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Trazendo o melhor da reflexaio \démica sobre antropo logia, relagoes de género e a historia da ciéncia num texto de grande eloquéncia, Antro pdlogas & antropologiaha de se tornar um dos classicos do campo das ciéncias sociais brasileira. Pereorrendo as primeiras décadas do século 20, Mariza Corréa nos apresenta mulheres aventureiras — sertanistas, naturalistas, pequisadoras — que ensaiavam os passos ini- iais de uma nova ciéncia vol- tada principalmente para ‘trabalho de campo entre povos indfgenas. Longe de fornecer uma simples biografia, apro- veita as variadas fontes — cartas, recortes de jomal,entre- vistas ¢ até romances — para perguntar como a sociedade reagia a essas mulheres que fugiam da suposta norma Através dese sutil jogo de espelhos, introduz a antropo- logia das relacoes de género, trazendo a tona uma vasta € atualizada bibliografia, Rejeita concepgoes rigidas calcadas no dimorfisma sexual e evoca a figura do andr6gino para por em questdo os proprios limites do feminino/masculino. Com isso, torna sua andlise alta- mente relevante para a socie~ ANTROPOLOGAS & BP arcsec ae ANTROPOLOGIA ; Pen ee no campo semantico, Mariza Corréa Hound, extraordindrias, a autora trar para seu material o olhar também de historiadora, Dev ‘Ao descrever esas mulheres ASIN: 85-7041-299-1 | cop: 01 cou: 56 ‘Guapo a pula Divo de Paspimcnioe Drago ds lotsa Universi -UFMG AlexamlreVasconecloe de Mo PHOJETO GRAMICO carn Marcelo Bello, sobre Netrato de Herta Ribeiro de Jose Panett (oto de Paulo Castishon! Lara, da equipe de Ana Marla Galano do Instituo de looms Cltnchs Solas da Universidade federal do Kia de Janei, Ns conta a snaaha que §.Pavlo, delirundo, recebeu em seus bragos monstros os herdis er Jove Pancet, 31 julhorI945"). Funda Day Kbsro RODUGAO GRAnCA FORMATAGAO. Tadao Femees Marcelo Helio "ice Retr Marcos Botte Viama ‘Av Aso Clos, 6627 - Ala dis da Eiblltecs Cena treo ‘Compus Pampalhs - 31270901 - elo HorzomeMG Tels (31) 5499-4660 - Fax (30) 3199-4768 ‘wonton. ngbe CCONSHLHO EDITORIAL Anidnio Laie Pinko Ribeito, Neti Rezende Dantas, Carls Anitnio Leite ‘no, Helos Mari srg Stating blz Oto Fagundes Amaral Mara ds (rags Sona bar, Maria elon Daanascone e Siva Mega, Hore Cardo “Guinuites, Wander Nelo lands (render) Ctisiano Machiso Gono, Denise Hieio Soares, Leo Hari Castles, Lucas “Jon Brcus dow Sato, Mara prec do Santos Pav, Mauelo Nunes Vek, ‘Newton Hipot de Sour, Reinaldo Maainino Marques, Ricardo Casaera PlaentaFigeledo Para Cecilia, Berta e Clara, om admirago e saudades, ara Thiago ¢ Henrique, cou esperanca. AMtruLo APirULO apfruLo AprruLo AperuLo vi LSTA DE FIGURAS APRESENTAGAO INTRODUGAO 1 NATUMEZA IIAGINARIA D0 GENERO NA HSTORA TRES HEROINAS DO ROMANCE ANTROPOLOGICO BRASILEIRO ‘A DOUTORA EMILIA & © DETALHE BTNOGRAFICO (08 INDIOS BO BRASIL FLEGANTE & [A PROFESSORA LEOLINDA DALTRO DONA HELOISA & A PESQUISA DE CAMPO (© MISTERIO DOS ORIXAS E DAS BONECAS RACK E GENRO KA ANTROPOLOGLA HRASILNRA (© ESPARTILHO DE MINHA AV Notas DIBLIOGRAFIA 65 31 107 141 163 209 261 {isla pesquisa teve inicio em 1989 ¢ é um desenvolvimento dle ina pesquisa mais geral sobre a hist6ria da antropologia io Brasil, que se iniciou em 1984." Seria um longo détour Nistorlar Codos os desdobramentos dela, aqui, mas gostaria apontar alguns dos aspectos que me parecem pertinentes a das reflexdes ima questo mais geral e que surgiram a pat fe el. A primeira, € que tem sido a questio mais insistente quando lo desta pesquisa, € se se trata aqui da anilise de “mulheres fexcepeionais", 0 que, portanto, pouco poderia acrescentar \o estudo das relagdes de género em nossa sociedade. Aqui preciso refletir tanto sobre qual seria a “ordem do género"? ‘ei nossa sociedade quanto sobre o significado de “excepcio- huilidade"— © sugerir que aquela ordem, seja qual for, esté hipre sujeita a contestagdes, subversdes de sentido, revis6es. Jissay mulheres s20, sim, excepcionais, mas em outzo sentido no sentido de que é possivel recuperar sua trajet6ria social, \inda que de maneira truncada, € minimamente avaliar as seagoes da sociedade de sua época ao seu trabalho ou a sua iuagao, ja que outros exemplos de*contestagdo ou revis2o «los sentidos normativos de uma ordem do género sio ainda eseassos. E € justamente a reaglo ao que parece “inusitado” hha Epoca 0 que nos permite refletir sobre o que seria o usual. O m todos os exemplos de discursos citados ju, aquilo contra o que esas personagens pareciam se insurgir, de maneira discreta ou militante. E o usual que esté implicito nas verses romanceadas das trajetérias dessas tres personagens © nas enfrentam, Ou, para falar como Bourdieu,! trata-se, nos t@s casos, «le uma ameaca 2 ordem institucional — e: 5 que cl empreendimentos contririos 3 ordem institucional, A ameaca aquela ordem s6 se torna clara quando lemos as respostas literdrias a seus empreendimentos: a ornitéloga [Emilia Snethlage] que deveria cair cativa do canto de um passaro sedutor; a aventureira (Leolinda Daltro] que deveria se aven- turar pelos sertdes, de fito, 2 procura de um homem, ou a diretora de museu [Heloisa Alberto Torres] que, solteira, deveria viajar com uma companhia masculina — jovem ¢ inepta, mas masculina, de acordo com os relatos, histéricos ou roman- ceados, de suas trajetorias. E dificil deduzir do material disponivel uma estrutura ins- crita ‘na subjetividade, isto é, nos corpos* (Bourdieu) — no entanto, a idéia de “transformacao de sua relacdo subjetiva ‘com seu corpo” poderia ser lida na avaliacio feita do aventurar-se dessas personagens em territérios selvagens, deslocando-se dos espacos urbanos que eram suas referencias biogrificas originais ¢ expondo seus corpos As ameacas naturais (animais, indios, desastres) ou sociais (“inimigos” nacionais ou inter- nacionais). Nao se trata, apenas, de uma invasao do espaco pGblico, para invocarmos a dicotomia consagrada que estaria sempre presente na distribuigio de homens © mulheres no espago social: essas trés personagens foram além disso 20 fundamentarem, por assim dizer, essa sua incursio 20 dominio piiblico — das associagdes, da imprensa, das instituigbes, da cigncia — a partir de suas incursdes a0 dominio da natureza que elas, inquictamente, pareciam querer subjugar. Daf as tentativas dos romancistas de realoci-las ao seu lugar, através da recorrente metifora da natureza que se rebelava contra elas. Emilia, Heloisa e Leolinda seriam assim “romanceadas" como perdedoras nese embate — ainda que, aparentemente, em dois casos, as narrativas ficcionais as elejam como heroinas positivas. O que s6 torna o terceiro caso, 0 da heroina negativa, mais interessante. Uma segunda questio, diretamente suscitada pela discussio anterior, diz respeito As relagoes entre homens € mulheres naquela esfera piblica, ja que se poderia dizer que, a0 entrarem no servigo péblico ou postularem cargos ptiblicos — o que era explicitamente censurado por varios porta-vozes do decoro social da época —, no era apenas como individuos invasores que elas eram vistas, mas como portadoras de uma +“ Welln logica”, a légica da esfera “doméstica”, que poderia Jolvir a logica da esfera pablica, Essa poluigao € justamente © Wile Se pode ler nas entrelinhas de todas as acusagdes contra ‘jon 16s personagens em momentos de crise: quando Heloisa # yeunacla de comprar cortinas para o Museu Nacional, Emilia, Sewjada dle cistribuir 0 alimento destinado aos animais do ‘Museu: Gocldi as familias de seus trabalhadores ou Leolinda, wewnuda de usar de sua seducio para trazer do sertio um jemonagem controverso, parece tratar-se de explicitar que jweledade © regida por légicas distintas, que comandam 0 Fomportamento feminino de modo diferente do que coman- sii) Comportamento masculine. Como se se tratasse de uma feprodusie, no nivel ideolégico, no nivel das normas, do Wimorfismo sexual da espécie humana. O que emerge no Awompankamento dessas trajetGrias é exatamente o contritio: » comportamento dessas (e de algumas outras) senhoras aqui nuluclas parece ser antes regido pela légica inerente As fungOes que ocupavam — ou 4 profissio que exerciam —, As Clrcunstineias em que viviam ¢ aos interlocutores com quem conviviam, A conclusto geral dessa andlise, se ha alguma, € im ponto no qual tenho insistido h4 muito tempo © que € formulado no Capitulo VI da seguinte maneira: € impossivel Viver numa cultura, viver uma cultura, sem ter conhecimento, nenino se incompleto, das varias linguagens operando nela Creio que isso vale tanto para as definigdes de género quanto para as det de raga em nossa sociedade. Por Gltimo, e retrospectivamente, me parece que se, “de podemios ler essas trés trajet6rias como “trajetorias de sucesso”, quando as lemos “de dentro”, elas parecem trajets- shy de fracasso. Heloisa nunca conseguiu fazer do Museu Nacional o centro da antropologia que desejava implementar um clos pesquisadores aqui chegados a partir do convénio informal estabelecido com a Universidade de Columbia, sob lo de Ruth Benedict, suicidou-se; as verbas de pesquisa pedicas nunca, ou raramente, se materializaram, suas \s tentativas de coordenar projets com verbas inter- hucionais nunca foram avante, Emilia, ainda que tenha sido reconhecida por seus colegas como uma omnitéloga de talento, hilo pode ocupar por muito tempo os cargos aos quais a sua Litulagio @ tornava apta: o fato de ser de origem alema a tomou persona non grata aos olhos da burocracia paraense, e 0 Fato 1s de ser mulher fez dela uma personagem suspeita como diretora do Museu Goeldi. Leolinda, desiludida da carreira tentativa de indigenista, e vencida em suas tentativas pioneiras de criar tum Servigo de Protego aos Indios, tornou-se feminista, mas, como tal, nunca conseguiu eleger-se para 08 cargos publicos que postulou. Mas, 20 mesmo tempo, talvez possamos ler suas trajet6rias, depois de tanto tempo, como bem-sucedicl 0 Museu Nacional tomou-se, afinal, 0 centro da ctnologia brasileira, como Heloisa queria; Emilia € até hoje lembrada pelos ornitélogos do pais como uma pioneira, € Leolinda, ainda que ndo seja vista como uma heroina feminista, € lembrada pelas suas lutas em prol do feminismo nascente no pais. ‘A questio mais geral € em que medida as determinagoes por assim dizer classicas — como classe social (Heloisal, educagio (Emilia), relagdes de compadrio [Leolindal — se esvaem quando rebatidas contra a determinagio de género. E como se os pontos de fratura que as determinagoes de ‘género provocim nessas linhas de forcas sociais tradicio- nalmente levadas em conta sugerissem que elas tm 0 valor que Ihes 6 atribuido apenas quando os personagens sio masculinos: quando se trata de personagens femininas, a hist6ria muda de figura, literalmente. © titulo do livro é uma brincadeira linguistica com © de Adam Kuper — ja que na lingua inglesa nao se pode distinguir antropélogos e antropélogas — e nao deve ser tomado a0 pé da letra: nao se trata aqui de fazer uma historia da antropologia Gtento fazer isso em outros textos), mas sim de compreender como certas figuras to preeminentes na nossa tradigao, € no nosso imagindrio, foram apreendidas quando conjugadas no feminino. O naturalista, 0 sertanista, 0 administrador foram encarnados por personagens tio distantes, culturalmente, do pais, ou do que viria a ser a disciplina antropologia, como Emilia Snethlage, tio controversos como Leolinda Daltro 180 contraditadas na sua atuagio como Heloisa Alberto Torres. ‘Nenhum deles, que eu saiba, virou personagem de romance; nenhum deles mereceu, de virios de meus colegas, comentirios tao dcidos (‘mas ela nao faz, parte do campo da antropo- logia”) como essas personagens. Todos cles foram citados, inimeras vézes, em indmeros trabalhos académicos, para referendar um ponto ou outro da discussio antropolégica do momento. Flas, elogiadas ou detratadas, passaram A historia como personagens menores, figuras de corredor, ¢ as intimeras incdotas impublicaveis sobre elas que ouvi no decorrer da pesquisa pareciam ser 0 tinico modo aceitavel de inclui-las fom nossa histéria. Hist6rias picantes, € claro, € no & disso que se trata sempre que ha mutheres na histria? Essas hist6- flay deixam de ser anotadas aqui, nao por fuga ao dever hhist6rico do registro, mas porque S40 apenas uma confirmacao 1 mais do papel an6malo que essas figuras, raras, represen- {aram em nossa hist6ria — além de, como € sabido, ajudarem ‘8 explicar mais os personagens que as contam do que as personagens que as motivam. io se trata, tampouco, de fazer uma biografia dessas \gens: 0 material a que pude ter acesso durante a pesquisa mostrou, de sobra, que suas biografias sto empre- cendimentos perfeitamente factiveis — mas nio era o que me propunha a fazer. Quis aq mnhar, em tragos ripidos, seu percurso e tentar compreendé-los no contexto da hist6ria hacional ¢ internacional da disciplina, mais como uma espécie de exemplos, que elas foram, do que como personagens icabados, em todas as suas nuances € contradigdes. Foi muito Ulificil deixar de fazer suas biografias: suas vidas saio fasci- nantes, particularmente no perfodo em que as viveram — cada uma delas por uma razao diferente, mas todas empenhadas cm levar a cabo algum empreendimento que duvide que tenha catendido inteiramente, ja que elas so to cautelosas ao strarem sua voz pessoal, sua maneira de ver as coisas. A introdugio a este livro, numa versio inicial, foi apre- sentadk num grupo de trabalho da XVII Reuniao da ABA, em indpolis, em 1990, € publicada com o titulo “A natureza initia do género na histéria da antropologia” nos Cadernos Pagu (5), Unicamp, Campinas, 1995. O Capitulo 1 presentado no semindrio Estilos de Antropologia, coor- ‘ado por Roberto Cardoso de Oliveira, na Unicamp, em 1990 (e impresso, no estado que o titulo da série indica, em Primeina Versdio 22), IECH/Unicamp, no mesmo ano). O Capitulo Ii foi publicado por Claudia Fonseca e Noemi Castilhos de Brito no nimero por elas organizado da revista Hortzontes Antrupolégicos (1), Porto Alegre, 1995. O Capitulo Il foi escrito como um presente de despedida para Manuela Carneiro da Cunha, que deixava a presidéncia da ABA em 1988, ¢ publi- cado por Stellt Brese nero que ela organizou da jani no nd Revista Brasileira de Histéria (18), Sio Paulo, 1989. Na época, eu ainda nto conhecia toda a historia, O Capitulo IV foi publicado pela Revista de Antropologia, 40 (1), 1997, gragas 20 interesse de Aracy Lopes da Silva ¢ de Paula Montero. Capitulo V foi escrito para o Coléquio Antropologias Brasi- leiras na Viragem do Milénio, patrocinado pelo CEAS/Centro de Estudos de Antropologia Social, em Lisboa, em novembro de 1999, € organizado por Miguel Vale de Almeida e Joao Leal. Foi publicado, numa versio ligeiramente diferente, em Emogrdfica, WV (2), 2000. E 0 Capitulo VI, publicado em Horizontes Antropolégicos (7), 1997, no niimero organizado por Maria Eunice Maciel para a Reuniio de Antropologia do Mercosul. Agradego a todos pelo estimulo a eserita e pelos comentirios durante as apresentagdes ¢ aos assessores andnimos dessas publicagdes pelas suas sugestdcs, Tenho também dlividas de gratidio com muitas outtas pes- soas ¢ instituigdes desde que iniciei esta pesquisa: agradego a cada uma delas a0 longo do texto, Cabe, no entanto, fazer uma mengao especial ao carinho € interesse de Roberto Cardoso de Oliveira ¢ Carlos Rodrigues Brando: ambos me trouxeram cépias de velhos livros, me ajudaram a encontrar fontes, sugeritam nomes de pessoas que poderiam ser entre- vistadas ¢ me apoiaram em geral neste empreendimento. Berta Ribeiro ¢ Clara Galvao tiveram infinita paciéncia com a minha curiosidade ¢ compartilharam suas lembrangas com uma honestidade fmpar © com um generoso acolhimento. A meus trés primeiros leitores do conjunto do material, Leila Mezan Algranti, Juliana Nascimento e Plinio Dentzien, agradeco © cuidado gentil com que tentaram me alertar sobre certos deslizamentos do texto: certamente o resultado final nao conseguiu corrigir todos eles. A equipe do Pagu, Nicleo de Estudos de Género da Unicamp, e & Adriana Piscitelli espe- cialmente, agradeco 0 carinho € interesse. A Sergio Miceli, 0 empenho amigo cm publicar este texto. Registro também meu grande reconhecimento a0 apoio que recebi nesses anos todos da FAPESP (Fundagao de Amparo 2 Pesquisa do Estado de Sao Paulo), cujo impulso a0 projeto original foi decisive para sua continuidade, 20 CNPq (Conselho Nacional de Pesquisas), ¢ 20 FAEP (Fundo de Apoio ao Ensino ¢ Pesquisa) de minha universidade. A NATUREZA INAGINARIA DO GENERO NA HISTORIA DA ANTROPOLOGIA -Auravés desse modo singular de nominacao, ‘que se consti ne nome peSpo,insttuse uma ‘dlntidade socal constante ¢ uradoura que garante Jule da individuo biol6gico em todos os campos possiveis os qua ele intervém como agente, to €, em todas as suas | Isr de vida possivels Pierre Bourdieu, A thisdo biogrdfica QUE & UM NOME? Durante quatro anos procuramos por Dina Lévi-Strauss que, se ndo era uma celebridade na histéria da antropologia, uma desconhecida. Acho que o primeiro a mencioni-la foi Egon Schaden, em seu depoimento, ¢ depois os mais referéncias sobre ela no livio de Lélia Gontijo Suzana Lu sobre a Sociedade de Etnografia ¢ Folclore, erluclt por Mario de Andrade e da qual ela foi secretaria.’ Af onto reproduzidos em fac-simile os Boletins da Sociedade ¢ fuese mengio a um livto de Dina — Instrugdes praticas para posuuisas de antropologia fisica e cultural (1936) — © 2 sua cehepaada: * rauss, professora agregée da Univer- los quadros do Museu do Homem. Hla stcompan ido, Claude Lévi-Strauss, no Brasil, ado como professor de Sociologia da recém-criada Universidade de Sa0 Paulo.” Na enorme correspondéncia de Mario de Andrade, e aparece, ¢ quando aparece nas notas de seus interlocutores, subsumida na categoria *o casal Lévi-Strauss” “ também nao ei idhide de Paris e egressa cont rarame , quando nao simplesmente como mulher de Lévi-Strauss”. £ assim também que se refere a ela com frequéncia o fildsofo francés Jean Maugué em sua auto- biografia: “Lévi-Strauss et sa femme.”* Numa carta de agosto de 1938 a Mario de Andrade, Oneyda Alvarenga menciona a razio de sua safda do pai voce sabe que Mme, Lévi-Strauss est quase cega ¢ talvez venha mesmo a perder totalmente a visti? Apanhou em Mato Grosso uma conjuntivite purulenta, de que 0 maride escapou, me informaram, por usar dculos Co que me parece bestelra.) Nao sel outros detalhes. Ela esti aqui, devendo voltar logo para 1 Franga, © Lévi-Strauss continua atts de indios Dina aparece também quase como um pé de pagina em Trisies irépicos e em De prés et de loin \De perto e de longel — mas um olhar mais atento nao a descobriria na persona~ gem Camila, da pega de teatro que Lévi-Strauss imaginou em sua expedi¢ao? “Camila rompeu com Cinna ¢ essa ruptura traz a este a prova final de um fracasso de que ja se tinha persu- adido.” Cinna 6 “um exaltado que s6 gosta de estar entre os selvagens” e que diz, & certa altura, evocando a experiéncia presente do autor: “Comi lagartos, serpentes € gafanho- tos; ¢ desses alimentos, cuja idéia s6 provoca nduseas, eu me aproximei com uma emogio de ne6fito, convencide de que ia criar um laco novo entre o universo firme € eu." (Tris- les tropicos, cap. XXXVI) Cinquenta anos depois, gragas A persisténcia de Anne Marie Pessis, Dina foi encontrada ¢ entrevistada. E uma pequena entrevista com a professora de filosofia Fernande Dina Dreyfus que reiteradamente negava nossas lembrancas do seu passado. Como vemos no video, ela nao lembra ter filmado ou escrito sobre os Bororo (isso no ano em que se comemoravam os 80 anos de Lévi-Strauss, quando varias homenagens foram prestadas ao etnGlogo na Franga, entre as quais uma exibigao de seus filmes, feitos com Dina, no Brasil) e € s6 depois de muita insisténcia da entrevistadora que relembrard trechos de sua vida aqui, o nome de alguns amigos, de Mario... Conto essa pequena histéria porque ela expressa bem duas questdes que comegaram a nos perseguir logo que passamos a entender um pouco melhor a historia que estivamos tentando omjulbar® A primeira é a que chamei de “notoriedade Jejjompectiva” em outro texto, isto é 0 modo como o renome ‘/yyitido « partir de um certo momento pode iluminar a vida Hiivin cle um personagem — 0 bom exemplo aqui sendo o. Wen protessor de Sociologia na USP nos anos 30, Claude OV) Sintuss. O reverso desse exemplo € 0 ja citado Maugué, Ieibrado ¢ relembrado por seus alunos € sucessores como 1) professor brilhante € que se define em sua autobiogralia ‘sojno um academico ratéé Sua autobiografia parece ser tambxém Wi) modo dle se insurgir contra esse “fracasso", de recuperar i) empo em que sua presenca académica teve importincia, sla seu) Com amargo, Quito exemplo pungente (pungente pelo fel que ele investiu num pais no qual ni podia viver) do feyero «la *notoriedade retrospectiva” 6 0 do professor Donald Jejnon, lembrado publicamente quase que s6 pelos estudiosos ty questio racial no Brasil, até que Thales de Azevedo sugeriu sive exerevessemos a ele. O seu depoimento foi uma surpresa €01 inua sendo surpreendente descobrir as relagées ihelecidas por ele no pais e sua atuagao institucional, express nos documentos de seu arquivo pessoal,” Analisando foi documentagao € a extensa lista de nomes ali lembrados comegou sfiear claro que 0 que é chamado de personagem secundirio na literatura teve tanta ou mais importincia na Construgio institucional das ciéncias sociais no periodo exa- Iihado do que as personagens principais — aqueles que por \\ destaque posterior pareciam os Unicos a ocupar a cena. ledicar mais espago aqui: ao refletirmos sobre a notoriedade retoxpectiva de Lévi-Strauss e a0 “esquecimento” de Dina, 1 nos perguntar o que tinha sido feito das pesqui st hist6ria — personagens ainda mais secundrias do ue 0s exemplos mencionados na extensa correspondéncia de Vicrson, Salvo poucas excegdes, elas aparecem, naquele niomente, como espasas — a esposa de Donald Pierson, a espo- 1 «le Charles Wagley, a esposa de David Maybury-Lewis, a es- posa de Darcy Ribeiro, « esposa de Eduardo Galvio, a espo- a de Robert Murphy, a esposa de Charles Watson... a lista cerlamente poderia continuar, Todas elas adotaram © nome comegamos do marido ao casar, a ponto de ser muito dificil redesco- bri-las com seu prOprio nome, mesmo quando descasadas, como no caso de Dina, Todas estiveram no campo e parecem ter sido auxiliares de pesquisa inestimaveis, segundo os re- latos de seus proprios maridos. $6 em poucos casos, no en- tanto, deixaram esse papel de auxiliares — caso de Yo- da Murphy, por exemplo —, ainda que tenham, em ou- tros, assumido quase © papel principal, como no “romance do Brasil Central”, como David Maybury-Lewis chamou num, certo momento a expedicao dele e de Pia entre os Xavante & 0s Xerente.’ Maybury-Lewis diz sobre os padrdes Xavante de nominacao; Um menino Xavante nao recebe nome 20 nascer. (..) Recebe seu primeizo nome por volta dos cinco ou seis anos de idade Co. Um homem deve ter, teoricamente, no minimo quatro nomes.(..) As mulheres, de acorto com 0 padrio Xavante, podem crescer sem nome G.). Além disso, tenho certeza de ‘que algumas mulheres Xavante realmente nao sabiam seus proprios nomes.'° Pia, curiosamente, recebeu dois nomes dos Xavante, e & personagem to presente na viagem € no texto que, mesmo em sua auséneia, 0 autor que o assina escreve “nbs”. © que significa entao um nome, senao renome? Um homem de renome estende a “ilusio biogrifica” para além nds sucumbimos a essa iusto a6 saie A procura cle Dina Lévi-Strauss. Renome no duplo sentido de nome famoso ¢ de segundo nome, no caso das m frequencia © dquirem a0 casar (no caso de tas homens, o escolhido por eles para seu nome publico — como Reginald Brown escolheu tornar-se Radcliffe- Brown em certo momento). Ao serem assim renomeadas essa mulheres tornam-se entio esposas em primeiro lugar — e sto assim também consideradas." Exemplos do primeizo caso, isto é, assumir essa transfor 20 em esposa, slo iniimeros. Depois da morte de Victor ‘Turner, Edith Turner escreveu uma comovente memoria sobre os anos felizes que passou com ele na Africa. Bla propria, uma antropéloga — o que s6 se descobre, neste livro, com alguma atengio —, assim descreve 0 propésito de seu livro: Gostaria de chamé-lo de antropologia a favor no estilo feminino, isto €, advogar em defesa de uma cultura como amante ou de. Decidi utilizar todas as observagdes, 0 conhecimento ¢ 0 material de campo que eu € Vie recolhemos — fates reais do trabalho de campo, nao material imaginatio — e transformé-lo ‘numa hist6ria coerente, acrescemtando, por assim dizer, meu prGprio sangue materno para alimentar © embrili, para que ppossa crescer da melhor maneira. (..) Que dizer de meu desen- volvimento pessoal durante esas experiéncias? Poder-se-ia lizer que eu estava me assenhoreando de minha vida? Eu vivia unm hist6ria para conti-la, 0 que fago neste livro. Mas o leitor lescobrird que fui me envolvendo, sem conseguir sair deta, (.) Entrei na vida de cada um, como entrei na vida de Vie.! Helen Pierson, mais de trinta anos depois de sua estadia ho Brasil, faz eco a essa observacio: “... meu depoimento seria © de uma esposa de antropslogo social € socidlogo. Alias, sempre pensei do meu papel no Brasil como sendo 0 de uma ‘Girl Friday’ (ermo inglés), isto é (para inventar duas palavras), ‘Facilitadora’ ¢ ‘suplementadora’.” Isso apesar de citar uma extensa lista de seus afazeres que incluiam seu trabalho — continuado até sua morte, em 1994 — de datilo- prufar a correspondéncia do marido, dar aulas de inglés aos \lunos da Escola de Sociologia e Politica, buscar livros e irligos na Biblioteca Municipal de $20 Paulo, fazer levanta- nientos para as pesquisas de campo e preparar questionarios, com sugestOes aos estudantes, para essas pesquisas. Os trechos le seu difrio, de dezembro de 1947 a fevereiro de 1948, mnostram sua intensa atividade como Girl Friday, mas também unit observacora perspicaz da vida cotidiana no interior de Sao Paulo. Exemplos do segundo caso, isto €, de consideragio, por parte de outros, das pesquisadoras como sendo apenas cxposas, S20, em geral, implicitos, como se, sendo esposa, 2 parccirt se tornasse menos visivel. Ha alguns anos, Richard Price esereveu numa carta ao American Ethnologist, como pascei antropoldgico de maride e mulher (que publicam em conjunto © separidamente), julgo apro- prado observar que Steriname Folk-lore (1936) — um livro com déias surpreendentementé modernas a respeito da misie da fala ¢ do estilo Afro-americano — foi de fato exerito em coatutoria com Frances Herskovits, E minha prépeia leitura desse nae trabalho sugere que ele € consiceravelmente baseado mais em se trabalho de campo do que no dele (Melville Herskavits). de fato, se 0 livro fosse publicado hoje, © nome de Frances Herskovits bem poderia figurar como 0 do autor principal. CAE, 12:4, 1985.) Observagio tanto mais interessante por partir de um marido. De fato, na €poca aqui anal finais do século 19 os anos 40 do século 20) era raro uma mulher em busca de renome, o mais frequente sendo a e: téncia de pesquisadoras dublés de esposas — ou vice-versa (© que ajuda a explicar a m4 vontade com que alguns pesqui- sadores locais receberam Ruth Landes quando ela esteve no Brasil para fazer suas pesquisas sobre o cundomblé da Bahia. (© impacto dessa ma vontade sobre ela foi tio forte que ainda se refletia nas suas lembrangas do tempo que passou aqui, mais de quarenta anos depois. Numa carta pessoal ela des: bafa sobre a perseguiclo que teria sofride de dois pesquis dores, um brasileiro € um norte-americano (Arthur Ramos € Melville Herskovits — 0 que empresta um toque de ironia a citago acima), que chegaram a escrever a Gunnar Myrdal, acusando-a de vender servigos sexuais aos negros, apenas porque ela fazia pesquisa de campo — “uma jovem mulher de menos de trinta anos e conspicuamente loura”. Diz ela Their calumnies were symbolic rape on me. (Suas calinias eram um estupro simbélico."l Landes registrou suas outras lembrangas do perfodo em que esteve no Brasil num artigo"* no qual menciona as razdes pelas quais nao péde retornar as suas pesquisas no pais. Seu caso é uma confirmagao das dificuldades de mulheres sozinhas (com nome préprio ou em busca de renome) de fazerem pes- quisa de campo na época: um nome é também sindnimo de reputacio ea dela ficou marcada por esse ataque.” As possibilidades que se ofereciam as mulheres estran~ geiras que desejassem levé-la adiante naquele tempo estavam assim reduzidas: ou elas faziam parte de um time profissional com seus maridos, ou corriam o risco de serem malvistas pelos pesquisadores locais, em sua maioria homens. No caso da: pesquisadoras locais, havia ainda uma terceira possibilidade: elas poderiam herdar 0 renome do pai, junto com seu nome, como no caso de Heloisa Alberto Torres, ou dona Heloi como era mais conhecida. iovia possivel falar aqui, entio, de uma dupla ilusto biogré- {ies no caso das mulheres — mas nao € s6 disso que se trata, ‘em nossa hist6ria, ao perdermos um nome, perdemos Juibém um personagem. Todas essas esposas, todas essas ipl Fridays, esto de certa forma sujeitas 8 desaparicio, ja {ie seu nome proprio € 0 nome de outrem e, para elas, € Jnpossivel sequer manter a ilusio de uma “identidade social Sonslante © duradoura", da qual esse nome € 0 fundamento, [DENTIDADE & AFINIDADE Comecando, entio, pela identidade, primeiro conceito a Jnierrogar se queremos prosseguir pensando nas antropélogas fy) nuts esposas de antropélogos dublés de pesquisadoras, conio se pudessem ser um conjunto definido por alguma (qualquer) caracteristica comum, No semindrio justamente Jumoso dledicado a0 assunto, Lévi-Strauss destoou um pouco (los Outros parti¢ipantes ao_concluir que a identidade tem lun exist@ncia puramente te6rica: celle d'ine limite a quoi ne correspond en réalilé aucune experiénce (a de uma fronteira ie na realiclade wiio corresponde a nenhuma experiéncia’) Isso porque o que apreendemos com nossa experiéncia é sempre Uni parte de qualquer conjunto, um todo descontinuo, A Imagem que me ocorre ao ler isso é a de uma teia rasgada: nunca seremos capazes de reconstituir todos os fios que a Completavam e por isso trabalhamos com indicios, com rastros, Cont sinus. Isso nlo parece ser uma prerrogativa ou maldigao {hi ci@ncias humanas: as assim chamadas ciéneias da natureza Lunbem estao repletas de exemplos de falta de continuidade lades em geral preenchidas has suits demonstragdes, continui 4 tela, qualquer teia Mas, por que os analistas das sociedades humanas seriam entio apaixonados pela busca de uma identidade (€tnica, de enero, nacional, regional? Talvez.justamente para fazer sentido dlacuela teia rasgada, para, recuperando os fios que faltam, Integrar do melhor modo possivel o desconhecido no conhe- cido. A identidade seria assim “uma espécie de foco virtual a0 qual @ ladispensavel nos referirmos para explicar um certo ‘mas sem que nunca tenha uma existéncia Em intimeras sociedades humanas as mulheres parecem estar to circunstancialmente sob esse foco virtual que de certo modo poem em xeque a substancialidade dessa identi- dade — em si mesma frigil. Vimos o exemplo dos Xavante, € muitos outros podem ser citados. Fiquemos com o dos chineses. Na sociedade chinesa tradicional, como entre os Xavante, os homens tém virios nomes, dados ou escolhidos ao longo de sua vida e que expressam a mudanga de estado, de crianga a adulto, a profissional realizado, a cidadao integrado em sua comunidade, a pessoa a ser venerada ap6s a morte. AS mulheres recebem um nome provisério ao nascer ¢ o perdem a0 casar — a partir dai clas serio referidas pela sua relacao ‘com outros, especialmente sua familia.” Margery Wolf comenta: [Ao passo que o homem chings nasce numa comunidade social fe espiritual que tem continuidade no apenas em vida mas também apés a morte, a mulher chinesa nasce numa comuni- dade na qual ela 6 apenas uma residente temporaria ¢ sua comunidade espiritual apés a morte depende de quem ela des post ou, mais importante ainda, aos ancestrals de quem cla dari & Tez, (..) O trauma do casamento chinés, no qual uma mulher muito jovem é transferida para uma aldela distante onde ela nto conhece ninguém, nem mesmo sew marido, eria para as mulheres uma crise de identidade que s6 € resolvida pela aquisiglo gradual de um novo conjunto de espelhos nos quais cla possa se identifica. Soa familiar, mas madrasta da Branca de Neve e Lacan & parte, © que a observacio da pesquisadora ocidental parece expressar € uma angtistia em relaclo aos nossos espelhos de identidade. £ como se essa troca sucessiva de espelhos a que as mulheres ‘Chinesas estio, ou estavam, destinadas exacer- basse a percepgio da existéncia de espelhos deformadores ‘Bm AossA propria sociedade; como se essa auséncia de nome enfatizasse a desapropriagao que sofremos de nossos nomes. Nao € de estranhar — a descricao dos modos de ser de outras sociedades sempre fez com que acabassemos refle- tindo sobre nossos modos de ser € & percepctio daquela falta/ auséncia poderiamos entao, paradoxalmente, atribuir um = jiinho cm tcrmos de reflexdo. Mas, se os grupos de conscien- \inc0 multiplicados pelo ferinismo dos anos 60 ajudaram a foforgar uma ident , acentuandlo tudo © que havia de comin entre mulheres, percebeu-se, em seguida, que a mulher cre-unar Wentidade Go Tusdria como qualquer outra. Se uma das earacteristicas do mundo no qual vivemos hoje © fragmentagao das identidades e, portanto, a busca por um jubstrato que Ihes dé unidade esti de antemao condenada ao fiveasso, onde ancorar lutas afins? Porque é de lutas que se trata uinslo se tata de afirmar uma identidade: “O que se ganhou cont os estuclos de etnicicac i forma _um sistema. E uma Haraway, anotando as dificuldades das lutas femi- histas, prope substituir a procura por uma identidade pela uta em torno de afinidades. ss parecem “iis © reo: ariiinene eomqude de sm contRuko socal ‘impaesuc geno; mg © chase slam 2 ase ca cea sx male nnrmente Nem remo Octal de “tenn la mana un cece samen Compl constuta em dunes teas wales sas ote eae gov conta & consents nero ago Cao fl tna conga u uc ones fra Pel rl expatica str des ellston sis cote ‘hora do pares, do colooaltmn © do cptalona,E cen én mma ropa rte Que tenes os cispctelnpu stent smo polls to poten chara (eqs pungert nie semis pct ls ee le) en uakguor po de alatamento tomou a ogi th nor hits Geen para tate de oats cine por shee, Pat ae a tas gue Soe pave cand brn pee melstae—~ fone de rm te danse pole so partitham uma sit Tissional de Tomou-se diffell momear nosso feminism através de um ay ) feminismo nos Estados Unidos tem sido uma resposta a esse lipo de crise através de infindAveis fracionamentos ¢ da busca por uma nova unidade essencial, Mas tem havido também um rescente reconhecimento de outra resposta a partir de coali- sdes: afinidade, nfo identidade.” vocabulério sobre \idade, camo género, deriva de nos: familia e parentesco €, etimologicamente, supée relacao — a0 contririo da origem da palavra identidade Cidem) que sig- nifica o mesmo.* Donna Haraway se referia as relagdes entre mulheres quando escreveu aquelas linhas; Morgan se referi as relagdes sociais mais amplas quando escreveu Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family |Sistemas de consangitinidade e afinidade da familia bumanal; Fhumanos, sto ¢, ent “mulheres en er e *homens” — se € que essas designacdes ainda podem ser usadas num universo 180 semioticamente carregadc MASCULINA/FEMININO FEMININA/MASCULINO: A NATUREZA IMAGINARIA A questio da coincidéncia entre a persona social ¢ 0 indi- viduo biolégico € antiga e, antes de as feministas terem adotado o termo género para desvincular essas relagdes de qualquer conotagio determinista, a literatura j& problema- tizara identidades supostamente apoiadas no dimosfismo sexual O andrégino, uma das expressdes do que metafisicos € tedlogos chamavam de coincidentia oppositorum, foi um objeto da especulagio literéria com uma certa ressoniincia no século dlezenove.* Virginia Woolf continuava assim uma tradigio literdria a0 afirmar que “€ fatal ser homem ou mulher, pura ¢ simples- mente; € preciso ser masculinamente feminina ou feminina- mente masculino”. Ao fazer essa anotagao numa conferéncia para estudantes inglesas em 1928, Virginia Woolf certamente no pretendia atribuir-lhe o estatuto de teoria, embora seu texto — € 0 romance Orlando, que 0 expressava em termos — ter tido uma repercussio que extrapolou os muros das escolas para mocas.* Diferentemente dos literatos, os antropélogos estavam mais interessados na relaclo masculino/feminina nas sociedades ndo ocidentais € s6 recentemente deram atencao a figura do snclrégino.* Parte de uma tradig cinografico, o andré religiosa, do imagindrio literitio ou ino € uma figura interesante porque poe ‘em questo os limites do feminina/masculino, de certa forma poluindo essas definigdes. Numa bela anilise da nocio de palurkgio, Mary Douglas mastrou o perigo inerente a separagbes bdlicas do que deveria estar unido ou a unides simbélicas do que deveria estar separado” No Brasil, a especulacio sobre a ambiguidade na definicdo «la identidade sexual também comegou no século 19. Médicos ¢ literatos Galguns com formagio médica) empenbaram-se em demonstrat, antecipadamente, 0 que Mary Douglas e outros antrop6logos analisaram depois: 0 perigo esti. no_indefinido, ha quebra das definigdes; em suma, nos limiares.* Essas definiges sfio frequentemente implicitas, ji que fazem parte do fepertrio supostamente (re)conhecide por (odos os integrantes de uma sociedade dada, e & s6-quando postas em questo que elas adquirem feigio mais clara, isto ¢, mostram seu potencial como definigdes nao estabelecidas, n conflito por uma significacio precisa. Assim como ocorria com a nogao de raga nos textos daqueles médicos, as nogdes de masculino e feminina nos textos que vou analisar \«jui so sempre elusivas: em nenhum momento encontramos, |i, um discurso direto que defina raga ou, aqui, um discurso ireto que defina 0 masculino ou o feminino. Aparentemente, hide se passa como se as personagens femininas da hist6ria \«jui contada fossem homélogas aos seus equivalentes mas culinos na hist6ria da antropologia: naturalistas, sertanistas, pesquisadores de campo, administradores, professores.. \parentenente, se atentarmos apenas para os registros mais \uperficiais de suas carreiras: referencias esparsas sobre suas biografias curtas, necrol6gios. Isto é, em situacdes textuiais em que elas sto 0 foco do discurso, 0 maximo que se pode inferir das definicdes de masculino e de feminina na epoca de cada uma é que elas eram mente excepcionais — dada a maior ou menor explicitagio de cada autor de sua admiragao pelos feitos de uma mulber. Olhando-as em con- junto, entao, retrospectivamente, 0 que temos é um grupo, reduzido, de figuras que pouco se distinguiriam de seus colegas naquelas atividades antes mencionadas — sertanista, naturalista, pesquisadora de museu —; e a tinica afinidade entre elas deriva de uma identidade que thes € atribuida, a de serem mulberes profissionais — algumas nem isso — que viveram numa época em que a maior parte dos profissiona tinham a identidade atribuida de bomens. Colocando-as 20 lado de seus colegas profissionais, no entanio, € analisando suas trajet6rias no contexto da época de cada uma, comegam a emergir definiges de feminina e de masculino explicitadas em disputas pelo poder, pelo prest ou por privilégios de virios tipos € pela atribuigio a elas de um estatuto ambiguo, como se se tratasse de seres andr6- ginos a quem € preciso conjurar, desmentir, redefinir to logo. essa atribuigao se expresse nos discursos a respeito de seus feitos cientificos. Movimento de estranhamento, primeiro (que faz essa mulher num grupo de homens? Deve ser homem..), de re-alocacio, em seguida (mas vejam que belo chapéu... femi- nino), logo de desqualificagtio (Sendo mulher... alo poderia ser clentista — ou vice-versa). Lidos de hoje, alguns desses movimentos parecem timidas estratégias de re-afirmagao da impermeabilidade das categorias masculino/feminina, da rigidez das fronteiras entre homem/mulher. Vividos na época, devem ter parecido taticas cruéis de exclusio social. A constante. reafirmagio dessa impermeabilidade e dessa rigidez € também Dmelhor indicador de incerteza, de inseguranga, na defin dessas mesmas categorias na pritica: quais seriam, afinal, os elementos indiscutiveis de separagio, de constituigio daquele taco (/) que as separa, s¢ um misero item de vestudrio alte rado (chapGu ou calca, no caso das pesquisadoras de campo), ‘um Pequeno gesto nao sintonizado (‘adamado”, no caso de um naturalista de Museu), ov o simples estar li num espaco ‘onde sua presenga no eta prevista, as punha em questio? fais definigdes se explicitam melhor quando comparamos esse pequeno grupo de pesquisadoras, sem marido, as esposas dos pesquisadores, em sua maioria estrangeiros, mas alguns brasileiros, que acompanharam seus maridos ao campo. Isto €, quando as colocamos num contintaum que vai da mulher 0 .0 \ muther esposa” Ai, um dos atributos da condigo feminina jst presente de antemio e recobriri quase inteiramente personagem: @ esposa de deixa ce ser uma referencia e passa | ser tanto © nome de cada uma das esposas, como o nome nencrico dessa categoria de parceiras etnogrificas, passa a ‘er sua identidade (atribuida) principal.’ Esse grupo assim efinido torna, por sua vez, mais claras as expectativas sociais sobre mulheres em geral e mostra, por contraste, a quebra dessats expectativas, implicita na atuago das mulheres do primeiro grupo. Mas talvez.seja ilus6rio pensar em encontrar padroes de feminilidade ou masculinidade “de época" no interior de uma sociedade € a tio curta distancia de nosso tempo; em jnindes tragos, suas formas, na nossa sociedade, silo muito de hoje: variam detalhes de contetido (nao Inisis usamos chapéus em ceriménias académicas; o traje ‘naseulino mama pesquisacora dle campo niio ameaca sua definigio dle genero), no as estratégias. Pois ainda é de lutas que se Urata © que se trayam no campo semAntico, assim como no campo politico. Talvez. seja possivel explicitar esses contetidos iho variévets e essas formas mais permanentes, recolocando wits personagens cada uma em seu cenario proprio, tentando compreender a leitura que seus interlocutores faziam de sua i € situando-as no contexto de atuacio de suas contemporineas em outros lugares do mundo. No Capitulo 1, tento compreender como aquela luta se lexpressou em termos literdrios, isto é, em que sentido, a0 ihes roubarem a palavra, expressando eles o que esperavam expressassem na sua atuagio, trés escritores redefinem, hosts personagens, de certo modo exibindo mais claramente do que 0 faziam seus contemporineos profissionais na vida real, esse movimento de re-alocagio de figuras ambiguas a i universo feminine. Nos tés capitulos seguintes, persigo as trajet6rias dessas 's personagens, agora com seus nomes reais (Emilia Snethlage, Leolinda Daltro € Feloisa Alberto Torres), como exemplos quase do avesso do que era uma cazreira bem- uucedida de suas contrapartidas masculinas. Uma naturalista, ume sertanista © uma pesquisadora de museu, figuras bas- tanie comuns na hist6ria da antropologia no ast alhures; 31 no que clas tornam diferentes essas carteiras a0 conjugi-las no feminino? Essas trés personagens se movem entre dois mundos, duas circunscrigdes: 0 da ficgao (Cap. D © o da realidade, ndo de suas biografias singulares (Cap. Ul, Il € IV), mas da realidade aceita ou aceitivel das mulheres que cumpriam trajet6rias semelhantes as suas, mas enquanto esposas. Elas preenchem, assim, uma espécie de interregno nessa galeria de figuras da hist6ria da antropologia, consti- tuindo-se como seres de natureza imagindria, por estarem fora de seu espago ‘natural’, sem terem sido admitidas a0 novo ‘espago social que procuravam ocupar: nem homens, nem mu- Iheres, em termos culturais: seres an6malos, aparcntados antes aos monstros do que & raga humana.” No Capitulo V, mostro como a hist6ria das pesquisadoras estrangeiras podia, por vezes, entrelagar-se a das pesquisa- doras nacionais, acompanhando as vicissitudes de Ruth Landes € de Heloisa Alberto Torres na constituigo de uma figura que viria a se tornar simbélica na cultura do pais — a da baiana — e como ambas participavam de um contexto mais amplo do que o da definicao da disciplina no pais. A experi- éncia de ambas sugere também, nio que a mulher seja “0 negro do mundo”, como dizia um famoso slogan feminista,"* mas 0s possiveis entrelagamentos entre raga e genero na politica e na teoria antropol6gica. Por iiltimo, 0 Capitulo VI oferece um contexto mais amplo da atuag2o das antrop6logas na constituigao da historia da nossa disciplina, nas trés tradigdes nas quais ela se defini —a tradigo inglesa, a francesa e a norte-americana. B uma tentativa de compreender, ainda que de forma breve, como algumas contemporineas mais famosas do que nossas personagens atuaram no cenério da antropologia em outros contextos nacionais, ampliando assim o alcance das sugestOes feitas em relagio as personagens brasileira. IMAGENS A LEVI-stRAUSS MSTRUCOES PRAMICAS PARA PESQUSAS oe ANTROPOLOGIA FISICA E CULTURAL guna 1 Frontispicio do livro Dnsirugdes praticas para pesquisas de Siuropoleyta fisica e cultural, de Dina Lévi-Strauss, A série deveria se hupletar com um volume IE CEtnografia) e II (Sociologia) WALL! Vonte: Acervo do Proto Histéria da Antropologia no Bra UNICAMP. Figusa 2- Dina e Claude Lévi-Strauss, em 1936. O rapaz a esquerda € um reporter do Jornal Fotha da Noite Fonte: Jornal Folha da Noite, Sao Paulo, 5 nov. 1936 - Reprodusio, Piqua 4 Clara e Bduardo Galvao (ultimo a di (queruhe) ¢ Robert Murphy ne Brasil, em 1952 Yolanda (primeira Ponte: Acervo do Projeto Historia da Antropologia no Brsil/AEI/UNICAMP. J))un 5 Helen Pierson, por volta de 1940 Joule: Acervo do Projeto Histéria da Antropologia no Brasil/AEL/UNICAMP. Figura 4 - Pia Maybury-Lewis com um. Fonte: Acero do Projeto Hist6ria da Antropologia no Brasil/AET/UNICAMP. Figura 6- Claude ¢ Dina Lévi-Strauss em um acampamento, na sua exped 0 Brasil Central Fonte: Musée de L'Homme, Paris lica0, une? Charles Wagkey, Rubens Meanda, Gilberto F Jiaices Herskovits, Heloisa Alberto Torres, Eduarde Herskovits, Nek Acervo dia Madalena Freyre, 0, Melville ‘eixeira, no Museu Nacional, por volta cle 1940 eto Historia cla Antropologia no Brasil/AEL/UNICAMBP, Figura 10 - Grupo de indios Chipaya e Curuahé encontrados pela Dra. Emilia Snethlage em sua travessia entre os ties Tapajos e Xing Ponte: Holetim do Muses Emilio Gooldi, VII, 1910 (1913). | bra, EMILIE SNETHLAGEE J iqura 11 - Uihima foto conhecida da Dea. Emilia Snethlage, talvez ent stui east no Rio de Janeiro, no final «los anos 20 Fonte: Reproduzido do Boletim do Museu Nacional, 121), 1936 Acervo da Biblioteca do Museu Nacional/ UFR). Colegao Didatica Emilia Snethlage Leolinda Dattro (1896) Por occasito de sua partida para Goyaz crests MUSEU PARAENSE EMILIO GOELDI Deparaneato de Melos Seige de Edcaoe Exe Call Figura 12 -Folheto do Museu Goeldi anunciandoa Colegio Didatica 113 Leofincla Daltro, em foto publicada no fromtispicio de seu Emilia Snethlage Fonte: Arquivo/Colecio Fotogrifiea MPEG. Reprodugio Anténio Pinheiro, Vonte: Reprod L'ypographi de L. Daltro. Da caibequese dos indios no Brasil. “okt Orsina dt Fonseca: Rio de Faneiro, 1920. 2 COMMISSAO QUE VEIO A MANDO DO CAPETXO SEI BUSCAR D. LROLINDA DALTRO. Hm iagem para esta Capital (Araguary) FMA LICCAO DE Post DENCLY DA PROFESS Figura 14 - indios que foram, em comissio, buscar Leolinda Daltro para voltar a0 sertio Fonte: Reproduzica de L. Daltro, Da caibequese das tndtos no Brasil. “Typographia da Escola Orsina da Fonseca: Rio de Janeiro, 1920. jue 15- Indios na easa de Leolinda Daltro, no Rio de Janeiro Vonte: Reproduzida de L, Daltro, Da cathequese das indios no Brasit. F ypographia da Bseola Orsina dda Fonseca: Rio de Janeiro, 1920. INDIO — EPUCANDO DA PROPESSORA DALERO Djatma Vacumupté (da triba Cherente) Dis «los indies que foram buscar Leolinda Daltzo; & esquerda, cletor’, Jacumupté, & direita, Porpip6. Retratos a dleo de Antonio Fon A Poca do acervo FUNAR Figura 16 - Um dos fndios que Leolinda Daltro qualficou como leitor Fonte: Reproduricla de L. Daltro. Da cathequese dos fndios no Brasil. “Typogsaphia da Escola Orsina da Fonseca: Rio de Janeiro, 1920. ASSOORNGLO BE PROTECOSO: E AEXILIO AOS SELVICOL US bey AeA Figura 18 Sesstio de abertura da Associagao de Protegivo ¢ Auxslio 40s Silvicolas do Brasil, 1908 Fonte: Reproduzida de L, Daltro. Da cathequese dos indios no Brasil ‘Typographia da Escola Orsina cla Fonseca: Rio de Janeiro, 1920, uct 19-Panfleto da campanha ck: Leolinda Daltro & Gonstiuinte dle 1934 J onie: Reproduzido da Colegio Nosso Século (19), Ed. Abril, Sao Paulo, 1980, a pelos jomais | Carneiro, Raimundo Lopes, Charles Wagley, Heloisa crores, numa foto utilizada sarauss, Ruth Landes, L, de Castro Faria, no itaboras, R Jo Projeto Htit6ria a Antropologia no Brasil/AEL/UNIGAMP. Figura 22- Ralph Linton, Helois #1 Alberto Torres e Eduardo Galvio, no Museu Nacional, por volta de 1945 Fonte: Acervo do Proto Histéria da Antopologia no BrasiV/AEL/UNICAMP. Hqurt 25 Foto retratando alguns aspectos cla indumentiria baiana Const nat tese de Heloisa Alberto Torres: "Negra rica da Baba entando a camisa cle renda, no seu traje de beca, a penca, 0 spuikiio, a cruz e demas j6ias da erioula Honte: Acervo Heloisa Alberto Torres/Dep: tamento de Antropo: gia/Museu Nacional/ UFR) oul sag Sesh cea ee Jjqura 25- Carmen Mirancla, como boneea de papel, num dos varios ites sobre elt na internet - coma forrid zone em destaque Fonte:'Tom Tierney, Dover's book - ISBN 0486242854, CARMEN. Figura 24 - Foto de uma das bonecas que Heloisa Alberto Torres cenviou a Lisboa Fonte: Exposigao Permanente do Museu Nacional/UFR) MIRANDA PAPER DOLLS. 4 CIDADE DAS MULMERES SRUCEHF LANDES rp fia Meireles sobre as baianas no Rio de samba e macumber estudos de ito: FUNARTE/Instituto Nacional do Figura 26- Capa de Marius Lauritzen Bern, da 1 eis do live 4 das mubores, de Ruth Tandes Fonte: Ruth Landes, A cidade das mulberes. Tradugio de Maria Lacia do Birado Siva, 2 ed. Editora UFRJ, 2002, Correspondance Figura 28 - Caricatura de Carmen Miranda, como Fonte: Canum de André Carri ‘S-Paulo,6 de julho de 2000, J iqurs 29 Estdiua hermafrodita desenterrackt por Denise Pauline ¢ Deboral Lif *EStranha forma dle vida”. Kolhea cle itz, em 1935 Fonte: Museu do Homem (34,106,106). Reproduzido de Gradbiea (4), 1987, p. 56, TRES HEROINAS DO ROMANCE ANTROPOLOGICO BRASILERO Is tight to be watching strangers ina play inthis strangest of theatres? [Seri cometo observarmos esrangeicos em seu drama representado neste teatro mais que estranho?] Flizabeth Rishop, Questions of Travel [Problemas de viagem] © romance antropolégico, com algumas bem fundadas excegdes, & sempre contado de uma perspectiva masculina. Porque, entdo, trés mulheres que, por uma ou outra azo, fazem parte dele teriam atraido a atengio de trés autores a ponto de se tornarem personagens de sua ficgiio? Uma femi- hista, como se definia Leolinda Daltro a época em que foi (azedamente) retratada por Lima Barreto, certamente chamaria 10 no infcio do século 20 — mas uma naturalista alema ia Snethlage) ou uma pesquisadora de museu (Heloisa Alberto Torres) parecem bem pouco atraentes como perso- hagens literarias, Iynoro se pesquisadores de outras Areas disciplinares stio m retratados na ficcio brasileira, mas o fato de esas re lorem capturado a imaginagao romanesca num interval tle cerca de vinte anos seguramente nos diz alguma coisa a fexpeito do modo como era visto o aparecimento dessas Novas personagens no cenirio do pais. E como se os roman- Cistas tivessem captado algo que estava no ar, cada um nua Epoca € regiio, e, expressando-o de maneira li how deixado para compreender melhor defi TRES HEROINAS DO ROMANCE ANTROPOLOGICO BRASILEIRO Is it ight to be watching strangers ina play inthis strangest of theatres? [Serf corero observarmos estrangelros em seu draana representado neste teatro mals que estranicH, Hivsbeth Bishop, Questions of Travel [Problemas dle viagem) © fomance antropolégico, com algumas bem fundadas sscogdes, € sempre contado de uma perspectiva masculina Voujue, entdo, ts mulheres que, por uma ou outra razio, Tyee parte dele teriam atraido a atengao de trés autores a Jonlo de se tornarem personagens de sua ficcao? Uma femi- Hii, como se definia Leolinda Daltro & época em que foi (iyedamente) retratada por Lima Barreto, certamente chamaria # HlengAo no inicio do século 20 — mas uma naturalista alema Himilia Snethlage) ou uma pesquisadora de museu (Heloisa Alberto Torres) parecem bem pouco atraentes como perso- Hagens lterdrias, {nore se pesquisadores de outras areas disciplinares s40 9) forum retratados na ficga0 brasileira, mas o fato de essas {yO (orem capturado a imaginagao romanesca num intervalo sie cerca de vinte anos seguramente nos diz. alguma coisa a jespelto do modo como era visto o aparecimento dessas jioyH personagens no cenario do pais. E como se os roman- eiolas livessem captado algo que estava no ar, cada um em ‘Ay epoca e regido, e, expressando-o de maneira literéria, jos deixado pistas para compreender melhor definigdes implicitas de masculino e de feminina no contexto de atuacao dessas trés personagens, retirando-as de uma posi¢io de ambiguidade em relacio a essas definigdes e alocando-as claramente no universo feminino. Ainda que definidas desde © inicio por sua atuagao profissional, o que ja € uma novidade no cenario da ficgo, essa atuagao é desmentida ou desquali ficada no decorrer de cada hist6ria ¢ em cada caso de uma maneira diferente, € como obedientes performers de um roteito invisivel, no qual se prevé um comportamento masculino © um comportamenio feminino, que elas acabam por atuar. OS ROMANCES Cronologicamente, elas aparecem assim no imaginirio romanesco: Leolinda Daltro, em 1915, num dos tiltimos capi- tulos do romance de Lima Barreto, anteriormente publicado em folhetim; Heloisa Alberto Torres, em 1933, num romance premiado de Bastos de Avila; ¢ Emilia Snethlage, em 1938, nto romance de Raimundo de Morais. O enredo em que Leolinda Daltro participa como personagem secundaria tem outra mulher como personagem principal, passa-se em 1909 e teve pelo menos dois subtitulos: “Romance da vida contem= porinea” € “Romance sugestivo de escindalos femininos’— © plural ai parecendo inclui-la no que é tema central da hist6ria. (© que toma Heloisa Alberto Torres como heroina € contem= porineo da acao narrada — a década de 30 —, € 0 que serve de pretexto para louvar a agio de Emilia Snethlage como cientista poderia ter se passado entre 1910 ¢ 1911, época em que ela andou pelas regides mencionadas no livro.*No tempo real, a idade das heroinas € bastante dispar: quando Leolinda encabegava a passeata de indios pelo centro do Rio de Janeiro, ironizada por Lima Barreto, Heloisa mal tinha feito a primeira comunhao e voltava de uma viagem a Europa com a familia (0 quase naufrigio de seu navio em Lisboa serit evocado pelo romancista), ¢ a dowtora Emilia ji andava ha explorando 0s rios interiores do pafs. Na vid: Heloisa certamente se encontraram no Museu Ni esta trabalhava, quando a primeira para 4 se transferiu, saindo de Belém — embora no romance sobre Heloisa, Emilia, que morrera quatro anos antes de cago, seja deseritt 6 ‘soino Uma figura “de outrora”. E tanto Emilia quanto Heloisa foderlam ter lido nos jornais do Rio as propostas politicas ile Leolinda Daltro que, entao feminista, ainda lembrava sua ‘jhe Como sertanista a0 propor o ensino obrigatério do WWipl nus escolas brasileiras — ou até ter assistido aos seus ‘soyniciow nas ocasides em que se candidatou a cargos politicos. fy elas se encontraram, nao ficou registro desses encontros. Na época em que os romances as situam, Leolinda teria ‘anos, embora fosse descrita no texto como “uma Jephom idosa’; Heloisa, descrita como *senhorita”, teria cerca , “uma senhora”, por volta de 43. $6 Emilia aparece com seu proprio nome; Leolinda 6 dona Florinda Jyinuy © Heloisa € a senborita professora Lucta de Abreu © leltor de hoje, que lesse os trés romances em sequéncia, {oqwuria conhecimento de trés senhoras mais ou menos na enn {alsa etiria, levemente excéntricas: uma por andar em Joints com indios na capital federal, outra por aventurar-se ‘jyinh nas selvas amaz6nicas e a terveira por enfrentar, ainda §iye scompanhada, os riscos de uma Indiana Jones de saias com direito a documentos encontrados por acaso © 38 yee juigdes de um vilao que, como nos filmes, sempre WOW 4 pior. Q\nnto ao estilo dos romances, tanto 0 de Bastos de Avila {Wino o de Raimundo de Morais, cronologicamente posteriores, Sin mais “arcaicos* que o de Lima Barreto — em parte Jonjuie se passam na regito amaz6nica, e a natureza assume pioporgoes avassaladoras no texto, em parte porque os dois H jpolin na tradigao das narrativas de viagens e parecem JW! extrair da historia uma moral. J4 0 de Lima Barreto & WH fonuinee urbano, fruto de uma tradigao literdria mais feeonte © mais realista na medida em que a moral da histéria F Winumente a auséncia dela. Mas os trés sao “re: Hen} dos autores faz concessao a um final feliz, ¢ os tres Hin con um certo einismo a sociedade local € nacional, Hiiamo dlesearado no caso de Lima Barreto. Quynto ao entrecho: Bastos de Avila conta a hist6ria de Wi prufersora do Museu Nacional que vé sua teoria sobre We iihws Marajoaras, pela qual a hist6ria inicia, esboroar-se fren- BW 40 cone ivo do titimo representante de uma i «jue ela nem supunha existir. Os episédios da viagem o "°° a senborita Lucta, que viaja acompanhada de um afilhado, sto os banalmente recomrentes nesse tipo de narrativa: os obsticulos da natureza, 0 quase naufriigio, o estouro de uma manada de bGfalos, as chuvas torrenciais — e a presenga, sempre enfatizada, de uma fauna propria a regio. Lucia de Abreu, adepta da “teoria do trangado”, que explicava porque 8 urnas marajoaras eram ormamentadas com figuras repre- sentadas de cabeca para baixo, descobre no Rio um docu- mento truncado, assinado por Ladislau Netto, casualmente encontra a parte que faltava durante a viagem, quando também Por acaso ¢ apresentada ao tiltimo sobrevivente da tribo que habitara a Ilha de Marajé, os Sacacos. Este confirma o manus. crito € a leva a um sitio onde esto urnas enormes que ela desenterra e, depois de varias peripécias em que se salva gragas a asticia do guia nativo, enfrenta ainda a forca da natureza que mata seu informante e destr6i todos os seus {vel 1 pouco pouco vincipio longingba, quase impercepivel, ia pou » Mtimentando de Tntensidade, como 0 topel de uma cavathad {nese apenas glope;« dentro em eve, lamps me xiguezagueavam em tomo e por cima do Deus te aise ‘ sgando o negrume de breu que o envolvia, (Bastos de Avila) : ae Seater evavam na linha das asas um sinal de borrasca que Ihes arte oon cae far auven create, rind om novelos negros, paceciia wc ss een ae Orlin se oe ta cdo, Gino de ¥,, sendo a natureza manhosa, por suas mudangas inespe~ judas, ambos enfatizam a necessidade ce um conhecimento achados — destruindo, no mesmo passo, a possibilidade de writico para lidar com ela. Deserevendo a “percepco apurada comprovacio de sua teoria. piviplda" necessiria ao piloto de um bareo, Raimundo de No livro de Raimundo de Morais, uma familia sibeirinha , do Tocantins é vitima de perseguicdes politicas, 0 que forca a debandada de seus filhos de uma regiio onde estavam Prosperando, Na volta para casa, morrem todos um naufiigio combinado com um ataque de indios, com excegao da mulher inglesa de um deles, capturada pelos indios Apiaca ¢, mais tarde, integrada a tribo. O enredo é pretexto para divagagdes 4 respeito de varias crendices locais ¢ descricao dos costumes da regiao — a coroa do Divino, a festa de Sao Joao, 0 Putirum, 0 roubo de mogas pelo boto, entrelagados as verda- deiras aulas que Emilia Snethlage, supostamente héspede do Personagem central, oferece aos leitores sobre a vida animal © vegetal da regido.*A natureza é dominante durante boa parte da narrativa ¢, tanto no texto de Bastos de Avila como no de Raimundo de Morais, as imagens utilizadas para descrever suas ameacas — ¢ encantos — sto semelhantes. Os sinais de uma tempestade na bafa de Marajé, por exemplo. Negras nuvens, vindas do Norte, cobriram 0 céo, até entio cestrellado; a8 aguas entraram a agitar-se, a encresparse, levantarse em ondas encapelladas; € de ‘subito, inesperadh mente, 0 vento mudou de quadrante, comegou soprar de Proa, rijo e pertinaz, esfuskando pelo cord 6 Montis o define como se ele fosse uma méquina sensivel ou um adivinho a ler indicios: Sus sends ganham deleaderas de aparetos vivo, rem Cando mil auangas sins, de aspectos eésmicos. Vemhe dat yiparo das visadas que por uma nuvem, por um rebojo, ps Gn Dueranco, por uma drvore decifram enigmas lacrados para outro qualquer ‘estranho aos trabalhos de bordo. O retardatirio testa aprendizagem no sabe ler 8 simboles estampados nos inuipios panoramas do oe da tras €fechado 20s avsos Como se fora de pedri; e sofre 0 castigo dessa ignorancia, ma pretend dirigir um gaiola’ Hustos de Avila the faz eco: e pesavam sobre os Medindo todas as esponsabiidades que the p o aes Zé Sareafo apurava 8 sentidos synipnizandoo$: co a onsen ds praetor : ‘obstante, promptamente obedecidas. E que os ouvidos de ye a distinguir do estronde do revo © grossa iar tn nas aera ne ts) 6. @ Sentidos delleados, sintonizados; apuro da visada ou dow ouvidos: é um saber pratico — € local — que ¢ louvado al Mas, se a natureza € caprichosa ¢, afinal, sobrepde-se fl tentativa ce alguns homens, € mulheres, em subjuggkt, € também © cenfrio ideal para um discurso a favor da cién sentada por “naturalis como “cientifico”. A comecar pela apresentagio formal do texto: Raimundo de Morais e Bastos de Avila niio s6 salpicam a agho romanesca com nomes de pesquisadores reais, mas, se utilizam de notas de pé de pagina e citagdes em outris Iinguas para apoiarem suas descrigdes ¢/ou fabulacdes,* 5 livros so também fartamente ilustrados: o de Bastos de Avila, 2 moda das antigas Sefetas, com gravuras de Magalhaes Corréa; o de Raimundo de Morais, com fotos de personagens ¢ cendrios locais de dlbuns datados de 1902 ¢ 1908. Em ambos, o Museu Paraense Emilio Goeldi € citagio obrigatoria na iconografia. A ciéncia 6, de fato, tanto como a politica — que € 0 foco, no romance de Lima Barreto —, um personagem importante nesses dois romances. O personagem de Raimundo de Morais, coronel Anasticio Igaratina, *proprietirio de sitio plantado de cacauciros ¢ seringais, além das terras povoadas de castanheiros Id para o alto rio”, “apesar de amatutado, de acordo com o meio, tinha, de quando em quando, lampejos do homem que chegara até o segundo ano de Medicina na Bahia’.’ Sua esposa também € apresentada como uma pessoa educada: "D.Vitorina € professora normalista. Completou 0 curso com distingao em Belém, sendo oradora da turma Ficou amatutada, como todos nés, de acordo com o Redentor, que é envolvido por uma vizinhanga roceira.” Marido e mulher, e mais seus agregados, demonstram uma sede de saber que € verdadeiramente notavel e que vai sendo satisfeita aos poucos pela naturalista — que explica desde os habitos de nidificagio de irunas e gratinas, até a origem tupi de tucano, Tocantins, castanha... (com as bengdos de Plinio Ayrosa). Essa importincia atribuida 2 ciéncia — & cientista, 2 quem 0 coronel ouvia como a “um oriculo” — nao impede que Emilia caia vitima da “melodia embriagante do carachué”, que s6 afeta as mulheres: “Meu estado era sonambillico”, diz a doutora em linguagem ‘cientifica’, mas confirmando as crendices locais a respeito do canto do pissaro. 7 loglo de Bustos de Avila A ciénela — e A clentista — é Jiio mais explicito, Ao ouvir a explicagto do Ultimo sobre tivos da Ilha de Marajé sobre as inserigdes num, Jago de urna, a professora Lucia pensara: "Que sucesso W irl provoear aquella descoberta, que profunda revolu Wh philologia indigena! A que mundo de consequéncias Whinnugindveis a sciencia da linguagem seria levada por um jyples obra do acaso?!" Ao que © narrador replica em nosso er fico: "A Sta.ucia de Abreu era injusta para consigo Joan. Ao acaso em verdade, se tem muito injustamente inbuldo grandes descobrimentos.” E a seguir explica que a Hiulidade, © ndo o acaso, tinham sido responsiveis pelas i seobertas de Newton, Galileu € Champollion, concluindo: “Asalin também nao fora somente o acaso que levara a Sta. Jiielu de Abrew & presenga de Sacaco: fora sua f€ na sciencia, sii) constancia no trabalho, os esforgos conjugados de sua jhoeklacle estudiosa, E no seria demais dizer-se que aquelle slesfecho inesperado nao se chegaria sem sua collaboragio sjocidida.°* Ele proprio um clentista, ao contririo do roman- bial de Os igarazinas, nao se preocupa como Raimundo de Movals em por na boca da personagem as explicagdes sobre {nuina local, mas se estende sobre t6picos tais como a caca io jacaré (ou *saurio asqueroso"), a postura de ovos das {yytarugas e se ocupa em referendar com uma nota bibliogrifica 4 fala do quia ow a listar as espécies de fauna encontradas (24 num 86 parigrafo — p. 163)? Amos os autores partitham 0 mesmo entusiasmo pelo que # nacional; no caso de Raimundo de Morais, esse entusiasmo parece como louvagio, no de Bastos de Avila, no lamento pelo descaso dos brasileiros pelas suas coisas. Em Os |yurutinas nao s6 a pericia de um piloto pratico € louvada: (ambem a culinaria eas mezinhas recebem uma descricio loulhada e aprovadora, J4 Bastos de Avila censura o descaso pelos "productos locaes, caracteristicos da terra": ‘Onde esta a velha Bahia, aquella Bahia que todos conhecemos pelo menos de tradiglo?! A Bahia do carunit, do ¢fé, do b0b6, lo tatapd, da muqueca, do abard, do acarajé, das frigideiras, do camarac! A Bahia da canfiquinba, dx mae-benta, do manoé, dos sequilbos, do mungunza” Diga com franqueza, Professora, vale a pena sahir uma pessoa do Rio, com risco de uma panne, fazer em pleno Atlantico uma descida forgada, m estender-se as instituigdes cientificas localizadas fora do cent wr do pais. Vale a pena comparar a descrigio que o autor faz Museu Nacional com a do Museu Goeldi. Ao chegar a para, em Sao Salvador da Bahia, se tomar uma consommée ; ui Snethlage, cespheras a que to cedo a levou 0 destino Poignon ou uma omeletie atx fines berbes? Wn Snthiage, M das espera aque do ceo ovoe Iinplreawc, Fosse dado observar 0 descaso, 0 desleizo, a desordem diana casa, outréra um templo da sciencia ¢ hoje, ai de nds © mesmo descaso reservado 2 culinaria local pared (ins rvina de esplendorosas reminiscencias, ¢ certo que seu ile radioso e faiscante se obscureceria por um momento, incuria dos homens de nossa patriat ante Aponr dos elogios aos dois cientistas estrangeiros, Goeldi Museu Nacional, a professora vé a seguinte paisagem: i chegar ao Museu Goeldi: silage, Bastos de Avila enfatiza seu nacionalismo na iin los vildes da historia: se a heroina é uma abnegada A exquerda, 0 lago verde, tranguillo, morto como Agua m +: ao verde; angie nar tis Se Jilsta nacional, os vildes so alemaes, © principal vila0 aque €- Uma aha emerge da superficie prada, aha dos “Amo cor bosrue ent clniatvt, a ted colunnas pani Joris, um ajudante desabusado do piloto do avido que just um symbolo! Adiant, uma serpente em bronze alld Jovou ao norte, € © cientista cuja teoria a senhorita vai 2 superficie das Aguas, soerguendo as fauees escancarad sujorizar sto todos alemaes."*J4 Raimundo de Morais ‘Mais para o lado um marmore branco destoa gritantemente juilicard vibes na politica local para explicar a queda do netiate sede, i ROR ee Jaonagem principal, De inicio o tom € irdnico, quase ‘olkos ‘cermados, desfalleckda. " poten Jochudo: o partido no poder € o Mamangomama, seus chefes, bs ehumados de tucbauas e 0 procedimento €o0 mesmo de mpre Principia por um sub-prefeito de policia macho, 1 branea e quinze pragas. Mande encostar a madeira Barcos sulcavam o lago, tripulados por garotos em gazetiy pequenos intelligentes que a0 recinto fechado de uma sala de classe preferiam, muito justamente, a liberdade sem peias daquelle sean ert recanto amavel ¢ a alegria sem par da natureza em festa Jy nls chibante e telegrafe comunicando que os homens A direita, era 0 bosque em declive suave, cheio de sombri ‘phe anurquistas.” — lustrado até pela evocagio de um caso real." myst eval cues rman todos, Canal Pyopressivamente a ifonia se transforma em tragédia e, no Convidam & meditacao. (p. 16-17) Juloavan para a oposigao, 0 coronel se desliga dele, a wo com & politica. Seus filhos, que viviam no alto Muito diferente é 0 cendrio encontrado pela professora 10 J cinlins, comegam a ses perseguidos, sito obrigados 2 deixar Jhon propriedades e ao voltarem para casa sto destrocados tues jederequallindlneadd ovcoreare,bologitorcUaIM Jihein morte ao receber a noticia, ¢ sua esposa, enlouquecida, me co tno ets [ecw sve ida 0 € oa Mir aves ¢ roedores, 0 povoavam fugindo ariscos & vists dos raroy fo jo cano de Os igararinas a politica local é determinante visitantes que os surprehendiam. (..) “Pips o Hlestecho da saga familiar — atingindo-a como s¢ fosse 4 improve pla Pesta, penta no ei Mp fora ela natureza —, no romance de Bastos de Avila ela weet op po fl do comm Sea o-rohee buco Fomiparece na forma de discurso politico nacionalista.'? O sar Sur au gue imagine w gue condo de decadendl Fido poe na boca de um personagem, o mesmo Jornal tae descambando 0 monumento gigantesco que creou,talvek Je se quicixava do nosso desleixo com nossa culingria, uma Binds dos impetos de sua indignagio cobrasse forcas € animo Hii de conselhos politicos que, indiretamente, confirmam a are se novo os as nevoas de sua patria pelt luminosidade rer gio da senho Lucia de Abreu com Heloisa Alberto: dia Amazonia, tentase salvar do desnoronameno total, @ Jes, Tanto sua proposta de uma nova divisto do pais em i onsagrado os melhores esforgos de sua vidi Ws vstaclos, como seu plano de *eleicao por classes", tornam pe Forgas naturais: cachoeiras e fndios traicoeitos. O coronel q ~ © personagem um pastiche quase Sbvio de Alberto Torres. A senhorita Lucia, quando Ihe € permitido falar de politica, faz um discurso breve, semelhante ao de Roquette-Pinto — que aparece no romance como ¢ diretor do Museu —, ¢ ambos reprovam o pessimismo do jornalista.® Diz a professora: “...0 brasileiro € um gigante que dorme; € possivel que abusando desta circumstancia, o tenham manietado; mas quando despertar vera de quanto € capaz". A propria senhorita Lucia &, no entanto, a tinica expressio dese otimismo nacional projetado no futuro e enfatizado em sua apresentagio como jovem cientista talentosa — 0 que nao impede que 0 romance tenha um desfecho melancélico. © pessimismo em relagio a politica brasileira € talvez 0 nico elo entre esses dois romances e o de Lima Barreto — além de tratarem, os trés, de personagens que interessam 2 hist6ria da antropologia. Mas a “viagem” ¢ a “fauna” que servem de pretexto a Lima Barreto sio de outra ordem, Trata-se de descrever a trajet6ria de um politico no contexto urbano, 1na capital do pais e de comentar os principais eventos politicos do Rio de sua época. Numa Pompilio de Castro, bacharel nortista, sobe na vida pelo casamento com a filha de um politico influente, da oligarquia Cogominho e torna-se deputado. Como fosse parco em sucessos politicos ao chegar a capital, a esposa se propde a escrever seus discursos — através dos quais ele conquista as glrias mundanas da rua do Ouvidor: ao final se revela que quem os escrevia era um primo, amante da esposa. Para nao perder a fama, o marido finge ignorar a relagao entre eles. A amargura de Lima Barreto em relagao a hipocrisia da sociedade carioca sua pesada ironia para com nossos politicos estio bem expressos neste romance @ clé jé tantas vezes analisado." Para 0s nossos propésitos, basta saber que Dona Florinda Seixas é Leolinda Daltro € Bentes é Hermes da Fonseca. Ela entra na histéria como uma entre tantos participantes das manifestagdes de rua que se faziam 2 época da sucessio de Afonso Pena pot Hermes da Fonseca — ridiculos uns, terriveis ‘outros. Aqui, como em outra eréniea na qual trata de Leolin Lima Barreto € critico feroz da professora.'® © capitulo dedicado a ela comega assim: Entre nés, muita gente tem mania de caboclo ¢ havia na cidade uma seniors idosa, Dona Florinda Seixas, que cultivava essa mania com muito carinho e constincia, Desde anos que # sua casa vivia cheia deles; e, a0 surgir a candidatura Bentes, Dona Florinda aderiu a ela com os seus caboclos hirsutos. Acontecia também que Bentes tinha um tio, jé Falecido, mais ou menos notivel; ¢ Dona Florinda muito naturulmente juniow a sua mania indigena 2 admiragio que sempre professou pela meméria do tio de Bentes, o Almirante Constincio. Fundou, consequente- ‘mente, uma sociedade — Sociedade Comemorativa do Falecimento do Almirante Constancio, O principal fim da sociedade dizia-Ihe (9 nome; mas tinha outros, entre os quais, o do ensino do guarani o das aclamagoes as pessoas de destaque. (Cap. 1X) As substituigdes aqui usadas sio andlogas as feitas no caso «le outros personagens: a amizade de Leolinda com a esposa dle Hermes, Orsina da Fonseca, transforma-se numa admi- ragio pelo tio de Bentes; a Associacio de Proteccio € Auxilio 10s Selvicolas do Brasil, criada por ela em 1908, funde-se com a Unio Civica Brasileira e 0 Gremio Patriético Leolinda altro — sociedades também fundadas por sua iniciativa em dlcfesa dos indios — € o almirante Constincio € provavel- mente uma evocagio do entio coronel Rondon, sempre home- nageado por todas essas associagées. Leolinda tampouco € poupada das insinuagdes que atingem os politicos retratados ho livro, mas, como se trata de uma mulher, elas so de outra orem: “Foi subvencionada e, gracas ao jeito que tinba para dgradar, todos a julgaram muito ttil em sanar dificuldades € procuravam-na, aderindo a sua proveitosa associago.” Ou: Honve quem dissesse que 0 bino de Dona Florinda era uma cancao erdttca de origem paraguaia; entretanto, esse detalhe iio foi notado, € os adeptos de Bentes muito prezaram to helt homenagem & meméria de seu tio.” Curiosamente, ja que Lima Barreto nao poupava criticas a Kondon ¢ a outros que se interessavam pela causa indigena, A@ncia de Leolinda Daltro — e no s6 dela — em reto- huirmos nossa suposta lingua original foi utilizada por ele ance. Em 0 triste fim de Policarpo Quaresma, \wuihém publicado em 1915, © personagem principal & punido por escrever um relatério em lingua estrangeira — 0 tupi, justamente." Numa ea ninfa e Policarpo Quaresma sto lidos, )bos, por Wilson Martins como “uma resposta sard6nica, talvez involuntaria ¢ acidental, mas por isso mesmo tanto mais significativa, as idéias de Alberto Torres”. Que em ambos os romances Lima Barreto ironiza o nacio- nalismo ingénuo nio ha divida, © a questao indigena foi varias vezes utilizada por ele com essa intencio € como um indicador para acompanhar o debate sobre a “questio nacional”, Ela também nos permite imaginar outros didlogos implicitos entre os romances e a vida real: 0 déretor do Museu, num dos romances, ser4 também autor de um elogio péstumo a Emilia Snethlage na vida real; os mesmos freis dominicanos criticados asperamente por Leolinda Daltro na vida real sto objeto de elogio de Raimundo de Morais, pela boca de Emilia (filha de ‘um pastor protestante), no romance; a polit irquica local, tio virulentamente atacada por Raimundo de Morais € Lima Barreto, foi ingenuamente clogiada por Emilia Snethlage, em um de seus relatos de viagem — e assim por diante."* ‘Tres autores, trés visOes da cena brasileira? A politica nacional, sequer mencionada por Lima Barreto em 1915, mais ocupado que ele estava em apontar as mazelas nacionais, passa a ser problematica e problematizada nos anos 30. Jaa questao da politica local ou regional, como se sabe, assumiu nessa €poca uma importancia central no debate nacional, Quanto ao aspecto especifico que interessa ressaltar aqui, a avaliagao da atuagio profissional das mulheres, a década de 30 esti asso- ciada historicamente a concessio da cidadania a elas através do voto, justamente no ano da premiagto do romance de Bastos de Avila. Este escolhe como heroina uma jovem pesquisadora do Museu Nacional, ao tempo em que outra pesquisadora da ‘mesma instituiglo, Bertha Lutz, era a principal responsivel pelo movimento que levou a essa concessio. Ou seja, as mulheres estavam em cena, lutando pelos seus direitos, nos momentos em que trés delas se tornam personagens de ficgo. No entanto, ¢ ainda que seja possivel recuperar evocagdes a essas lutas e dliscus- s0es, tanto através de personagens reais como do contexto hist6rico, as trés personagens dessas historias sio vistas de um outro Angulo, so definidas de outra maneira, sio, enim, remetidas a um outro contexto. Ao falar de alguma coisa, esses textos estio também deixando de falar de outra; mas seria ilus6rio pedir aos textos uma hist6ria que eles nao contam. Qual © contexto em que essas heroinas cabem, se nao cabem no contexto urbano das lutas pelos direitos cla mulher? AS HERO[NAS, ‘Comecando pela avaliagto do tratamento daclo as cientistas, Raimundo de Morais escreve um romance (com 0 subtitulo le Romance bistérico - costumes paraenses), no qual a pre- ‘cnga de Emilia Snethlage é inteiramente dispensavel: nenhum «los episédios depende de sua presenga, e mesmo a exortacio final soa postiga em relagio ao enredo.” Ela da, entretanto, lum tom de otimismo 2 visio da natureza proposta no romance. Como vimos, so “forgas naturais” as que liquidam com a Jumilia do coronel Igaratina e, ainda na sltima edigao do romance, de 1985, a terra € descrita na contracapa como sendo \io famosa alhures por sua beleza, pela bondade de seu povo, © pela amplidao aterradora de sua natureza ainda empre vencedora”. Emilia serviria entao como contraponto; como a voz da ciéncia mostrando o quanto esse terror pode ser dominado pelo ser humano, através do conhecimento? Que a sugestao encontra apoio na prépria trama narrativa, dlemonstra-o 0 destino dos agregados do coronel: entregues \ prdpria sorte depois da morte dele, 0 casal Joao Cabeludo © Merandolina € contratado por um coronel do Acre e, cacando © pescando, lavando ¢ engomando, transformam em jardim lis delicias © lugar inéspito a0 qual tinham chegado. Eis como o narrador explica isto: A verdade no entanto, nua € crua, eifrava-se nos conhecimentos lo tapuio. A natureza nao tinha segredos para cle, Mal chegou 1 Remanso, o seringal se transformou ante seus olhos acostu- hivtdos flora e & Agua. Era faminto € ficou farto, Era triste © licow alegre. Era doentio e ficou saudavel. A projegio humilde fe andnima do eametaura abrira um claro na vida erma © obscura da mata, como se ali tivesse penetrado o hilito quente ‘© propicio dalguma divindade. Hxahtagao dos humildes, sem duivida, que sobrevivem as (nuns dos oligarcas, mas também, mais uma vez, elogio de lyn suber local — toda a transformagao imposta por eles ao nuciosamente descrita num capitulo muito interes- nde de téenicas que ajudam 0 casal a ver possibi- Jkudes de desenvolvimento onde outros nada viam. A conquista da natureza feita por Emilia (a naturalista ou § doutora, como & sempre evocada) é mais ambigua. Seu papel n de cientista no a impede de ser vista como mulher: € barco das mulheres que ela vai a uma pescaria num igapé soffe, como a esposa do coronel, o encantamento do pass: carachué, Softe também a maledicéncia dos “roceiros": — Antio quem é esta madama, seri? — Diz que € alemoa do Museu. — Sabe de um tudo, benza-a Deus, Dizem que bicho de pena com ela, Comandante deste navio, sew Manoel das Ilhas, con coisas de arrepid cabelo da gente a respeito da valentia dela, — Como antic? — Na travessia do Xingu para o Tapajés, depois de muitos dias pelo mato adentro, acompanhada pelos indios & Deus, eaiu emt serio. Queixozinho dela tremia como vara verde —Coitada. = Antio um tapuio mais safdo foi na rede da doutora querend abusi. Mas nao Ihe conto nada, cunhado, madama meteu 0 és ¢ levantou como uma onga. Tapuio eaiu dos quartos © emprestou pena de cotia, soco! (..) — Nao seri alguma feiticeira? perguntou o tenente Melquiades, lum pau d'igua metido a sabido © que fazia estas eriticas. — Ort nao seja burro, volveu 0 comandante, caboverdeano, ‘que no tinha papas na lingua, Entao voce nio esi vendo Jogo que uma mulher destas nao sairia de sua terra a fim de fazer feitigaria para vocts, seus quadrapedes! A histéria da rede deve ter sido muito repetida como uma espécie de alegoria dos perigos que uma mulher sozinha podia ‘encontrar pelas matas: cinquenta anos depois da publicagio do romance ainda era lembrada, em outra versio, por uma colega de Emilia no Museu Nacional. O registro da propria Emilia a respeito de suas relagoes com os indigenas com 0s quais lidou em suas viagens é bem diferente. No relato de sua viagem ao Xingu e Tapajés, Emilia lembra que teve febre © anota a inseguranca dos indios que a ‘companhavam, por cesconhecerem a regio, regisrando também a mudanga de comportamento deles para com ela, to logo Perceberam que ela poderia ser uma garantia no seu encontro ‘com os seringueiros, Pareciam julgar que eventualmente seriam mais seguros na minha Companhia que sem mim. Mostrou-se isto por ume muda 7” ont romance, tanto na sua fragilidade, exposta Wolur w Gnfase, no 7 P “yh {yulo com “tapuios", quanto na sua fortaleza ao reagir. sods com que des eno me tata, Consieravam-me Ie'nuvo como e'seu chefeCemavanto durante ox dias ae- nen ete tinamse cescustado de mim de maneira um tanto vinnie) e nao tna de tomer que me debuariam no meio {i caminho para vltsem a0 Cur F tis adiante: ¢ abandonado Com a maior facta os nos podiam terme sband I caminho. quando estvam cangidos da vagem. $6 taham W"iiger# aavela que eu tint imorido —~ cosa [ano mais ‘cron, quam 08 meus companieirs no Cur sab que Sct sfend de ings pore, ape ce eds Vise promenta seompankaranme sta primeira cach os Fina, € Toi com pear sincero anita gradao que me ve les na nana de 23 de setemeo>™ 1) yelato de Emilia nao difere muito do de outros pesqui- Jojo» cle campo que viajavam sem acompanhantes, mas vale ‘A nesma ambiguidade se nota em outra cena. Ao chegar spi do coronel, Emilia é assim descrita: “Quanto & natura |, valia por um atestado das altas qualidades germanicas. io er formosa, possuia no entanto uma graca e simpatia ie 4 Cornavam envolvente, além da fina inteligéncia, do {alo ameno e da coragem que a sobrepunha, em qualquer Hwomento, ao tipo comum da mulher.” Mas ao banhar-se no Hip, linilia desperta outra vez a curiosidade dos roceiros ¢ We Mo cachorro da casa: v wiaese de peito pra Vsimia nadadors, parecia uma sereia, Mo Jc biugo, remande com as milos, impelindo-se com os aqueles exercicios aquiticos pies. Vala por um encanto assist Uh moga. Gu) Tinha desfeito as trancas amarelas, de sorte que bo» cabelos, como Finhas «le uma teia dourada, contrastavam ono liquide verde. Lembrava fos de ouro sobre liminas de elds. (..) Apessr da gente da terra ser toda acostumada nadadora, dentro de um © eristalina das diguas, te. ALE 08 cachorros 105, 0 tipo alvo € loiro wlo na massa glau teresa essen Dat preto, mergull ava o espeticulo inédito, Hevavam: aul aut aut Na sua dltima deserigao, Emilia nto é mals a passagel de um gaiola ou a h6spede do coronel e 6 retratada no texto também com um certo distanciamento, referida a partir dal pelo seu sobrenome ou seu oficio. *...0 ornitolos algou umas botas altas de couro de anta, botou um chapelio vermetho de tucuma a cabega, tomou a espingarda a tiracolo ¢ fez-se A terra negligentemente, dentro de seu fato masculino de 14, depois de ter metido no bolso alguns tabletes de chocolate € um isqueiro”. Apesar de ter-se perdido em seguida (nao levara biissola “porque a sua excursio nao atingiria a seis horas"), € agora a profissional que entra em cena, reconhecendo os frutos comestiveis, fazendo fogo, rememorando observagdes de Humboldt, dormindo sem medo no meio da floresta. Essa metamorfose de Emilia, expressa pela men¢io, tinica, 3 roupa usada por ela, quando sai do Ambito doméstico da casa do coronel e passa a exercer 0 seu oficio, faz. eco A apre- sentagio de Alipio de Miranda-Ribeito, ao discursar em sua homenagem na Academia Brasileira de Ciéncias, em 1926 Trax 0 seu cabello como Sofia Kowalewsky — 4 moda antiga — € ust 0 chapeo severo das senhoras de edade, 9 sea Vestuario nto deslumbra nas demasias do apuro, mas nos aga ina severidade da forma. Vé-se, 4s vézes, um leve vestigio de escolha de moga, nas flores do chapeo ou na disposigao da ‘moda; mas a sisudez domina-the as maneitas, a simplicidade accentua-the a sua predilecsao constante - a Zoologia, Nao & Pols a soullragete despeitada e resolvida a rasgar telas raras ow 4 derribar governos; € a creatura bondosi © experiente de Sabedoria que se apraz em estudar, amviseando para tanto a Com a mesma naturalidade e modestia com que deseja s6 encontrar, nos outros, as qualidades angelicas dos santos; com a mesma firmeza de animo com que prepara ¢ executs oo viagens pelo sertao a dentro. E como se fosse_necessirio, deSenfatizar a mulhe cientista, mas ndo a ‘um Teve vestigio” quebra sua sisudez. Em 1926, F1 Banos ¢ € também “remogada” nesse retrato, como para acen- lwar-se a sua feminilidade. No universo romanesco, enquanto vive sob 0 teto do coronel e frequenta festas com sua familia, a mulher Emilia € acentuada: menciona-se a sua silhueta, 0 Hoy de wou cabelos, sua grag. Mas ¢ ento asia ciéncla que & “ominizada’, # curios que, tendo sido fame pase colaps Hip aves que abatia, eu trabalho com a espingarda Flaubert Bate to ikerro) ska menclonado 96 de passagem, © sua Wpria condigio de omnitdloga seja posta em xeque quando el icumbe, como as mulheres da regito, ao canto de um passato... A apresentagio de Heloisa Alberto Torres € muito mais ipereta: senborita, ela viaja acompanhada de um afilhado, jwnhuma descrigao fisica é oferecida da professora, 56 suas {ulidades morais sito enfatizadas. $6 ficamos sabendo que | tem “mos finas mas cecididas", que fora *formada em Jina escola positiva em que a sefencia pura era a unica arma jormittida nos prelios em que se batia” e que era um “espitito piatico © resolvido" (p. 16, 122, 150), O enredo se concentra ji apresentagao do mistério que ela vai desvendar, perse- uinclo um texto rasurado e, como subtema, no desmentido lu teoria do trangado. Conforme apresentada no romance, a worla do trangado” de Max Schmid, “o maior dos ethnologos sly atualidade*, explicava porque as figuras desenhadas nas Urns marajoaras eram sempre invertidas: be accordo com a hypathese genial do sublo tees, oat tes maa sti tee sla ries. egy s 8 as to jatarente acta 8 tras portoa, qu em roms Viv siiragao dos entendidos, fasan- de bra 0 fagusra, ictgn ane so pedis ex copies di es, al Bok inds ob atsacs da Madeira, em vine manuacturs Utensil vad, Or, assim fazendo, a0 realar por exemplo, snd san devies pans, om mata qe comes pela cabega e arretatasem pelos pés: dabi a inversio que Persialu ainda quando como decorrer dos anos e quigh dos ‘seuloa,eataram on peltceosoletes a modelar Gm bur oa ‘Objects de so commun, Com a ajuda do dhtimo sobrevivente dos primitivos habi- intes de Marajé ela encontra, desenterra e interpreta as belas umas de argila cujos desenhos aos poucos vio destruindo a Wworia de origem alema. oven di Agua de gus lard ma ale to 0s ob de Marajé, explicada por Antonio Sacico, contrariava compl tamente a theoria do trangado, defendida pela Professora Sta Lucia de Abreu em sua memorivel conferencia na Bibliotheca Nacional. Esta inversto, pobre Max Schmidt! no significava absolutamente © vestigio de uma technica primitiva conservado pelo espirito de rotina dos artistas mais modernos: implicava, sim, um modus faciendt de taduzie graphicamente determinadas idéas ¢ conceitos. © homem mortal era sempre estylisado de cabeca para baixo, isto & voltado para a tera, que afinal receberfi em suas entranhas insaciaveis. Os deuses immortacs, estes eram representados de cabeca a0 alto, erguidas para os egos inaccessiveis, residencia paradisiaca dos privilegiados.®* No entanto, toda a prova de sua interpretagio seria levacla pelas éguas, logo depois da morte de seu Ghimo intérprete native: destruida uma vez pela rapina ¢ teoria da ciéncia estrangeira, a bela obra dos primeiros habitantes de Maraj6, recuperada pela ciéncia nacional, é agora destruida pela invasdo desta, E como se a intervengiio da professora tivesse precipitado essa clestruicto: Naquelle ano as chuvas anteciparam-se. (..) Ea Professora assistiu com os olhos marejados de ligrimas, 4 lenta fusto das pegas, ao esboroamento de suas figuras symbolicas, 4 dissolugio final das urnas maravilhosas de que dentro em breve nao restava senio um amontoado de lama viscosa e barrenta, que @ enxurrada carregava para fra da barraca... © romance poderia ser lido, também, como um exercicio de iconoclastia, no sentido atribuido ao termo por Mitchell: desde a primeira imagem evocacla no romance (os diapositivos exi- Bidos pela professora em sua conferéncia), passando pel ‘teoria do trangado até a descoberta das urnas no final, parece tratar-se de derrubar “imagens invertidas’, isto é, uma ideologia. Os fdolos $6 ficam “de pé" 20 se tornarem concretos e sere. interpretados, ou seja, a0 ser recuperada a histéria humana que havia sido neles projetada e esquecida — mas esse reconhecimento da histéria primitiva dura pouco: logo ela seri transformada em cacos.* Quem sabe, por ser uma mulher a agente dessa transformagao, nao é de admirar que a natureza, literalmente, desabe sobre ela.* Numa clave mais hist6rica, a discussio sobre o destino dos idolos poderia ser lida, ainda, como a continuagao de uma antiga polémica entre o Museu Goeldi 0 Museu Nacional, evocada na descriga0 inicial do ambiente de ambos. Na la real, e conforme o historiador do Museu Goeldi, Ladislau Netto (Suposto autor do texto fragmentado encontrado no romance), quando diretor do Museu Nacional, pedira ao presidente da provincia do Para o empréstimo das colegdes coldgicas ¢ etnogrificas do Museu Paraense, para a exposigdo de 1882. Parte dessas colegdes eram as urnas nirajoaras, desenterradas por Ferreira Penna, no sitio do Pacoval, Ilha de Marajé, em 1871. “As colecdes, que eram pioneiras, foram cedidas por empréstimo, mas até hoje nfo voltaram \ Museu Paraense, proprietirio legal deste patrim6nio."® No romance, coerente com a vistio do autor sobre o desres- peito internacional pelo pais, a versio sobre o desapareci- Inento das pegas de ceramica € outra: E que Pedro II, sabio ¢ philosopho, mas ingenuo ¢ confiante, cconcorrendo para maior realce da exposicio universal de Paris, dde arte retrospectiva, remettera 4 Cidade Luz os mais bellos ‘exemplares da ceramica marajouara entre nds existentes, exem= plares que nos foram infelizmente recambiados em cacos, devido 4 eriminosa falta de cuidado em seu acondicionamento. Seja como for que se possa ler o romance, e apesar de ele ter sido publicado um pouco antes do de Raimundo de Morais, sua heroina expressa um claro avango em relagio as ouitnts das: nem desprezada por suas aventuras com caboclos, nem romantizada por sua condiglo de estrangeira que, de certo modo, colocava Emilia acima das mulberes comuns. HIcloisa é bem um modelo de profissional da pesquisa que {\y sua entrada ne mundo romanesco — e antropolégico. c intrastando com 0 retrato literirio de Emilia e Heloisa, a personagem de Lima Barreto parece grotesca, Ao apresentar vn Plorinda Seixas, 0 romancista ndo s6 faz insinuagdes Wwuliciosas a respeito de sua atuagio politica, mas também slescreve stia relagzio com os indios como totalmente equivo- ‘uh. Bis como ele narra seus esforgos para ensinar o guarani hunt aula publica: ‘Comegou at professora por asseverar que o guarani era a lingua ‘outs antiga, mais bela do mundo; ¢ exemplifica Meus senhores, vojam 86 esta frase: amanacé sacu enacd pinaié. Sabem o que quer dizer? 3 © auditorio ficou suspenso © Dona Morinda explieow 0 peixe vive no mar, — "4 eado", geitou Tupint Dona Florinda voltou: = Puxignera che naics. —*Té endo", gritou Tupini. Os cizeuastantes entreolharam-se, da liglo, = Nio € 56 nessa frase que a beleza da lingua se revela. 1 mos outra: emu mameara cé necé - quer dizer: minha noiva é bonita. ‘Tupini disse devagar: — “Td endo”. para o indio e respondeu em guaran continuagae iperando pel — Tupini! Tupinit Nao queira emendar-mel... Esta é lingua de outra tbo, Xeréré cond = "Ti endo". 0s discipulos foram um a um saindo e a liglo nao foi adiante naquele dia, “Tupini cra um caiap6 que a professora “estimava sobremodo”. ‘Também os protegidos da professora sto descritos de modo pejorativo: Homens da selva, pouco habituados 2s regras © pre salas, esse jovens burons praticavam em casas to respeité tuma nica inconveniéncla: embriagavam-se de cair © cafam pelos jardins, dormiam familiarmente com © rosto para 0 céu estrelado, como filhos das brenhas que eram, Nao se diga que Dona Florinda no empregasse os seus esforgos de domadora ow civilizadora para impedir tio indecente caboclismo. Era ela vista a dizer no butfet: = Tupand pene core! (03 caboclos respondiam, amuados como criangas teimosas: = *Quelo bebe Quelo bebe!” E sacudiam a juba de cima dos olhos, das bordas dos copos (08 bebiam as diizias cheios de cerveja. Gostavam mais de whisky. das ‘A ‘velha senhora” é, no melhor dos casos, ridicula, seus protegidos estio fora de lugar na cidade, ¢ a relagiio entre eles é de incompreensio: em tudo € por tudo Dona Florinda a4 # diferente da doutora Emilia ¢ da professora senhorita Luca tle Abreu, Essas nao s6 se relacionayam bem com a ni 08 povos primitivos af inclufdos — como o faziam onde se devia: bem longe da eivilizagao. ‘A nensagao de estranheza que sentimos ao colocar a isis ao ado das cientistas nasce, portanto, da percepcao de Jini déslocamento, dela, dos indios e da linguagem. Quando illizida nos outros dois romances, a lingua indigena refere- sempre aos “elementos naturais” (frutas, bichos, costumes nuligenas) e serve para traduzi-los para a nossa, isto é, para Aiipliar © nosso conhecimento. Neste, sua citagio funciona shies como uma barreira 2 nossa compreensio: o que quereria inor emu mameara cé necé™® Nios sensagdo de estranheza vai se concentrar, finalmente, juin grande préstito organizado pela professora ¢ assim dexerito: As tribos dos Mundurucus, Caiap6s, Oméguas, Pataxds, Cain- juangues, Tamoios, Carijés, Charruas, Xavantes © outras apare~ ‘veram ¢ foram representadas por comisses vestidas a cardter, tendo os respectivos estandartes: folhas de palmetras, de bana- niciras, remos de canoas, capivaras empalhadas; e, 40 centro, ‘ium caminhao, reclinado sob um bananal verdejante, Tupini, le cocar ¢ enduape, arco e flecha ao lado, peas nuas, coxas huts, peito au e bragos nus — o rei da floresta brasileira que ‘marchava para o timulo do almirante inesquecivel © préstito era acompanhado por misicas militares, por wsociagdes de estivadores, de operiios, de funcionérios, ile militares, de senhoras que tomaram parte com seus estan- sles de seda, além dos clubes e corddes carnavalesco: Js também acompanhado por um dos esbirros do romance que, todo de verde e amarelo, montado num cavalo enfeitado (om flordes da independéncia, “trazia, a guisa de lanca, um acarte em que se lia na bandeirola; “a bala’.” Fechando o slile, grupos de criangas, “como representagio do Futuro, dicionado pelo Passado € contido no Presente”. A sociedade nacional parece estar af toda representada, ¢ 0 Jonancista no deixa de aludi ironicamente & cena que ele mesmo rious “O alto simbolismo filos6fico e patristico do préstito foi inuito gabado pelas pessoas simpiticas & causa de Bentes, 85

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