mas dispoe também de implicagdes neuronais, cognitivas ou mentais. Fanon vai procurar uma safda de costura entre 0 mental ¢ 0 cerebral (ou 0 biolégico), mas, ainda assim, nao abre mao de pensar em algo que hoje chamarfamos de plasticidade cerebral, isto é 0 quanto a experiencia, ao longo da vida do individuo, tem implicagdes no desenvolvimento do cérebro, e como isso, por sua vez, tem implicagdes também na possibilidade desse cérebro operar enquanto espaco onde o mental corre. Por outro lado, a linguagem ~ e entao Lacan aparece por titimo no texto da tese — & para Fanon um indicativo de onde poderfamos entender a loucura. Ele vai desenvolver uma prética psiquidtrica que tenta cruzar essa percepgaio a partir de disposi vos para pensar possibilidades inclusive de reboot do cérebro, mas a grande aposta na escuta e na possibilidade de ressignificagdo da prépria experiéncia com vistas & emergéncia de um, ito. Hi, ento, por parte de Fanon, a jungao dessas perspectivas para pensar uma psiquiatria que dé conta de pensar o simbélico e que nao se resuma ao biolégico. A psicandlise, portanto, foi decisiva nesse processo, s6 que elaé sé mais um dos elementos que o autor langa mao para pensar essa clinica, que € psiquidtrica antes de qualquer coisa Essa clinica psiquidtrica é uma clinica que nao se esgota em si mesma, pois para Fanon hé uma relagao entre social e politico que implica pensar transformagdes sociais como elementos de possibilidade inclusive de cura e de ressignificagio. Isso est na origem na ruptura de Fanon com Tosquelles, por exemplo, quando Fanon deixa de apostar na reforma do hospital e passa a apostar na implosio do hospital, no tratamento do louco pensando a sociedade como um elemento, rompendo com o hospicio, fazendo apostas que hoje chamarfamos de Reforma Psiquidtrica. E nesse sentido que vale pensar uma clinica que € uma clinica da encruzilhada. Encruzilhada no sentido afro-brasileiro, em termos de Exu, no como fim de caminho, mas como abertura ambigua, oximora, contraditéria, de horizontes possiveis; de ligagées entre ismo e masculino e feminino, morto e vivo, passado ¢ presente, mai psicandlise. Fanon parece estar no meio dessa tensdo, e a forma com que cle pensa alienagdo reflete justamente essa tensdo entre psicandlise ¢ marxismo — mas também aquela mediada pelas provocacées do movimento de negritude. A clinica para Fanon é fundamental, mas € preciso revolucionar 0 mundo para que a subjetividade possa ter um outro espago de vivencia do conflito, da alienagio e do mal-estar. H uma aposta dele nessa revolugio como processo terapeutico. jclo do PSOPOL~ Laborato de Psicandlise, Sociedade € Politica, do Instituto de Psicologia da Universidade de Sio Paulo em 28 de abril de 2021, disponivel "Trecho de apresentagiorealizada no cm: heeps/www facebookcom/tovocts8o861740/videos/4.23;06712008927. Adaptagoe estabelecimento do texto: Ana Paula Menezes de Souza e Rodrigo Goes e Lima “Deivison Faustino possui doutorado em Sociologia ¢ Pés-doutorado em Psicologia Clinica. E. professor do Programa de Pés-Graduacio em Servic Social e Politicas Sociais da Universidade Federal de Sao Paulo e integrante do Instituto Amma Psique e Negritude.” um projeto Ss a PSILACS

You might also like