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Ce gure voce (recisa saber sopre...] ; a= = ag i : ae Wass. ~ ae Johy Dewey & ALOpca demecrarica Marcus Vinicius da Cunha editora John Dewey (1859-1952) é lembrado como um dos que desencadearam o movimento de renovacao das idéias e praticas pedagégicas conhecido como Escola Nova. Ele 60 Tesponsavel por nocées educacionais que marcaram a primeira metade do século XX e@ que, na passagem para o presente século, voltam a ser discutidas. E de John Dewey a proposta de organizar a escola como uma “sociedade em miniatura”, conforme consta no Manifesto dos Pioneiros da Educacao Nova (1932); é dele também a idéia de “pensamento reflexivo”, presente nas discussées atuais que buscam conferir novo sen- tido 4 atuacdo dos professores. Este livro traz uma analise do pensamento pedagégico de Dewey baseada principalmente nas obras Como pensamos e Democracia e Educagao. Mas o essencial deste livro é que a filosofia educacional deweyana é situada no contexto das teflexdes politicas de Dewey, elaboradas na década de 1930, quando os Estados Unidos atravessavam profunda crise econdmica e social. Declarando-se fiel aos principios liberais, Dewey apresenta-se como critico do liberalismo laissez-faire que propée retirar do Estado a tesponsabilidade de organizar e dirigir ages sociais em defesa dos trabalhadores. [o que vocé precisa saber sobre...] John Dewey - A utopia democratica Titulo John Dewey — A utopia democratica Marcus Vinicius da Cunha (mvcunha@yahoo.com) Colegio [oque voot precisa saber sobre...] Organizadores Paulo Ghiraldelli Jz (Unesp, Marflia) e Nadja Hermann (UFRS) Conselho Editorial Alberto Tosi Rodrigues (UFES), James Marshall (Auckland University), L. Henrique Aradjo Dutra (UFSC), Michael Peters (Auckland University), Waldomiro José da Silva Filho (UFBA) Editores Associados Caetano Emesto Plastino (USP), Marcus Vinicius Cunha (Unesp, Araraquara), Pedro Pagni (Unesp, Marilia), Stivio Gallo (Unicamp), Raquel Moraes (UnB), ‘Tarso Bonilha Mazotti (UFRJ), Sofia Stein(UFGO), Stella Accorinti (Argentina) Revisdo de provas Daniel Seidl Projeto grafico e diagramagdo Maria Gabriela Delgado Capa e geréncia de produgdo Rodrigo Murtinho CIP-Brasi. Catalogagdo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ 09794 Cunha, Marcus Vinicius da John Dewey —A utopia democrética / Marcus Vinicius da Cunha. - Rio de Janeiro: DP&A, 2001. .~ (O que voce precisa saber sobre) 14x21cm 136 p. Inclui bibliografia ISBN: 85-7490-094-X 1. Dewey, John, 1859-1952 - Visio politica e social. 2. Democracia I. Titulo. CDD 320.5 CDU321.7 [o que vocé precisa saber sobre...] John Dewey - A utopia democratica Marcus Vinicius da Cunha DP&AA editora © DPGA editora Ltda. Proibida a reprodugao, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprografico, fotografico, grfico, microfilmagem, etc. Estas proibigées aplicam-se também as caracterfsticas graficas e/ou editoriais. A violagao dos direitos autorais é punfvel como crime (Cédigo Penal art. 184 e §§; Lei 6.895/80), com busca, apreens&o e indenizagées diversas (Lei 9.610/98 — Lei dos Direitos Autorais — arts. 122, 123, 124 e 126). DPG&A editora Rua Joaquim Silva, 98 — 2° andar — Lapa CEP 20.241-110-— RIO DE JANEIRO — RJ - BRASIL Tel./Fax (21) 2232-1768 e-mail: dpa@dpa.com.br home page: www.dpa.com.br Impresso no Brasil 2001 Dedico este livto a Alessandra, Anita, Claudio, Marcelo, Marcos, Raquel e Viviane, pela oportunidade de poder acompanhar seu crescimento intelectual e académico. A pesquisa que deu origem a este trabalho foi subsidiada pelo CNPq mediante Bolsa de Produtividade. Sumario Introdugao 9 Capitulo! Sobre ideologias e utopias 15 Segundo Karl Mannheim Quiliasma e liberalismo Conservadorismo e socialismo Otempo das utopias O fim das utopias A permanéncia das utopias Capitulo II Individualismo e liberdade 31 De Morgan ao New Deal Ovelho e o novo liberalismo Ovelhoe o neoliberalismo A cegueira dos liberais Individualismo e natureza humana O movimento reverso das teorias A democracia como imperativo moral Democracia e fé Capitulo III Inteligéncia e método cientifico 59 Inteligéncia e sociedade Inteligéncia e pensamento Pensamento e aco social Ciéncia e educagaéo Ciénciae capitalismo Os produtos da ciéncia A produgdo de consensos Ciéncia e moral Capitulo IV Marx eo marxismo 89 Divergéncias com Marx Luta de classes, violéncia e inteligéncia A Unio Soviética e 0 caso Trotsky Possiveis interlocugdes A educagio dos trabalhadores Educagio, ciéncia e humanizagdo Reflexes finais 11 Indicagao de leituras 115 Referéncias bibliograficas 129 Introdugao HA MAIS DE QUARENTA ANOS, Anjsio Teixeira (1956, p. 15), repercutindo as idéias de John Dewey, considerava que a democracia é “uma afirmagio polftica, uma aspiragdo, um ideal ou, talvez, uma profecia”. Anjsio Teixeira, que desde o final da década de 1920 foi o principal difusor das concepgdes pragmatistas deweyanas no Brasil, escreveu essas palavras quando ocupava o cargo de diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagégicos (Inep) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), érgdos do governo federal. Na mesma ocasiao, Jodo Roberto Moreira, membro das instituigdes de pesquisa dirigidas por Anfsio Teixeira, fazia uma critica a John Dewey, procurando mostrar que, embora concordasse com algumas teses do filésofo-educador estadunidense, discordava da sua maneira de conceber a democracia. Para Moreira (1957, p. 74), o problema estava em Dewey ter ficado preso ao modelo da sociedade americana do comego do século, “embevecido pela progressividade de tal sociedade Aquela época, a qual permitia um certo individualismo, entio feliz e despreocupado”. Iludido pelo ideal do self-made man, Dewey teria por base uma “idealizagdo do progressivismo norte-americano” que “estimulava a iniciativa e a responsabilidade individuais, consagradas na formula de igualdade de oportunidade para todos”, o que, afinal, nao passava de um “mito, s6 possfvel enquanto a produtividade econémica, em ascensdo, proporcionava bem-estar geral, e favorecia o sentimento coletivo de seguranga e confianga no futuro” (idem, p. 75). Com o abalo da prosperidade, a suposta igualdade de oportunidades resultaria em injustigas que atingiram principalmente os mais pobres. 10 Jorn Dewey — A UTOPIA DEMOCRATICA Publicadas em anos subseqiientes na segunda metade da década de 1950 e no mesmo periddico, a Revista Brasileira de Estudos Pedagégicas, editada pelo Inep, as opinides de Anjsio Teixeira e de Joao Roberto Moreira chamam a atencdo por expressarem posig6es t4o diversas a respeito da visao politica de John Dewey. O didlogo dissonante havido entre eles, se assim podemos qualificar, repercute essencialmente na filosofia educacional deweyana, toda ela fundamentada no conceito de democracia. Se Moreira estiver certo, as idéias de Dewey sobre educagao nao passam de fantasiosa adesdo a um ideal, também fantasioso, de sociedade, datado e localizado historicamente. O self-made man, o homem que se faz sozinho, que escolhe livremente o curso de suas agGes, que constitui sua personalidade de maneira independente, este homem €é um mito, dizia Moreira (idem, p. 75), inventado para sustentar uma “teoria de auto-afirmagao do individuo” num processo social de supostas oportunidades iguais para todos. A educagao democratica deweyana seria, nesse caso, apenas um instrumento a servigo da manutengdo de uma sociedade cujos fundamentos sao ilusérios. Enfim, Dewey seria o construtor de mais uma ideologia. Uma ideologia com pés de barro, alias, pois bastaria um pequeno abalo no ediffcio de sustentagéo daquele “individualism ativo e responsdvel” para que emergissem conflitos e, conseqiientemente, tentativas de contengao e direcionamento das massas. Se Anjsio Teixeira estiver correto, porém, a situagao de John Dewey é outra. A considerar sua afirmag4o de que a democracia é “uma afirmagdo politica, uma aspiragao, um ideal ou, talvez, uma profecia”, a filosofia politica e educacional de Dewey nao seria o simples reflexo de uma condigéo dada, num contexto determinado e especifico (a progressista sociedade americana do inicio do século), mas sim a proposigéo de um estado ideal InTRODUCAO an no futuro. Por esse 4ngulo, Dewey seria o construtor de uma utopia. Essa outra percepgdo viria alterar profundamente nosso julgamento de suas teses educacionais. Em apoio a Anisio Teixeira, vale mencionar 0 posicionamento de outro educador também ligado ao Inep e ao CBPE, Jayme Abreu (1959, p. 49), para quem Dewey era um critico da vida americana: segundo ele, o pragmatismo deweyano é€ portador de severas restrigdes a “sociedade capitalista, baseada no princfpio aquisitivo como meta suprema e medida final do sucesso”. Nada mais contrério a Dewey do que tomar a realidade imediata como parametro de sociedade ideal, pois tanto o passado imével quanto o presente estdvel sao rejeitados em seu paradigma. Para analisar a filosofia polftica deweyana, objetivo deste livro, tomarei como ponto de partida o didlogo aqui esbogado, talvez jamais havido, entre esses eminentes educadores brasileiros em tomo das idéias de John Dewey. Alguns autores j4 discutiram Dewey por um prisma semelhante.' Vou mencionar, apenas a titulo de ilustragéo, Maria Nazaré de Amaral, em seu Dewey: filosofia e experiéncia democrdtica, dado que a autora analisa diretamente a questo que interessa aqui. Diz Amaral que a grande finalidade da obra de Dewey, que é também a de sua vida, consiste na “busca de uma base racional para sua fé na unidade inabal4vel do mundo”. Para atingir essa meta, no plano intelectual, Dewey precisa recorrer a um artificio, pois o mundo em que vive é marcado por rupturas e contradigées. O artificio que, segundo Amaral (1990, p. 128), constitui a principal dificuldade da filosofia deweyana é o da “simplificagdéo da tealidade”. ' Eu mesmo abordei o assunto brevemente no livro John Dewey: uma filosofia para educadores em sala de aula (CUNHA, 1994). 12 Joun Dewey - A UTOPIA DEMOCRATICA A anilise feita pela autora nado a impede de reconhecer a coeréncia e o valor da obra deweyana, mas permite-lhe sugerir que Dewey elabora uma operacio sobre a realidade, falseando-a. Dewey deduz do real certos valores que transcendem a pr6pria realidade e utiliza esses mesmos valores para viabilizar um desejo pessoal: estabelecer a relagdo “entre o mundo dos seus sonhos e o real”. O argumento leva Maria Nazaré de Amaral a afirmar que Dewey é o construtor de uma ideologia, “um sistema de idéias elaborado para atingir um fim preconcebido e que simplifica, desse modo, a realidade, com 0 objetivo de fazer as idéias parecerem mais vidveis do que elas realmente sao” (idem, p. 128).? No primeiro capitulo do presente livro, tratarei de estabelecer o sentido em que irei tomar as expressdes ideologia e utopia, contando com as nogées de Karl Mannheim elaboradas em Ideologia e utopia. Conforme ser possivel notar, o critério de Mannheim para definir ideologia, se vai ao encontro de outros pensadores, por outro Angulo vai além. Para considerar um sistema de idéias como ideolégico, € preciso mostrar que ele submete a capacidade humana ao imobilismo, que ele inviabiliza qualquer iniciativa voltada 4 transformacao da ordem social existente. Desse modo, para conceituar o pensamento deweyano como ideologia no é suficiente caracteriz4-lo como reducionista, fundamentado em ilusdes sobre 0 mundo ou, ainda, guiado por fins preconcebidos. Tais caracterfsticas podem estar contidas no que Mannheim denomina utopias, formulagdes que, embora desconectadas da realidade vigente, incitam & transformagéo dessa mesma realidade. Como sugere o titulo deste livro, John Dewey — A utopia democrdtica, procurarei posicionar-me em 2 O trecho citado pela autora é de Richard le Brecque em “Pragmatism at Crossroads”, publicado no periédico Studies in Philosophy and Education em 1974. INTRODUCAO. 13 consonancia com o pensamento de Anisio Teixeira e Jayme Abreu — para ficar nos exemplos mencionados -, que viam as teses deweyanas como crfticas do momento presente e, mais, como projegdes de um futuro ainda inexistente, como uma profecia em busca de realizar-se. No segundo capitulo iniciarei a apresentagdo das idéias de John Dewey contidas em dois ensaios publicados na década de 1930 — “Liberalismo e agao social” e “Liberdade e cultura” -, a comegar pela critica deweyana dos conceitos liberais de individualismo e liberdade. Dando continuidade, o terceiro capitulo sera dedicado & nogdo de inteligéncia e as suas relagdes com o método cientifico. Para Dewey, individualismo, liberdade e inteligéncia sao “valores duradouros do liberalismo” que é preciso conservar, mas que perderam a efetividade ao serem submetidos ao pensamento liberal de sua €poca. Com Dewey, veremos que sé a implementagao do modo reflexivo de pensar — corporificado na ciéncia — pode recuperar esses valores. Apés verificar que nosso autor é um critico do capitalismo e que nao defende a solugao revolucionéria sugerida por Marx, no quarto capitulo iremos nos dedicar a entender as divergéncias de Dewey com 0 autor de O capital, bem como sua insatisfago com 0 Estado Soviético. No decorrer dos capitulos indicarei estudos relacionados aos temas secundarios que estiverem sendo tratados, sempre que possfvel, dando preferéncia a trabalhos acessfveis ao leitor iniciante; mencionarei também, quando pertinente, verbetes da Enciclopédia de Filosofia da Educagao, publicagao on line que é de ffcil acesso e dé abertura para bibliografia relevante. Na segdo Indicago de Leituras, por fim, farei alusao somente a obras de John Dewey, com especial destaque para Democracia e Educagao. Uma das maneiras de ler 0 presente livro € comegar pela Indicagao de Leituras. Fago essa sugestdo particularmente Aqueles que se interessam diretamente por educacdo escolar, 14 Jon Dewey — A UTOPIA DEMOCRATICA pois esse assunto, que ocupa posigao central no pensamento de Dewey, sera mencionado aqui apenas com o intuito de elucidar a filosofia politica de nosso autor. A inteng&o deste livro nao é abordar o pensamento de John Dewey como coisa do passado, como filosofia de um tempo perdido. Seu propésito é reativar a discussao sobre o contetido da palavra democracia, na esperanga de auxiliar a compreensio do momento que vivemos, quando so tantas as insatisfagdes diante das polfticas pablicas, em especial no campo da educagio escolar. Assim, a todo momento procurarei trazer as concepgdes deweyanas para a atualidade e, em sentido inverso, conduzir certas problemdticas atuais ao encontro do pragmatismo de Dewey. Capituto | '_| Sobre ideologias e utopias Os que decretaram o fim das utopias ignoraram os autores que viram na consciéncia ut6pica uma dimensao permanente da condigéo humana e os que compreenderam a utopia no sentido sociolégico, como expresso de grupos e estratos marginalizados, sempre presentes em qualquer sociedade (S. P Rouanet). Segundo Karl Mannheim ENTRE OS MUITOS SIGNIFICADOS ATRIBUIDOS As express6es ideologia e utopia, irei nortear-me neste livro pela reflexao de Karl Mannheim,’ para quem o conceito de ideologia diz respeito a formulagées pelas quais certos grupos dominantes obscurecem, para si e para os demais, a condigdo real da sociedade, contribuindo assim para a estabilidade da ordem social existente. O pensamento uté6pico, por sua vez, € caracterizado por conter uma perspectiva de transformacao das condigées sociais dadas e por estar sempre em posigdo de desencadear condutas contrérias 4 realidade imediata, constituindo, desse modo, um instrumento em favor da superacdo da ordem social vigente. Tanto a ideologia quanto a utopia expressam ideais que transcendem a situagao real. Ambas comportam formulagées “irreais” que nao cabem na ordem social em curso e trazem * Sobre esse socidlogo hiingaro, ver Foracchi (1982). Nesta mesma colegio, ver o livro de Alberto Tosi Rodrigues (2000, p. 95-99). Sobre suas idéias educacionais, ver Mannheim & Stewart (1969). 16 JoHN Dewey ~ A UTOPIA DEMOCRATICA contetidos que jamais poderiam ser realizados no mundo, tal qual ele €. O que distingue a ideologia da utopia é que a primeira contém elementos capazes de legitimar a ordem, ao passo que a segunda incita 4 mudanga. A utopia traz sempre um componente de impulso, uma motivagao para o futuro, em diregdo ao desconhecido, sendo que a ideologia estabiliza a vontade e incentiva o conformismo. Na utopia manifesta-se uma caracteristica fundamental do ser humano, sua necessidade de projetar mundos melhores e langar-se em busca de realiz-los. E importante entender ideologia nao como simples mentira, como postulado intencionalmente elaborado para enganar ou conduzir a opiniao alheia em diregdo err6nea. Segundo Mannheim, os contetidos da ideologia, embora bem- intencionados no tocante 4 conduta subjetiva das pessoas, tornam-se deformados justamente quando introduzidos no solo das situagdes praticas. Vejamos um exemplo dado pelo autor no livro Ideologia e utopia, origem das nogdes a que me refiro: A idéia do amor fraterno cristdo, por exemplo, permanece, em uma sociedade fundada na servidao, uma idéia irrealiz4vel e, neste sentido, uma idéia ideolégica, mesmo quando o significado pretendido constitui, em boa-fé, um motivo da conduta do individuo. E impossivel viver harmoniosamente, a luz do amor fraterno cristao, em uma sociedade que nao se acha organizada sob o mesmo princfpio (MANNHEIM, 1968, p. 218). A idéia do amor cristéo que prega uma vivéncia fraterna entre todos os homens tem como requisito um mundo que nao seja baseado na servidao. Por isso, ao ser inserida em meio a uma realidade que nao atende a este requisito, tal idéia pode dificultar a tomada de consciéncia, pelo individuo, das mazelas em que vive. Mesmo sendo plena de boas intengées, a idéia crista sofre deformag6es ao ser colocada diante de uma realidade determinada, pois tende a encobrir a ordem vigente, acabando por impedir que sejam tomadas atitudes, individuais ou coletivas, SOBRE IDEOLOGIAS E UTOPIAS 17 para transformar essa ordem em uma ordem capaz de realizar 0 amor fraterno. Mas se 0 leitor pensar que a utopia € algo que se coloca em posigao de transcender a realidade histérica existente, como formulagdo que contém o germe da mudanga imprescindivel & sua efetivagao, cabe perguntar: nao poderia aquela mesma idéia de amor fraterno ser considerada utépica, isto é, servir como incitamento a transformagao da ordem servil em uma ordem mais condizente com os postulados cristaos? E nao é possfvel que uma utopia — uma idéia que hoje impulsiona a transformagdo — venha a tornar-se, mais tarde, uma ideologia? Mannheim indica uma solugao para esse problema em sua andlise da nogdo de liberdade. De acordo com ele, a idéia de liberdade surge como uma utopia na época em que é formulada pela burguesia ascendente em sua luta para romper as amarras do feudalismo. Historicamente, a afirmacgdo burguesa da liberdade de opiniao e de pensamento constituiu-se como utopia, de fato, um instrumento de desintegragao da sociedade existente e de realizagao de uma nova ordem social. Mais adiante, porém, com o desenvolvimento do capitalismo e a instalagdo da burguesia no poder politico, a mesma idéia, antes utdpica, passa a conter elementos ideoldgicos. Afirmar que o homem é livre torna-se ent4o um recurso de encobrimento da nova servidao que se instala. A dificuldade para distinguir entre ideologia e utopia é grande quando nos encontramos envolvidos na situagao presente, contempordnea, imersos no calor dos acontecimentos. Olhando para o passado, no entanto, os entraves se desfazem mediante o critério da realizagéo, proposto por Mannheim. Trata-se de um critério retroativo que permite verificar, na histéria, quais idéias verdadeiramente serviram para romper os lacos da ordem existente e quais foram Gteis apenas para dissimular a realidade e manter o status quo. 18 Joun Dewey = A UTOPIA DEMOCRATICA Em seu livro, Mannheim analisa quatro formas de mentalidade utépica, descritas por ele como tipos-ideais, & maneira do recurso metodolégico proposto por Max Weber. Sao elas a utopia quilidstica, a liberal-humanitdria, a conservadora e a socialista-comunista. Vou resumir brevemente cada uma, tendo em vista os objetivos deste livro, pois, conforme veremos adiante, John Dewey posiciona-se no interior de uma dessas utopias, a utopia liberal, e opde-se as demais, especialmente conservadora e a socialista, nao poupando nem mesmo 0 préprio liberalismo. Quiliasma e liberalismo A primeira utopia analisada por Mannheim, chamada quilidstica, refere-se & crenga em um reinado milenar apés 0 juizo final, em que individuos predestinados gozariam todos os prazeres sensuais. Essa crenca uniu-se a movimentos de estratos sociais oprimidos e foi representada especialmente por Thomas Miinzer e os anabatistas na época da Reforma Protestante.* Pregando uma versao pessoal e {ntima da fé a ser alcangada por intermédio do éxtase revolucion4rio e espiritual, as idéias quilidsticas foram consideradas heréticas, tornando-se fator de permanente conflito com o sistema religioso medieval. O quiliasma é uma utopia porque, sendo irrealiz4vel naquele momento histérico, projeta uma aspiracdo futura que, integrada ao movimento de contestagao Reformista, contribuiu para combater o dominio catélico sobre os corpos e as mentes das pessoas. As aspiragées quilidsticas, até certo momento apegadas a objetivos extraterrenos, acabaram por assumir feigdes mundanas e incentivaram agitagdes politicas — espiritualizadas, * Quiliasma ou milenarismo vem do grego khilias (milhar). Miinzer, tedlogo alemio, inicialmente discfpulo de Lutero, viveu entre os séculos XV e XVI e comandou uma das correntes do movimento religioso anabatista. SOBRE IDEOLOGIAS E UTOPIAS 19 € claro — com a participagdo ativa das camadas socialmente oprimidas.* A utopia liberal-humanitéria, por sua vez, também surgiu no conflito com a ordem existente, embora fundamentada em concepgoes racionalistas: A utopia da mentalidade liberal-humanitéria é a “idéia”. Esta nao consiste, entretanto, na idéia platénica esttica da tradi¢ao grega, que era um arquétipo concreto, um modelo primeiro das coisas; aqui se concebe a idéia como um objetivo formal projetado no futuro infinito, cuja fungdo consiste em proceder como um mero dispositivo regulador dos neg6cios mundanos (MANNHEIM, 1968, p. 243). Ao passo que 0 quiliasma tende, em sua esséncia, a hostilizar © mundo terreno visto como conjunto de realizagdes passageiras e prematuras, a atitude liberal é de envolvimento com a cultura e 0 momento presentes — 0 “aqui e agora”, como diz Mannheim. Articulado em oposig&o a toda visdo clerical-teolégica, em que se inclui o sistema quilidstico, a idéia liberal-humanitéria foi assumida pela burguesia ascendente, trazendo consigo a nogéo de progresso como ponto culminante de uma certa evolugao histérica. Para preencher 0 vazio detectado entre o estado imperfeito das coisas mundanas e os ditames da razdo, a utopia liberal concebeu 0 mundo em continuo processo de vir-a-ser, sempre direcionado & esfera racional. Aexperiéncia liberal estabeleceu uma conexio entre a existénciae a utopia, ao reportar ao futuro a idéia, enquanto objetivo pleno de significado e permitindo, através do progresso, que as promessas da utopia venham, pelo menos em alguns aspectos, gradativamente a ser tealizadas em nosso préprio meio (MANNHEIM, 1968, p. 260). > Michael Lowy considera que o Exército Zapatista de Libertagao Nacional, mexicano, 0 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, brasileiro, possuem componentes milenaristas (Lowy, 2001), o que nos levaria a classific4-los como utopias quilidsticas, no sentido mannheimiano. 20 Joun Dewey — A UTOPIA DEMOCRATICA O grande mérito utdpico do liberalismo foi sustentar um espirito critico, uma “atmosfera estimulante e sugestiva” cujo impacto traduziu-se no sentimento do homem como ser indeterminado e livre. “O 4nimo dominante do Iluminismo, a esperanga de que enfim as luzes raiariam sobre o mundo sobreviveu o bastante para dar a estas idéias... seu poder de condugdo”, diz Mannheim (idem, p. 252). O liberalismo ofereceu poderosos ingredientes aos movimentos revoluciondrios do século XVIII — as idéias de igualdade, liberdade e respeito a individualidade, tendo na ética e na cultura intelectual sua principal autojustificagéo contra os privilégios da nobreza. Conservadorismo e socialismo A terceira forma de mentalidade vista por Mannheim é a conservadora. Nao se trata propriamente de uma utopia, dado que 0 pensamento conservador acha-se em total harmonia com a realidade existente, sobre a qual estabelece seu dominio. Mannheim situa essa forma de pensamento no rol das utopias por perceber que o conservadorismo, sempre que vé atacadas as bases de sua dominag4o, passa a refletir sobre si mesmo, constituindo, na verdade, uma contra-utopia. Nascida como instrumento de defesa frente As iniciativas de rompimento da ordem trazidas pelo liberalismo, a idéia conservadora teve em Hegel seu principal representante: Constitui a grande realizagao de Hegel estabelecer, em oposigo a idéia liberal, uma contrapartida conservadora, nao no sentido de criar, por uma combinagao artificial, uma atitude e um modo de comportamento, mas, antes, elevando um modo de experiéncia j4 existente a um nfvel intelectual e enfatizando as caracteristicas distintivas que 0 destacassem da atitude liberal face ao mundo (MANNHEIM, 1968, p. 255-256). Para os conservadores, o Iluminismo era algo por demais fluido, sem concretude, idéia recheada de mera opiniao. Em contraposig0 SOBRE IDEOLOGIAS E UTOPIAS 21 a isso, levaram o apego liberal ao “aqui e agora” ao extremo, fincando suas raizes na realidade viva, fundando a utopia da “idéia concretizada”, a idéia que se efetiva por intermédio das normas e das leis corporificadas no Estado ou no Espirito Absoluto, gerando assim uma utopia “implantada na realidade existente” (idem, p. 256). Na visdo conservadora, 0 existente possui “valor positivo e nominal”. Seu modo de conceber o tempo implica valorizar a histéria nado como “mera extensao unilinear de tempo”, nem como uma linha que integra o que €, 0 que jé foi e o que seré. Sob a visdo conservadora, o passado é virtualmente presente, pois, como est4 em Hegel, o espirito contemporaneo € abarcado pelo ciclo da existéncia eterna e necessdria: o que é sempre foi €, portanto, sempre serA (idem, p. 259). A quarta utopia analisada por Mannheim, a utopia socialista- comunista surgida no século XIX, assemelha-se A idéia liberal no aspecto em que ambas viam a liberdade e a igualdade como realizagSes possfveis somente em um futuro distante — o “dever ser”. Diferentemente do liberalismo, porém, 0 socialismo estipulou esse futuro de modo bem mais determinado: o fim do capitalismo. Além de sua luta contra o anarquismo, caracterizado por Mannheim como uma forma de quiliasma, o socialismo desenvolveu-se também contra a utopia liberal. Sua critica trazia © argumento de que nao bastam “boas intengdes em abstrato e postular no futuro remoto um dominio realizado de liberdade”. Seria antes necess4rio tomar consciéncia das condig6es reais (neste caso econémicas e sociais) sob as quais esta realizado de desejos possa tornar-se de alguma forma operante. O caminho que, do presente, conduz a este objetivo distante deve ser igualmente investigado, de modo a serem identificadas as forgas do processo contemporaneo, cujo carter dinamico e imanente, sob nossa diregdo, conduza passo a passo a realizagdo da idéia (MANNHEIM, 1968, p. 264-265). 22 Joun Dewey - A UTOPIA DEMOCRATICA Para 0 socialismo, “as idéias néo sAo sonhos nem desejos, imperativos imagindrios baixados de alguma esfera absoluta” (idem, p. 264). As idéias, quando retiradas do processo material que as define, perecem, tornam-se ideologias, ao passo que, inseridas no contexto estrutural total, adquirem potencialidade para realizar-se. As idéias socialistas, que fermentaram revoltas prolet4rias j4 no século XIX, atingiram seu auge com a Revolugdo Russa de 1917, como é sabido. Conforme assinala Mannheim, ao estabelecer a estrutura econémica e social como realidade absoluta, a utopia socialista- comunista afrontou decisivamente os conservadores e os liberais, para quem as forgas propulsoras da sociedade continham algo de espiritual. Na mentalidade socialista, ao contrario, a energia criadora emerge “da secular afinidade dos estratos oprimidos”, resultando numa “glorificagéo dos aspectos materiais da existéncia, anteriormente experimentados apenas como fatores negativos e obstrutivos” (idem, p. 265). O tempo das utopias Para a idéia quilidstica, o sentido de continuidade do tempo no existe. Presente e passado nao tém significagéo concreta enquanto momentos que se interligam para projetar o futuro. Antes que construjdo, o futuro é instalado em algum lugar para além da histéria, de maneira imediata e imprevisivel por intermédio da experiéncia extatica e revolucionaria. J4 com o liberalismo, o futuro torna-se tudo e o passado, nada, na medida em que o futuro se define a partir do instante em que os seres humanos capacitam-se como seres livres e auténomos, dando infcio ao movimento que leva inevitavelmente ao futuro. Ao passo que no conservadorismo a utopia é concretizada no tempo presente, no “é”, para o liberal-humanitarismo a utopia decorre de uma crenga no “dever ser”, na projecao de um tempo histérico futuro a ser edificado. De modo semelhante, para a SOBRE IDEOLOGIAS E UTOPIAS 23 utopia socialista o tempo futuro é algo a realizar-se a partir do presente, cabendo ao lider politico incentivar as forgas que paregam encaminhar-se na diregao desejada e impedir, ou minimizar, a manifestagao das forgas contrérias. No ensaio “O significado do conservantismo”, Mannheim (1982, p. 128) distingue o discurso conservador do discurso progressista, estabelecendo que esse ultimo “percebe o presente como o comego do futuro, enquanto o conservador considera-o simplesmente como o ultimo ponto atingido pelo passado”. O conservador inclina-se a perceber 0 passado como “uno com © presente; portanto, a sua concepgao de histéria tende a ser espacial em vez de temporal; ele enfatiza a coexisténcia em vez da sucessao”. Nesse caso, se 0 liberal e 0 socialista podem ser considerados progressistas, a diferenga entre eles est4 na concepgao do futuro, que assume, para o primeiro, caracterfsticas formais, como processo de concretizag4o gradativa, uma linha reta que une o presente ao futuro — 0 que define a nogdo de progresso, decisiva no pensamento liberal. A idéia socialista, por sua vez, diz Mannheim, opera nao com um princfpio transcendente e puramente formal, que do exterior regula o acontecimento, mas, antes, como uma “tendéncia” no interior da matriz desta realidade, continuamente se corrigindo com referéncia a este contexto (MANNHEIM, 1968, p. 270). A experiéncia histérica, na utopia socialista, torna-se “um verdadeiro plano estratégico”. A histéria, entdo, assume aspectos de um fenémeno que pode ser experimentado “como um fendmeno intelectual e volitivamente controlavel”. Para aclarar essas distingdes mannheimianas por meio de um exemplo, tomemos a idéia de igualdade entre os homens. Para 0 pensamento quilidstico, a igualdade nao € algo que diga respeito ao plano histérico, quer no passado, quer no presente, 24 Joun Dewey — A UTOPIA DEMOCRATICA mas apenas a um tempo futuro, atingivel por um rompimento abrupto e imprevisivel com a ordem vigente. Para o liberal, a igualdade consiste em um estado formal, nao um dado empirico, presente, mas algo somente realiz4vel a partir da liberdade individual, 0 que remete a processos de liberagaéo dos vinculos de servidao, aquisigao do direito de escolha dos governantes etc., esses processos, sim, com existéncia possivel no mundo atual. A liberdade, condig&o que decorre da natureza humana e que pode realizar-se com a ajuda de agdes concretas no presente, assume o papel de motor do futuro. Em sua atitude historicamente contr4ria ao liberalismo, © pensamento conservador toma o postulado igualitdrio liberal — que nao passa mesmo de um postulado — e o considera como se jA existente, verificando assim o equivoco daquela afirmagao politica. O conservadorismo, entdo, posiciona a liberdade apenas no ambito da vida privada, subordinando as relagées sociais a princfpios de ordem e disciplina, garantidos por uma harmonia preexistente — Deus ou as forgas naturais da sociedade e da nag4o. J a utopia socialista, calcada na critica ao pensamento liberal e ao conservador, enxerga a inexisténcia da igualdade, no passado e no presente, como fio condutor de ages que deverao resultar em um estado de igualdade no futuro. O fim das utopias O livro Ideologia e utopia € composto por varios trabalhos relativamente independentes escritos por Mannheim em torno de 1930. Embora antigos, nao os vejo como irrelevantes para entender a atualidade, especialmente ao considerar que Mannheim ja tinha diante de si os grandes eventos que marcaram o século XX, cujos desdobramentos por certo ainda hoje se apresentam sempre que refletimos sobre os rumos da humanidade no século XXI. SOBRE IDEOLOGIAS E UTOPIAS 25 Refiro-me as experiéncias fascista, nazista e comunista, que j4 se encontravam concretizadas ou em curso de definigéo naquele momento, e A experiéncia de expansdo, nem sempre bem-sucedida, dos ideais democraticos, tanto em Ambito internacional quanto no interior de algumas sociedades. Portanto, Mannheim podia falar com propriedade sobre o conservadorismo, o socialismo e o liberalismo, nao s6 como formulagées teéricas do século XIX, mas podendo observar o desenvolvimento de seus postulados, desenvolvimento esse que hoje procuramos entender para nortear o futuro de nossa civilizagao.® E 0 que vé Mannheim quando analisa as formas utépicas modernas, as quais atualmente ainda nos envolvem? Mannheim vé as utopias, ideais que originalmente transcendem a situagio real, aproximar-se da realidade histérica, ou seja, sendo colocadas no terreno das praticas sociais. Nesse terreno, as utopias perdem seu carater de oposigdo 4 ordem existente, assemelhando-se ao modelo conservantista — no fundo, uma contra-utopia, conforme ja vimos. Assim, 0 liberalismo e 0 socialismo, ao entrarem em uma situag4o mais conducente ao conservadorismo, adotaram intermitentemente as idéias que oconservadorismo lhes oferecia como modelo... Verificamos portanto que, condicionado pelo processo social, se desenvolve nestes tipos de pensamento, em diversos pontos e sob diversas formas, um relativo afastamento em relac4o a utopia (MANNHEIM, 1968, p. 273). Certamente 0 leitor nao desconhece as criticas feitas ao modelo socialista implantado em varios pafses, criticas que se tornaram. cada vez mais duras apés o fim da URSS. Mannheim as menciona 6 Como veremos em nosso quarto capitulo, John Dewey encontrava-se na mesma situacao privilegiada quando elaborou suas concepgées pollticas. 26 JOHN Dewey — A UTOPIA DEMOCRATICA em seu livro, evidentemente de modo circunscrito 4 época em que escreveu e enfocando unicamente o plano em que se formulava o socialismo-comunismo como utopia, e diz: © pensamento socialista, “que até aqui vem desmascarando as utopias de todos os seus adversdtios como ideologias, jamais... aplicou o método a si mesmo e nunca freou seu préprio desejo de ser absoluto” (idem, p. 273). O que Mannheim quer dizer € que o socialismo, erguido sobre a tese de que o pensamento de seus adversarios € ideolégico por ser histérica e socialmente determinado, nao consegue enxergar suas proprias teses como também determinadas histérica e socialmente. Daf o socialismo deixar de ser uma utopia para cristalizar-se na afirmagdo do “é”, abandonando a perspectiva do “dever ser”. J4 em torno dos anos de 1930, Mannheim percebe a impossibilidade de sobrevivéncia da utopia socialista, talvez a Ultima utopia, a Gnica utopia que se mostrou capaz de combater e vencer as outras formas de pensamento utdpico, inclusive o liberalismo que acabou degenerando em ideologia. E Mannheim sentencia: “Toda vez que a utopia desaparece, a histéria deixa de ser um processo que conduz a um fim tltimo” (idem, p. 276). Perdemos 0 quadro de referéncias pelo qual podiamos avaliar os fatos 4 nossa volta, os quais se tornam agora um amontoado de acontecimentos sem sentido, sem conexdo. Quando desaparece 0 conceito de tempo histérico que permitia nos remetermos a uma época melhor, a histéria torna-se um espaco nao-diferenciado. Imperam, por fim, o ceticismo e o relativismo. Para Mannheim, a situago presente em sua época — e por que no dizer na época que vivemos hoje? — denuncia a faléncia das ideologias e das utopias, mas revela também a necessidade de escolhermos um novo caminho. Torna-se imprescindivel uma nova utopia que nos leve adiante, que nos projete em diregio ao futuro. Talvez, no futuro, nao venhamos a necessitar nem de SOBRE IDEOLOGIAS E UTOPIAS 27 ideologias nem de utopias, mas enquanto isso, enquanto o futuro nao se faz presente, deixar desaparecer todo o sentimento de transcendéncia é sindnimo de decomposicgao da vontade humana, porque 0 pensamento utépico faz parte da esséncia do ser humano: imaginar mundos melhores e langar-se em busca de sua realizagao. Ao passo que 0 declinio das ideologias representa uma crise limitada a certos grupos da sociedade, o fim das utopias traduz © nefasto estado em que o homem perde “a vontade de plasmar a histéria”, rendido diante de um paradoxo: “tendo alcangado o mais alto grau de dom{nio racional da existéncia, se vé deixado sem nenhum ideal, tornando-se um mero produto de impulsos” (idem, p. 285). A permanéncia das utopias Sérgio Paulo Rouanet esté entre aqueles que tém esperanga no renascimento das utopias. Melhor dizendo, Rouanet partilha da idéia de que as utopias esto sempre presentes porque fazem parte da condig&o humana, bem como do enquadramento sociolégico dos grupos humanos oprimidos. Mesmo no momento atual, quando a globalizagdo parece representar o 4pice de uma era pés-utépica, dado que a economia global aparenta ser a utopia realizada que dispensa idéias de transcendéncia da ordem existente, mesmo nesse momento, afirma Rouanet, sobrevivem as utopias. No artigo “A morte e o renascimento das utopias”, publicado tecentemente no jornal Folha de S.Paulo, Rouanet posiciona-se contrariamente A desqualificagdo das utopias, defendendo a validade de sabermos distinguir, isto sim, entre as boas e as mas projegdes do futuro. Nessa ultima categoria, das mds utopias ou “utopias retrospectivas”, Rouanet coloca o antiindustrialismo, a ecoutopia que regride a uma era anterior ao capitalismo; a utopia totalitéria, que rejeita as nogdes e as praticas politicas fundadas 28 JouNn Dewey ~ A UTOPIA DEMOCRATICA no respeito a lei e 4 soberania popular; o eugenismo, que ressurge na forma de crenga numa bioutopia capaz de programar geneticamente os seres humanos; as etnoutopias, que valorizam particularismos étnicos, religiosos e lingiiisticos, incentivando conflitos que conduzem 8 retribalizagdo do planeta. Embora algumas dessas “distopias”, como as chama Sérgio Paulo Rouanet, recorram a beneficios gerados pela ciéncia, como € 0 caso dos recursos tecnolégicos de manipulagao genética requisitados pelas bioutopias, todas elas tm em comum uma profunda rejeig&o pelas conquistas da modernidade. As mas utopias recusam as formas de produg4o mecanizada, as concepgdes de liberdade individual e igualitarismo, o respeito as diferengas individuais, 4 heterogeneidade, e as formas democraticas de governo; enfim, as grandes invengdes da modernidade. E sao essas invengOes, justamente, que formam as boas utopias. Nao é dando as costas 4 modernidade que devemos buscar a utopia, mas sim na propria modernidade. Ela tem um vetor funcional, sistémico, ligado a racionalidade instrumental. Mas tem também um vetor humanista, ligado 4 racionalidade emancipatéria (RouaneT, 2000, p. 15). Rouanet defende o Iluminismo como portador de ideais de emancipagao de todos os individuos. Os ideais iluministas de universalismo, de autonomia econémica, polftica e cultural, como respeito & diversidade de crenga, género e nacionalidade, abrem a perspectiva de uma existéncia em que cada individuo tenha valor por seus atributos, em que prevalega o Estado de Direito e em que todos tenham acesso ao saber e tenham liberdade para pensar sem tutela da autoridade. Esses ideais formam a “utopia da modernidade”, uma utopia que, por definigao, é irrealizével mas também é “irrenuncidvel, porque sem ela estarfamos condenados seja 4 unidimensionalidade de um mundo sem transcendéncia, dominado pelos imperativos SOBRE IDEOLOGIAS E UTOPIAS 29) de uma modernidade funcional globalizada, seja ao pesadelo das regress6es pré-modernas” (idem, p. 16). Nos capitulos seguintes deste livro procurarei mostrar que 0 pensamento de John Dewey é um bom exemplo de que as utopias esto sempre presentes, mesmo quando a ordem social degenera e as ideologias imperam. Capltuto Il \_| Individualismo e liberdade “Acontece que eu sei... que os economistas profissionais vém modificando, h4 muito tempo, suas definigées das leis econémicas, de cinco em cinco ou de dez em dez anos.” Talvez fosse desse nivel o grau de conhecimentos de [Franklin Delano] Roosevelt em matéria de economia; mas, dada a ciéncia que tém os economistas a respeito da sociedade, nao chega a constituir uma falta nao havé-la estudado mais cuidadosamente (W. Miller). De Morgan ao New Deal QUANDO JOHN DEWEY ESCREVEU OS ENSAIOS “Liberalismo e agao social” e “Liberdade e cultura”, que concentram grande parte de suas idéias polfticas, os Estados Unidos da América viviam uma situagéo econémica e social particularmente critica. Para compreender aquele momento, proponho vermos alguns aspectos da histéria americana do final do século XIX as primeiras décadas do século XX, uma histéria que pode ser caracterizada como a era da “morganizagao” do pafs, ou também como a época da luta dos progressistas contra a “morganizagao”. A palavra morganizacio é utilizada pelo historiador William Miller (1962)? para traduzir a hegemonia das idéias de John Pierpont Morgan no cenério do desenvolvimento econdmico norte-americano naquela época. Morgan e Rockfeller, ao lado 7 Todas as referéncias a historia dos EUA feitas aqui s4o baseadas nesse autor. 32 JoHN Dewey — A UTOPIA DEMOCRATICA de alguns poucos aliados, representaram a concentragéo dos negécios em maos de uma minoria de empreendedores, em geral banqueiros e financistas, que promoveram a fusdo de empresas, originando poderosos monopélios. Embora alguns estados americanos possufssem leis antitrustes, o governo federal fracassou sistematicamente em suas tentativas para conter o avango monopolista que representava sens{vel aumento de produtividade nas fbricas, ao lado de notdvel indiferenga pelo bem-estar social dos trabalhadores. A primeira década do século XX assistiu a intensa campanha, iniciada por érgaos de imprensa e jornalistas, que revelou as obscuras relagdes mantidas entre os empresdrios, bem como entre estes, os polfticos e a polfcia, em prol da manutengao do “morganismo”. Os progressistas, como ficaram conhecidos aqueles que se aliaram a causa antimonopélio, ampliaram o foco de sua ago, denunciando o emprego de menores nas fébricas, pleiteando a regulamentacao do trabalho das mulheres, reivindicando indenizagées por acidentes trabalhistas, além de melhoria nas condigées de habitagao e satide dos operdrios, entre outros beneficios ostensivamente divergentes dos interesses capitalistas em vigor. O movimento sindicalista, que tivera grande avango durante os governos do republicano Theodore Roosevelt, de 1901 a 1909, e do democrata Woodrow Wilson, de 1913 a 1921, passou a ser duramente combatido pelos empresdrios, que preferiam a doutrina de Morgan, segundo a qual os direitos e interesses dos trabalhadores seriam mais bem defendidos por aqueles a quem Deus confiara o controle da propriedade produtiva — os patrées. A fundago do Partido Comunista americano, em 1919, acirrou o conflito entre morganistas e progressistas, disseminando o Grande Panico Vermelho e a idéia fundamentalista do “pensamento 100% americano”. Durante os anos de 1920, a Ku Klux Klan obteve terreno fértil para perseguir negros, judeus e INDIVIDUALISMO E LIBERDADE 33 catélicos e para desenvolver nefasta campanha contra os liberais em geral e o avanco da ciéncia, acusada de difundir o evolucionismo darwiniano. O surto de desenvolvimento econémico ocorrido na década de 1920 permitiu que o americano comum permanecesse relativamente indiferente aos conflitos sociais, ao alastramento da corrupgio e ao reacionarismo politico e moral que tomavam conta do pais. Foi assim até que a m4quina da prosperidade comegou a exibir suas deficiéncias com a quebra de Wall Street em 1929. Em 1933, quando Franklin Delano Roosevelt assumiu a presidéncia, o pais atravessava sua crise mais sombria. Revelada especialmente pela grande massa de desempregados e pela faléncia de numerosas empresas, a crise parecia levar 0 povo americano a perder sua autoconfianga, vendo desmoronar a imagem de nag&o auto-suficiente cultivada havia tempos. Em 1936, quando John Maynard Keynes publicou o livro Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, considerado a biblia do New Deal,® uma politica de recuperag4o do pats j4 havia sido colocada em andamento pelo presidente Roosevelt. O New Deal consistiu em um amplo arranjo de medidas governamentais para apoiar organizagées financeiras, comerciais e industriais em dificuldade, aliado a um conjunto de iniciativas visando a fomentar empregos e, conseqitentemente, melhorias na vida dos trabalhadores do campo e da cidade. As varias organizagdes sindicais conheceram entio seu periodo dureo, um dos resultados mais significativos do New Deal no Amago da luta progressista. No torvelinho da crise americana da década de 1930, a politica de ag&o social e econémica colocada em pratica por F. D. Roosevelt para reformar o capitalismo enfrentou numerosos advers4rios mas arregimentou também muitos adeptos. *“Novo acordo” ou “nova orientagao politica e econémica”. 34 Joun Dewey — A UTOPIA DEMOCRATICA Foi nessa época que John Dewey escreveu os dois ensaios que analiso neste livro: “Liberalismo e agao social”, publicado em 1935, e “Liberdade e cultura”, de 1939.9 Nao pretendo insinuar que Dewey os tenha elaborado simplesmente em resposta aos inimigos do New Deal ou meramente para fundamentar em teoria uma politica governamental. Dewey vai além do que seria necessario se os seus objetivos fossem tao limitados, mas é inegavel que compreender o lugar de onde ele est4 falando ajuda-nos a situar seu pensamento politico. Vejamos entao as posigdes de John Dewey naquela época. O velho e o novo liberalismo Declarar-se liberal, hoje em dia, é arriscar-se & execragdo publica. A palavra liberal, entre nés, est associada ao nome de partidos politicos identificados como conservadores, representantes de oligarquias e praticantes de um — digamos — “estilo” clientelista de exercfcio do poder. Mais ainda, liberal lembra neoliberal, e se o neoliberalismo é a causa da maioria dos males sociais que nos afligem, o liberalismo talvez seja ainda pior! Na época em que Dewey analisou o liberalismo em busca de confirmar sua adesdo a essa filosofia, ser liberal nado era muito diferente. No calor das lutas sociais travadas nos Estados Unidos da década de 1930, ser liberal era emitir publicamente opinides favor4veis as reivindicagdes progressistas e, no momento critico, bandear-se para o lado dos patrées, contra os direitos dos proletdrios. Em seus escritos dos anos de 1930, a intengdo de Dewey é tefletir sobre a possibilidade de uma pessoa continuar, “honesta e inteligentemente, a ser um liberal e, no caso afirmativo, que espécie 9 No Brasil, ambos foram publicados conjuntamente no livro Liberalismo, liberdade e cultura, em 1970, ao qual irei referir-me daqui por diante sem distinguir os ensaios que ocompéem. INDIVIDUALISMO E LIBERDADE 35 de € liberal poderia hoje ser defendida” (Dewey, 1970, p. 16). Para responder a essa indagagdo, Dewey analisa os fundamentos do liberalismo, conforme historicamente firmados, a comegar pelo individualismo, um dos princfpios basicos do pensamento liberal. Diz-se que o liberalismo prega o individualismo, mas o que era ser a favor do individuo quando essa doutrina foi urticulada por John Locke, na distante Inglaterra do século XVII? Ser individualista significava admitir que o individuo possui certos direitos naturais contra os quais nenhuma autoridade secular ou espiritual poderia erguer-se. Tal afirmagao traduziu-se na assertiva de que a liberdade individual, garantida por leis naturais, contraria a idéia de governo — qualquer iniciativa de agao social organizada em beneficio dos mais pobres ou menos poderosos. Agio social tornou-se sinénimo de prdticas invasoras do espago da individualidade. A intengao de Locke, por certo, era preservar a liberdade de pensamento e agio, 0 direito de o indivfduo administrar sua vida a distancia das coergées religiosas e polfticas de sua época. Cabe lembrar que as idéias de Locke foram desenvolvidas quando a burguesia lutava para chegar ao poder, momento em que ser revoluciondrio era perseverar contra © pensamento medieval que aprisionava o homem nas cadeias da dominagao religiosa. No século XIX, particularmente por influéncia das idéias de Adam Smith, elaboradas no século anterior, as nogdes de liberdade e individualidade adquiriram significados muito diferentes, subordinando a atividade polftica 4 economia: as leis naturais que sustentam a idéia de liberdade individual passaram a ser entendidas como sujeitas as leis da produgao e troca de mercadorias. Desse modo, Adam Smith tornou-se o sustentaculo da doutrina do laissez-faire, segundo a qual “a atividade dos individuos, libertos tanto quanto possivel de restrigdes polfticas, éa principal fonte do bem-estar social e a fonte ultima do progresso social”, como assinala Dewey (idem, p. 20). Os defensores do 36 Jon Dewey — A UTOPIA DEMOCRATICA laissez-faire apregoaram a existéncia de algo como uma “mao invisivel” que ordena o mundo e permite ao individuo satisfazer suas necessidades e as da coletividade por intermédio de seu esforgo pessoal, sem a participagao de qualquer planejamento ou propésito previamente definido pelas instancias governamentais. Assim, toda iniciativa polftica inclinada a constituir agéncias de atuagéo em beneficio dos trabalhadores comegou a ser execrada, néo apenas como “uma invasdo da 4rea de liberdade individual mas, na realidade, uma conspiragdo contra as causas que originavam o progresso social”, continua John Dewey em sua critica (idem, p. 21). As leis naturais de Locke perderam seu significado moral para tornar-se identificadas com as leis do capitalismo e com os interesses de uma classe social privilegiada. Sim, pois 0 individuo, em especial o individuo que nada possui além de seu préprio corpo, uma vez liberto da “invasio” do poder ptblico sobre sua vida, fica 8 mercé das leis de um modo de produg&o e circulagéo de mercadorias cujo tinico propésito € a concentragao da riqueza em maos de poucos — elite em que os trabalhadores nao estao incluidos. Sob a influéncia de diversos setores da sociedade inglesa, porém, ainda no século XIX foram aprovadas leis de protegio ao trabalho feminino e infantil, redugao das horas de trabalho nas fAbricas e outros direitos trabalhistas, o que levou os liberais a posicionar-se contrariamente ao laissez-faire e assumir a defesa de agdes governamentais como recurso de equilibragdo social. A partir de ento, o liberalismo como idéia aplicada a realidade concreta ficou dividido internamente em duas correntes de pensamento, numa ambigiiidade que explica sua impoténcia e o descrédito que angariou junto 4 populagao. A primeira forma de liberalismo, atada 4 velha idéia de liberdade como direito natural, agrupa aqueles que relutam em aprovar medidas de agdo governamental que sinalizem qualquer INDIVIDUALISMO E LIBERDADE 37 tipo de polftica social. Dewey os define como fornecedores de justificativas intelectuais para o “regime econémico existente, que de modo estranho, dir-se-ia ironicamente, sustentam como o regime da liberdade individual para todos”. A segunda forma de liberalismo, 4 qual Dewey deseja integrar-se, compromete-se “com o principio de que a sociedade organizada deve usar os seus poderes para estabelecer as condigdes sob as quais a massa dos individuos tenha real — em oposigdo 4 meramente legal — liberdade” (idem, p. 36). Para Dewey, liberdade nao é um conceito formal, 4 parte da histéria, pois sempre diz respeito “a alguma classe ou grupo que est4 a sofrer... alguma forma de constrangimento resultante da distribuigdo de forgas na sociedade contemporanea”. Em tais momentos histéricos, liberdade “significa libertar-se da inseguranca material e das coergGes e repressdes que vedam as multidées de participar dos vastos recursos materiais disponfveis” (idem, p. 54). A idéia de liberdade, assim, integra-se & luta por um mundo melhor, mais justo e menos desigual, no que se refere ndo sé a direitos legalmente constitufdos, mas também e principalmente a distribuigdo de bens materiais. O velho e o neoliberalismo Oleitor atento j4 deve ter percebido que 0 liberalismo criticado por Dewey, o velho liberalismo de John Locke, transformado por Adam Smith em instrumento de manutengao das desigualdades no capitalismo, € muito semelhante ao que hoje se conhece como neoliberalismo. De fato, apés 0 periodo em que a histéria do mundo ocidental foi marcada pela intervengdo dos governos para regular a atividade econdémica, vivemos agora a onda da liberdade do mercado. A época intervencionista iniciada apés a Segunda Guerra Mundial ficou conhecida como a era do Welfare State, Estado de Bem-Estar Social, caracterizado por iniciativas j4 experimentadas, de certo modo, durante 38 Jorn Dewey - A UTOPIA DEMOCRATICA o New Deal americano. A década de 1970 deu inicio a era neoliberal, em que os velhos ideais liberais receberam uma interpretagdo extremada, seguindo as teses do economista Ludwig Von Hayeck defendidas desde os anos de 1940.'° Diferentemente do Welfare State, que continha politicas de equilibragao do mercado e incremento de beneficios sociais, © neoliberalismo sustenta a privatizagéo de grande parte dos servigos ptiblicos e a desregulamentagao da economia para atrair investimentos ao setor produtivo. Esse discurso, se nao menciona explicitamente a idéia da “mo invis{vel” do século XIX, reserva ao Estado o papel de coadjuvante na politica, retirando dos poderes publicos a competéncia e o dever de planejar o funcionamento da sociedade. Seus argumentos apresentam-se em virias roupagens — énfase na necessidade de ajustar receitas e despesas dos governos, dentncia dos fantasmas da crise fiscal e da faléncia do sistema de previdéncia social, critica 4 lentidao dos servigos estatais etc. — mas 0 que esses argumentos traduzem, em tltima instancia, é 0 abandono de todos os mecanismos de protegao aos trabalhadores. Um dos problemas cruciais do liberalismo, tanto do velho liberalismo criticado por Dewey quanto de nosso contemporaneo neoliberalismo, é sua tendéncia para transformar o mundo em “um vasto supermercado”, conforme expressado do sociélogo Michael Apple (2000, p. 115). Todos devemos nos posicionar no mundo como consumidores; quando muito, como contribuintes. Ha deficiéncias na educagio escolar, déficits no sistema de satide, negligéncia nos transportes coletivos? Nao estamos gostando do modo como o governo administra os impostos "Nesta mesma colegao, Alberto T. Rodrigues (2000), no cap. 6 de Sociologia da Educagao, traga um panorama das idéias aqui enfocadas, da crise de 1929 ao neoliberalismo. Sobre neoliberalismo, ver o verbete de Michael Peters na Enciclopédia de Filosofia da Educagao (www.educacao.pro.br). INDIVIDUALISMO E LIBERDADE 39 arrecadados? Na condig&o de consumidores insatisfeitos com a mercadoria adquirida no supermercado, basta darmos nosso aval para a melhor estratégia de equilibragdo financeira das contas do Estado. Assim, conclui Apple, “a democracia transforma-se em prAticas de mercado”, sendo que “o ideal do cidadao é 0 do consumidor”. O efeito ideolédgico dessa mutagao é que democracia deixa de ser um conceito polftico para tornar-se um conceito inteiramente econdémico (idem, p. 116). O problema desse tipo de pensamento é que ele leva as Pessoas a se posicionarem sempre como consumidores ou contribuintes, jamais como cidadaos. Na idéia de cidaddo esta imbricada a idéia de atuacao politica que implica definir o modo ¢ 0 grau de participagado do povo nos destinos da coletividade. Independentemente do regime analisado, o que importa é que, em qualquer discussao de natureza politica, devemos determinar em que medida o individuo é cidadao, e o fazemos levando em conta a relagao do sistema politico com a vida das pessoas. Isso nao ocorre quando nos deixamos nortear exclusivamente pela légica da esfera econémica, pois ali a discussao politica é inconveniente. As leis do mercado sao indiscutiveis, nao podem ou nao precisam ser discutidas. Argumentagio, debate, definigéo mediante consenso, dissens4o e controvérsia sao coisas que sé existem no universo da politica, ndo no universo da compra e venda de mercadorias ou da arrecadagao de impostos e aplicagéo de recursos. E claro que os governantes que adotam essa filosofia colocam-se geralmente como democratas e submetem ao parlamento e a opiniao publica as decisdes que pretendem tomar. Mas o determinismo econdmico com que sao apresentados os assuntos € tal, que se torna dificil enxerg4-los como passiveis de questionamento: diante da opgdo entre um servico publico negligente, mal aparelhado e caro para os cofres publicos, e sabendo que o Estado nao tem recursos financeiros para investir 40 Joun Dewey — A UTOPIA DEMOCRATICA nas melhorias necess4rias, quem é capaz de opor-se & privatizagéo e & demissao de trabalhadores? Nesse quadro, 0 raciocinio do homem comum — e de muitos intelectuais — fica absolutamente tomado pela inevitabilidade das leis econdmicas e néo consegue avancar politicamente. Oleitor j4 deve ter ouvido falar da analogia entre a administragdo doméstica e a administragdo da coisa ptblica: “Se a dona-de- casa nao tem dinheiro nesse més, ela simplesmente nao gasta o que nado tem”. Essa frase aparentemente ingénua, repetida tantas e tantas vezes em numerosas variagées, acaba por obter o efeito desejado, que é impedir as pessoas de pensarem como cidadaos e de enxergarem o Estado como algo além de um caixa de supermercado; deixa-se de ver o Estado como instAncia de administragio do bem-estar coletivo, especialmente o bem- estar daqueles que nao possuem riquezas, meios para enriquecer €, muitas vezes, nem mesmo meios para sobreviver. Essa sucinta reflexdo no pretende negar que o Estado esteja de fato, como se diz, falido, incapaz de investir no desenvolvimento da sociedade para adequé-la aos padrdes da economia globalizada — expressdes de grande significado que se tornaram corriqueiras hoje em dia. O que desejo mostrar € que as anilises relativas as causas do fracasso do Estado, aos problemas havidos na era do Welfare State, bem como As propostas de solugdo para a atual inoper4ncia do poder pitiblico, encontram-se hoje totalmente dirigidas por um raciocinio economicista e nao por um raciocinio capaz de contemplar aquelas problematicas sob uma tica social e politica. O objetivo, ao que parece, nao é outro senao colocar os pobres como culpados pelos impasses a que a sociedade capitalista chegou e atribuir a eles o 6nus pela safda desses impasses. A cegueira dos liberais Retornemos a Dewey e aos anos de 1930. Como vinha dizendo, é contra o velho liberalismo — parente pr6ximo de nosso INDIVIDUALISMO E LIBERDADE 4 conhecido neoliberalismo — que Dewey se posiciona, favordvel a polfticas que incluam iniciativas governamentais reguladoras, a exemplo do New Deal. Olhando a questao do ponto de vista histérico, Dewey considera que os velhos liberais nao levaram em conta a necessidade dessas iniciativas por ndo perceberem que o problema da democracia nao se resolve apenas por intermédio do sufragio universal e do governo representativo. A democracia €é muito mais do que um regime garantido por certos procedimentos formais, como se fosse um jogo que se ganha apenas por seguir as regras. O problema da democracia faz-se o problema de uma forma de organizago social, estendida a todas as 4reas e modos de vida, em que as potencialidades dos individuos nao somente estejam livres de constrangimento mec4nico externo mas sejam estimuladas, sustentadas e dirigidas (Dewey, 1970, p. 39). Dewey afirma que faltou aos primeiros liberais “o senso e 0 interesse histérico” (idem, p. 40). Eles nao perceberam que suas interpretagdes dos conceitos fundamentais da democracia — liberdade, individualidade e inteligéncia - eram, na verdade, interpretagdes “historicamente condicionadas e relevantes apenas para seu proprio tempo” (idem, p. 41). Dewey analisa entdo cada um desses conceitos, intimamente ligados entre si, mostrando os pontos cegos do liberalismo e, ao mesmo tempo, expondo as concepgées que julga vdlidas dentro da concepg4o de democracia que defende. Segundo Dewey, o liberalismo originalmente concebeu o conceito de liberdade como liberdade polftica e econdémica. No terreno das instituigdes legais e das condig6es de participagao do povo nos processos decisérios, os liberais tomaram medidas que tendem a garantir a livre e igualitdria participagdo de todos nas decisdes, como na escolha dos governantes pelos governados. Além disso, as normas constitucionais que se desenvolveram 42 Jorn Dewey — A UTOPIA DEMOCRATICA com os Estados modernos previram, como até hoje prevéem, uma série de mecanismos que propiciam controle sobre possiveis desmandos dos ocupantes de cargos ptblicos. O impedimento do presidente de um pais, por exemplo, é um desses mecanismos — que consta, inclusive, na Constituigao brasileira, como vimos recentemente no caso Collor. JA no terreno da economia, os liberais nao foram capazes de estabelecer algo semelhante, ou nao tiverem interesse para tanto, esquecendo-se de fomentar meios de controle social das forgas econémicas. Os economistas liberais restringiram 0 conceito de liberdade a liberdade econdmica, acreditando que a livre competig4o e o natural impulso para o ganho pessoal trariam uma era de abundancia que automaticamente suplantaria as diferengas sociais. A histéria mostrou, porém, que variados artificios podem ser acionados para promover a concentragao de capital, facilitando artificios como a criagdo de escassez artificial de bens em proveito de poucos, o que impede a livre expansao da iniciativa individual. Dewey critica os liberais por nao terem previsto que a falta de controle sobre a propriedade privada dos meios de produgao e distribuigéo de mercadorias iria acarretar a desigual apropriagao privada das riquezas materiais e culturais, e nao a sua socializagao. “Uma era de poder na posse de poucos tomou o lugar da era de liberdade para todos prevista pelos liberais do comego do século dezenove”, afirma Dewey (idem, p. 43). Quando o laissez-faire revelou-se produtor de disparidades, ao invés de promover a almejada igualdade, foi como se aquela “mao invisfvel” ficasse estendida mais para uns do que para outros. Entrou em cena, entio, a justificativa de que tudo se deve & desigualdade “natural” entre os individuos e que, no livre jogo das diferengas entre as pessoas em busca do sucesso, alguns tém mais recursos que outros — recursos provindos da natureza de cada um. INDIVIDUALISMO E LIBERDADE 43 Por essa via, nao hé mesmo nada que o poder publico possa fazer, pois qualquer atitude para remediar a situagdo daqueles que sao menos dotados intelectualmente torna-se um dispéndio, no minimo, inutil. Mesmo que tal justificativa fosse aceitavel, © que verdadeiramente nao é, Dewey entende que ela deveria ser utilizada nao para desmontar o esforgo social organizado em beneficio dos mais pobres, mas para agilizar agdes sociais de protegao aqueles que correm o risco de ser massacrados pelo poder econémico. Ao recusar-se a atualizar seus conceitos na medida em que a histéria assim o exige, o liberalismo transformou-se numa doutrina incapaz de realizar um de seus princfpios fundamentais, a liberdade, tornando-o entao um conceito meramente formal. A liberdade, que Dewey considera um dos “valores duradouros do liberalismo”, € uma idéia que transcende o préprio liberalismo, consistindo numa conquista do pensamento humano. Mas a liberdade precisa ser vista ante a situacgdo real do mundo e nao como um principio que guardamos no armério para dele nos servirmos quando necessério. Individualismo e natureza humana Outro desses “valores duradouros do liberalismo”, que Dewey vé deturpados pelos liberais, € o individualismo, a idéia de que cada individuo deve ter condigdes para desenvolver ao maximo suas capacidades. Como no caso da liberdade, o liberalismo também reduziu essa concepg4o a seu aspecto puramente formal, “como qualquer coisa feita, que j4 se possufsse e que apenas precisasse, para entrar plenamente em acio, da remogao de certas restrigdes legais” (idem, p. 46). Os liberais nao compreenderam que o individuo vive em real dependéncia das condigées sociais e que essas condigdes nao sao coisas externas ao individuo, mas coisas que dizem respeito 4 sua constituigao interna, 4 possibilidade de promogao de seu crescimento efetivo. 44 Joun Dewey - A UTOPIA DEMOCRATICA Dewey acusa os liberais do século XIX de recuperarem a nogdo de “natureza humana” para explicar as diferengas sociais, firmando assim a crenga de que supostas leis psicolégicas governam os seres humanos, leis imutdveis, independentes do momento histérico e das circunstancias sociais. Tais leis seriam aplicadas diferentemente a cada individuo, o que geraria as diferengas individuais, 4s quais o liberalismo atribui a tesponsabilidade pelo sucesso e pelo fracasso de cada um na sociedade. Para Dewey, entretanto, se é verdade que essas leis existem, elas so “leis dos individuos em associagéo” e nao de individuos em uma suposta “condi¢ao mitica” apartada da ordem social (idem, p. 48). Essas formulagdes de Dewey significam que, se existe uma natureza humana, ela € essencialmente social, construfda no mundo em que 0 individuo vive, mundo esse que é formado pela heranga cultural das geragdes passadas, pelos elementos fisicos e espirituais do presente e pelas relagdes que os homens estabelecem entre si, bem como pela experiéncia de cada individuo nesse mesmo mundo. Como tudo isso muda de tempos em tempos — as vezes, muito rapidamente, como nos dias atuais —, a natureza humana deve ser entendida como algo constantemente mutavel, jamais passivel de ser definida aprioristicamente. Mas nfo era assim que pensavam o liberais defensores do laissez-faire. Segundo eles, todos os fendmenos sociais devem ser compreendidos com base “nas operagdes mentais dos individuos, uma vez que a sociedade consiste, em Ultima andlise, apenas de pessoas individuais” (idem, p. 194). Assim, a sociedade nao seria mais do que a soma de individuos isolados, sendo que as motivag6es desses individuos isolados seriam suficientes para explicar os fatos sociais e dar sustentagdo a politica. Para a polftica que prega a omissdo do Estado, evidentemente, pois se tudo o que hd na sociedade decorre de fenémenos psicolégicos, ese esses fendmenos sao vistos como tépicos da imutdvel natureza INDIVIDUALISMO E LIBERDADE 45 humana, por que motivo iriam os governos interferir no curso da vida social? Basta deixar que as leis naturais atuem. Em sua critica, Dewey enfatiza que essa concepg4o “como uma teoria da natureza humana 6, essencialmente, psicolégica”, embora seja apresentada por seus divulgadores como estritamente econédmica. Sua expressao cl4ssica, lembra Dewey, é feita por John Stuart Mill, utilitarista inglés do século XIX cujas idéias sintetizam concepgdes de homens que foram, a seu tempo, revolucion4rios. Tais homens Desejavam libertar certo grupo de individuos, aqueles interessados em novas formas de industria, comércio e finanga, de grilhdes herdados do feudalismo e que eram pelo costume e interesse privilégios de uma poderosa aristocracia da terra. Se hoje nao parecem revolucion4rios... € porque seus modos de ver so hoje a filosofia dos conservadores em cada pafs altamente industrializado (Dewey, 1970, p. 195). O que Dewey quer dizer é que, na época em que se lutava contra os privilégios feudais, ou contra os seus resquicios, afirmar a existéncia de uma natureza humana significava postular que a politica era assunto de todos e nao de uma classe “supostamente destinada por Deus ou pela Natureza para exercer 0 governo” (idem, p. 192). O destaque € posto por Dewey na palavra “humana”, em contraposigdo a “Natureza” simplesmente. O destaque é para a afirmagéo democratica de que todos temos os mesmos direitos por sermos, todos, seres humanos. Por compartilharmos, todos, da mesma “natureza”, torna-se inadmissfvel a idéia de que alguns sejam superiores a outros no campo da politica. E por isso que individualismo e liberdade sao “valores duradouros”. Sao valores que, uma vez descobertos — ou inventados, por que nao? — pela humanidade, tornam-se essenciais para a civilizagdo, pois sé eles podem garantir o desenvolvimento de cada pessoa, e de cada pessoa em pé de 46 Jon Dewey — A UTOPIA DEMOCRATICA igualdade com as demais, e o progresso continuo da coletividade - conjunto de cidadaos, algo mais do que um agrupamento de consumidores. Individualismo e liberdade tornam-se componentes da natureza humana, nao da natureza humana entendida como depésito de dons oriundos da bondade divina ou da esséncia imutavel do ser humano, mas da natureza humana vista como aquilo que se realiza nos homens em fungao de suas agdes no mundo concreto. No momento presente, no entanto, continua Dewey, os liberais proclamam a idéia de natureza humana apenas para validar as leis de funcionamento de um sistema econdmico, © capitalismo. Fazem uma “conex4o intrinseca e necessdria entre democracia e capitalismo” como se fossem “ambos gémeos siameses, de modo que se se ataca um, ameaga-se diretamente a vida do outro” (idem, p. 194). Dizem que o capitalismo, por propiciar o m4ximo de liberdade para a produgao e a troca de bens, possui intima conex4o com a democracia, entendida como regime que requer um indivfduo independente, dotado de iniciativa e vigor, livre para comprar e vender mercadorias, inclusive sua forga de trabalho. Assim, o capitalismo seria o ambiente propicio — o Gnico ambiente propicio, aliés — para a realizagéo da verdadeira natureza humana que a democracia supde. Qualquer tentativa de regular artificialmente 0 mercado seria, portanto, uma afronta 4 ordem democratica. O movimento reverso das teorias Nao pense o leitor que essa concepg4o do capitalismo como ambiente natural do ser humano tenha ficado restrita ao século XIX ou a época em que Dewey viveu. O historiador inglés Paul Johnson, nosso contempor4neo, tem defendido idéias desse tipo em seus livros. Uma amostra de seu pensamento foi veiculada recentemente por uma revista de grande circulagéo em nosso pafs, a Veja. Ali, Johnson afirma: INDIVIDUALISMO E LIBEROADE 47 O capitalismo nao é um sistema sonhado por filésofos, polfticos ou economistas e depois posto em pratica por decisdo de governos. Trata-se de um evento natural, uma pega organica no progresso humano.... O capitalismo acontece naturalmente, sem ajuda dos governos. Pode-se dizer que ele é inevit4vel, a nao ser que 0 governo tome determinadas medidas para impedi-lo (JOHNSON, 2000, p. 163). A notdvel franqueza de Johnson € tipica de quem realmente acredita nas idéias que expe, raz4o pela qual merece respeito como exemplar notavel do pensamento a que venho aqui me referindo, muito semelhante ao dos liberais analisados por Dewey, contrérios ao New Deal, mais tarde contrarios ao Welfare State, enfim, os pais do neoliberalismo. Muito do que Dewey observa nos liberais de seu tempo € agora retomado por homens da estirpe de Johnson, como a tese que associa o sistema econdmico capitalista ao conceito de liberdade, tao caro aos ideais democrticos. O capitalismo, segundo Johnson, € um dado da natureza do mundo, ele € vers4til, capaz de autocorrigir-se, “da mesma forma que uma planta abre caminho entre pedras e outros obstaculos naturais a seu crescimento”. O capitalismo sé pode florescer quando h4 “liberdade do empreendimento humano” (idem, p. 164), o que o torna parte da natureza humana, tal qual a liberdade. O argumento de Paul Johnson é o de que o capitalismo desenvolveu-se seguindo “a indole da humanidade” e que Adam Smith, ao escrever seu livro A riqueza das nagdes, em 1776, nada mais faz do que descrever “o que havia acontecido e o que estava acontecendo”: as pessoas trabalham “por instinto natural, em vez de seguir um plano profundamente detalhado” (idem, p. 163). Adam Smith, patrono do laissez-faire, apenas retrata esse “instinto” da humanidade para o empreendimento lucrativo, © capitalismo que exclui a necessidade de os governos fazerem qualquer tipo de regulagéo na ordem natural das coisas, especialmente, é claro, a regulagéo que pretenda amenizar o 48 Joun Dewey — A UTOPIA DEMOCRATICA sofrimento daqueles que nao possuem riquezas — assunto que nao é abordado, nem de passagem, no ensaio de Johnson. Em sua época, Dewey comenta esse modo de ver as coisas, dizendo que o que os teéricos fazem, de fato, é isso mesmo, descrevem 0 que vem acontecendo. O problema surge quando esses tedricos, ou os seus seguidores, passam a elaborar leis relativas 4 natureza humana com base naquilo que descrevem, ou seja, quando supdem que o homem que observam, no mundo tal qual ele se encontra no momento, seja representativo do homem como espécie, em qualquer momento histérico e circunstancia social. O problema aparece quando os teéricos passam a formalizar leis psicoldgicas, leis gerais sobre as motivagées e os desejos humanos, fundamentando-se na observagaéo de um determinado ambiente social, politico e econémico. Assim foi com as leis psicolégicas imaginadas por John Stuart Mill e adotadas pelos defensores do laissez-faire e assim é com os tais instintos a que se referem os neoliberais como Paul Johnson. O que se passa com os tedricos € que eles fazem um “movimento reverso” no qual inicialmente observam e analisam a realidade existente — 0 que aconteceu e 0 que est acontecendo, diria Johnson — “para descobrir as causas psicolégicas e as fontes do fenémenos sociais”, explica Dewey (1970, p. 197). Em seguida, traduzem os resultados de suas observagées em leis sobre o funcionamento da mente humana e do individuo em coletividade, utilizando essas leis, por fim, para explicar a realidade. Procedendo desse modo, é um tanto ébvio que as conclusdes a que chegam s6 podem ser consideradas corretas, competentes para explicar o que existe, uma vez que foram deduzidas do mesmo terreno ao qual agora retornam na forma de explicagées. Dewey exemplifica sua tese por meio de uma aniflise das concepcées de Platao, cujo método para determinar os elementos

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