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Aula2 GNOSTICISMO E CRISTIANISMO PRIMITIVO META ‘aula tem como meta proporcionar ao aluno a capacidade de situar a influéncia da flosofia grega no cristianismo. Compreender a origem e natureza do gnosticismo e a refutagdo desse movimento na tradicao dos Padres da \greja -Patristica OBJETIVOS Ao final desta aula, o aluno deverd Compreender articulacéio do pensamento gnéstico e suas imbricagSes no pensamento filosdfico da Patristica século || PRE — REQUISITOS Filosofia helenistica |i Nilo César Batista da Silva Historia da Filosofia Medieval | 24 INTRODUCAO Otermo grego gunse pode ser genericamente traduzido por conhecimento. O gnosticismo enquanto doutrina mistica ¢ filoséfica a grosso modo esta relacionado com a busca de conhecimento, Muito pouco sabemos sobre a doutrina gnéstica, entretanto o nosso conhecimento d repassado de forma tendenciosa por meio dos textos dos Padres da Igreja que em defesa da fé cristi se referiam constantemente a tais doutrinas como heréticas ¢, de acordo com suas posicdes 0 gnosticismo sas doutrinas nos foi filos6fico-teolégicos tem raizes no paganismo tardio, amalgama do helenismo que posteriormente inspiraram as seitas heréticas, Essa filosofia foi adquirindo notabilidade a partir do Coneilo de Nica (325), embora jé exerciam influéncia por todo o Oriente até mesmo antes do cristianismo nascente. Na versio da Patrologia latina 0 gnosticismo foi considerado o principal movimento her o dos ptimeiros séculos ¢ tem relacio estreita com a cul- tura helénica, em particular com as ideias neoplaténicas. Percebe-se também a forte influéncia com 0 pensamento judeu helenizado, representado” por Filon de Alexandria nas suas interpretagdes alegéricas dos textos Sagrados. Filon de Alexandeia (Fonte: herp /s3clrugiegorods 0), FILON DE ALEXANDRIA (25 A.C — 50 D. C) Exegeta judeu que viveu em Alexandria (Egito) no decorrer do século 1, conjuga filosofia grega com a tradi¢io judaica, Lia os textos da Escritura utilizando categorias filos6ficas platdnicas, aristotélicas, estéicas ¢ céticas. CE. CALABI, Francesca. Fon de Alexandria’ Tradugio José Bortolini, Sa0 Paulo, Paulus, 2014, p. 11 Gnosticismo e Cristianismo primitivo | Aula 2 Outra vertente de estudos demonstra que a doutrina gnéstica no comego da era crista estava intimamente vinculada a complexidade do sincretismo das religides orientais.Essas doutrinas tratavam de problemas existéncias da realidade do mundo € mais concretamente ocupavam-se da explicagio sobre a origem do mal e do bem. A posi¢io gnéstica tem como ponto de partida o dualismo entre o bem (Deus) 0 mal (matétia). Na interpretacio dos gnésticos o ser divino produz por emana série de cones, cuja perfeicio vai decrescendo, assim 0 mundo é uma etapa intermediaria entre 0 divino € o material Eones, terme utilizado pelo gnstiismo para designar a intelgéncia divina ¢ eterna, emanados da nnidade supreme que pe em relagio a matiria ev espirita De certo modo isso faz com que as doutrinas essenciais do cristianismo, como a criacio do mundo, a redengio do homem, adquiram um carter natural como simples momentos da grande luta dualista entre o material ¢ imaterial, o bem ¢ o mal, O saber gndstico nio € ciéncia em sentido usual ¢, tampouco pode ser considerado revela¢io enquanto doutrina teolégica ow religiosa, mas eram caracterizados de um saber por iluminacio superior chamada de grésis, com aqual pretende explicar forgosamente, os textos sagrados, recorrendo 4 interpretacio alegérica, € por isso frequentemente cometem heresias para os cristios, Criagio dos Gndsticos (Fonte: hp://dialoghiconpictroauticramyblogi) 25 Historia da Filosofia Medieval | 26 GNOSTICISMO (gr. yi Gnosticismd). Foram assim designadas algumas correntes flos6ficas que se difundiram nos primeiros séculos depois de Cristo no Oriente € no Ocidente. A literatura que produziram era rica e variada, mas perdeu-se, A exceciio de poucos textos conservados em tradugdes coptas, chegando até nds apenas através dos trechos mencionados ¢, ao mesmo tempo, refutados pelos Padres Apologistas. O Gnosticismo é uma primeira tentativa de filosofia cris, feita sem rigor sistemaitico, com a mistura de elementos cristaos miticos, neoplatdnicos e orientais, Em geral, para os gndsticos o conhecimento era condigio para a salvacio, donde esse nome, que foi adotado pela primeira vez pelos Ofitas ou Sociedade da Serpente, que mais tarde se dividiram em numerosas seitas. Estas utilizavam textos religiosos atribuidos a personalidades biblicas, tal como 0 Eangelbo de Judas, mencionado por Irineu (Ade. baer, 1, 31,1). Outros textos dessa espécie foram encontrados em tradugdes coptas; entre eles, 0 mai importante ¢ Pists Sophia (publicado em 1851), que expoe em forma de dislogo entre o Salvador ressuscitado e seus diseipulos, especialmente Maria Madalena, a queda ea redencio de Pistis Sophia, ser pertencente 0 mundo dos Eanx.), bem como o caminho da purificacio do homem por meio da peniténcia. Os principais gnésticos dos quais temos noticia io: Basilides, Carpécrates, Valentim e Bardesane, cujas doutrinas sio ‘conhecidas pelas refutacdes feitas por Clemente de Alexandria, Irineu ‘¢ Hipolito, Uma das teorias mais tipicas do Gnosticismo. é 0 dualismo dos principios supremos (admitido, p. ex. por Basilides), ligado a concepgdes orientais, A tentativa de uniao entre os dois prineipios, bem e mal, tem como resultado o mundo, no qual as trevas e a luz se tunem, mas com predominio das trevas, Cf. ABBAGNANO, Nicola Diionéria de Pilsofia, Traducio de Iwone Castilho Benedetti, 1* ed. Paulo, Martins Fontes, 2000, p485. |. Gnosticism; fr.Gnosticisme; ai. Gnosticismus; it. Identificamos nos tiltimos tempos novas pesquisas de textos gndsticos. Foram descobertos surpreendentes manuscritos na biblioteca de Nag- Hammadi no Egito. Tais manuseritos descobertos em Nag Hammadi reGnem alguns ensinamentos sobre a criagio do cosmo, sobre a vida, morte e ressurreigao de Jesus Cristo ¢ a relagio do mestre com os seus apéstolos, hist6rias desconbecidas e controv disponiveis em outras linguas, na coletinea chamada de os apverijes do Novo ‘Testament. jas. Muitos des textos tornaram-se Gnosticismo e Cristianismo primitive | aula 2 (Fonte: hup://4.bp blogspot.com) ‘Manuscrtos Grnésticos encontrados na biblioteca do Egito (Fonte: hups://konekrusoskronosfles.wordpresscom). Estudos realizados desde 1945 na biblioteca de Nag-Hammadi no Egito a margem do mar morto despertou atengio de muitos estudiosos interessados na investigaeo de correntes do gnosticismo decorrente no século II. Foram encontrados textos manuscritos gnésticos originais em linguagem copta. Cf, RUDOLPH, Kutt. Gnosis, she Nature &Historyof Gnosticism, HarperOne, 1987, p. 34, (traducio nossa do inglés). 27 Historia da Filosofia Medieval | 28 BIBLIOTECA de NAG HAMMADI -EVANGELHOS GNOSTICOS eer |otosio sen Jos MONSHARAT TORRENTS Irmasersco oatcta nas ésauno Evangelhos gatos (Fonte: bups//poralvos files wordpress.com) Vimos que da relagio de embate dos Padres da Igreja com os gndsticos orientais surge um forte movimento no protocristianismo, chamado de“gnose crist’”,com a finalidade de combateras heresias contra a f& cristl, Destacam-se nese movimento de ataque aos gndsticos pagiios, os apologetas, do século II, Justin, o Mértir (100-170), Tertuliano (169-220), Origenes (254), e os demais Padres da Igreja que fundaram 0 movimento filos6fico denominado de Patristica. A PATRISTICA - SECULOS II- VI Patristica é uma corrente filos6fico-teolégico composta pelos Padres da Igreja nos primeiros séculos da era crist@, Os textos originais dessa época foram redigidos em grego e latim. Os Padres da Igreja eram considerados grandes pensadores que por suas investigagdes contribuiram para o fortalecimento da doutrina cristi, aproximadamente a0 longo de seis Séculos, Do Oriente a0 Ocidente constituitam-s “Pais” ¢ doutores da Igreja, firmaram os fundamentos da fé crista, enfrentaram muitas heresias ¢, de certa forma foram responsiveis pelo que chamamos de Tradicio da Igreja. Transmitiram a filosofia grega para o mundo latino, edificando os alicetces da filosofia medieval. Gnosticismo e Cristianismo primitivo | Aula 2 GNOSTICISMO E O CRISTIANISMO NASCENTE. A relacio entre gnosticismo ¢ filosofia cristi nio é simples para dela ter explicagio em poucas paginas, a partir do momento em quea propria nogio de gnosticismo se mostra complexa, todavia, tornar-se-ia fugaz abordar de forma superficial a fragmentacio textual de diversas scitas ¢ escolas, No movimento gnéstico difunde-se a erenea de que a verdade divina esta contida numa revelacio acessivel somente ao siniciados, os quais podiam ‘obté-la por meio da experiéncia dircta da revelagao ou mediante a iniciacio A rituais secretos,cxotéricos onde sio dadas tais revelacées. Por estas razSes que o gnosticismo foi combatido de modo especialmente inteligente por uma série de Padres gregos e latinos, desde Santo Irineu no século II € seus contemporineos até Agostinho de Hipona na edigio Sobre a verdadcira religito (389), um texto de teor bastante apologético, Ambos procuram sustentar a tradicio revelada aos apéstolos e dar garantia A continuidade da Igreja ameacada pelo movimento herético gnéstico. AAgostinho de Hipona conheccu a doutrina gnéstica no maniqucismo do qual fez partc, mas logo passou a refutar suas tescs por considerar um afrontamento as bases filosdficas da fé crista. Com o advento dos Padres da Igreja, a filosofia foi se tornando instrumento doexercitatio da razio para sustentar com vigor os contetidos da fé crista, prescrevendo-se como programa de estudona Idade Média o lemma Fides quacrens intellctu. Os apologistas mais expressivos, como vimos, foram os Padres orientais, So Justino, da Palestina, morreu mirtir da Igreja no ano 170, Santo Irineu € Santo Indcio de Antioquia, também fizeram partes desse movimento gnéstico cristio. Seus eseritos, portanto, sio, por vezes, apologias propriamente ditas, por vezes ia ¢ algumas teses, frequentemente dirigidas contra os pagiios, por isso foram buscar no pensamento grego as bases com refutagdes severas para 0 enfrentamento dos gnésticos. Justino, por exemplo, ficou conhecido pela sua instabilidade nas escolas gregas passando por diversas escolas filoséficas a peripatética, estdica, pitagérica em busca do fundamento da verdade, nio encontrando seu porto seguro em nenhuma corrente de pensamento abandona o gnosticismo ao ingressar no cristianismo, onde encontrou a verdade. Nesse Ultimo estigio Justino procura a unidade, a conciliacio entre paganismo ¢ cristianismo, entre filosofia e revelacio, por sua vez, julga encontrar seguranca na fé desligando-se da filosofia grega A Escola de Alexandria também exerceu um papel importante na transposigaio da cultura filoséfica grega para o mundo latino, Clemente de Alexandria esereveu 0 Stromata, obra eclética que se caracteriza por uma mistura de crengas misticas € ideias filoséficas gregas,valorizando ‘io da razio por meio da filosofia, Clemente sustentava que a compreensio de uma verdadeira grase, ainda que crist, subordinada , obras de controv enormemente o exer 29 Historia da Filosofia Medieval | 30 4 fé revelada que € 0 critério supremo da verdade, isto é, a filosofia deve ser etapa prévia para chegar a esse saber mais elevado que qualquer outro - o saber mistico. Contudo, a teologia de Clemente deveria negar a possibilidade de compreender Deus, por meio de uma teologia simbélica ou afirmativa, dada a sua absoluta transcendéncia, diante dela s6 pode ser valida a chamada “teologia negativa”. Mas como pode o conhecimento do “verdadeiro gndstico” excluir a possibilidade de que Deus seja conhecido? A gnose de Clemente constitui, por certos aspectos, a rejeicao do platonismo no qual fandamenta a mistica especulativa, Para Clemente de Alexandria, “o conhecimento pelo qual podemos chegar 4 Deus niio é 0 do intelecto, mas sim por uma iluminagio, essa € a no¢io Clementina do conhecimento mistico de Deus. O santo no vé mais através de um espelho, mas numa visio absolutamente clara e pura, ele se esforca por se assemelhar a Deus para ficar no estado de unio com ele”, (Sram. VIL3, 14, 1). “A verdadeira ciéncia ¢ aquela que nos proporciona o conhecimento de Deus. O gnéstico tendo ultrapassado todas as etapas da experiéncia mistica, encontra face a face com ele”. (Cf. MORESCHINI, Claudio. 2004, pp. 43-44), Percebemosaté 0 presente momento que ha intimeras controvérsias na investigacio sobre a origem e a natureza dos escritos gnésticos. Alguns consideram um movimento genuinamente cristo, outros os consideram uma ameaca a mensagem dogmitica crist’. Enquanto muitos defendem que suas origens estejam na religiZo pré-cristi de origem judaica, filésofos contemporineos, assim como o francés Michel Foucault (1926-1984) destacou a influéncia da filosofia grega no movimento gnéstico, 0 que ele define por “aguda helenizagao do cristianismo”. Ni Foucault pretende caracterizar e revestir o cristianismo de gnosticismo, algo que nio podemos afirmar com propriedade, devido as suas imensas divergéncias. (CE. Foucault, Michel: 2010, p.312). Estudos recentes demonstram que ha uma considerivel presenga do gnosticismo na cultura eristi. Por volta do ano 100-140na regio do delta do Nilo identificam a existéncia de um gnéstico, bispo de Alexandria por nome de Valentino que se tornou influente lider espiritual nas primeiras comunidades cristis. Fm busca de se candidatar a papa foi transferido para Roma, Sua produgio literiria logo foi refutada pelo apologista cristio, Tertuliano (169-220) por considerar seus escritos de natureza herética, por conseguinte decorreu no interior da Patristica intimeras teses em refutagio aos gndsticos por considerar esse ensinamento perigoso a doutrina crist’. ¥e caso, Gnosticismo e Cristianismo primitivo | Aula 2 © apologise Tertaliano (Fone: huep//ugabuga.), TERTULIANO (169-220) Notivel apologista crista, foi um inimigo fervoroso do gnosticismo de toda cultura pag e mesmo da propria ciéncia racional. Ao se voltar contra 0s gnésticos, que usavam os recursos da filosofia, volta-se contra ela, Tertuliano nasceu em Cartago no norte da Africa, A cidade de Cartago era uma provincia colonizada pelos romanos, situada a onde hoje é conhecido como Tunisia, Seu pai, pagio, era um subalterno no exército carteniense. O jovem Tertuliano teve seu estudo universitério em Roma, onde se formou em direito, como advogado ele recebeu ‘uma extensa educagio em retorica e leis. A producio textual do sistema gnéstico de Valentino nos aleangou de mancira pormenorizadas, através das refutacdes dos heresidlogos, ou seja, por meio dos estudos da Patrologia grega ¢ latina, que segundos os Padres da Igrejase trata de uma doutrina fortemente intelectualizada, tanto que, para os antigos essa especulagio estava civada de ecos platénicos, (CE. Tertuliano, Contra os valentinianos 15, 1; 16, 3).Conforme Tertuliano, os valentinianos entenderam os és em analogia com as ideias platonicas ¢ também conforme referéncias Tertulianas, Valentino teria entendido os dins como pensamentos, afeicoes movimentos dentro do ser divino € que somente Tolemeu, 0 grande sistematizador da escola valentiniana, teria feito deles realidades pessoais (Cf. Tertuliano, Contra os nalentinianes 4, 2) Os valentinianos usaram 0 termo probolé para indicar 0 processo de ‘emanacio da realidade primordial. Também para indicar o ser emanado, Cada ‘emanacio conserva a esséncia do Pai quea emana, mas com uma diminui¢io sempre crescente, A medida que se afasta de Deus, essas afirmagdes se 31 Historia da Filosofia Medieval | 32 tomaram duvidosas para muitos filsofos cristios. (Cf MORESCHINI, Claudio, op. cit, p.53). E importante notar que embora os valentinianos afirmassem a origem da matéria, nfo pensatam, todavia, numa creatis ex mibilo. Segundo os gndsticosa matéria no é cada por um ato soberano de Deus, mas se forma como o produto da queda de Sophia. O mesmo esquema pltinico da criagio do mundo € transformado, a0 passo que, segundo os valentianos, o demiurgs no conhece as ideas das coisas que cria; ee produz o que Sepialhe insinua, mas para Sophia era co pleroma, isto é, 0 modelo da criagao. “O verdadeiro criador é, portanto, Sophia, 0 passo que 0 demiurey & rebaixado a mero instrumento de Sophia Também a ssubstincia hilica, de que se formam nao somente os elementos do mundo, mas também os deménios e as almas dos animais, que sio substancialmente iguais a les, possuem os predicados com os quais os platonicos caracterizavam.a materia”. CE MORESCHINI, Claudio, «, atp.56 O LOGOS NO PENSAMENTO APOLOGETICO DE JUSTINO (4163). Justino fundamenta seus escritos na doutrina do logos que retrata 0 Pensador grego, Heniclito de Ffeso, quando utiliza o termo para explicar a unidade da realidade em seu constante movimento. Esse consiste da parte de Justino o grande esforco no sentido de incorporar elementos da filosofia helénica no cristianismo,Tal esforco justifica-se também pela pretensio de situar 0 cristianismo na condigio de religiio universal, nessas condigdes, Justino escreve uma teologia da histéria,tendo como base a analogia entre 0 discurso filosdtico do dager e o agir de Deus na histéria da criagio. Com efeito, as opinides de Justino sobre a filosofia antiga eontém em germe também uma filosofia da historia de alcance universal, destinadaa um duradouro éxito de Eusébio a Ordsio, Justino considera toda a histéria da humanidade, tanto a de Israel como a dos gregos, como uma histéria dirigida por Deus, Somos convidados a fazer uso da razio para viver e pensar segundo o /eges, por conseguinte descobrir a verdade. Para os individuos assim como para todos os povos, gregos e birbaros, é na histéria que se realiza o plano divino de redencio. O apologeta se apropriando do pensamento grego para explicar 0 ExGrdio do Enangelbe de Joao, chega a conclusdes teol6gica importantes 20 dizer que o logos & o Verno de Deus encarnado na histéria, no somente encarnado, mas também ja presente desde o inicio dos tempos na histéria da humanidade. O Filho de Deus, o « serbum dei » que se fez humanidade ¢ também a revela a suma sabedoria ¢ racionalidade. Justino, portanto, talvez seja o primeiro a elaborar de modo orginico a interpretagio de tipo filosdfico e anilogo o logos no texto joanino, Nogio que se prolonga por toda a especulagio filos6fica-teol6gica medieval. Nao se pode esquecer, alifs, que ele manteve contato com a filosofia medioplatOnica, conheceu Gnosticismo e Cristianismo primitivo | Aula 2 a interpretagio alegorica de Atenas como intelecto de Deus, do platénico Antioco de Ascalénia (130-68 a.C.), em referencias a0 pensamento divino e a realidade inteligivel. A mente de Deus coincide com 0 “mundo coneebido pelo pensamento”, ou seja, com a totalidade das ideias. Justino, no contato com o Evangelho de Joao, percebe que o logos estava presente na criacio do munda. As analogias entre as teses do cristianismo sobre a criagio do mundo so encontradas no Timeu de Plato, obra que foi muito bem assimilada no medio platonismo.O apologeta também percebe algumas analogias entre a narrativa do profeta Moisés do antigo testamento com a cosmologia medioplatonica e ainda ousa afirmar que Platao tirou de Moisés seus conhecimentos do Timeu. Mas, diferentemente dos platonicos, Justino, jamais atribui a matéria a origem do mal. A realidade criada possui, por sua natureza, aliberdade de responder para o bem e para 0 mal a criago como tal é boa. De acordo com Etienne Gilson, o texto “Dilogo com Trif” escrito por Justino é de uma importincia capital, por nos mostrar, num caso conereto € historicamente observivel, como a religido crista pode assimilar imediatamente um dominio reivindicado até entio pelos filsofos. Justino se apresenta como © primeiro daqueles para quem a revelacio crista é o ponto culminante de uma revelacio mais ampla e, mio obstante, cristi a seu modo, pois de toda a revelagio vem do Verbo € que Cristo é o Verbo encarnado. Podemos, pois, considers-lo 0 ancestral dessa familia espiitual crist, da qual o eristianismo largamente aberto reivindica como seus todo 0 verdadeiro ¢ todo o bem, que cle se dedica a descobrie para assimilar”. (CE GILSON, Btienne:2013, p. 48), Nao obstante, por algum tempo Justino sentira- filosofia Platonica, mas nao demorou em verificar que a filosofia grega nfo estava em condigdes de dar respostas aos problemas mais essenciais do cristianismo nascente. Leia-se em algumas partes do Dilgo com Trifun. atisfeito com a |JUSTINO (163), DIALOGO COM TRIFON (DEPOIS DE 202), MG T. 6, C. 477. Eu também nutria, a principio, o desejo de tratar com algum destes filésofos, Ditigi-me, pois, a um estGico, ¢ passei com ele bastante tempo. Entretanto, como nada adiantasse no conhecimento de Deus — ele mesmo cra inerédulo ¢ julgava desnecessario tal saber — abandonci-o, € associci-me a um dos que passam pelo nome de peripatéticos, Este homem se tinha em conta de muito perspicaz. Frequentei-o por alguns dias, Pediu-me entao que lhe pagasse um salitio, para que as nossas relagGes no resultassem intteis, Porisso abandonei-o, deixando mesmo de té-1o em conta de filésofo. Mas como a minha alma persistisse no desejo ardente de conhecer a natureza e a exceléncia da filosofia, fui ter com um renomado pitagérico, que muito se vangloriava de seu 33 Historia da Filosofia Medieval | 34 saber. Ao tratar com ele da minha admissio como ouvinte e diseipulo, petguntou-me: “Como assim? Jé estudaste, porventura, a musica, a astronomia ¢ a geometria? Ou julgas poder contemplar alguma daquelas realidades que conduzem A felicidade sem teres aprendido primeiro estas ciéncias, que desembaracam a alma das coisas sensiveis, €a tornam apta para as inteligiveis, de modo a poder contemplar o que ébelo c bom em si mesmo”? E tendo clogiado sobremancira aquclas ciéncias c insistido na sua nccessidade, despediu-me, pois tive que confessar que as ignorava, Escusado dizer que me entristeci bastante com esta nova desilusio, tanto mais que eu tivera a impressio de que ele sabia alguma coisa. Mas, refletindo sobre o tempo que teria que gastar naquelas disciplinas, niio me senti disposto a tio longa demora. Cada vez mais perplexo, resolvi procurar os platdnicos, que também desfrutavam de grande fama, Ora, justamente naqucles dias chegara & nossa cidade um dos representantes mais doutos ¢ cmincntes desta escola. Pus-me a frequenti-lo com a maxima assiduidade. Fiz grandes progressos € apliquei-me diariamente a ele, tanto quanto me era possivel. Senti-me tomado de um grande entusiasmo pelo conhecimento das coisas incorporais, ¢ a contemplacio das Ideias dava asas a meu espirito. Comecei logo a ter-me por sibio, ¢, tolo como era, cuidei chegar sem demora a contemplacio de Deus. Pois este é 0 objetivo da filosofia platénica. Cf. BOEHNER, Philotheus ¢ GILSON, Etienne, Histéria da Filosofia Crista. Desde as Origens até Nicolau de Cusa, Petrépolis: Editora Vozes, 2000, p. 32. Com efeito, Justino & uma figura relevante no programa filoséfico da Patristica, nfo tanto pela originalidade de suas concepgdes, mas porque nela pela primeira vez encontramos a figura do filésofo cristo como aquele que possibilitou a sintese entre filosofia grega e o cristianismo, Justino conhecia a cultura grega ea utiliza para expora verdade crista, servindo-se constantemente das idcias helénicas, na tentativa de harmonizar com os contetidos que justificam, atcologia da revelagao, ha nele, portanto, uma accitacao do pensamento racional dos gentios, que contrasta com a hosiilidade de Tertuliano. ACONCEPGAO DE DEUS EM IRINEU (130-202) - CONTRA AS HERESIAS (180 D.C.) Apesar de ser considerado 0 fildsofo da Patristica, 0 corpus textual de Irineu de Lyon tem cariter essencialmente diferente dos apologistas que estio voltados para a filosofia grega. O filésofo de Lyon estava mais preocupado com a doutrina crist’, por este motivo pretende formular um sistema cclesiolégico para favorccer a edificacio da Igreja. Gnosticismo e Cristianismo primitivo | Aula 2 SANTO IRINEU DE LYON (130-202) Padre da Igreja, grego, filho de pais cristios, nasceu na ilha de Esmina, no ano 130. Poi discipulo de Policarpo, outro Padre e santo da Igreja. Dele Irineu pode recolher ainda viva a tradi¢io apostélica, pois Policarpo fora consagrado bispo pelo prdprio Joio Evangelista, (© que torna importantissimos os seus testemunhos doutrinais. A sua obra escrita mais importante foi o tratado "Contra ar beresias", onde trata da falsa gnosc, ¢ depois, de todas as outras heresias da época. texto grego foi perdido, mas existem as tradugées latina, arménia ¢ siriaca. Importante nao sé do lado teolégico, onde expés j4 pronta a teoria sobre a autoridade doutrinal da Igreja, mas ainda do lado histérico, pois documentou e nos apresentou um quadro vivo das batalhas ¢ lutas de entio. Mais tarde, um outro tratado, chamado "Demonstracio da pregacio apostélica", foi encontrado inteiro, numa tradugio arménia. Além de virios fragmentos de outeas obras, cartas, discursos ¢ pequenos tratados. https://www>paulinas.orgbs/ diafeliz ?system=santo8eid=296 Irineu quando esereve © Contra as beresias, pretende desenvolver um grandioso sistema eclesiolégico, o mais significativo dos primeiros séculos cristios, e capaz de se impor até mesmo aos esctitores seguintes, por varios aspectos. Todavia, Irineu nao é um escritor inculto. O seu conceito de Deus se caracteriza, como o dos apologistas, por concepgdes filos6ficas, embora no muito aprofundadas. Sua concep¢io gira em torno de que Deus é nio-nascido, eterno, no tem necessidade de nada, basta a si mesmo e di aos outros seres a existéncia (Contra as heresias IH 8,3); € perfeito, todo luz, todo espirito, todo substincia e fonte de todas as coisas boas (CE. Contra as Aeresias WV 1;112,2; 11 13,3.8; 28,4). Deus abraca tudo e, como nio-nascido, esta acima de todo ser ctiado (Cf. Contra as heresias 11 25 3; V 5,2). No se- gundo livro da sua obra, © Contra as heresias,Irineu pretende refutar as argumentagées dos gndsticos, partindo desses pressupostos supracitados, Ele considera os éons da doutrina dos valentinianos como uma série de fungdes espirituais e psiquicas hipostasiadas; poriisso, o erro daqueles heré- ticos consiste em atribuir a Deus as afeigoes da alma humana (CE. Contra as eresias 113,3.8; 28,551 12, 1s). Ao contritio, Deus ¢ simples isso é tudo o que o homem pode dizer sobre ele. Se se separa de Deus 0 Intelecto como uma forma de emanagio, faz-se de Deus um ser composto. 35 Historia da Filosofia Medieval | 36 SOBRE A DOUTRINA DA CRIACAO DE IRINEU DE LYON A doutrina da criagio de Irineu de Lyon, tem caracteristicas platénicas, por quem os gnésticos, como diz, teriam sido influenciados (II 14). Essa concepeio o leva a tracar um modelo de cosmologia que depende certamente de Teéfilo, mas o amplia e o supera. Deus criou 6 mundo por um ato de livre vontade e de bondade (II 1,1); 0 fez mediante a sua palavra e nessa afirmagio Irineu retoma a concepgao de Tedfilo de que as mios de Deus seriam a sua palavra ea sua sabedoria (1 22,15 11 2,4 ss5 11,15 27,2). Ble ctiou por si mesmo também a matéria: isso significa, consequentemente, que a matéria certamente nao preexistia a criacio, mas que somente Deus é 0 criador em sentido absolut. Se existem “ideias” origindrias das coisas, elas sio produzidas por ele do mesmo modo como a matéria (11 30,9). CE. MORESCHINI, Claudio. Histéria da Filosofia Patristica, Teadugio Orlando Soares Moreira. Sio Paulo, Loyola, 2008, p.91) CONCLUSAO A Patristica pode ser analisada sob dois aspectos importantes: 0 hist6rico € filoséfico-teol6gico. Do ponto de vista filoséico-teol6gico, percebemos que 0 Padres, tedlogos da lgreja oriental se mostram mais audaciosos e inclinados A especulagio enquanto os latinos se dedicam mais a exposigio e defesa da f& Crist. Estes refletem uma certa hostilidade para coma filosofia grega e limitam a teologia a uma simples apresentagio das doutrinas contidas na Sagrada Escritura, Os Padres orientais acentuam mais o aspecto da contemplacio € do éxtase, elementos assimilados do platonismo. Com efeito, os Padres da Igreja no dispdem de um sistema filos6fico definido ¢ rigoroso. Toma do pensamento helénico os elementos de que necessitam em cada caso e, ademais, é preciso ter em conta que seu conhecimento da filosofia grega é muito parcial e deficiente, As questdes que mais preocupam os Padres da Igreja sio as mais importantes formuladas pelo dogma, Os problemas filos6ficos (e isso ocorre também na Idade Média)

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