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D1 as Cabral de Melo Neto : U4 educa¢ao pela pedra Joao Cabral de Melo Neto nasceu no Recife, em 1920. Viveu os primeiros anos em Pernambuco e, ao completar 20 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro. Em 1942, publicou seu primeiro livro, Pedra do sono. Fm 1950, langou O cao sem plumas, considerado hoje um marco em Sua poesia. Nos anos seguintes, esereveu outras obras significativas, como O rio © Morte e vida severina, que © tornaram essencial em qualquer lista dos melhores poetas brasileiros de todos Diplomata, residiu em varios patses, sebretudo na Espanha, nas cidades de Sevilha e Barcelona, que se tornariam r F mées, 0 Neustadt International ¢ o Rainha Sofia, © foi cogitado para o Prémio Nobel. Faleceu em 1999. Dele, a Alfaguara O artista inconfessdvel, selegio de poemas de fundo aucobiografico, € 1a freqiiente em sua poesia. Recebeu mios importantes, como o publico dois volum: s de sua obra comple: O cao sem plumas © Morte e vida severina. Uma educagao pela pedra: por ligdes; para aprender da pedra, freqiient4-la; captar sua voz inenfatica, impessoal (pela de dicgao ela comega as aulas). Joao Cabral de Melo Neto A educac&o pela pedra € outros poemas ALFAGUARA 19 23 32 33 36 43 44 47 54 35 57 59 64 65 07 73 i 78 Sumario Belo, Bula QUADERNA (1956-1959) Estudos para uma bailadora andaluza Cemitério alagoano (Trapiche da Barra) Paisagem pelo telefone De um aviéo Cemitério paraibano (Entre Flores ¢ Princesa) Histéria natural Paisagens com cupim Cemitério pernambucano (Floresta do Navio) Litoral de Pernambuco A mulher ea casa © motorneiro de Caxangé Cemitério pernambucano (Custédia) ‘A palavra seda A palo seco Rio e/ou pogo Sevilha Poema(s) da cabra 86 88 21 101 105 15 129 133 135 138 143 149 151 154 159 165 167 170 175 181 183 186 191 197 201 201 202 203 204 Imitagio da dgua Mulher vestida de gaiola Jogos frutais DOIS PARLAMENTOS (1958-1960) Congreso no Polfgono das Secas (ritmo senador; sotaque ista) Festa na Casa-Grande (ritmo deputados sotaque nordestino) SERIAL (1959-1961) A cana dos outros © automobilista infundioso Escritos com 0 corpo O sim contra o sim Pernambucano em Malaga O ovo de galinha Claros varones Generaciones y semblanzas Graciliano Ramos: Pescadores pernambucanos ‘Chuvas Veldtio de um Comendador Uma sevilhana pela Espanha Formas do nu O relogio O alpendre no canavial A EDUCAGAO PELA PEDRA (1962-1965) Norpeste (a) O mar e © canavial O sertanejo falando Duas das festas da morte Na morte dos rios 205 206 207 208 209 210 211 212 213 213 214 215 216 217 218 219 220 221 222 sr} 224 225 225 227 229 231 233 235 237 239 241 243 Coisas de cabeceira, Recife A fumaga no Sertio A educagao pela pedra Elogio da usina e de Sophia de Mello Breyner Andresen © urubu mobilizado Fazer 0 seco, fazer o imido © canavial eo mar Uma mulher e 0 Beberibe NaAo-Norpeste (b) De Bernarda a Fernanda de Utrera Uma mineira em Brasilia Nas covas de Baza Sobre 0 sentar-/estar-no-mundo Coisas de cabeceira, Sevilha Dois PS. aum poema ‘Tecendo a manha Fabula de um arquiteto Uma ouriga Catar feijao Nas covas de Guadix Mesma mineira em Brasflia Norpesre (A) Duas bananas & a bananeira Agulhas Rios sem discurso The Country of the Houyhnhnms Os rios de um dia © hospital da Caatinga A cana-de-agticar de agora Bifurcados de “Habitar 0 tempo” The Country of the Houyhnhnms (outra composigto) Psicandlise do agticar 245 aay 249 249 251 253 255 257 259 261 265 267 271 273 275 278 286 289 292 Os reinos do amarelo O sol em Pernambuco N&o-Norpeste (B) A utbanizagao do regago Os vazios do homem Num monumento a aspirina Comendadores jantando Retrato de escritor Hlustragao para a “Carta aos puros" de Vinicius de Moraes Na Baixa Andaluzia ‘Para mascar com chiclets O tegaco urbanizado Habitar 0 tempo Duas fases do jantar dos Comendadotes Para a Feira do Livro APENDICES Cronologia Bibliografia do autor Bibliografia sclecionada sobre o autor Indice de tftulos Indice de primeiros versos Notas Belo, Bula Neste volume que o leitor agora tem em mios, retinem-se os livros que, em conjunto, podem ser considerados como 0 ponto mais alto de toda a produgio poética de Joao Cabral de Melo Neto: Quaderna, Dois parlamentos, Serial e A educagio pela pedra.! O leitor perceberd, imediatamence, que esta diante de di- ferentes projetos estéticos, mas que todos tém em comum a construgo complexa e 0 vigor da linguagem. Confrontando- se com a idéia disseminada de que a paixdo ¢ 0 descontrole séo indices de autenticidade existencial e artistica, Cabral tomou 0 caminho contrério, buscando impor-se & poesia pelo método, pela disciplina e pelo projeto. E, a fim de que tal dominio por meio da construgao controlada superasse o risco de converter- se em formula, optou pelo partido mais custoso: manter-se em constante estado de alerta, condicionando sua criagao a uma série sempre renovada de obstdculos e dificuldades. Cada livro, desse modo, nasceria de uma concepgio critico-teérica pro- pria, dentro da qual cada poema fosse uma forma projetada em fungao do plano como um todo. Quaderna chama atengio menos pelo livro como estru- tura do que pela construgao dos poemas enquanto obras auté- nomas. Figuram nele muitos dos mais excepcionais poemas de Cabral, alguns bastante conhecidos, como “Estudos para uma bailadora andaluza”, “Paisagem pelo tclefone”, “A mulher ¢ a casa”, “A palavra seda”, “A palo seco”, “Poemas(s) da cabra” “Jogos frutais”. Além de uma novidade temtica na obra do poeta — a mulher —, 0 mais flagrante em Quaderna é a apresentacdo de um certo encaminhamento construtive, no qual os poemas acionam modos de avaliagao das suas préprias imagens, o que exp6e, até onde isso € possivel, o processo de estruturagao do texto. Assim, pocmas como 0 estonteante “A uma bailadora andaluza” criam um dinamismo avesso ao repouso e a accita- so passiva das imagens: a bailadora ¢ comparada com algo (0 fogo”, a “espiga”, o “livro” etc), mas, a seguir, os versos testam a “validade” da comparagao e, detectada alguma “falha”, tro- ca-se de sfmile, assim por diante, Essa “estrutura transhicida”® resulta de um empenho estético € ético, pois se diz respeito fundamentalmente a relacao do escritor com a criagéo ¢ com seu texto, prolonga-se também como uma proposigio que in- clui 0 leitor: é um papel ativo o que © poema propée, um di- dlogo em que a arbitrariedade da metéfora tem seus limites compartilhados, em que a poesia se efetua como conhecimento do objeto sobre o qual se detém e, simultaneamente, oferece-se como objeto de conhecimento. _ Dois parlamentos, a obra seguinte, trax questoes ligadas mais diretamente & construgao do livro como um todo. Di: do em duas partes, apresenta em ambas a caracteristica cabra~ lina de dar a ver 0 objeto — no caso, os cemitérios, ou, antes, 10 4 morte — em possiveis ¢ variadas faces, como se este girasse & frente de um olhar analitico, que procura certa fidelidade mas que, igualmente, deforma, & maneira da pintura cubista. A tal se um outro, o da estruturagiio dramati- distanciamento soma ca: 0 livro adota o formato de falas articuladas em didlogos, nos quais nao hé a presenga de narrador. Quanto a isso, é funda- mental atentar para as notagGes que, entre paréntesis, acompa- nham os titulos de cada um dos dois segmentos que compoem © volume, pois, & semelhanga do que ocorre na escrita teatral, elas funcionam como rubricas: na primeira, “Congresso no Poligono das Secas”, lemos: “(ritmo senadors sotaque sulista)”; na segunda, “Festa na casa-grande”, ha a seguinte especifica- : “(ritmo deputado; sotaque nordestino)”. Em ambos os ca- sos h4 um duplo distanciamento, social-hierdrquico espacial F. embora, na segunda parte, haja um “sotaque nordestino”, © discurso se localiza na “casa-grande”, numa “festa”, longe do que seria uma senzala-sertéio, caracterizando-se como um topos reservado.’ Nao ha, portanto, a fala do retirante, como em Morte e vida severina, ow a da propria paisagem, como cm O rio, mas uma seqiiéncia de enunciagdes que, sem desenhar personagens, so antes a teatralizagio de um distanciamento ideoldgico. A primeira parte do livro compée-se de 16 partes/estrofes, cada qual composta por 16 versos. A numeragio delas, no en- tanto, nao ¢ linear, e propée, ao contrdrio, uma ordem prépria, com saltos em progressio aritmética: 1, 5, 9, 13, 2, 6, 10, 14, 3,7, 11, 15, 4, 8, 12, 16. E possivel perceber que a metrificagao dos quatro primciros versos (uma implicita quadra de abertu- ra) de todas as estrofes repete-se de quatro em quatro, produ- zindo-se, com isso, uma identidade métrica que forma quatro séries, cada uma delas formada por quatro partes/estrofes: série u 1, 5, 9, 135 série 2, 6, 10, 14; série 3, 7, 11, 15; série 4, 8, 12, 16. Além da semelhanga métrica, as séries podem ser reconhecidas por uma espécie de entrada formal comum a clas, composta pelo primeiro verso ¢ parte do segundo, respectivamente (ha, também, diferengas/semelhangas no arranjo grafico). Para que o leitor acompanhe o desenvolvimento do poe- ma nas suas séries, basta que empreenda uma leitura pégina a pagina. Esta linearidade, no entanto, sera aparente, se conside- rarmos que, numericamente, em vez da disposicao convencio- nal ha uma seqiiéncia de saltos. Mas, se 0 leitor quiser ignorar as séries em prol da ordem numérica linear, terd, contraditoria~ as € obstiiculos. Optando por um ou por outro caminho, ndo ha como deixar de ver que hé uma estrutura de encaixes, cortes, combinagoes. mente, de ir e vir muitas vezes, saltando paj Na verdade, o livro, j4 antes de ser lido, exibe-se como cons- trugdo, na medida em que dispe as estrofes de modo nao- consecutivo (1, 5, 9, 13, 2, 6...). © leitor, mesmo ignorando as repartic6es das quatro séries, reconheceré o desenvolvimento de duas seqiiéncias: 1, 2, 3, 4... ¢ 1, 5, 9, 13... Ler, entao, seré, de qualquer modo, participar do jogo textual, ou ainda, da construgao do livro. A segunda parte do volume, “Festa na casa-grande”, se- gue esquema scmelhante. No entanto, o ntimero de estrofes aumenta para vinte, assim dispostas: 1, 6, 11, 16, 2, 7, 12, 17, 3.8, 13, 18, 4, 9, 14, 19, 5, 10, 15, 20. As séries passam a cinco, conformadas como se lé: série 1, 6, 11, 16; série 2, 7, 12, 17; série 3, 8, 13, 18; série 4, 9, 14, 19; série 5, 10, 15, 20. A identi- dade ja nao se vale do critério da métrica (todos os versos pos- suem seis sflabas), sendo o recurso mais flagrante a “entrada” formal, realizada aqui como semelhanga construtiva entre os primeiros versos das estrofes. As excegées a tal esquema sao as 2 estrofes 1 ¢ 20, que se diferenciam a fim de se individualizarem como duas “pontas”: 0 inicio € o fim tanto do poema quanto da existéncia do cassaco; a primeira, antecedendo a descrigao do cassaco “quando é crianga”, tata da generalizante “condigito eassaco”, funcionando mais ou menos como a apresentagao do retirante em Morte e vida severina; a segunda apresenta 0 cas- saco “defunto e j4 no chao”. Esta claro, portanto, que o cardter construtivo da poesia de Joio Cabral est4 muito além do simples artesanato da es- crita, Com a restrigao imposta pelo plano, 0 poeta cerceia sua liberdade enormemente, mas, em contrapartida, a estrutura do livro ganha uma extraordindria liberdade ¢ 0 leitor passa a inte- ragir com os diversos nfveis construtivos, desde os mais simples € visiveis até aos mais complicados e sutis. Quanto a construgao de Serial, 0 préprio pocta tratou , por alto, em entrevista, afirmando que o livro é de explicé-t “construido sob o signo do ntimero 4” e, ainda, que é “dividido em quatro partes sob qualquer Angulo que se olhe”.’ Mas 0 que © leitor logo perceberd é 0 uso de alguns artificios para separar smo arabicos, aste- ‘0s quatro segmentos dos poemas — algai riscos, algarismo romanos c travessdes — que dao a ver os mo- dos de abordagem dos objetos.° Assim, os quatro poemas cujas partes sio divididas em algarismos arabicos tém em comum a exposigao de um objeto que se modifica em quatro situagdes, ‘cou de uma mesma qualidade verificada em quatro diferentes objetos. Os quatro poemas que apresentam suas partes divi- didas por asteriscos focalizam objetos ou situagées cuja inte- gridade se mantém, independentemente dos contextos ou dos pontos de vista sob os quais sao analisados. A divisio marcada por algarismos romanos identifica quatro poemas em que os objetos permanecem estéticos, apenas movimentando-se “em. 3 torno deles” os olhares do poeta ¢ do leitor. Os travessSes apa- recem nos quatro poemas em que atuam, em cada um, quatro personagens unidos por alguma caracteristica (0 trabalho ou © modo como trabalham), com excegio do primeiro, no qual uma unica personagem — a sevilhana — passeia por quatro cidades da Espanha. Além de cada poema constituir-se como série — soma de quatro segmentos —, eles formam, por conse- guinte, séries de quatro em quatro, apontando o tema ¢ 0 tipo de abordagem. E fundamental observar, entéo, que, do mesmo modo que o poeta criou uma “planta” especialmente para Dois parla~ mentos, 0 projeto de Serial também nao foi reutilizado. Assim, no livro seguinte, o plano é outro. A educagao pela pedra € um livro que impressiona pela be- leza de seus poemas ¢ pelo apuro de sua construgao. A utiliza- ¢a0 da série ¢ do ntimero 2 € seus muiltiplos, especialmente o 4, so os principios elementares do volume, que se divide em qua- tro séries de 12 poemas: (A), (a), (B), (b). Estas se articulam, no entanto, em dois pares (como sugere a repeti¢ao das letras). Assim, as duas primeiras somam 24 poemas, todos sobre mo- tivos pernambucanos; simetricamente, as outras duas também formam um outro bloco/série de 24 poemas, voltados para te- mas diversos. Outras séries, porém, formam-se com a articu- lagio das quatro (como sugere a continuidade “alfabética”): as partes (a) ¢ (b) formam uma série de poemas compostos por 16 versos; em (A) ¢ (B), 0 ntimero aumenta para 24. Todos os 48 poemas apresentam duas estrofes, e, a partir desta caracteristi- ca, reforga-se a constituigdo serial: (a) e (b) — seis poemas com duas estrofes de oito versos, seis com uma estrofe de seis versos uma de dez; (A) ¢ (B) — seis poemas com duas estrofes de 12 versos, scis com uma estrofe de vito versos ¢ uma de 16. Este plano — ou “planta” — precedeu & criagao dos po- emas, que foram escritos nao sob 0 impulso de seus momentos de ctiagio, mas em conformidade com os formatos previamente definidos pelo poeta. Esse tal programa parece- nos, de fato, surpreendente, e é ainda mais notével a formagao de uma série de 16 poemas que se articulam ags pares, cada qual apresentando uma reprogramagao dos versos entre os tex- tos. O reaproveitamento pode ser total ou parcial, com ou sem alteragées de quadras (“O mar e o canavial”/“O canayial ¢ 0 mar”; “Uma mineira em Brasflia”/“Mesma mineira em Brasi- lia”; “The country of the houyhnhnms"| “The country of the houyh- nhums (outra composigao)”, “Comendadores jantando”/“Duas fases do jantar dos comendadores”); de disticos (“Nas covas de Baza”/“Nas covas de Guadix”, “Coisas de cabeceira, Recife”/ “Coisas de cabeceira, Sevilha”, “A urbanizagao do regago"/“O regago urbanizado”); de quadra e distico (“Bifurcados de ha- bitar o rempo”/“Habitar o tempo”). Com a permuta de versos, tanto se mantém quanto se altera o sentido. Num extremo, estdio pares como “Nas covas de Baza”/“Nas covas de Guadix” © “A urbanizagao do regago”/“O regago urbanizado”, nos quais ha um reaproveitamento dos versos na sua totalidade; noutro extremo, “Coisas de cabeceira, Recife”/“Coisas de cabeceira, Sevilha”, em que os versos permutados sio muito poucos (um distico, com alteragées formais, ¢ dois versos). O resultado final é um jogo de desarticulagio/rearticula~ ao dos poemas, concebidos nao como estruturas estaticas ou blocos tinicos ¢ indevass4veis. Antes, assistimos & manipula- gao de estrururas abertas, articuldveis, transparentes, méveis, constieuidas por versos que podem ser destacados ¢ recoloca- dos em outro lugar, compondo novos arranjos, com maior ou menor alteragio de sentido, Cada poema do par é autonome e, AL, @ um 86 tempo, dependente. A montagem das séties nio pro- grama sinteses ou hierarquias e, antes, pares ¢ agrupamentos funcionam modularmente, em exercicios construtivos com os quais o poeta experimenta os limites extremos da ordem, sem romper jamais com a comunicagao ¢ o sentido. Corte, excaixe, séric € simetria nao so apenas procedi- mentos restritos ao circuito do criador e da obra. Ou seja, ndo devem ser vistos como uma série de procedimentos matemati cos relevantes apenas para o criador. Recorréncias de palavras, ticulos, versos ¢ demais estruturas apresentam-se aos olhos do leitor como artificios de organizacao das formas, caracteriza- das por um verdadeiro ritmo arquiteténico. Como sabemos, na arquitetura — moderna ou nao — o ritmo tem a ver com a repeti¢ao regular de linhas, contornos, formas € cores. Assim, lajes ¢ colunas (que se repetem para formar vaos estruturais ¢ médulos espaciais recorrentes), bem como janelas ¢ portas (para circulagao de ar, luz ete) criam ritmos internamente e nas fachadas. O proprio Joao Cabral referiu & sua conhecida inap- tidao para a musica, confirmando sua tendéncia para a arqui tetura a partir da questo do rim sical para‘a melodia. Talvez tenha para o ritmo. © ritmo nao € 86 musical, existe um ritmo sintdtico. Voce, diante de uma obra de arquitetura, vé que ela tem um ritmo. Esse ritmo nao é : “Eu nao tenho ouvido mu- musical, porque a arquitetura é muda. Existe um ritmo visual, existe um ritmo intelectual, que é um ritmo sintético”? Em A educacao pela pedra, 0 leitor no encontrara 0 act- snulo mais ou menos casual que comumente se espera da lirica movida pelo pulso inconstante do sentimento ¢ da inspiragio. Longe disso, este livro — belo e emocionante — dé-nos uma Poesia cuja sofisticagdo nasce da matemAtica, da geometria, da sujcigdo da sensibilidade ao projeto. Quanto a integragio dos poemas em estruturas formais preexistentes, Cabral chegou a afirmar: “Antes fago © plano do livro, decido o niimero de poemas, 0 tamanho, os temas. Crio a forma. Depois encho.”* Apesar das diferengas entre os principios construtivos de cada livro, tanto em Dois parlamentos quanto em Serial e A educagiio pela pedra, os poemas sao tratados como médulos, divididos em outros menores, como o distico ca quadra, ¢ rearticulados, estruturando-se, com isso, os préprios livros, também eles con- cebidos como blocos preexistentes. Se cedéssemos & idéia de que os calculos cabralinos néo seriam, digamos, “necessdrios”, terfamos que, antes de mais nada, considerar, sob tal hipétese, que seus versos ¢ livros tam- bém nao seriam o que sao e que o préprio poeta seria um outro. Sendo © que era — ou ainda, obedecendo a seu projeto poé- tico — Cabral tornou sua arbitrariedade perfeita ¢ imprescin- divel. Sobretudo porque, anterior ao plano dos poemas, hé uma empresa mais ampla: redefinir o papel do poeta e da poesia, da fais quest&es, no entanto, nao se desenvol- escrita ¢ da leitura. 1 vem externamente aos textos: filosofia da arte, critica lireréria, histéria das formas, intertextualidade, metalinguagem, tudo se ‘eruza e se cristaliza em forma, no poema. O leitor, sem dtivida, tem papel fundamental nesse trabalho, devendo estar mini mamente disposto a participar, a experimentar os livros ¢ os poemas como se caminhasse por edificios. Com este volume em maos, cada um terd a chance de fazer seus proprios roteiros ¢ reconstruir, a seu modo, 0 que 0 poeta projetou. E, por fim, quanto a seu texto de abertura, 0 que parece bula é apenas homenagem ao belo. Eucanaa Ferraz * As noras do prefiteie encontrany-se na p.292, eee QUADERNA (1956-1959) A Murilo Mendes Estudos para uma bailadora andaluza 1 Dir-se-ia, quando aparece dangando por siguiriyas, que com a imagem do fogo inteira se identifica. ‘Todos os gestos do fogo que entao possui dir-se-ia: gestos das folhas do fogo, de seu cabelo, sua lingua; gestos do corpo do fogo. de sua carne em agonia, carne de fogo, s6 nervos, carne toda em carne viva. Eneao, 0 cardter do fogo la também se adivinha: mesmo gosto dos extremos, de natureza faminta, gosto de chegar ao fim do que dele se aproxima, gosto de chegar-se ao fim, de atingir a propria cinza. 23 Porém a imagem do fogo € num ponte desmentida: que 0 fogo nao € capaz como ela 4, mas ségzerrcyers. de arrancar-se de si mesmo muma primeira fatsca, messa que, quando cla quer, vem © acende-a fibra a fibra. que somente cla é capaz dlc acenderse estanmdo fria. de incendiarse com mada. de incendiarse sozimha. 2 Subida ac dorso da danga @ai carregada ou a carrega?) <€ impossfvel se dizer se €a cavaleira ou a gua. Ela tem na sua danga toda a cnerpia revesa © tode o mervo de quando algum cavalo se encrespa. Isto ¢: tanto a tensaa de quem vai montado em sela. de quem monta um animal © S86 a custo o debela, ere a tensie do animal dominado sob a rédea, que ressemte ser mandado © obedecendo procesta. Pneaio. como declarar pe ela € égua ou cavaleira: hha uma cal conformidade enmere © que é animal « € cla. ree que domina entre a p: © & parte que se rebela, enmere o que nela cavalga © © que € cavalgado nela, que o melhor sera dizer dle ambas, cavaleira ¢ égua, que sao de uma mesma coisa © que um s6 nervo as inerva, © que 6 impossfvel tragar na linha fronteira a © a montaria: nenhu enere & ela éa égua ¢ a cavaleira. 3 Quando esta taconcando,. a cabega, atenta, inclina, como se buscasse ouvir alguma voz indistinta. 25 Hida nessa atengao curvada muito de telegrafista, atento para nado perder @ mensagem transmitida. Mas o que faz duvidar possa ser telegrafia aquelas respostas que suas pernas pronunciam <€ que a mensagem de quem 14 do outro lado da linha ela responde tao séria mos passa despercebida. Mas depois ja nado ha duivida: € mesmo telegrafia: mesmo que no se perceba a mensagem recebida. se-verm de um ponto no fundo do tablado ou de sua vida, se a linguagem do didlogo € em cédigo ou ostensiva, j& mao cabe duvida deve ser telegraGa basta escutar a diccao GO morse © tao desMorida, 26 linear, muma sG corda. erm ponte © trage, concisa. @ diego em preto-c-brance polida. dle sua pert “a Ela na eeme quem a propicia para que Ihe seja leve quando se enterre, mum dia. ma terra © pisa Bla a craca com a dura scular energia que cavando © mus lo camponé sabe que ac a amiacia. 1% camponés de quem tem seotaque andaluz caipira tornozelo robuste © planta que pisa. epue r Assim, em vex dessa ave assexuada ¢ mofina, a que parece sempre ara bailarina, © quer uma 4rvore mativa, firme ma terra, quic no quer negara terra mem, como ave, fugi-la- 27 Arvore que estima a terra de que se sabe famflia © por isso trata a terra com tanta dureza intima. Mais: que ao se saber da terra Wao sG ma terra se afinmca pelos troncos dessas pernas fortes, terrenas, macigas, mas se orgulha de ser terra © dela se reafirma, batendo-a enquanto danga, para vencer quem duvida. s Sua danca sempre acaba igual que como comec¢a, tal csses livros de iguais coberta ¢ contracoberta: com a mesma posicao come que talhada em pedra: um momento ested estdtua, desafiante, & espera. Mas, se essas duas estd4tuas macsma acitude observam, aquile que desafiam parece coisas diversas. ra das estaruas €, quando comega, desafiar presenga interna, no fundo dela propria, informe ¢ sem regra, wua ver a desafia quem € que a modela. fo a estdtua final, igual que cla parega, ela €, quando um estilo A fnetima presa, wnais desafio qttem esed ma assisténcia, para indagar quem facanha tenta. de sua danga iguais © encerram: @ figura desafiance estdtuas acesas. sue danga se assiste ao processo da espiga: envolvida de palha; quase despida. 29 Parece que sua danga ao ser dangada, & medida que avanga, a vai despojando da folhagem que a vestia. INdo sé da vegeracao de que ela danga vestida (saias folhudas e crespas do que no Brasil é chita), mas também dessa oucra flora a que seus bracos dao vida, densa floresta de gestos a que dao vida « agonia. Na verdade, embora tudo aquilo que ela leva em cima, embora, de faro, sempre, continue nela a vesti-la, parece que vai perdendo a opacidade que tinha ©. como a palha que scca, vai aos poucos entreabrindo-a. Ou entao € que essa folhagem vai ficando impercebida: porque, terminada a danga, embora a roupa persista, 30. magem que a meméria a conservard em sua vista a espiga, nua e espigada, rompente ¢ esbelta, em espiga. Cemitério alagoano Paisagem pelo telefone (Trapiche da Barra) Sobre uma duna da praia © curral de um cemitério, que o mar todo o dia, todos, sopra com vento anti-séptico. Que 0 mar depois desinfera com d4gua de mar, sanativa, © depois, com areia seca, ele enxuga e cauteriza. O mar, que sé preza a pedra, que faz de coral suas drvores, Juta por curar os ossos da doenga de possuir carne, © para curd-los da pouca que de viver ainda Ihes resta, lavadeira de hospital, © mar esfrega e reesfrega. 32. Sempre que no telefone me falavas, eu diria que falavas de uma sala voda de luz invadida, sala que pelas janelas, duzentas, se oferecia a alguma manha de praia, mais manha porque marinha, alguma manha de praia no prumo do meio-dia, meio-dia mineral de uma praia nordestina, Nordeste de Pernambuco, onde as manhas sao mais limpas, Pernambuco do Recife, de Piedade, de Olinda, sempre povoado de velas, brancas, ao sol estendidas, de jangadas, que sao velas mais brancas porque salinas, que, como muros caiados Possuem luz intestina, pois nao € 0 sol quem as veste © tampouco as ilumina, mais berm, somente as desveste de toda sombra ou neblina, deixando que livres brilhem 0s eristais que dentro tinham. Pois, assim, no telefone tua voz me parecia como se de tal manha estivesses envolvida, fresca ¢ clara, como se telefonasses despida, ou, se vestida, somente de roupa de banho, m{nima, © que por minima, pouco. de tua luz prépria tira, € até mais, quando falavas no telefone, eu diria que estavas de todo nua, 86 de teu banho vestida, que € quando cu estas mais clara, pois a 4gua nada embacia, sim, como o sol sobre a cal seis estrofes mais acima, @ dua clara nao te acende Jibera a luz que ja tinhas. 35 De um aviao A Afonso Arinos, Filho 1 Se vem por circulos na viagem Pernambuco — Todos-os-Foras, Se vem numa espiral da coisa & sua meméria. primeiro circulo € quando © avido no campo do Ibura, Quando tenso na pista © salto ele calcula, Est 0 Ibura onde coquciros, onde cajueiros, Guararapes. Contudo ja parece em vitrine a paisagem. O acroporto onde o mar e mangues, onde 0 mareiro ¢ a maresia. Mas ar condicionado, mas enlatada brisa. De Pernambuco, no aeroporto, a vista jd pouco recolhe. Eo mesmo, recoberto, eeluldide, “aeroportos sempre as coisas jam ou celofane. Tbura até mesmo doida, 0 mangue. © avis (um saltador) ha sobre o trampolim, r0 cfrculo, em terra mmbuco jé me estranho. fora, aqui dentro paissaro manso. indo circulo, 0 avitio avi por sobre o campo. venta dar balango. que bem conhego, vestido por dentro, a pequena altura que ainda entendo. na distancia ” que 4 tarde queima Olinda; eis todos os verdes do verde, submarinos, sobremarinos: dos dois Iados da praia estendem-se indistintos; eis os arrabaldes, dispostos numa constelagio casual; eis 0 mar debruado pela renda de sal; eis o Recife, sol de rodo © sistema solar da planicie: daqui é uma estrela ou uma aranha, o Recife, se estrela, que estende seus dedos, se aranha, que estende sua tei que estende sua cidade por entre a lama negra. (a a distancia sobre seus vidros Passou outra mio de verniz: ainda enxergo o homem, nao mais sua cicatriz.) 3 O avio agora mais alto se eleva ao cfrculo terceiro, folha de papel de seda 38 de mapa ou cubistas. paisagem, ainda a mesma, agora noutra lingua: Hingua mais culta, vozes de cozinha. lingua mais diplomdtica wem foi eraduzida: as casas siio brancas © branco, fresca tinta; as estradas sdo geométricas terra nao precisa limpa maternal 0 vulto das usinas; a dgua morta do alagado a chamar-se de marema tem da gosma, carnal, de lesma. aqui se visse seu homem, mesmo parecer ele € 0 primeiro a distdincia eneblina a para nao corromper, decerto, © texto sempre mais idflico que 0 avido dé a ler de um a outro cireulo. 4 Num cfrculo ainda mais alto 9 avisio aponta pelo mar. Cresce a distancia com seguidas capas de ar. Primeiro, a distancia se poe a fazer mais simples as linhas os recifes ea praia com régua pura risca. A cidade toda é quadrada em paginagio de jornal, © 08 rios, em corretos meandros de metal. Depois, a distancia suprime por completo todas as linhas; restam somente cores justapostas sem fimbria: o amarelo da cana verde, 0 vermelho do ocre amarelo, verde do mar azul, roxo do cho vermelho. nas cores de Pernambuco cchama lavada e alegre, viva que de longe ponta ainda fere, que enfim todas as cores coisas que sio Pernambuco \-se todas nessa de diamante puro. wetra por fim 0 avido ‘efrculos derradeiros. ponta do diamante Ise por inteiro. mesmo a luz do diamante findou cegando-se no longe. ponta jf rombuda “tanto chumbo nao rompe. Banta chumbo como o que cobre as coisas aqui fora. agora Pernambuco ‘© que coube A meméria. eal J4 para encontrar Pernambuco © melhor é fechar os olhos buscar na lembranga © diamante ilusério. E buscar aquele diamante em que 0 vi se cristalizar, que rompeu a distancia com dureza solar; refazer aquele diamante que vi apurar-se cé de cima, que de lama e de sol compés luz incisiva; desfazer aquele diamante a partir do que o fez por tiltimo, de fora para dentro, da casca para o fundo, até aquilo que, por primeiro se apagar, ficou mais oculto: © homem, que é 0 nticleo do nticleo de seu miicleo, Cemitério paraibano (Entre Flores e Princesa) ‘Uma casa ¢ 0 cemitério dos mortos deste lugar. ‘A casa sé, sem puxada, casa de um sé andar. E da casa sé 0 recinto centre a taipa lateral. Nunea se usou o jardim; muito menos, o quintal. E casa pequena: propria menos a hotel que a pensio: pois os inquilinos cabem no cemitério saguio, 0s pouces que, por aqui, recusaram o privilégio de cemitérios cidades em cidades cemitérios. 43 Historia natural 1 ‘amor de passagem, © amor acidental, se di entre dois corpos no plano do animal, quando so mais sensiveis A atragio pelo sal, tém o dom de mover-se esaltar © curral. O encontro realizado, juntados em casal, cis que vao assumindo © cerimonial que agora é jé dificil definir-se de qual: sc ainda do semovente ou jé do vegetal (pois os gestos revelam © ritmo luminal de planta, que se move mas no mesmo local), “4 Nofim,jéniosesibe se ainda é vegetal ou se a planta se fez formagao mineral a forga de querer permanecer tal qual, na permanéncia aguda que é prépria do cristal, que no 86 pode ser ‘© imével mais cabal, mas que ao estar imével estd aceso € atual. Dep sobem do mineral para voltar & tona do reino habitual. vem o regresso: Vem o desintegrarse dessa pedra ou metal em que antes se soldara o duplo vegetal. Vem o dificil des- emaranhar-se mal, desabragar-se lento dessa planta dual 45 que enquanto embaragada lembrava um cipoal (no de parecer uma sendo mesmo plural). Vem o desabragar-se sem querer, gradual, de plantas que néo querem subir ao animal, certo por compreender que o bicho inicial @ que agora regressam (4 vao no vegetal), certo por compreender que o bicho original a que ja regressaram desliados, afinal, nao mais se encontrarao no palheiro ou areal multimultiplicado de qualquer capital, Paisagens com cupim 1 O Recife cai sobre 0 mar sem dele se contaminar. O Recife cai em cidade, cai contra o mar, contra: em laje. Cai como um prato de metal sobre outro prato de metal sabe cair: limpo e exato sem contégio: em sé contato. Cai como cidade que caia vertical ¢ reta, sem praia. Cai em cais de cimento, em porto, em ilhas de aresta e contorno. O Recife cai na dgua isento. Bem calafetado 0 cimento: ao dente da ostra, ou sua raiz, aos bichos do mar, seus cupins. “7 2 Olinda nao usa cimento. Usa um tijolo farelento. Mesmo com tanta geometria, Olinda € ja de alvenaria. Vista de longe (cantos cubos) ela anuncia um perfil duro. Porém de perto seus sobrados revelam esse fio gasto da madeira muito rogada, das paredes muito caiadas, de ancas redondas, ustiais nas casas velhas e animais. Porque Olinda, uma Olinda baixa, se mistura com 0 mar na praia: que é por onde se véo infiltrar em seu corpo os cupins do mar. 3 Os arvabaldes do Recife nio opGem os mesmos diques contra 0 rio que em horas é © mar disfarcado em maré. L4.0 mar entra fundo no rio ‘© em passos de rio, corredios, derrama-se em todos os tanques por onde a salmoura dos mangues. 48 yur enn au por ld vai de dgua parda tig, e de boca calada. Agua de mar, também salobra. que sonolenta ¢ mais gorda. Ed no que se infiltra, quando, ‘orrompe inchando. ‘omar nao rx Nao traz cupins de fome enxuta. “Traz timidos bichos de fruta. 4 As vilas entre coqueirais (as muitas Iramaracés) mais que as corréi o tal cupim: ele mesmo as modela assim. Sio aldeias leves de palha, plantadas raso sobre a praia ‘com os escavados materiais que o cupim trabalha ¢ o mar traz. ‘Sao menos da terra que da onda: tém as cavernas das esponjas, das pedras-pomes, das madeiras que o mar abandona na areia, Menos da terra que do mar: dos cupins que ele faz medrar ¢ dio a tudo a carne leve que o mar quer nas coisas que leve. 49 As cidades do canavial, escava-as um cupim igual. Ou outra espécie de cupim, J que 0 mar cai longe dali. Igaracu, Sirinhaém, © Cabo, Ipojuca ¢ também Muribeca, Rio Formoso: hi algo comido em seu estofo, E outras ainda mais de dentro: Nazaré, Alianga, Si0 Lourenco: imitam no estilo, no jeito, casas de cupim, cupinzeiros. Cidades também em colinas, do mesmo tijolo de Olinda, também minadas por marés, (ora de cana) pelos pés. 6 A paisagem do canavial ndio encerra quase meral. Tudo parece encorajar ‘© cupim, de cana ou de mar. Nao s6 as cidades, outras coisas: ‘0s engenhos com suas moitas € até mesmo os ferros mais pobres das moendas e tachas de cobre. so carrega 0 seu caruncho, : desde o vivo ao defunto. ‘embatiba das capoeiras ‘economia canavieira. tudo para o ar de abandono ‘de meia-morte ou pleno-sono, ‘esse deixar-se imovelmente prdprio da planta e do demente. 7 No canavial cado se gasta pelo miolo, nao pela casca. Nada ali se gasta de fora, quual coisa que em coisa se choca. ‘Tudo se gasta mas de dentro: © cupim entra os poros, lento, € por mil wineis, mil canais, as coisas desfia ¢ desfaz. Por fora 0 manchado reboco vai-se afrouxando, mais poroso, ‘enquanto desfaz-se, intestina, © que era parede em farinha. E se nfo se gasta com choques, mas de dentro, tampouco explode, ‘Tudo ali sofre a morte mansa do que nao quebra, se desmancha. 51 Se No canavial, amiga Mata, a vida esté toda bichada. Bichada em coisas pouco densas, coisas sem peso, pela doenca, Bichada até a carne rala da bucha edo pau-de-jangada. Até a natureza puida, porém inchada, da cortiga. Eis © cupim fazendo a vez do mestre-de-obras portugués: finge robustez na matéria carcomida pela miséria, Eis os pais de nosso barroco, de ventre solene mas oco € gesto pomposo e redondo na véspera mesma do escombro. 5 Certas cidades de entre a cana (Escada, Jaboatio, Goiana) Procuraram se armar com aco contra a vocasio de bagaco. Mas 0 ao tomado deu mal: no se fecharam ao canavial € somente em bairros pequenos seu barro salvou-se em cimento, 52 ‘quai s6 a custo a ferragem azul, nos meses de moagem) ‘cana latifindia em volea, ‘0s cupins que ela cria e solta, ra ainda fundo: combate-as ‘até a soleira das fabricas. 10 O Recife, 86, chegou a cristal ; ‘em toda a Mata e Litoral: © Recife ¢ a maquina sadia que bate em Moreno e Paulista. Fissas existem matematicas no aluminio de suas fibricas. Essas tém a carne limpa, embora feia, em série, fria. © cupim nao thes di combate: nelas motores vivos batem [ que sabem que enquanto funcionem nenhuma ferrugem os come. ‘Mas nem na Mata ou Litoral ha mais desse ago industrial para opor-se ao cupim, ao podre que o mar canavial traz, ou fosse. 53 Cemitério pernambucano (Floresta do Navio) Antes de se ver Floresta se vé uma Constantinopla complicada com barroco, gotico ¢ cenario de dpera. E 0 cemitério. E esse estuque tio retérico e florido €0 estilo doutor, do gosto do orador e do politico, de um politico orador que, em ver de frases, com tumbas quis compor esta oragao toda em palavras esdriixulas, esdréxula, na folha plana do Sertao, onde, desnuda, a vida nao ora, fala, € com palavras agudas. 54 itoral de Pernambuco © mar se estende pela terra ‘em ondas ondas que se revezam © se vao desdobrando até ondas secas de outras marés: as da areia, que mais adiante se vio desdobrando nos mangues, quue se desdobram (quase palha) num capim-lucas, de limalha, que se desdobra em canaviais, desdobrados sempre em outros mais, ¢ desdobrando ainda mais longe ‘© campo raso do horizonte, como se tudo fosse o mar ‘em mais ondas a desdobrar a mesma nacureza rente de um verde dcido e higiene: tudo debaixo do aluminio de um sol de cima e nordestino, sem que nada, ou coisa, interponha o domingo de alguma sombra, 35 36 tudo sob um eéu mineral que preside em pedra, imparcial, € que devassa tudo ali: mesmo os grotées onde parir, mulher e a casa ‘Tua sedugio é menos de mulher do que de casa: pois vem de como € por dentro ‘ou por detras da fachada. Mesmo quando ela possui tua plcida elegancia, esse teu reboco claro, riso franco de varandas, uma casa nfo é nunca 36 para ser contemplada; melhor: somente por dentro é possivel contemplé-la. Seduz pelo que é dentro, ou sera, quando se abra; pelo que pode ser dentro de suas paredes fechadas; pelo que dentro fizeram com seus vazios, com o nada; pelos espacos de dentro, nao pelo que dentro guardas 37 pelos espagos de dentro: seus recintos, suas dreas, organizando-se dentro em corredores e salas, 08 quais, sugerindo ao homem estincias aconchegadas, paredes bem revestidas ou recessos bons de cavas, exercem sobre esse homem. efeito igual ao que causas: avontade de corté-la por dentro, de visité-la. 38 Iba Na estrada de Caxangé todo dia passa o sol, fugindo de seu nascente porque o chamam arrebol. A estrada de Caxangé é sua pista de aviador: éa pista que o sol percorre antes de levantar voo. A pista de Caxangé © préprio sol a tragou, na substancia verde e branda dos engenhos de redor. Vora Mas a estrada nao pertence 86 ao sol aviador. E também porto de mar do Sertao do interior. ——— motorneiro de Caxangd 39 Possui howls para burs, hospitais para motor, cemitérios para bondes, fabricas para o suor, Mais tudo o que deve haver num bom porto de vapor: armazéns, contrabandistas, fortalezas, guarda-mor. Ipa Na estrada de Caxangé tudo passa ou ja passou: © presente ¢ o pasado 0 passado anterior; ‘08 engenhos de outros tempos, de que sé © nome ficou; 05 sitios de casas mansas, que agonizam sem rancor; os quintais de sombra doce com frutas de mesmo teor, onde hoje carrocerias aguardam seus utubus. Vouta Mas na estrada de Caxangé nada de vez jé passou: © verde das canas sobra nos campos de futebol «0 _quintais sobram nas timidas 1as de leo de motor: estrada é também a cauda onde, ainda em vigor, Recife arrasta as coisas do centro eliminou. estrada de Caxang, depois que a inaugura o sol, pares os mais estranhos todo o dia passam por; pares como o da raposa easada com 0 rouxinol ‘ou 0 dos bondes circulando por entre carros de bois caminhées entre galinhas calam ferralha e furor ‘© sempre se vé um vaqueiro olhando um jogo de golf Voura Mas na estrada de Caxangé nem tudo tem tal teors por ela passa também uma gente mais sem cor: a retirantes (sempre a pé) tirados de todo suor; imigrantes (de automével) suando, porém de calor; namorados que passeiam amadurecendo 0 amor; gente que nao a passeia, Passa-a, simples corredor. Iba Acstrada de Caxangé € também trilhos do sol (que nem sempre tem 0 sol urgéncias de aviador): de cada lado dos quais um trem de taipa parou, um trem de casas que lembram. vagées, sem tirar nem por; um trem de casas-vagées cada uma com sua cor ¢ levando nas janelas latas por jarros de flor. VouTa, Mas 0 trem de casas-vagoes Passa ou é passado por? como poder distinguir do passado 0 passador? 2 ‘as casas-trem 0 andador? quem sabe? a propria estrada ndo com um propulsor? is dela sobe incessante _e@subterrance rumor). 8 Cemitério pernambucano (Custédia) E mais prético enterrar-se em covas feitas no chao: ao sol daqui, mais que covas, so fornos de cremagio, ‘Ao sol daqui, as covas logo se transformam nas caieitas onde enterrar certas coisas Para, queimando-as, fazé-las: assim, 0 tijolo ainda cru, as pedras que dao a cal ou a capoeira raquitica que dé 0 carvio vegetal. S6 que nas covas caieiras nenhuma coisa é apurada: tudo se perde na terra, em forma de alma, ou de nada. 64 palavra seda ‘A atmosfera que te envolve tinge tais atmosferas que transforma muitas coisas que te concernem, ou cercam. E, como as coisas, palavras impossiveis de poema: exemplo, a palavra ouro, © até este poema, seda. E certo que tua pessoa nao faz dormir, mas desperta; nem € sedante, palavra derivada da de seda. E é certo que a superficie de tua pessoa externa, de tua pele e de tudo isso que em ti se rateia, nada tem da superficie luxtosa, falsa, académica, de uma superficie quando se diz que ela é “como seda”. 65 Mas em ci, em algum ponto, — talvez fora de ti mesma, talvez mesmo no ambiente que retesas quando chegas, hé algo de muscular, de animal, carnal, pantera, de felino, da substancia felina, ou sua maneira, de animal, de animalmente, de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta ersiste na coisa seda. palo seco AR. Santos Torroella Se diz. a palo seco 0 cante sem guitarra; © cante sem; 0 cantes © cante sem mais nadas se diz a palo seco a esse cante despido: a0 cante que se canta sob 0 siléncio a pino. © cante a palo seco € 0 cante mais s6: € cantar num deserto devassado de sols €0 mesmo que cantar num deserto sem sombra, em que a voz sé dispoe do que cla mesma ponha. 1.3. O cante a palo seco €um cante desarmado: s6a lamina da voz a7 1.4, Sie 22 8 "NenWamadobugey que 0 cante a palo seco sem tempero ou ajuda tem de abrir o silencio com sua chama nua. O cante a palo seco nao é um cante a esmo: exige ser cantado com todo o ser aberto; €um cante que exige © serse ao meio-dia, que € quando a sombra foge € nfo medra a magia, O silencio é um metal de epiderme gelada, sempre incapaz das ondas imediatas da agua; a pele do siléncio Pouca coisa arrepia: © cante a palo seco de diamante precisa, Ou o silencio € pesado, €um liquido denso, que jamais colabora nem ajuda com ecos; a palo seco 6 um cante submarino ao siléncio. Ou o silencio é levissimo, € liquid sutil que se coa nas frestas que no cante sentiu; o siléncio paciente vagaroso se infiltra, apodrecendo 0 cante de dentro, pela espinha. Quo siléncio é uma tela que dificil se rasga ‘© que quando se rasga nao demora rasgada; quando a voz. cessa, a tela se apressa em se emendar: tela que fosse de égua, ou como tela de ar. A palo seco & 0 cante de todos mais lacénico, mesmo quando patega estirar-se um quilémecro: 6 a2. 33. 34. 70 cante que nao se que tanto se the ds € cante que nao canta, cante que ai esta. tem de forgosamente deixar mais curto o folego. A palo seco & 0 cante de grito mais extremo: tem de subir mais alto que onde sobe a silencio; A palo seco canta © passaro sem bosque, por exemplo: pousado sobre um fio de cobre: € cantar contra a queda, : a palo seco canta ainda melhor esse fio. quando sem qualquer passaro dé 0 seu assovio. €um cante para cima, em que se ha de subir cortando, € contra a fibra. A palo seco é 0 cante de caminhar mais lento: Stee pot ser a contrapelo, Por ser a contraventos a bigorna co martelo, 0 ferro sobre a pedra, © ferro contra o ferros € cante que caminha com passo paciente: © vento do siléncio tem a fibra de dente. a palo seco canta aquele outro ferteiro: © passaro araponga que inventa o proprio ferro. A palo seco & 0 cante que mostra mais soberba; © que nao se oferec que se toma ou se deixa; 4.3. A palo seco existem situagées € objetos: Graciliano Ramos, desenho de arquiteto, a nm 4A, as paredes caiadas, a elegincia dos pregos, a cidade de Cérdoba, © arame dos insetos. Eis uns poucos exemplos de ser a palo seco, dos quais se retirar higiene ou conselho: nao o de aceitar 0 seco por resignadamente, mas de empregar 0 seco porque é mais contundente. aE Rio e/ou pogo Quando tu, na vertical, te ergues, de pé em ti mesma, épossivel descrever-te com a dgua da correntezas tens a alegria infantil, popular, passarinheira, de um riacho horizontal (e embora de pé estejas). Mas quando na horizontal, em certas horas, te deixas, que € quando, por fora, mais as aguas correntes lembras, mas quando & tua extensio, como sc rio, te entregas, quando te deitas em rio que se deita sobre a terra, entio, se € da Agua corrente, por longa, tua aparéncia, somente a 4gua de um pogo cexpressa tua naturezas © 86 uma dgua vertical pode, de alguma maneira, ser a imagem do que és quando horizontal ¢ queda. S6 uma dgua vertical, ‘gua parada em si mesma, gua vertical de poso, gua toda em profundeza, gua em si mesma, parada, © que ao parar mais se adensa, Agua densa de égua, como de alma tua alma esté densa. 4 alll eG Sevilha 1 A cidade mais bem cortada que vi, Sevilhas cidade que veste © homem sob medida. Justa ao tamanho do corpo cla se adapta, branda ¢ sem quinas, roupa bem recortada. Cortada sé para um homem, nfo todo 6 humanos 86 para o homem pequeno que é 0 sevilhano. Que ao sevilhano Sevilha tao bem se abraga ‘que é como se fosse roupa cortada em malha. mB z Ao corpo do sevilhano toda se ajusta € a0 raio de ago do corpo, ou sua aventura. Nem com os gestos do corpo nunca interfere, qual roupa ou cidade que é cortada em série. Sempre & medida do corpo Pequeno ou pouco: 20 teto baixo do miope, aos pés do coxo, ‘Nunca tem panos sobrando nem bairros longes sempre ao alcance do pé que nfo tem bonde. 3 O sevilhano usa Sevilha com intimidade, como se s6 fosse a casa que ele habitasse. Com intimidade ele usa ruas e pragas; com intimidade de quarto mais que de casa, 76 Com mais que de com intimidade de camisa mais que casaco. E mais que intimidade, até com amor, como um corpo que se usa pelo interior. 4 O modelo nao é indicado éanenhum nérdico: Ihe ficard muito curto e ele incémodo. Ele ficard tio ridiculo como um automével, dos que ali, elefanticos, tesos, se movem, nas ruas que o sevilhano fez para si mesmo, pequenas € fntimas para seu aconchego, sevilhano em quem se encontra ainda o gosto de tera vida & medida do préprio corpo. n 7 Poema(s) da cabra (Nas margens do Mediterrineo no se vé um palmo de terra que a terra tivesse esquecido de fazer converter em pedra. ‘Nas margens do Mediterrineo nao se vé um palmo de pedra que a pedra tivesse esquecido de ocupar com sua fera. Ali, onde nenhuma linha pode lembrar, porque mais doce, 0 que até chega a parecer suave serra de uma foice, do se vé um palmo de terra, por mais pedra ou fera que seja, que a cabra nao tenha ocupado com sua planta fibrosa e negra.) 78 1 nao é 0 negro do ébano douto: (que é quase azul) ou 0 negro rico do jacarands (mais bem roxo). (O negro da cabra é 0 negro do preto, do pobre, do pouco. Negro da poeira, que ¢ cinzento. Negro da ferrugem, que € fosco. Negro do feio, as vezes branco. Ou 0 negro do pardo, que € pardo. Disso que nao chega a ter cor ou perdeu toda cor no gasto. E 0 negro da segunda classe. Do inferior (que é sempre opaco) Disso que nao pode ter cor porque em negro sai mais barato. 2 Seo negro quer dizer noturno, ‘ negro da cabra é solar. Nao é 0 da cabra o negro noite. Eo negro de sol. Luminar. Scr o negro do queimado mais que o negro da escuridao. Negra é do sol que acumulou. E 0 negro mais bem do carvao. ay Na & nego aE Negro funeral. Nem do luto. ‘Tampouco é 0 negro do mistério, de bragos cruzados, eunuco. mesmo c'negro do-carvao. O negro da hulha. Do coque. Negro que pode haver na pélvora: negro de vida, nfio de morte. 3 ‘O negro da cabra é 0 negro da natureza dela cabra. Mesmo dessa que nao € negra, como a do Moxoté, que é clara. O negro é 0 duro que ha no fundo da cabra, De seu natural. Tal no fundo da terra ha pedra, no fundo da pedra, metal. O negro é 0 duto que ha no fundo da nacureza sem orvalho que é a da cabra, esse animal sem folhas, 96 raiz e talo, que é a da cabra, esse animal de alma-carogo, de alma cérnea, sem moclas, timidos, labios, pao sem miolo, apenas cédea. #0 7 Quem —— que tivesse ritmos domésticos? © grosso derrame do porco, da vaca, de sono e de tédio? Quem encontrou cabra que fosse animal de sociedade? Tal 0 cio, 0 gato, 0 cavalo, diletos do homem ¢ da arte? ‘A cabra guarda todo 0 arisco, rebelde, do animal selvagem, viva demais que é para ser animal dos de luxo ou pajem. Viva demais para nao ser, quando colaboracionista, 0 reduzido irredutivel, 0 inconformado conformista, 5 A cabra é 0 melhor instrumento de verrumar a terra magra. Por dentro da serra e da seca nada chega onde chega a cabra. Sea serra € terra, a cabra é pedra. Sea serra é pedra, € pedernal. Sua boca é sempre mais dura que a serra, ndo importa qual. a A cabra tem 0 dente frio, a insoléncia do que mastiga, Por isso o homem vive da cabra mas sempre a vé como inimiga. Por isso quem vive da cabra € nao € capaz do seu brago. desconfia sempre da cabra: diz. que tem parte com 0 Diabo. 6 Nao € pelo vicio da pedra, por preferir a pedra 2 folha. E que a cabra é expulsa do verde, trancada do lado de fora. A cabra é trancada por dentro. Condenada a caatinga seca. Liberta, no vasto sem nada, proibida, na verdura estreita, Leva no pescogo uma canga que a impede de furar as cercas. Leva os muros do préprio cércere: prisioneira e carcereira, Liberdade de fome e sede da ambulante prisioneira, Nao é que ela busque o dificil: que a sabem capas: de pedra. 2 7 hell A vida da cabra nito lazer para ser fina ou lirica (cal 0 urubu, que em doces linhas voa & procura da carniga). Vive a cabra contra a pendente, sem os éxtases das descidas. Viver para a cabra niio & re-ruminar-se introspectiva. E, literalmente, cavar a vida sob a superficie, que a cabra, proibida de folhas, tem de desentranhar raizes. Bis por que € a cabra grosseira, de maos dsperas, realista. Eis por que, mesmo ruminando, nao € jamais contemplativa. 8 ‘Um niicleo de cabra é visivel por debaixo de muitas coisas. Com a natureza da cabra outras aprendem sua crosta, Um nticleo de cabra € vistvel em certos atributos roucos que tém as coisas obrigadas a fazer de seu corpo couro. 33 Afazerdeseucourosol, = a armar-se em couragas, escamas: como se di com certas coisas © muitas condig6es humanas. Os jumentos sio animais que muito aprenderam da cabra. © nordestino, convivendo-a, fer-se de sua mesma casta, 9 O niicleo da cabra é visivel debaixo do homem do Nordeste. Da cabra he vem 0 escarpado € 0 estofo nervudo que 0 enche, Se adivinha o niicleo de cabra no jeito de existir, Cardozo, que reponta sob seu gesto como esqueleto sob 0 corpo. E € outra ossatura mais forte que 0 esqueleto comum, de todos; debaixo do préprio esqueleto, no fundo centro de seus ossos. A cabra deu ao nordestino esse esqueleto mais de dentro: aco do oso, que resiste quando 0 osso perde seu cimento. 84 ae (O Mediterriineo é mar elissico, com aguas de mérmore azul. Em nada me lembra das éguas sem marca do rio Pajeti. As ondas do Mediterraneo esto no marmore tragadas. Nos rios do Sertao, se existe, a dgua corre despenteada. As margens do Mediterraneo parecem deserto baleao. Deserto, mas de terras nobres no da pigarra do Sertao. Mas nao minto o Mediterraneo: nem sua atmosfera maior descrevendo-Ihe as cabras negras em termos das do Moxots.) 85 Imitagao da 4gua De flanco sobre o lengol, paisagem ja tao marinha, a.uma onda deitada, ra praia, te parecias, Uma onda que parava, ‘ou melhor: que se continha; que contivesse um momento seu rumor de falhas liquidas. Uma onda que parava naquela hora precisa em que a palpebra da onda cai sobre a prépria pupila. Uma onda que parara a0 dobrar-se, interrompida, que imével se interrompesse no alto de sua crista ¢ se fizesse montanha (por horizontal e fixa), mas que ao se fazer montanha continuasse agua ainda. 86 ee Una Fs ll na praia cama, | a natureza sem fim do mar de que participa, ¢ em sua imobilidade, que preciria se adivinha, o dom de se derramar que as 4guas faz fernininas mais 0 clima de éguas fundas, a intimidade sombria ¢ certo abragar completo que dos liquidos copias. 87 ———— Mulher vestida de gaiola Parece que vives sempre de uma gaiola envolvida, isenta, numa gaiola, de uma gaiola vestida, de uma gaiola, cortada em tua exata medida numa matéria isolante: gaiola-blusa ou camisa, E, assim como tu resides nessa gaiola, cingida, © vasto espaco que sobra de tua gaiola-ilha como outra gaiola igual que o mar: sem medida ce aberto em todos os lados (menos no que te limita). Pois nessa gaiola externa onde tudo rem cabida, onde cabe Pernambuco € 0 resto da geografia, 88 —— até canay sei que se debate um passaro que a acha pequena ainda, Tal gaiola para cle mais do que gaiola é bridas como cércere Ihe aperta sua gaiola infinica ¢ the aperta exatamente por essa parede minima em que sua gaiola-mundo com a tua faz divisa, Contra essa curta parede entre ti e ele contfgua, que te defende e para ele é de forca, se é camisa, todo 0 dia se debate a sua forga expansiva (nfo de passaro, de enchente, de enchente do mar de Olinda). Por que cle a quem sua gaiola de outros lados nao limita deseja invadir 0 espago de nada que tu the tiras? 89 Por quedah ae precisamente a drea estrita da gaiola em que resides, melhor: de que ests vestida? ae Jogos frutais De fruta é tua textura ¢ assim concreta; textura densa que a luz nao atravessa. Sem transparéneia: nao de dgua clara, porém: de mel, intensa. Intensa é tua textura porém nao cega; sim de coisa que tem luz propria, interna. E tens idéntica carnagio de mel de cana e luz morena, Luminosos cristais possuis internos iguais aos do ar que o verao usa em setembro, 3 Euran naples — 8 vero 0 sol das frutas que o traz no Nordeste. E de fruta do Nordeste tua epiderme; mesma carnagio dourada, solar e alegre. Frutas crescidas no Recife relavado de suas brisas. Das frutas do Recife, de sua familia, tens a madeira tirante, muito mais rica. Eo mesmo duro motor animal que pulsa igual que um pulso. De fruta pernambucana tens o animal, fruras quase animais e carne carnal. ‘Também aquelas de mais certa medida, melhor receita. 92 O teu em tua de fruta pernambucana, sempre concisa. E teu segredo em que por mais justo tens corpo mais tenso. Tens de uma fruta aquele tamanho justo; nfio de todas, de fruca de Pernambuco. Mangas, mangabas do Recife, que sabe mais desenhé-las. Es um fruto medido, bem desenhado; diverso em tudo da jaca, do jenipapo. Nao és aquosa nem fruta que se derrama vaga ¢ sem forma, Estas desenhada a lipis de ponta fina, tal como a cana-de-agticar, que é pura linha. 93 i da miltipla confusio da propria palha. Es eéo elegante quanto um pé de cana, despindo a perna nua de dente a palha. E tens a perna do mesmo metal sadio da cana esbelta. ‘© mesmo metal da cana tersa e brunida possuis, e também do oiti, que € pura fibra. Porém profunda tanta fibra desfaz-se mucosa ¢ timida, Da pitomba possuis a qualidade mucosa, quando secreta, de tua carne. ‘Também do ings, de musgo fresco ao dente € a0 polegar. Nao a 86 parao nem és uma fruta flor, olor somente. Fruta completa: para todos os sentidos, para cama € mesa. Es uma fruta nuileipla, mas simples, l6gicas nada tens de metafisica ou metaférica. Nao és O Fruto nem para A Semente te vejo muito, Nao te vejo em semente, fucura e grivida; tampouco em vitamina, em castas drageas. Em ti apenas vejo 0 que se saboreia, no o que alimenta. Frura que se saboreia, nfo que alimenta: assim descrevo melhor a tua urgéncia. 95 de frura que nos convida a fundir-nos nela. ‘Tens a aparéncia facil, convidativa, de fruea de muito agticar, que dé formiga. E tens 0 apelo da sapota e do sapoti, que dao morcego. De fruta é a atragio (que tens, a mesma; que tens de fruta acragio reta e indefesa. Sempre tio forte na carne e espadua despida da fruta jovem. Hoforts de catia lavent ede alma alacre, diversa do oiti-cord, porque picante. E, tamarindo, deixas em quem te conhece dentes mais finos. 96 ee — de carne e diversa da do mamio, triste, estagnada, E do nervoso caja que tens 0 sabor € 0 nervo-exposto. Es fruta de carne acesa, sempre em agraz, como aragés, guabirabas, maracujas. ‘Também mangaba, deixas em quem te conhece vvisgo, borracha. No és fruta que 0 tempo ou copo de égua lava de nossa boca como se nada. Jamais pitanga, que lava a lingua e a sede de todo estanca. Aumentas a sede como fruta madura que comega a corromper-se no seu agticar. 97 ike contudo, a quem te conhece 86 das mais sede, Acida e verde, porém jéanuncias © acticar maduro que ters um dia. E vem teu charme do leve sabor de podre na jovem carne, Ao gosto limpo do caju, de praia e sol, juntas o da manga mérbida, sombra e langor. Sabes a ambas fem teus contrastes de fruta pernambucana, Sem diivida, és mesmo fruta pernambucana: a graviola, a mangaba e certas mangas. De tanto agticar que ainda verdes parecem jd estar corruptas. 98 Fell © € assim que te vejo de hd muito ¢ sempre. E bem se entende que uns te digam podre ¢ outros te digam verde. 99 DOIS PARLAMENTOS (1958-1960) A Yedda e Augusto Frederico Schmidt Congresso no Polfgono das Secas (ritmo senador; sotaque sulista) 1 — Cemitérios gerais onde nao sé esto os mortos. _— Eles so muito mais completos do que todos 0s outros. — Que nao sio sé depésito da vida que reccbem, morta. _— Mas cemitérios que produzem € nem mortos importam. — Eles mesmos transformam a matéria-prima que tém. — Trabalham-na em todas as fases, do campo aos armazéns. — Cemitérios autérquicos, se bastando em todas as fases. — Sao eles mesmos que produzem os defuntos que jazem. 5 — Cemitérios gerais onde nao é possivel que se ache o que é de todo cemitério: 0s marmores em arte. 105 ‘estes cemitérios sem vida, frios, de estatistica, — Se muito, podem ser fema para as artes retéricas, que os celebram porém do Sul, Jonge da cumba toda. — Isto é, para a retérica de cimara (camara politica) que se exercita humanizando estes mortos de cifra. 9 — Cemitérios gerais onde no se guardam os mortos ao alcance da mao, ao pé, Abcira de seu dono, — Neles nao ha gaveras ‘em que, ao alcance do corpo, se capitalizam os residuos possiveis de um morto. — A todos os defuntos Jogo 0 Sertao desapropria, pois nao quer defuntos privados 0 Sertio coletivista — Eassim nao reconhece © direito a tumulos estanques, mas socializa seus defuntos numa sé tumba grande. 106 = - 13, — Cemitérios gerais onde nao cabe fazer cercas. — Nenhum revezo caberia ‘ que dentro devera. — Onde 0 motto nao é 36, 0 homem morto, 0 defunto. — De mortos muito mais gerais, bichos, plantas, tudo. — De mortos tio gerais que nio se pode apartagao. —O jeito é mesmo consagrar cemitétio a regido. — Assim, h4 cemitério que a tudo aqui morto comporte. — Consagrar tudo um cemitério é tudo o que se pode. 2 — Nestes cemitérios gerais nao ha a morte excesso. — Ela nao da ao morto maior volume nem mais peso. — A morte aqui nao é bagagem nem excesso de carga. — Aqui, ela é 0 vazio que faz com que se murche a saca. — Que esvazia mais uma saca aliés nunca plena. — Ela esvazia o morto, 107 4 morte aqui jamais o emprenha, — A morte aqui nao indigesta, mais bem, é morte azia. —£ 0 que come por dentro © invélucro que nada envolvia. 6 — Nestes cemitérios gerais nao ha a morte gosto, téctil, sensorial, com aura, ar de banho motno. — Certo bafo que banha os vivos em volta da banheira, dentro da qual o morto banha na sua auréola espessa. —A morte aqui € a0 at livre, seca, sem o ressaibo natural noutras mortes € no sabor de Rilke ou de ctavo. — Ela nfo é nunca a presenca travosa de um defunto, sim morte escancarada, sem mistério, sem nada fundo. 10 — Nestes cemitérios gerais nao hé morte isolada, mas a morte por ondas para certas classes convocadas. — Nunca ela vem para um sé morto, 108 —— mas sempre para a classe, 7s assim como 0 servigo nas circunscrig6es militares. — Hi classes numerosas, como a de Serenta-e-sete, mas sempre cada ano 6 recrutamento se repete. — E grande ou no, a nova classe, designada pelo ano, segue para a milicia de onde ninguém se viu voltando. 14 — Nestes cemitérios gerais nao ha morte pessoal. — Nenhum morto se vit com modelo seu, especial. — Vio todos com a morte padrao, em série fabricada. — Morte que nao se escolhe c aqui é fornecida de graga. — Que acaba sempre por se impor sobre a que jd medrasse. — Vence a que, mais pessoal, alguém jé trouxesse na carne. — Mas afinal tem suas vantagens esta morte em série. — Faz defuntos funcionais, préprios a uma terra sem vermes. 5 = — Nestes cemitérios gerais 0s mortos nao variam nada, — como se morrendo rnascessem de uma raga. — Todos estes mortos parece que sao irmaos, ¢ 0 mesmo porte. — Se nao da mesma mie, itmaos da mesma morte. —E mais ainda: que irmios gémeos, do molde igual do mesmo ovario. — Concebidos durante a mesma seca-parto, — Todos filhos da morte-mae, ou mie-morte, que é mais exato. — De qualquer forma, todos gémeos, ¢ mortinatos. 7 — Nestes cemitérios gerais ‘0s mortos nao tém o alinho de vestir-se a rigor ‘ou mesmo de domingo, — Os mortos daqui vio despidos nao 56 da roupa correta, mas de todas as outras, minimas, etiquetas. — Daquelas poucas que se exigem para se entrar em tal setao, mortalha, para todos, 10 e rede, aos sem caix8o, — Por isso é que sobram de fora, sem entrar nos salées da terra, centre pedras, gravetos, no sereno da festa. 1 — Nestes cemitérios gerais 0s mortos nao tém esse ar pisado, que uma dor deixa atrés, a0 passar. — Ou oar inteligente, irdnico, que muitos tém, de rer descoberto ‘© que sé cles véem e nao dizem, discretos. — Fis um defunto nada humano, que nem lembra um homem, se o foi, eno qual nada mostra sea morte docu, ou déi —Se lembra algo, lembra é as pedras, essas de ar nao inteligente, as pedras que nao lembram nada de bicho ou gente. 5 — Nestes cemitérios gerais ‘0 mortos no mostram surpresa. —A morte para cles foi coisa rotineira. —Nenhum tem 0 ar de ter morrido em instantanco ou guilhoting, = —Porém de um sono leneo que adorme, nfo fulmina. — Em nenhum deles hi as poseuras desses que morrem sob protesto. —Heempesasnemea gure, sem nenhum grito, gesto. — Entre eles, gestos de elogtigncia nao se véem nunca, quando a morte. — Todos morrem em prosa, como foram, ou dormem. 4 — Cemitérios gerais que nao exibem restos. — Tio sem ossos que até parece que cachorros passaram perto. — De mortos restam sé pouquissimos sinais. — Muito menos do que se espera com a propaganda que se faz. — Como que os cemitérios roem seus préprios mottos. — E como se, como um cachorro, apés roer, cobrissem os ossos. — Eis por que eles so para o turista um logro. — Se pensa: ndo pensei que a morte houvesse desfeito to poucos. m2 8 — Cemicérios gerais que os restos no largam $ até que os tenham trabalhado com sua parcial matemitica. — E terem dividido © resto pelo nada, e entio restado do que resta a pouca coisa que restava. — Aqui, toda aritmética dao resultado nada, pois dividir e subtrair sdo as operagées empregadas, — E quando alguma coisa é aqui multiplicada serd sempre para clevar © resto a poténcia do nada. 12 — Cemitérios gerais que dos restos nado cuidam nem fazem prorrogar a vida ainda nos mortos, porventura, — E aujos restos sio de defuntos defuntos, por falta de folhas, formigas, para prolongar seu circuito. — Nem conhecem a fase, prima, da podridao, em que os defuntos se projetam, 13 quando nada, em exalgio. — S6 restos minerais, infecundos, caledrios, se encontram nestes cemitétios, menos cemitérios que ossétios. 16 — Cemitérios gerais que no toleram restos. — Nem mesmo um pouco que se possa encomendar ao céu ou ao inferno, — Eles, todos os restos da mesma forma tratam, — Talvez porque os mortos que tem nao tenham tal residuo, a alma, — Talvez porque esta tem consisténcia mais rala. — Eseja no ar ficil sorvida como uma gota em outra de égua, —Nao hi € por que usar, aqui, a imagem da dgua. — Melhor dizer: como uma gota de nada em outra de nada, 4 Festa na Casa-Grande (ritmo deputado; sotaque nordestino) 1 —O eassaco de engenho, ‘0 cassaco de usina; — O cassaco é um sé com diferente rima. —O cassaco de engenho bangiié ou fornecedor: — A condigao cassaco €0 denominador. —O cassaco de engenho de qualquer Pernambuco: — Dizendo-se cassaco se terd dito tudo. — Seja qual for seu nome, seu trabalho, seu soldo: — Dizendo-se cassaco se teri dito todos. 6 —O cassaco de engenho quando € crianga: — Parece cruzamento de canigo com cana. — O cassaco de engenho ctianga € mais canigo: — Puxa mais bem ao pai porque nio € macico. —O cassaco de engenho quando é crianga: — Nao sé puxa ao canigo, puxa também & cana. — Mas cana de soca, repetida e sem forga: —A cana fim de raga, de quarta ou quinta folha. rt — O cassaco de engenho quando é mulher: —£.um saco vazio, mas que se tem de pé, — O eassaco de engenho mulher € como um saco: — De agticar, mas sem ter agticar ensacado, — O cassaco de engenho quando é muther: —Nio é um saco capaz de conservar, concer, —E um saco como feito para se derramar: — De outros que no se sabe como se fazem li, 16 16 — O eassaco de engenho quando é um velho: - Somente por acaso cle alcanga esse tet. —O cassaco de engenho velho nem é acaso: — F que um cassaco novo apressou-se no prazo. —O cassaco de engenho quando é um velho: — Entao, chegado ai, se apressa em esqueleto. — Se apressa a descarnar como taipa em rufna: —E.como cle é de taipa seu esqueleto € faxina. 2 — O cassaco de engenho de longe é como gent — De perto é que se vé © que ha de diferente. —O cassaco de engenho, de perto, ao olho esperto: — Em tudo ¢ como homem, 86 que de menos prego. — Nao hd nada de homem_ que nao tenha, em detalhe, c tudo por inteiro, nada pela metade. n7 — F igual, mas apesar, parece recortado com a tesoura cega de alfaiate barato. z — O cassaco de engenho de longe € de osso ¢ carne: — De perto & que se vé que de outra qualidade, — O cassaco de engenho se se chega a tocé-lo: — E outra a consisténcia de seu corpo, é mais ralo. — Tem a textura bruta € a0 mesmo tempo frouxa, menos que algodiozinho, sim propria das estopas. —E dos panos puidos chegados ao estado em que, no portugués, Pano passa a ser trapo. 12 — O cassaco de engenho de longe é 0 mesmo barro: — De perto € que se vé que o dele foi mais bago. — O cassaco de engenho € opaco ¢ mortigo: — Nunca aprende com os agos de uma usina, seu brilho. — Nem com o brilho mais cego do cobre que cle vé nas tachas em que mexe nos engenhos bangiié. — Sequer aprende o brilho do cabo das enxadas que cle enverniza em seco com a lixa da mio aspera. 17 — O cassaco de engenho de longe € branco ou negro: — De perto ¢ que se ve que é amarelo mesmo. — O cassaco de engenho éamarelo sempre: — Mas do amarelo inchado que é verde levemente. — Desse verde amarelo em que o azul nfo entra € que no fosse nele se diria doenga. — Um verde especial, espécie de auriverde, 86 dele, branco ou negro, de receita s6 dele. 119 3 4 — O cassaco de engenho quando est4 dormindo: — Se vé que é incapaz de sonhos privativos, —Nele nio hd esse ar discante ou distraido de quem detrés das pélpebras um filme esté assistindo. — Detrds de suas palpebras haverd apenas treva edecerto nenhum. sonho ali se projeta. — O cassaco de engenho dorme em sala deserta: —A nenhum sonho-filme assiste, nem tem tela. — O cassaco de engenho quando nio est dormindo: — E como se seu sono ainda encharcasse, limo. — Quando nao esté dormindo nao € que est acordado, € apenas que caminha onde 0 sono é mais raso. — Nao tem como evitar que 0 marasmo o embeba €0 impeca de subir A consciéncia seca. 120 —— — O eassaco de engenho nunca acorda de todo: — Anda sempre nos pantanos do sono, por seu lodo. 13, — O cassaco de engenho quando no trabalho: — Tudo com que trabalha Ihe parece pesado. if ee seseeniiie que entretanto é mais ralo, Ihe pesasse no corpo, espesso como caldo. — Como 0 caldo de cana jd muito cozinhado € que vai-se espessando no gesto do melaco. —O cassaco de engenho tem o ritmo pesado: —O do gesto do mel deixando o tiltimo tacho, 18, —O eassaco de engenho quando nao trabalha: — As coisas continuam sendo-Lhe bem pesadas. — Por sua pouca roupa escé sempre esmagado 121 epesathe no pé a 9 inexistente sapato, — O eassaco de engenho — Pesa-the a mio que leva vai amarelamente €se nfo leva nada, entre todo esse azul ¢ pesa-lhe igualmente que é Pernambuco sempre. se se move ou parada. — Mesmo contra amarelo — Ao cassaco de engenho da palha canavial, pesa 0 ar que respi ainda é mais amarelo © seu, porque moral. —O cassaco de engenho 0 amarelo tipo: —E até mesmo the pesa © chao sobre que pisa. — Eamarelo de corpo 4 € de estado de espitito. — O cassaco de engenho — De onde a calma que &s vezes faz amarelamente parece sabedoria: toda coisa que toca — Mas nao € calma, nada, tocando-a, simplesmente. 0 nada, é calmaria. E 0 contrério do barro das casas-de-purgar i que se bota no agticar a fim de o branquear. —O cassaco de engenho purga tudo ao contrdrio: — Como o barro, se infilera, mas deixa tudo barro. — Limpa tudo do limpo edeixa em tudo nédoa: — A que hé em sua camisa, — O cassaco de engenho é amarelamente mesmo no mundo em cor que bebe na aguardente. — Primeiro, a aguardente Ihe dé um certo azul e, esquecido 0 amarelo, ele quer it-se ao Sul. em sua vida, no que toca. see oo — Ja em vez de ir-se ao Sul deseja € ir-se morto. ita. 123 —" — Por fim, inevitdvel, i iil — Se pensa que a caldeira volta a vida amarela: Gee canal ve acender —No amargor amarelo Sees cca da ressaca que 0 espera. Sod ioipacot deuce: — Se vé que, se é caldeira, 9 nem tem assentamento, — Que se é engenho, é —o ° cassaco de engenh de fogo frie ou mort — Engenho que no méi, que s6 fornece aos outros. vé amarelamente todo o rosa-Brasil que cle habita e nao sente. — Para ele, a agua do rio nao é azul mas barro, 10 © as nuvens, aniagem, — O cassaco de engenho pardas, de pano saco. quando vai morrendo: — Ao cassaco de engenho — Entiio seu amarelo nunca a terra é de vargem: se ilumina por dentro. — Eo dia mostra sempre — Adquire a transparéncia desbotada folhagem. propria ao cristal anémico: — EB outra é a morte que vem — Aquela de que a cera retratar seu trespasse: dé o melhor exemplo. — Nao usa pano preto, — Adquire a transparéncia cobre-se, sim, de céqui. prépria de qualquer vela: — Da mesma em cuja ponta = plantam a chama que o vela. —A dele, entio, é igual a carne dessa vela: — Ea chama se pergunta por que nao a acendem nela. — O cassaco de engenho quando doente-com-febre: — Nio de febre amarela mas da de sexes, verde. — Por fora, se se toca no seu corpo de gente: 14 125 . = — O cassaco de engenho quando 0 carregam, morto: — Eum caixio vazio metido dentro de outro. —E morte de vazio a que carrega dentro: —E, como € de vazio, ei-lo que nao tem dentros. — Do caixio alugado nem chega a ser miolo: — Pois como ele € vazio, se muito, serd forro, — O enterro do cassaco €o enterro de um coco: — Uns poucos envoltérios em volta do centro oco. 20 — O cassaco de engenho defunto ¢ j4 no chao: — Para rapido acabs-lo tudo faz mutirio. — O massapé, pigarra, a Mata faz Sertao. — Eo sol, para ajudar, se € inverno faz verao, — Para rocr 08 ossos 0s vermes viram cio: —E outra ver. vermes, vendo © giz. que os oss0s sio, 126 — Eo veo cana dé também sua demio — Varre-Ihe os gases da alma, levando-a (lavando), sio. 7 peo ee we (1959-1961) A José Lins do Régo A cana dos outros 4 Esse que andando planta 08 rebolos de cana nada é do Semeador que se sonetizou. F 0 seu menos um gesto de amor que de comércios e-acana, como a joga, nao planta: joga fora. 2 Leva 0 eito 0 compasso, na limpa, contra 9 mato, bronco ¢ alheadamente de quem fax ¢’naq ientende. De quem nfo entendesse por que s6 € mato estes por que limpar do mato, nao da cana, limpé-lo. 133 3 Num cortador de cana © que se véé a sanha de quem derruba um bosque: nao 0 amor de quem colhe. Sanha firia, inimiga, feroz, de quem mutila, de quem, sem mais cuidado, abre trilha no mato. 4 A gente funersria que cuida da finada hem veste seus despojos: ataca em feixes de ossos, E quando 0 enterro chega, coveiro sem maneiras tomba-a na tumba-moenda: tumba viva, que a prensa. O automobilista infundioso Viajar pela Provenga € ir do timo a alfazema; ir da lavanda & mostarda como de uma a outra comarca. E viajar nos cheiros castos, ainda vegetais, em mato: do casto normal de planta, do sadio, de crianga. Cheiros-comarca, ao ar livre, antes de que Grasse ou Nice ‘os misturem no dleo grosso que lhes dé sabor de corpo. ‘Comarcas-cheiro, onde 0 carro corre familiarizado: onde a brisa ¢ a gasolina se confundem na alma limpa. 135 Ap6s Iéguas de Sernto 86 0 carro vai resvalao, pois a alma que ele carrega se arrasta por paus e pedras. Ela vai qual se a ralasse a lixa R da paisagem; ‘ou qual se em corpo, despida, varasse a caatinga urtiga; ‘ou se estivesse seu corpo, como uma casaca-de-couro, dentro de um ninho farpado, feito de espinhos ¢ talos; ou fosse ela este carro que, em ver de lubrificado, rolasse com as juntas seca ou azcitadas com areia, Qualquer campo da Inglaterra, ainda em dia cru, sem néyoa, mostra 0 aspecto algodoento de uma névoa todo-o-tempo. A névoa-sempre algodoa © espago de coisa a coisa; embota nelas as quinas, © duro ¢ 0 claro, 0 que é linha. 136 E além do aspecto: 0 contato também se faz algodoado: algodio na certa é a hera ‘que abraca sem roer a pedras eas estradas e este carro percorrem-se em tom tao baixo que as rodas na certa vao (c sie) por sobre algodao. Quem vai de carro em La Mancha recebe impressio estranha: a de que ele vai rolando nna agua aberta do oceano. (A Mancha € tao larga, & roda, que ele nao divisa costas; tao cha, que se senciré entre horizontes de mat. ‘Assim, a haste no horizonte €0 mastro de um barco longe ¢éaagulha de uma igreja de um povoado que chega. Que chega: mas quem a quem? quem chega? quem vai ou vem? Sente-se chegar no carro e chegar a vila ou barco. 137 Escritos com o corpo S Ela tem tal composi¢ao € bem entramada sincaxe que sé se pode apreendé-la €m conjunto: nunca em detalhe. Nio se vé nenhum termo, nela, em que a atenco mais se retarde, € que, por mais significante, Possua, exclusivo, sta chave. Nem € possivel dividi-la, como a uma sentenga, em partes; menos, do que nela é sentido, se conseguir uma parifrase. E assim como, apenas completa, ela é capaz de revelar-se, apenas um corpo completo tem, de apreendéla, Faculdade. Apenas um corpo completo e sem dividir-se em andlise serd capaz do corpo-a-corpo necessirio a quem, sem desfalque, 138 queira prender todos os temas que pode haver no corpo frase: que cla, ainda sem se decompor, revela ento, em intensidade. s De longe como Mondrians em reprodugées de revista, cla s6 mostra a indiferente perfeigio da geometria. Porém de perto, o original do que era antes corregao fria, sem que a cimara da distancia suas lentes interfiram, porém de perto, ao olho perto, sem intermediérias retinas, de perto, quando 0 olho ¢ tato, a0 olho imediato em cima, se descobre que existe nela certa insuspeitada energia que aparece nos Mondrians se vistos na pintura viva. E que porém de um Mondrian num ponto se diferencia: em que nela essa vibragio, que era de longe impercebida, 139 [IY Pode abrir mio da cor acesa sem que um Mondrian nao vibra, ¢ vibrar com a textura em branco da pele, ou da tela, sadia. S Quando vestido unicamente com a macieza nua dela, nao apenas sente despido: sim, de uma forma mais completa. Entao, de fato, esta despido, senio dessa roupa que é ela, ‘Mas essa roupa nunca veste: despe de uma outra mais interna, E que o corpo quando se veste de ela roupa, da seda ela, nunca sente mais definido como com as roupas de regra. Sente ainda mais que despido: pois a pele dele, secreta, logo se esgarca, e eis que ele assume a pele dela, que ela empresta. Mas também a pele emprestada dura bem pouco enquanto véstia: com pouco, ela toda, também, jd se esgarga, se desespessa, 40 — até acabar por nada ter nem de epiderme nem de seda: ¢ tudo acabe confundido, nudez. comum, sem mais fronteira, 8 Esté, hoje que no est, numa meméria mais de fora. De fora: como se estivesse num tipo externo de meméria. Numa meméria para 0 corpo, externa ao corpo, como bolsa: que, como bolsa, a certos gestos 0 corpo que a leva abalroa. Meméria exterior a0 corpo eniio da que de dentro aflora; e que, feita que é para 0 corpo, carrega presengas corpéreas. Pois nessa memdéria € que ela, inesperada, se incorpora: na presenga, coisa, volume, imediata ao corpo, sélida, e que ora é volume macico, entre os bragos, neles envolta, ce que ora é volume vazio, que envolve 0 corpo, ou 0 acoita: 2 como ode uma ssa macs que a0 mesmo tempo fosse oca, ‘que © corpo teve, onde jé esteve, conde o ter eo estar igual fora. el O sim contra o sim Marianne Moore, em vex de lapis, emprega quando escreve instrumento cortante: bisturi, simples canivete. Ela aprendeu que 0 lado claro das coisas é 0 anverso € por isso as disseca: para ler textos mais corretos. Com mio direta ela as penetra, com lapis bisturi, e com cles compée, de volta, 0 verso cicatriz. E porque ¢ limpa a cicatriz, econdmica, reta, mais que o cirurgio se admira a lamina que opera. 143 Francis Ponge, outro citurgiio, adota uma outra técnica: gira-as nos dedos, gira ao redor dlas coisas que opera, Apalpa-as com todos os dez mil dedos da linguagem: nao tem bisturi reto, mas um que se ramificasse. Com ele enyolve tanto a coisa que quase a enovela € quase, a enovelando, se perde, enovelado nela. E no instante em que até parece que jé no a penetra, ele entra sem cortar: saltou por descuidada fresta. Miré sentia a mio direita demasiado sabia e que de saber tanto jd ndo podia inventar nada. Quis entdo que desaprendesse © muito que aprendera, a fim de reencontrar a linha ainda fresca da esquerda 144 Pois que ea nfo pide, cepoeann a desenhar com esta até que, se operando, no brago direito ele a enxerta. ‘A esquerda (se nio se ¢ canhoto) mio sem habilidade: reaprende a cada linha, cada instante, a recomegar-se. Mondrian, também, da mao direita andava desgostado; no por ser ela sébia: porque, sendo sdbia, era fécil. ‘Assim, néo a trocou de brago: queria-a mais honesta € por isso enxertou outras mais sdbias dentro dela. Fez-se enxertat réguas, esquadros e outros utensilios para obrigar a mao a abandonar todo improviso. ‘Assim foi que ele, & mao direita, impés tal disciplina: fazer 0 que sabia como se o aprendesse ainda. 45

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