You are on page 1of 10
Cenc socials, woléncia epstémice #0 problema da invengla da outro’ Tilo Castro Gamez, Santiago Astoria res) ‘A coloriaidade do saber eurocenismo @ Gndis soces, Porspacivas, co atino-americanas Buenos Aires ig [CLAGSO, Consejo Latinoamericano de Clencias Socales eeerenng fy com ‘globalzacon, posimademidad, modenidad, Wosota,caplalsme, Gendas SOAaS, estudios cultures fori cits; America Latina Capitulo d= Libro Ce tpzibiblotecavinual clacso.org ariciacso’sur-sur20100624102434/9 CestroGomez. UA™ pat Reconaciniento-No comercial Sin obras dervadas 2.0 Genénca hitp:crestivecommons orglivensesby-ne-ne2Oldeed.es Segui buscando en la Red de Bilbliotecas Virtuales de CLACSO. http:fblioteca.clacso.edu.ar CConeejo Latinoamericano dle Clencias Sociales (CLACSO) Conseiho Latino-americano de Ciencias Socials (CLACSO) Latin American Council of Social Sciences (CLACSO) wow.clacso.edu.ar SD | craplatemeceececerese § Vea a CLACSO | {Siramarcarconctotoca sso TG Dan ay ae Ciéncias sociais, violéncia epistémica e o problema da “invengao do outro” Santiago Castro-Gomez* DURANTE AS ULTIMAS DUAS DECADAS do século XX, a flosofia pds-modema e os estudos culturals constituiram-se em importantes correntes tedricas que, dentro e fora dos recintos académicos, impulsionaram uma forte critica as patologias da ocidentalizacdo. Apesar de todas as suas diferencas, as duas correntes coincidem em apontar que tais patologias se devem ao carater dualista e exclidente que assumem as relagées, modemas de poder. A modemidade é uma maquina geradora de alteridades que, em nome da razio ¢ do humanismo, exclui de seu imaginario a hibridez, a muttiplicidade, a ambigliidade ¢ a contingéncia das formas de vida concretas. A crise atual da modemnidade ¢ vista pela filosofia pés-moderna e os estudos culturais como a grande oportunidad histérica para a emergéncia dessas diferengas largamente reprimids. Abaixo mostrarei que 0 anunciado “fim” da modemidade implica certamente a crise de um dispositive de poder que construia 0 ‘outro” mediante uma logica bindria que reprimia as diferengas. Contudo, gostaria de defender a tese de que esta crise néo conduz a debilitacao da estrutura mundial no interior da qual operava. tal dispositivo. O que aqui denominarei o “fim da modemidade" ¢ apenas a crise de uma configuragdo histérica do poder no contexto do sistema-mundo capitalista, que no entanto assumiu outras formas em tempos de globalizago, sem que isso implique no desaparecimento desse mesmo sistema-mundo, Argumentarei que a atual reorganizacao global da economia capitalista se apdia na produgéo das diferengas @ que, poranto, a afimacao celebratéria destas, longe de subverter o sistema, poderia contribuir para consolidé-lo, Defenderei a tese de que o desafio atual para uma teoria oritica da sociedade 6, precisamente, mostrar em que consiste a crise do projeto moderno @ quails s8o as novas configuragées do poder global no que Lyotard denominou a “candic&o pés-moderna’ Minha estratégia consist’. primeiro em interrogar 0 significado do que Habermas chamou de ‘projeto da ‘modemidade", buscando mostrar a génese dos fenomenos sociais estreitamente relacionados: a formacao dos estados nacionais e a consolidagtio do colonialismo. Aqui coloquei a énfase no papel desempenhado pelo ‘conhecimento cientifico-técnico, @ em particular pelo conhecimento propiciado pelas ciénclas sociais na consolidacao destes fendmenos. Posterioimente mostrarei que o “firn da modemnidade” nao pode ser entendido como 0 resultado da explosdo dos contextos normativas em que este projeto desempenhava taxonomicamente, mas sim como uma nova configuragao das relagGes mundiais de poder, agora ja nao baseada na repressao e sim na produgéio das diferengas. Finalizarei com uma breve reflexéo sobre 0 papel de uma teoria critica da sociedlade em tempos de globalizacao 0 projeto da governamentalidade © que queremos dizer quando falamos do “projeto da modemidade"? Em primeiro lugar, e de maneira geral, referimo-nos a tentativa faustica de submeter a vida inteira ao controle absoluto do homem sob a direcao segura do conhecimento. 0 filgsofo alemao Hans Blumemberg (1997) mostrou que este projeto exigia, conceitualmente, elevar 0 homem ao nivel de principio ordenador de todas as coisas. Jé ndo é a vontade inescrutavel de Deus que decide sobre os acontecimentas da vida individual e social, e sim o proprio homem que, servindo-se da razao, é capaz de decifrar as leis inerentes & natureza para colocdi-las a seu servico. Esta reabiltagao do homem caminha de méos dadas com a idéia do dominio sobre a natureza através da ciéncia e da técnica, cujo verdadeiro profeta foi Bacon. De fato, a natureza & apresentada por Bacon como o grande “adversario” do homem, como 0 inimigo que tem de ser vencido para domesticar as contingéncias da vida e estabelecer 0 Regnum hominis na terra (Bacon, 1984: 129). E a melhor tatica para ganhar esta guerra é conhecer o interior do inimigo, perscrutar seus segredos mais intimos, para depois, com suas proprias armas, submeté-lo a vontade humana. O papel da razéio Cientifico-técnica é precisamente acessar os segredos mais ocultos e remotos da natureza com o intuito de obriggé- la a obedecer nossos imperatives de controle. A inseguranga ontokigica s6 poderd ser eliminada na medida em 87 que se aumentem os mecanismos de controle sobre as forcas magicas ou misteriosas da natureza e sobretudo aquilo que nao podemos reduzir & calculabilidade. Max Weber falou neste sentido da racionalizagao do ocidente ‘como um process de “desencantamento” do mundo. Gostaria de mostrar que quando falamos da modemidade como “projeto”, estamos referindo-nos também, @ principalmente, a existéncia de uma insténcia central a partir da qual s80 dispensadas e coordenados os mecanismos de controle sobre o mundo natural e social. Essa insténcia central é 0 Estado, que garante organizagao racional da vida humana. “Organizagao racional’ significa, neste contexto, que os processos de desencantamento e desmagicalizacdo do mundo aos quais se referem Weber e Blumemberg comecam a ser regulamentados pela acdo diretiva do Estado. O Estado € entendido como a estera em que todos os interesses encontrados na sociedade podem chegar a uma “sintese”, isto 6, como o focus capaz de formular metas. coletivas, validas para todos. Para isso se exige a aplicacéio estrita de “critérios racionais” que permitam a0 Estado canalizar os desejos, os interesses e as emogies dos cidadéos em diregao as metas definidas por ele mesmo. Isto significa que o Estado modemno nao somente adquire 0 monopdlio da violéncia, mas que usa dela para “dirigir’ racionalmente as atividades dos cidadios, de acordo com critérios estabelecicos cientiicamente de antemao. © filésofo social estadunidense Immanuel Wallerstein (1991) mostrou como as ciéncias sociais se transformaram numa pega fundamental para este projeto de organizagao @ controle da vida humana. O nascimenta das ciéncias sociais nao é um fendmeno aditivo no contexto da organizacdo politica definido pelo Estado-nacdo, e sim constitutivo dos mesmos. Era necessério gerar uma plataforma de observacdo cientifica sobre 0 mundo social que se queria governar!, Sem o concurso das ciéncias sociais, 0 Estado modero nao teria a capacidade de exercer controle sobre a vida das pessoas, definir metas coletivas de largo e de curto prazos, nem de construir é atribuir aos cidadaos uma “identidade” cultural’. Nao apenas a reestruturacao da. economia de acordo com as novas exigncias do captalismo intermacional, © também a redefinigéo da legitimidade politica, e inclusive a identificagao do carater e dos valores peculiares de cada nagao, exigiam uma representacéo cientificamente embasada sobre o mado como “funcionava" a realidade social. Somente sobre esta informacao era possivel realizar e executar programas governamentais, ‘As taxonomias elaboradas pelas cidncias socials n&o se limitavam, assim, & elaboragéo de um sistema abstrato de regras chamado “ciéncia” ~como ideologicamente pensavam os pais fundadores da sociologia-, mas tinham consequéncias praticas na medida em que eam capazes de legitimar as politicas reguladoras do Estado. ‘A matriz pratica que dara origem ao surgimento das ciéncias sociais a necessicade de “ajustar” a vida dos homens ao sistema de produc. Todas as politicas as instituigdes estatais (a escola, as constituigBes, o direito, os hospitals, as prises, eft.) serdo definidas pelo imperativo juridico da ‘modemizacao’, ou seja, pela necessidade de disciplinar as paixdes e orienté-las ao beneficio da coletvidade através do trabalho. A questo era ligar todos os cidados ao processo de produgéo mediante @ submissao de seu tempo e de seu corpo a uma série de normas que eram definidas e legitimadas pelo conhecimento, As ciéncias socials ensinam quais sao as “leis” gue governam a economia, a socieclade, a politica ¢ a histéria. O Estado, por sua vez, define suas politicas governamentais a partir desta normatividade cientificamente legitimada, Pois bem, esta tentativa de criar perfis de subjetividade estatalmente coordenados conduz ao fendmeno que aqui denominamos “a invengao do outro”. Ao falar de “invengao” nao nos referimos somente ao modo como um certo grupo de pessoas se representa mentalmente a outras, mas nos referimos aos dispositivos de saber/poder que servem de ponto de partida para a construcdo dessas representacdes. Mais que como 0 “ocultamento” de uma identidade cultural preexistente, o problema do “outro” deve ser teoricamente abordado da perspectiva do proceso de produgao material e simbéiica no qual se viram envolvidas as sociedades ocidentais @ partir do século XVP. Gostaria de ilustrar este ponto recorrendo as andlises da pensadora venezuelana Beatriz Gonzalez Stephan, que estudou os dispositives disciplinares de poder no contexto latino-americano do século XIX e 0 modo como, a partir destes dispositivos, foi possivel a “invengaio do outro" Gonzalez Stephan identifica és préticas disciplinares que contribuiram para foriar os cidadéos latino- americanos do século XIX: as constituigdes, os manuals de urbanidade as gramaticas do idioma. Sequindo 0 te6rico uruguaio Angel Rama, Beatriz Gonzalez Stephan constata que estas tecnologias de subjetivacao possuem um denominador comum: sua legitimidade repousa na escrita. Escrever era um exercicio que, no século XIX, respondia a necessidade de ordenar e instaurar a logica da “civilzagao” e que antecipava 0 sonho modernizador das elites criollas. A palavra escrita constidi leis e identidades nacionais, planeja programas modenizadores, organiza a compreensao do mundo em termos de inclusdes e exclusdes. Por iss0 0 projeto fundacional da nacao se leva a cabo mediante a implementagito de instituigées legitimadas pela letra (escolas, hospitals, oficinas, prisées) e de discursos hegemdnicos (mapas, gramaticas, 88 constituigdes, manuais, tatados de higiene) que regulamentam a conduta dos atores sociais, estabelecem fronteiras entre uns @ outros @ Ihes transmitem a certeza de existir dentro ou fora dos limites definidos por essa legalidade escrituraria (Gonzalez Stephan, 1996). A formagio do cidadéio como “sujelto de direito” somente é possivel dentra do contexto ¢ da escrita disciplinar e, neste caso, dentra do espaco de legalidade definido pela constituigao. A funcao juridico-politica das constituigées 6, precisamente, inventar a cidadania, ou seja, criar um campo de identidades homogéneas que tomem viavel o projeto modemo da governamentabilidade, A constituicao venezuclana de 1899 declara, por exemplo, que s6 podem ser cidaddos os homens casados, maiores de 25 anos, que saibam ler € esctever, que sejam proprietarios de bens de raiz e que tenham uma profissdo que gere rendas anuais nao inferiores a 400 pesos (Gonzalez Stephan, 1996: 31), A aquisic&o da cidadania 6, entéo, um funil pelo qual 86 passardo aquelas pessoas cujo perfil se aluste a0 tipo de sujeito requerido pelo projet da modernidade: homem, branco, pai de familia, catélico, proprietério, letrado e heterosexual. Os individuos que néo cumpram com estes requisitos (mulheres, empregados, loucos, analfabetos, negros, hereges, escravos, indios, homossexuais, dissidentes) ficardo de fora da “cidade letrada’, reclusos no ambito da ilegalidade, submetidos ao castigo e @ terapia por parte da mesma lei que os exclu Mas se a constituigiio define formalmente um tipo desejével de subjetividade moderna, a pedagogia ¢ a grande anifice de sua materializagao. A escola transforma-se num espago de internamento onde se forma esse tipo de sujeito que os “ideals requladores" da constituigéo estavam reciamando. O que se busca introjetar uma disciplina na mente e no corpo que capacite a pessoa para ser “itil 4 patria’. © comportamento da crianga devera ser regulamentado © vigiado, submetido a aquisigéo de conhecimentos, capacidades, habitos, valores, modelos culturais e estilos de vida que the permitam assumir um papel “produtivo” na sociedade. Mas néo é a escola como “instituigéo de seqiiestio" que Beatriz Gonzélez Stephan dirige suas reflexes, e sim a fungdo disciplinar de certas tecnologias pedagégicas como os manuais de urbanidade, € ‘em particular 0 muito conhecido de Carrefto, publicado em 1854. O manual funciona dentro do campo de autoridade aberto pelo livio, com sua tentativa de regulamentar a sujeicéo dos instintos, 0 controle sobre os movimentos do corpo, a domesticacto de todo tipo de sensibilidade considerada como *barbara’ (Gonzalez Stephan, 1995). Nao se escreveram manuais de como ser um bom camponés, bom indio, bom negro ou bom gaticho, JA que todos estes tipos humanos eram vistos como pertencentes ao ambito da barbérie. Os manuais foram escritos para ser-se “bom cidadao"; para formar parte da civitas, do espaco legal que habitam 08 sujeitos epistemolégicos, morais e estéticos de que necesita a modemidade. Por isso, o manual de Carterio adverte que “sem a observancia destas regras, mais ou menos perfeitas, segundo o grau de civilizagao de cada pais |...] no havera meio de cultivar a Sociabilidade, que é o prinefpio da conservacdo € do progresso dos povos ¢ da existéncia de toda sociedadle bem orcenada” (Gonzalez Stephan, 1995: 436). Os manuais de urbanidade transformam-se na nova biblia que indicaré ao cidadao qual deve ser seu comportamento nas mais diversas situacdes da vida, pois da obediéncia fiel a tais normas dependerd seu maior ou menor éxito na civitas terrena, no reino material da civilizagdo. A “entrada” no banquete da moderidade demandava o cumprimento de um receituério normativo que servia para distinguir os membros da nova classe urbana que comegava a emergir em toda a América Latina durante a segunda metade do século XIX. Esse "nds" a que faz referéncia 0 manual 6, assim, 0 cidadao burgués, 0 mesmo a que se dirigem as constituigées republicanas; 0 que sabe como falar, comer, utilizar os talheres, assoar 0 nariz, tratar 05 empregados, comportar-se em sociedade. E 0 sujeito que conhece perfeitamente “0 teatro da etiqueta, a rigidez de aparéneia, a mascara da contengéo” (Gonzdlez Stephan, 1995: 439). Neste sentido, as observagées de Gonzélez Stephan coincidem com as de Max Weber ¢ Norbert Elias, para quem a constituicéo do sujeito moderno vem de méios dadas com a exigéncia do autocontrole e da repressao dos instintos, com o fim de tornar mais visivel a diferenga social, O “processo da civilzagéo" arrasta consigo um crescimento dos espacos da vergonha, porque era necessatio distinguir-se claramente de todos aqueles estamentos sociais que ndo pertenciam ao Ambito da civitas que intelectuais latino- americans como Sarmiento vinham identificando como paradigma da modernidade. A “urbanidade” e a “educagai civica” desempenharam 0 papel, assim, de taxonomia pedagégica que separava o fraque da ralé, a limpeza da sujeita, a capital das provincias, a repdiblica da colonia, a civllzagéo da barbérie. Neste proceso taxonémico desempenharam também um papel fundamental as gramaticas da lingua. Gonzélez Stephan menciona em particular a Gramatica de la Lengua Castellana destinada al uso de los americanos, publicada por Andrés Bello em 1847. O projeto de constugao da nacdo requeria a estabilizagdo lingtifstica para uma adequada implementagao das leis e para faciltar, além do mais, as transagées comerciais. Existe, pois, uma relacao direta entre lingua @ cidadania, entre as gramaticas @ os manuais de urbanidade: em todos estes casos, do que se trata é de criar ao homo economicus, ao 89 sujeito patriarcal encarregado de impulsionar e levar a cabo a moderizagéo da repiblica. Da normatividade da letra, as gramaticas buscam gerar uma cultura do “bem dizer” com o fim de evitar “as praticas viciosas da fala popular” ¢ os barbarismos grosseiros da plebe (Gonzalez Stephan, 1996: 29) Estamos, pois, frente a uma pratica disciplinar na qual se retietem as contradi¢des que terminariam por desgarrar 0 projeto da modernidade: estabelecer as condigées para a “liberdade” e a “ordlem” implicava a submisséio dos instintos, a supressao da espontaneidade, 0 controle sobre as diferengas. Para serem civilizados, para formarem parte da modeinidade, para serem cidaddos colombianos, brasileiros ou venezuelanos, os individuos no sé deviam comportar-se corretamente e saber ler © escrever, mas também adequar sua linguagem a uma série de normas. A submisséo @ ordem e @ norma leva o individuo a substituir 0 fluxo heteragéneo e espontaneo do vital pela adogdo de um continuum arbitrariamente constituido pela letra. Fica claro, assim, que os dois processos assinalados por Gonzalez Stephan, a invencéio da cidadania e invencao do outro, Se encontram geneticamente relacionados. Criar a identidade do cidadao moderna na América Latina implicava gerar uma contraluz a partir da qual essa identidade pudesse ser medida afirmada como tal. A construgao do imaginario da “civilizagao” exigia necessariamente a produgio de sua contraparte: 0 imagindrio da “barbarie". Trata-se em ambos 0s casos de algo mais que representagoes mentais. Sao imagindrios que possuem uma materialidade concreta, no sentido de que se ancoram em sistemas abstratos de cardter disciplinar como a escola, a lei, o Estado, as prises, os hospitais e as ciéncias sociais, E precisamente este vinculo entre conhecimento e disciplina 0 que nos permite falar, seguindo Gayatti Spivak, do projeto da modernidade como 0 exercicio de uma “violéncia epistémica’. Pois bem, apesar de que Beatriz Gonzdlez Stephan indicou que todos estes mecanismos disciplinares buscavam criar 0 perfil do homo economicus na América Latina, sua analise genealégica, inspirada na microfisica do poder de Michel Foucault, néo permite entender o modo pelo qual estes processos se vinculam & dinamica da constituigéo do capitalismo como sistema-mundo, Para conceituar este problema faz-se necessério realizar um gito metodol6gico: a genealogia do saber-poder, tal como é realizada por Foucault, deve ser ampliada para o ambito de macroestruturas de longa duragao (Braudel/Wallerstein), de tal maneira que permita visualizar o problema da “invengéio do outro” de uma perspectiva geopolitica, Para este propésito, seré muito Util examinar 0 modo Como as teorias pos- coloniais abordaram este problema . A colonialidade do poder ou a “outra face” do projeto da modernidade Uma das contribuigées mais importantes das teorias pés-coloniais a atual reestruturagio das ciéncias sociais € haver sinalizado que o surgimento dos Estados nacionais na Europa e na América durante os séculos XVII a XIX néo é um proceso auténomo, mas possui uma contrapartida estrutural: a consolidacao do colonialismo europeu no além-mar. A persistente negagio deste vinculo entre modemidade e colonialismo por parte das ciéncias sociais tem sido, na realidade, um dos sinais mais claros de sua limitagao conceitual Impregnadas desde suas origens por um imaginério eurocéntrico, as ciéncias sociais projetaram a idéia de uma Europa ascética e autogerada, formada historicamente sem contato algum com outras culturas (Bleut, 1993). A racionalizagio em sentido weberiano- teria sido o resultado da acéo qualidades inerentes as sociedades ocidentais (a “passagem’ da tradicao a modemidada), e nao da interagao colonial da Europa com a América, @ Asia e a Aftica a partir de 14924. Deste ponto de vista, a experiéncia do colonialismo resultaria completamente irrelevante para entender 0 fendmeno da modernidade e o surgimento das ciéncias sociais, Isto significa que para os afticanos, asiéticos @ latino-americanos, 0 colonialismo néo_ significou primariamente destruicdo e espoliacdo e sim, antes de mais nada, 0 comeco do tortuoso mas inevitével caminho em diregao a0 desenvolvimento © a modemizagao, Este € 0 imaginario colonial que tem sido reproduzido tradicionalmente pelas ciéncias sociais e pela fiiosofia em ambos os lados do Atléntico ‘As teorias pés-coloniais demonstraram, no entanto, que qualquer narrativa da modernidade que néo leve em conta 0 impacto da experigncia colonial na formacéo das relagies propriamente modemas de poder & rndo apenas incompleto, mas também ideolégico. Pois foi precisamente a partir do colonialismo que se gerou esse tipo de poder disciplinar que, segundo Foucault, caracteriza as sociedades e as instituigoes modemnas. ‘Se, como vimos na seco anterior, 0 Estado-naco opera como uma maquinaria geradora de “outredades* que devem ser disciplinadas, isto se deve a que o surgimento dos Estados modemos se dé no Ambito do que Walter Mignolo (2000: 3 e ss.) chamou de “sistema-mundo moderno/colonial”. De acordo com teGricos como Mignolo, Dussel e Wallerstein, o Estado modemno nao deve ser visto como uma unidade abstrata, separada do sistema de relagdes mundiais que se configuram a partir de 1492, e sim como uma fungao no interior 90 desse sistema internacional de poder. Surge entdo a pergunta: qual é o dispositive de poder que gera o sistema-mundo moclemo/colonial e que 6 reproduzido estruturalmente no interior de cada um dos estados nacionais? Uma possivel resposta pode ser encontrada no conceito de “colonialidade do poder” sugetido pelo socidiogo peruano Anibal Quijano (1999: 99-109). Na opiniéo de Quijano, a espoliacao colonial é legitimada por um imaginario que estabelece diferengas incomensuraveis entre 0 colonizador € o colonizado. As nogées de “raga” e de “cultura” operam aqui como um dispositive taxonémico que gera identidades opostas. O colonizado aparece assim como 0 tutro da razo", o que justifica 0 exercicio de um poder disciplinar por parte do colonizadar. A maldade, a barbérie e a incontinéncia sao marcas “identitarias' do colonizado, enquanto que a bondade, a cvilizacao @ a racionalidade sao proprias do colonizador. Ambas as identidades se encontram em relagao de exterioridade e se excluem mutuamente. A comunicagao entre elas néio pode dar-se no Ambito da cultura ~pois seus codigos s40 impenetraveis~ mas no Ambito da Realpolitik ditada pelo poder colonial. Uma politica "justa” serd aquela que, mediante a implementacao de mecanismos juridicos e disciplinares, tente civilizar 0 colonizado através de Sua completa ocicentalizacao. © conceita da “colonialidade do poder” amplia ¢ cortige 0 conceito foucaultiano de “poder disciplinar’, a0 mostrar que 0s dispositivos pan-sticos erigidos pelo Estado modemo inscrevem-se numa estrutura mais ampla, de caréter mundial, configurada pela relagao colonial entre centros @ periferias devido & expansao européia. Deste ponto de vista podemos dizer 0 seguinte: a modernidade um “projeto” na medida em que seus dispositivos distiplinares se vinculam a uma dupla governamemtabilidade juridica, De um lado, a exercida para dentro pelos estacos nacionais, em sua tentativa de criar identidades homogéneas por meio de politicas de subjetivagéio; por outro lado, @ governamentabilidade exercida para fora pelas poréncias hegeménicas do sistema-mundo moderna/colonial, em sua tentativa de assegurar o fluxo de matérias-primas da periferia em diregdo ao centro. Ambos os processos formam parte de uma tinica dinémica estrutural Nossa tase € a de que as ciéncias sociais se constituem neste espaco de poder moderno/colonial ¢ nos conhecimentos ideoligicos gerados por ele. Deste ponto de vista, as ciéncias sociais nao efetuaram jamais ima. “ruptura epistemolégica” —no sentido althusseriano— face & ideologia; 0 imaginério colonial impregnou desde suas origens a todo seu sistema conceltual’. Assim, a maioria dos te6ricos socials dos séculos XVII @ XVIll (Hobbes, Bossuet, Turgot, Condorcet) coincidiam na opiniio de que a “espécie humana” sai pouco a pouco da ignoréncia e vai atravessando diferentes “estagios” de averfeigoamento até, finalmente, obter a “maioridade” @ que chegaram as sociedades modernas européias (Meck, 1981). O referencial empirico utiizado por este modelo heuristico para definir qual € o primero “estagio", o mais baixo na escala de desenvolvimento humano, 6 0 das sociedades indigenas americanas tal como estas eram descrtas por viajantes, cronistas ¢ navegantes europeus. A caracteristica deste primeiro estagio é a selvageria, a barbarie, a auséncia completa de arte, ciéncia e escrta. “No principio, tudo era América’, ou seja, tudo era superstigao, primtivismo, lita de todos contta todos, “estado de natureza’. O iltimo estagio do progress humano, aquele alcancado petas sociedlades européias, construido, por sua vez, como “o outro” absoluto do primeiro € @ sua contraltz. Al reina a civiidade, 0 Estado de direito, 0 cultivo da ciéncia e das artes. O homem chegou ali a um estado de “ilustragéio” em que, no dizer de Kant, pode autolegislar-se e fazer uso autnomo de sua razéo, A Europa demarcou 0 caminho civilzatorio pelo qual deverdo transitar todas as nagées do planeta. Nao é ulficil ver como 0 aparetho conceitual com o qual nascem as ciéncias sociais nos séculos XVII e XVIIL ‘se sustenta por um imaginérrio colonial de cardter ideolégico. Conceitos bindirios tais como barbatie civilzacéo, tradic@o e modemicade, comuniciade e sociedade, mito e ciéncia, infancia e maturidade, solidariedade organica solidariedade mecanica, pobreza e desenvolvimento, entre tantos outros, permearam completamente 08 modelos analiticos das ciéncias sociais. O imaginatio do progresso, de acordo com a qual todas as progridem no tempo de acordo com leis universais inerentes & natureza ou ao espirito humano, aparece assim como um produto ideolégico construido do dispositivo de poder modemo/colonial. AS ciéncias sociais funcionam estruturalmente como um “aparelho ideolégico” que, das portas para dentro, legitimava a excliséo © 0 disciplinamento daquelas pessoas que néo se ajusiavam aos perfis de subjetividade de que necessitava 0 Estado para implementar suas politicas de modemizagdo; das portas para fora, por outio lado, as ciéncias sociais legitimavam a diviséo internacional do trabalho e a desigualdade dos termos de troca e de comércio entre 0 centro e a periferia, ou Seja, 05 grandes beneficios sociais e econémicos que 4s poténcias européias obtinnam do dominio sobre suas col6nias. A producéo da alteridade para dentro ¢ a produgo da alteridade para fora tormavam parte de um mesmo dispositive de poder. A colonialidade do poder e a colonialiace do saber se localizadas numa mesma matriz genética, OL 3. Do poder disciplinar ao poder libidinoso Gostaria de finalizar este ensaio perguntando-me pelas transformagtes sofridas pelo capitalismo to logo consolidado 0 projeto da moderidade, © pelas consequiéncias que tais transformagdes podem trazer para as ciéncias socials e para a teotia critica da sociedade. Conceituamos a modernidade como uma série de préticas orientadas ao controle racional da vida humana, entre as quais figuram a institucionalizacao des ciéncias sociais, a organizacao capitalista da economia, « expansdo colonial da Europa e, acima de tudo, a configuracéo juridico-tenttorial dos estados nacionais. Também vimas que a modemidade é um *projeto” porque esse controle racional sobre a vida humana 6 exercido para dentro e para fora partindo de uma insténcia central, que é o Estado-nacéo. Nesta ordem de idéias vem entiio a pergunta: @ que nos referimos quando falamos do final do projeto da modemnidade? Poderfamos comegar a responder da sequinte forma: a mademidacle deixa de ser operativa como “projeto” na medida em que o social comega a ser configurado por insténcias que escanam ao controle do Estado nacional. O dito de outra forma: 0 projeto da modernidade chega, a seu “fim’ quando o Estado nacional perde a capacidade de organizar a vida social e material das pessoas. €, entéio, quando podemos falar propriamente da globalizagéo. Com efeito, ainda que 0 projeto da modemidade tenha tido sempre uma tendéncia & mundializacdo da ago humana, acreditamos que 0 que hoje se chama “globalizacao" é um fendmeno sui generis, pois produz uma mudanga qualitativa dos dispositivos mundiais de poder. Gostaria de ilustrar esta diferenca entre modemidade Glbalizacao utilizando as categorias de “ancoragem’ e “desancoragem’ desenvolvides por Anthony Giddens: enquanto a modemidade desancora as relacdes socials de seus contextos tradicionals e as reancora em émbitos pos-tradicionais de agao coordenatlos pelo Estado, a globalizacdo desancora as relagdes sociais de seus contextos nacionais e 6s reancora em ambitos pés-modemios de agdo que jd ndo so coordenados por nenhuina insténcia em particular. Deste ponto de vista, sustento a tese de que a globalizacéo nao é um “projeto’, porque a govemamentabilidade néo necessita ja de um “ponto arquimediano”, ou seja, de uma instancia central que regule os mecanismos de controle social®. Poderiamos falar inclusive de uma governameniabilidade sem governo para indicar o caréter espectral e nebuloso, as vezes imperceptivel, mas por isso mesmo eficaz, que toma o poder em tempos de glabalizacdo. A sujeigto ao sistema-mundo jé nao assegura mediante o controle sobre o tempo e sobre 0 corpo exercido por instituigges como a fabrica ou 0 colegio, e sim pela produgao de bens simbdlicos e pela seducéo irresistivel que estes exercem sobre 0 imagindrio do consumidor. O poder Iibidinoso da pos-modemicade pretence modelar a totalidade da psicologia dos individuos, de tal maneira que cada qual possa consttuir refiexivamente sua propria subjetividade sem necessidade de opor-se ao sistema, Pelo contrétio, sao os recursos oferecidos pelo proprio sistema os que permitem a construgao diferencial do “Selbst’. Para qualquer estilo de vida que se escolha, para qualquer projeto de auto-invencao, para qualquer exercicio de escrever a propria biogratia, sempre ha uma oferta no mercado e um “sistema especialista® que garante sua confiabilidade”. Mais que reprimir as diferengas, como fazia 0 poder disciplinar da moderidade, 0 poder libidinoso da p6s-modernidade as esiimula e as produz. Tinhamos dito também que no contexto do projeto modemo, as ciéncias sociais desempenharam basicamente mecanismos produtores de alteridades. Isto se deveu a que a acumulagao de capital tina camo requisito @ geracéo de um perfil de ‘sujeito” que se adaptara facilmente as exigéncias da producéo: branco, homem, casado, heterossexual, disciplinado, trabalhador, dono de si mesmo. Tal como o demonstrou Foucault, as ciéncias humanas contribuiram para criar este perfil na medida em que formaram seu objeto de conhecimento a partir de praticas institucionais de recluséo e seatiestro. Prisdes, hospitals, manicdmios, escolas, fébricas e sociedades coloniais foram os laboratérios em que as ciéncias socials obtiveram & contraluiz aquela imagem de *homem’ que devia promover € sustentar os processos de acumulacéo de capital, Esta imagem do “homem racional’, diziamos, obteve-se contrafaticamente mediante 0 estudo do “outro da raztio": 0 louco, 0 indio, 0 negro, o desadaptado, 0 preso, o homossexual, 0 indigente. A construgéo do perfil de subjefividade que requeria tal projeto modemo exigia entao a supressao de todas estas diferencas. No entanto, € no caso de ser plausivel o que vim argumentando até agora, no momento em que a acumulacao de capital ja néo demanda a supressao, mas sim @ produgao de diferengas, também deve mudlar © vinculo estrutural entre as ciéncias socials e 0s novos dispositives de poder. As ciéncias socials e as humanidades véem-se obrigadas a realizar uma “mudanga de paradigma" que Ihes permita ajustar-se as exigéncias sistémicas do capital global. O caso de Lyotard parece-me sintomatico. Afirma com lucidez que 0 meta-relato da humanizagao da Humanidade entrou em crise, mas declara, ao mesmo tempo, o nascimento de um novo relato legitimador: a coexisténcia de diferentes “jogos de linguagem”, Cada jogo de linguagem 92 define suas prdprias regras, que jé néo necessitam ser legitimadas por um tibunal superior da raziio. Nem 0 herdi epistemoligico de Descartes nem o herdi moral de Kant funcionam mais como instancias transcendentais das quais se definem as regras universais que deverdo jogar todos os jogadares, independentemente da diversidade de jogos dos quais participem. Para Lyotard, na *condicao pos-moderna” ‘so 0s proprios jogadores que constréem as regras do jogo que desejam jogar. Nao existem regras definidas de anteméo (Lyotard, 1990). © problema com Lyotard néo é que tenha declarado 0 final de um projeto que, na opiniéo de Habermas (1990: 32.54), ainda se encontra “inacabado". O problema reside, isto sim, no novo relato que propde. Pois afirmar que ja néo existem regras definidas de amtemao equivale a invisibilizar quer dizer, mascarar— 0 sistema-mundo que produz as diferengas com base em regras definidas para todos os jogadores do planeta. Entendamo-nos: a morte dos metarrelatos de legitimagao do sistema-mundo néo equivale & morte do sistema-mundo, equivale, a uma transformacao das relagdes de pader no interior do sistema-mundo, o que gera novos relatos de legitimacao como 0 proposto por Lyotard. S6 que a estratégia de legitimacdo é diferente: j@ ndo se trata de metarrelatos que mostram o sistema, projetando-o ideologicamente num macro- suieito epistemol6gico, hist6rico e moral, e sim de micro-relatos que 0 deixam de fora da representagao, ou seja, que o invisibilizam, Algo similar ocorre com os chamados estudos culturais, um dos paradigmas mais inovadores das humanidades e das ciéncias sociais em fins do século XX*. Certamente os estudos culturais construfram para flexibilizar as rigidas tronteiras disciplinares que fizeram de nossos departamentos de sociais humanidades um punhado de “feudos epistemolégicos” incomensuraveis. A vocagao transdisciplinar dos estudos culturais tem sido altamente saudével para algumas instituighes académicas que, pelo menos na ‘América Latina, se tinham acostumado a “vigiar e administrar’ 0 canone de cada uma das disciplinas®. & neste sentido que o relatorio da comisséio Gulbenkian assinala como os estudos culturais iniciaram a abrir pontes entre as trés grandes ilhas em que a modemidade tinha dividido 0 conhecimento cientifico (Wallerstein et al, 1996: 64-66). Contudo, 0 problema no esta tanto na inscrigo dos estudos culturais no ambito universitario, © nem sequer no tipo de questées tedricas que abrem ou nas metodologias que utlizam, mas no uso que fazem desias metodologias e nas resposias que dao a essas perguntas. E evidente, por exemplo, que a planetarizacéo da industria cultural fragilizou a separacdo entre alta cultura e cultura popular, a que ainda se aferravam pensadotes de tradicao “critica” como Horkheimer e Adomo, para nao falar de nossos grandes tetrados' latino-americanos, com sua tradi¢&o conservadora e elista. Mas neste intercambio mass-miditico entre o culta e 0 popular, nessa negociacéo planetaiia de bens simbolicos, os estuclos culturais viram nada mais que uma explosio libertadora das diferencas. A cultura urbana de massas e as novas formas de percepgao social geradas pelas tecnologias da informagéio so vistas como espagos de emancipagao democratica, e inclusive como um focus de hibridacao e resisténcia face aos imperativos do mercado. Diante deste diagndstico, surge a suspeita de que os estudos culturais talvez teriam hipotecado seu potencial critico mercantilizagao fetichizante dos bens simbalicos. Do mesmo modo que no caso de Lyotard, 0 sistema-mundo permanece como esse grande objeto ausente da representagao que nos oferecem os estudos culturais. Como se 0 nomear a “totalidade” se houvesse transformado num tabu para as ciéncias socials e a filosotia contemparaneas, do mesmo modo que para a religido judia constitula um pecado nomear ou representar a Deus. Os temas “permitidos” -e que agora gozam de prestigio académico— sao a fragmentagao do sujeito, a hibridizagéo das formas de vida, a articulacéo das diferengas, 0 desencanto frente aos metarrelatos. Se alguém utliza categorias como “classe”, “periferia’ ou ‘sistema-mundo", que pretendem abarcar heuristicamente uma multiplicidade de situagées particulares de género, etnia, raca, procedéncia ou orientacéo sexual, ¢ qualificado de “essencialista’, de atuar de forma “poliicamente incorreta’, ou pelo menos de ter caido na tentagao dos metarrelatos. Tais reprovagées nao deixam de ser justificadas em muitos casos, mas talvez exista uma alternativa. Considero que 0 grande desafio para as ciéncias sociais consiste em aprender a nomear a totalidade sem cair no essencialismo € no universalism dos metarrelatos. Isto conduz a dificil tarefa de repensar a tradigéo da teoria critica (aquela de Lukécs, Bloch, Horkheimer, Adomo, Marcuse, Sartre e Althusser) a luz da teorizagao pos-moderna, mas, a0 mesmo tempo, de repensar esta tiltima a luz da primeira, Nao se trata, assim, de comprar novos odres e descartar os velhos, nem de colocar 0 vinho novo em bartis velhos; trata-se, isso sim, de reconstruir os velhos barris para que possam conter 0 novo vinho. Este “trabalho tedrico", como o denominou Althusser, jé foi iniciado em ambos os lados do Atlantico, e de diferentes perspectivas. Refiro-me aos trabalhos de Antonio Negri, Michael Hardt, Fredric Jameson, Slavoj Zizek, 93, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Edward Said, Gayatri Spivak, Ulrich Beck, Boaventura de Souza Santos Arturo Escobar, entre muitos outros, Atarefa de uma teoria critica da sociedade 6, entao, tornar visiveis os novos mecanismos de produgéo das diferencas em tempos de globalizacio. Para 0 caso latino-americano, 0 desafio maior reside numa “descolanizagao” das ciéncias socials ¢ da filosofia. E ainda que este nao seja um programa novo entre nds, do que se trata agora é de livar-nos de toda uma série de categorias binérias com as quais tabalharam no passado: as teorias da dependéncia e as filosofias da libertagao (colonizedor versus colonizado, centro versus periferia, Europa versus América Latina, desenvolvimento versus subdesenvolvimento, opressor versus oprimido, etc.), entendendo que ja nao seja possivel conceitualizar as novas configuragdes do poder com ajuda desse instrumental tedrico™, Deste ponto de vista, as novas agendas dos estudos pés-coloniais poderiam contribuir para revitalizar @ tradigao da teoria eritica em nosso meio (Castro-Gomez et al., 1999). Bibliografia Agger, Ben 1992 Cultural Studies as Critical Theory (Londres/Nova lorque: The Falmer Press). Bacon, Francis 1984 Novum Organum (Madri: Sarpe). Blau, J. M. 1999 The Colonizer’s Model of the World. Geographical Difusionism and Eurocentric History (Nova Torque: The Guilford Press). Blumemberg. Hans 1997 Die Legitimitt der Neuzert(Franquefurte: Suitkamp) Casto-Gomez, Santiago 1996 Crtica de a azén latnoamericana (Barcelona: Pui Libros) Casto-Gémez, Santiago 1999 “Fin de la moderidad nacional y transtormaciones de la cuitura en tiempos de globalizacién" em Martin-Barbero, J.; Lopez de la Roche, F. ¢ Jaramillo, J, E. (eds.) Cultura y Globalizacién (Bogota: CES/Unversidad Nacional de Colombia). Castio-Gémez, Santiago e Mendieta, Eduardo (eds.) 1998 Teorfas sin disciplina. Latinoamericanismo, Poscolonialidad y Globalizacién en debate (México: Porrua/USF). Castro-G6mez, Santiago; Guardiola-Rivera, Oscar e Millan de Benavides, Carmen (eds.) 1999 Pensar (en) los Interstcios. Teoria y prcica de la crea poscolonial(Bogots: CIA). Dussel, Enrique 1992 1492: El encubrimiento del otro. El origen del mito de la modemidad (Bogota: Ediciones Antropos). Giddens, Anthony 1999 Consecuencias de fa modernided (Madrt Alianze Editorial). Gonzélez Stephan, Beatriz 1995 *Modemizacion y disciplinamiento. La formacién del ciudadano: del espacio publica y privada’ em Gonzélez Stephan, B.; Lasarte, J; Montaldo, G. e Darogui, M. J. (comps) Esplendores y miserias del siglo XIX. Cultura y sociedad en América Latina (Caracas: Monte Avila Editores). Gonzalez Stephan, Beatriz 1996 "Economias fundacionales. Disefio del custpo ciudadano” em Gonzdlez Stephan, 8. (comp.) Cultura y Tercer Mundo, Nuevas identidades y ciudadanfas (Caracas: Nueva Sociedad). Habermas, Jurgen 1990 Die Moderne - Ein Unvollendetes Projekt (Leipzig: Reclam) Lyotard, Jean-Frangois 1990 La condicion posimodemna. Informe sobre e saber (México: Rei). Meek, Robert 1981 Los origenes de la ciencia social, EI desarrollo de la tearia de los cuatro estadios (Madri: Siglo >), ignolo, Walter 2000 Local Histories / Global Designs. Coloniality, Subaltern Knowledges and Border Thinking (Princeton: Princeton University Press). Quijano, Anibal 1999 "Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en Amética Latina” em Castro-Gémez, S. Guardiola-Rivera, ©. @ Millan de Benavides, C. (eds.) Pensar (en) los interticios. Teoria y practica de la critica poscolonial (Bogota: CEJA). Rowe, Wiliam e Schelling, Vivian 1993 Memoria y Modemnidad. Cultura Popular en América Latina (México: Grijlbo) Wallerstein, Immanuel 1991 Unthinking Social Science. The Limits of Nineteenth-Century Paradigms (Londres: Polity 94 Press), Wallerstein, Immanuel et al. 1996 Open the Social Sciences. Report of the Gulbenkian Commission on the Restructuring of the Social Sciences (Stanford: Stanford University Press). Weber, Max 1984 La ética protestante y el espiritu del capitalismo (Madri: Peninsula) Notas + instuto de Estudios Sociales y Cutuiales PENSAR, Ponte Linversidad Javerlana, Bagot 1s cidneias sociais $40, come bem o damonstra Giddons, “sistemas reflexives", pois sua fungdo 6 observar 0 mundo social do qual las mesmas sto produaidas. Ver Giddens (1009: 23 ss). 2 Sobre este problema da kentidade cultural como uma construge estat, var Casto-Gomez (1000: 78.102), 3 Por isso preferimas usar a categoria “venga” em lugar de “encabrimenta’, como faz 0 flésofo argentino Enrique Dussel (1992), 4 Recordar a pergunia que se faz Max Weber no comego de A ética protestante & que guard toda sua teoia da racionalzaGao “Que conjunto de crcunsténcias determinaram que precisamente apenas no Ocidente tenham nascdo certos fenémenos cuturals que, 20 ‘menos como costumamas representar-no4os, parecem apontar uma drecéo evolutva de universal alcance e validade?" (Weber, 1984: 23). 5 Uma genealogia das cigncias sociais devaria mostrar que 0 imaginarie ideol6gico que mais tarde impregnaria as cifncias socials teve Sua arigem na pimea fase de consoldagso do sisiema-munda modernoicolonial, quer izes, na épaca da hegemonia espannola, 6 A materiaidade da globaizacdo [a ndo se consttul pelas instuges ascplinares do Estado nacional, € sim por saciedades andnimas que desconhecem teritries e froneiras. Isto implica a configuragao de um novo paradigma de legaidade, quer dizer, de uma nova forma de exerccia do pacer © da auraridade, assim camo da produce de novas mecanismos punives ~uma polica lobal- que garantam a acumulagao de capital e a resolugio dos confitas. As guetras do Golfo e de Kosave sto um bom exemplo dda "nova orcem mundial que emerge depois da quera fra @ em consequlncia do Ym” do projto da modernicade (Castro-Gémez @ Mendieta, 1998: 5-20), 7 O concelto da contianca (rust) depostada em sistemas especialsias fo tomado avelamente de Giddens (199: 84 e ss. 8 Para uma intoducdo aos estuds culturais anglo-saxBes, ver Agger (1002). Para caso dos estudos cultuais na América Latina, a rmalnor inyeducae continua sendo 0 ivro de Rowe e Scneling (1993). 9 € preciso estabelecer aqui uma distngéo entre o significado poltico que tm tido os estudos culurais na universidade estadunidenso @ latino-americana, respectvamente. Enquanto nos Estados Unidos os estucos cuturais transformaram-se num velculo apropriado para 0 rapido “carreismo” académico num &mbito estruturaimente flexivel, na América Latina tém servido para combater a desesperante ossticagao © 0 paroquiaisrno das est ututas universtarias 10 Para uma crfuca eas categorie bindias com as que tabalhou 0 pensamanto latna-amenicano do século XX, ver Casto-Géme2 (2296). 95,

You might also like