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Kant ndo possut outra biografia sendo aa bistérta do seu filosofar Otfried Héffe nasceu em 1943 e, de 1964 a 1970, estudou Fi- losofia, Histéria, Teologia e Sociologia nas Universidades de Miins- ter, Tiibingen, Saarbriicken e Munique com Joachim Ritter, Walter Schulz e Hermann Krings. De 1978 a 1992, foi catedratico de Ftica ¢ Filosofia Social e diretor do Instituto Internacional de Filosofia Social e Politica da Universidade de Friburgo (Suiga). Desde 1992, é professor titular de Filosofia na Universidade de Titbingen (Ale- manha). Publicou, entre outros, os seguintes livros: Praktische Phi- losaphie — das Modell des Aristoteles (1971), Strategien der Hurnanitit (1975), Ethik und Politik (1979), Sittlich-Politische Diskurse (1981), In- troduction a ta Philosophie pratique de Kant (1985), Politische Gerech- tigkeit (1987), Kategorische Rechisprinzipien (1990), Moral als Preis der Moderne (1993), Vernunft und Recht (1996), Demokratie int Zeitalter der Globalisierung (1999) e, recentemente, Kants ‘Kritik der reinen Vernunft’ (2004); é organizador/editor de Lexikon der Ethik (1977), Grosse Denker (1980ss), Klassiker Auslegen (1995), Zeitschrift fur Phi- losophische Forschung. Otfried H6ffe Immanuel Kant Tradugio CHRISTIAN VIKTOR HAMM VALERIO ROHDEN Martins Fontes Sao Paulo 2005 UNICAMP iNSTITUTO DE ESTUDOS DALINGUAGEM Esta obra fot publicads originalmente em alemdo com o titulo IMMANUEL KANT, por Verlag CH. Beck, INDICE Copyright © Verlag C.H. Beck oHG, Munique, 2004 Copyright © 2005, Livraria Martins Fontes Editora Ltda, ‘Sto Paulo, para a presente edigio. 1 edigao smaio de 2005 Tradugio CHRISTIAN VIKTOR HAMM. VALERIO ROHDEN Acompankamento editorial Luzia Aparecida dos Santos Revisées graficas Marisa Rosa Teixeira Maria Regina Ribetro Machado ‘Mauro de Barros rte Zoran de Sa Modo de citar......... 0 grifica : corer Abreviaturas ....... Paginacio/Fotolitos ene pee Scio in Nota sobre a edigdo brasileira... XV casas atau davONRCCK 1. Introdugao . XVIL (Camara Brasileira do Livro, SF; Brasil) Hoffe, Otfried fmmanuel Kant / Otfried Héffe ; tradugdo Christian Viktor ime niece Rib Sartactn Monies tiem ania I. AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO ~ (Tépicos) : ‘Titulo original: Immanuel Kant 2. O periodo pré-critico .......... 3 Blogs oe 2.1 Familia, escola, universidade 3 1 fleofa > Kant tmmanuel, 1728-180 1.1. eet 2.2 Professor particular e primeiros escritos 6 fs ; Immanuel, Titulo, I, Série. 2.3 O professor bem-sucedido e mestre ele- 05-2835, cbD-193 ante 10 fndices para catalogo sistemitico: 8 . “ 1. Filosofia alema 193 3. A filosofia transcendental critica... 14 — 3.1 A caminho da Critica da razéo pura... 14 Todos os direitos desta edigto para a lingua portuguesa reserondos & rips desta lei pao igus poreigiess : 3.2. A realizacdo da filosofia transcendental Rua Consetheiro Ramatha, 330 01325-000 Sao Paulo SP Brasil critica ... 20 ‘Vel. (11) 3241.3677 Fax (12) 3107.1042 e-mail: info@martinsfontes.com.br hilp:/fwww.martinsfontes.com.br 3a ° conto com 1 censure - .4 A obra da senectude ma I O QUE POSSO SABER? A CRITICA DA RAZAO PURA 4, O programa de uma critica transcendental da razao 4.10 campo de batalha da metafisica ( facio” a primeira edigao) 4.2 A revolugdo copernicana (i oelitia” a se- gunda edicao) 4.3 A metafisica como ciéncia, ou sobre a possibilidade de juizos sintéticos a priori (“Introdugao”) . A priori — a posteriori. Analitico — sitrtético 4.4 A matematica contém juizos sintéticos a PHIOPE? voocecssecoreeess 4.5 O conceito de transcendental 5. A Estética transcendental................- 5.1 Os dois troncos de conheciment bilidade e entendimento 5.2 A exposigdo metafisica: o espago e 0 te! po como formas a priori da intui¢ao......... 5.3 A fundamentacao transcendental da geo- 5.4 Realidade empirica e idealidade trans- cendental de espago € teMpo.... een 6, A Analitica dos conceitos 6.1 A idéia de uma légica transcendental....... 6.2 Conceitos empiricos e conceitos puros (categorias) 6.3 A deducao metafisica das categorias 64 A dedug&o transcendental das categorias O problema. O primeiro passo da demonstra- (ao: a autoconsciéncia transcendental como 33 33 40 origem de toda sintese. Excurso: argumentos transcendentais. O segundo passo da demons- tragao: a limitagao das categorias a experién- cia possivel 7. A Analitica dos principios........ 108 7.1 A doutrina do esquematismo 11 7.2 Os prineipios do entendimento puro . 118 7.3 Os principios mateméaticos 7.4 As analogias da experiéncia..., A permanéncia da substancia, oO prinetpio de causalidade 7.5 Os postulados do pensamento empirico... 137 127 8. A Dialética transcendental ........ceesseccscceessesees 140 8.1 A légica da aparéncia 8.2 A critica da metafisica especulativa 8.2.1 A critica da psicologia racional......... 8.2.2 A critica da cosmologia transcen- dental 8.2.3 A critica da teologia natural A demonstracao ontolégica de Deus. A de- monstragao cosmologica de Deus. A demons- tragio fisico-teolégica de Deus 8.3 As idéias da razio como principios da completude do conhecer 151 174 Il. O QUE DEVO FAZER? A FILOSOFIA MORAL E A FILOSOFIA DO DIREITO 9. A Critica da razdo pritica 9.1 Sittlichkeit como moralidade 9.2 O imperativo categérico os O conceito de imperativo categérico, Mdximas, Universalizagéo. Exemplos 187 190 197 215 222 229 9.3 A autonomia da vontade 9.4 O factum da razao 10. A Filosofia do Direito e do Estado... 10.1 O conceito racional do direit 10.2 O direito privado: a fundamentagao da pro- Ptiedade o.....sseessecsssneesseseeteeceteeneeneereeens 243 10.3 O direito puiblico: a fundamentagao do Es- tado de direito 10.4 O direito penal estatal .. IV. O QUE ME E PERMITIDO ESPERAR?_ A FILOSOFIA DA HISTORIA E DA RELIGIAO 11. A Histéria como progresso do Direito .........0.... 270 12. A Religiao da raz@o pratica senses 278 12.1 A imortalidade da alma e a existéncia de 279 284 V. A ESTETICA FILOSOFICA EA FILOSOFIA DO ORGANICO 13. A Critica da faculdade do jutZ0 ..ssieserreccccen 291 13.1 A dupla tarefa: andlise objetual e funcao SIStEMICA.....-cesssseeee 291 13.2 A fundamentagao critica da Estética 297 O belo. O sublime 13.3 A teleologia Critica... teeeesseesessesereseess 306 Entre teleologia universal e mecanicismo uni- versal. A conformidade a fins de organismos. A fungdo regulativa da teleologia 14. Recepcdo, desenvolvimento ulterior e critica a Ne Du pw VI. SOBRE A REPERCUSSAO 14.1 Primeira difusao e critic 14.2 O Idealismo Alemio .. 14.3 Kant no exterior . 14.4 O neokantismo 14.5 Fenomenologia, correntes. 14.6 Depois da Segunda Guerra Mundial stencialismo e outras . Cronologia . Bibliografia A. Obras de Kant B. Obras de consulta C. Estudos . Indicagado de fontes das ilustracdes .... . Estruturagao da Critica da razdo pur : Indice de autores . . Indice de matérias 317 317 321 328 331 339 343 345 366 367 369 375 MODO DE CITAR Cita-se Kant segundo a “Akademieausgabe’; p. ex,, VII 216 = vol. VIL, p. 216. Na Critica da razdo pura s4o indicados os ntimeros de pagina da primeira (A) ou segunda (B) edicao; p. ex. is) Ap. 413 = primeira edicao, p. 413, . Nas cartas (p. ex., Briefe, 744/406), 0 primeiro numero ~_ (744) designa os nimeros das cartas na “Akademieaus- ~ gabe”, o segundo (406) designa os ntimeros da selecao na “Philosophische Bibliothek” (ed. por O. Schéndérffer, Hamburg, 2° ed. 1972). A referéncia a literatura indicada por capitulos, no Apéndice, é feita pelo nome do autor (se for preciso, mais o ano de publicagéo) e o mimero de pagina; em caso de varias edic6es ou reimpressdes, cita-se segundo a edicao nao posta entre paréntese. N ‘ ABREVIATURAS Anfang Fak. Frieden Gemeinspruch GMS Idee KpV Mutmasslicher Anfang der Menschenges- chichte [Inicio presumivel da histéria hu- mana] (VIII 107-123) Der Streit der Fakultdten [A disputa das fa- culdades] (VII 1-116) Zum ewigen Frieden [A paz perpétua] (VII 341-386) Uber den Gemeinspruch: Das mag in der Theo- nie richtig sein, taugt aber nicht fiir die Pra- xis [Sobre o dito comum: isto pode ser cor- reto na teoria, mas nao serve para a pratica] (VIII 273-313) Grundlegung zur Metaphysik der Sitten {Fun- damentagao da metafisica dos costumes] (IV 385-463) Idee zu einer allgemeinen Geschichte in welt- biirgerlicher Absicht [Idéia de uma historia universal de um ponto de vista cosmopo- lita] (VIL 15-31) Kritik der praktischen Vernunft [Critica da ra- 240 pratica] (V 1-163) XIV KrV Ku Log. MAN MS Prol. Ref. Rel. RL TL IMMANUEL KANT Kritik der reinen Vernunft [Critica da raz&o pura] (A: IV 1-252, B: II] 1-552) Kritik der Urteilskraft [Critica da faculdade do juizo] (V 165-485) . Logik. Ein Handbuch zu Vorlesungen [Légi- ca. Um manual para prelegdes], ed. por G. B. Jasche (IX 1-150) Metaphysische Anfangsgriinde der Natur- wissenschaft [Principios metafisicos da ciéneia natural] (IV 465-565) . Die Metaphysik der Sitten [A metafisica dos costumes] (VI 203-493) Prolegomena zu einer jeden kiinftigen Me- taphysik [Prolegomenos a toda metafisica futura] (IV 253-383) Reflexionen [ReflexGes] (XIV ss.) Die Religion innerhalb der Grenzen der blos- sen Vernunft {A religiao nos limites da sim- ples razao] (VI 1-202) Metaphysische Anfangsgninde der Rechtsleh- ve [Principios metafisicos da doutrina do direito] (= 12 Parte da MS VI 203-372) Metaphysische Anfangsgriinde der Tugend- lehre [Princfpios metatfisicos da doutrina da virtude] (= 2 Parte da MS VI 373-493) NOTA SOBRE A EDICAO BRASILEIRA A traducao da presente obra de Otfried Héffe, profes- sor da Universidade de Tubingen, Alemanha, baseou-se no texto da 5? edicao alemi, revista e ampliada, do ano 2000. Realizada em parceria, coube a Christian Viktor Hamm traduzir as Secdes 1 a 8 e parte da Sec&o 10, e a Valerio Rohden a traducdo das demais partes. Comparada e dis- cutida entre ambos, ela, néo obstante, manteve em cada caso certa individualidade de estilo, de preferéncias de ter- mos e de sintaxe, nao plenamente identificaveis entre si. A obra ja foi traduzida para varias linguas, mas prin- cipalmente alcangou em seu pais de origem, em curto es- paco de tempo, sucessivas edicdes, transformando-se em um best-seller kantiano. O 8xito explica-se, em grande par- te, pelo seu cardter introdutério ao pensamento geral de Kant, inteligentemente aliado a um nivel académico exi- gente, detalhado, seguro e fundamentado no tratamento de todas as questdes € conceitos. Além disso, o texto si- tua-se 4 altura da critica filosdfica contemporanea, res- pondendo a suas objecées, desfazendo mal-entendidos € ptojetando o pensamento de Kant para o futuro. Vale a XVI IMMANUEL KANT pena citar, a propésito, a frase com que 0 autor encerra © livro: “O projeto da filosofia transcendental critica pare- ce conter um potencial de pensamento que nao se esgo- ta rapidamente, que talvez até hoje ainda nao tenha sido devidamente medido.” O empenho da Livraria Martins Fontes Editora em editar o presente livro ainda no decurso da comemora¢ao dos 200 anos da morte de Kant merece, por isso, 0 nos- so reconhecimento e nossa admiracao. VALERIO ROHDEN E CHRISTIAN VIKTOR HAMM Porto Alegre/Santa Maria, 19 de agosto de 2004. 1. INTRODUGAO. Sera que Kant é apenas uma figura histérica da Filoso- fia, ou continua merecendo ainda nosso interesse sistemA- tico? Kant 6 um dos maiores pensadores do Ocidente e tem influenciado, talvez como nenhum outro, a filosofia da modernidade. Mas pode-se dizer também de Galilei e Newton que sao cientistas excepcionais na sua drea. Nao obstante, eles aparecem hoje como representantes de uma concep¢ao passada da Fisica que foi indubitavelmente su- perada pela teoria da relatividade e a teoria quantica. Cabe dizer 0 mesmo também com respeito a fildsofos? Repre- senta Kant uma figura eminente, sem divida, mas, mes- mo assim, superada do pensamento humano? Historicamente, Kant pertence 4 época do Iluminismo europeu. A orientagao geral desta época torou-se fragil em muitos aspectos: a idéia de que o homem pode do- minar todas as coisas, a fé no progresso constante da hu- manidade e, em geral a confianca otimista na razao. Como movimento histdrico, o iluminismo pertence ao passado. XVIII IMMANUEL KANT Mas significa isso que também todas as suas idéias cen- trais perderam seu valor? Nao é verdade que razao e liber- dade, critica e maioridade sao disposiges e tarefas hu- manas fundamentais que, bem entendidas, permanecem validas para além dos séculos XVII e XVIII? Kant desenvolveu uma compreensao das idéias ilu- ministas que se manteve eqitidistante de um iluminismo ingénuo e de uma atitude contra-iluminista, segundo a qual tudo o que existe é bom e belo. A filosofia de Imma- nuel Kant representa nao s6 0 apogeu intelectual mas tam- bém uma transformagao do iluminismo europeu. “Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu proprio entendi- mento!” — esse lema da época é assumido por Kant (Was ist Aufklarung? VIII 35) e elevado a principio universal. O iluminismo como processo: a superagao de erros e precon- ceitos a partir da decisao de fazer uso do juizo préprio, a rentincia gradual a interesses particulares e a descoberta sucessiva da “razao humana universal” — tudo isso é uma idéia comum da época. Em Kant, esta idéia resulta na cri- tica de toda filosofia dogmiatica e na descoberta do fun- __damento tiltimo da razao, cujo principio é a autonomia, a liberdade enquanto autolegislagao. Ao mesmo tempo, Kant critica profundamente a posigao de um otimismo ili- mitado, ja enfraquecida anteriormente pelo Primeiro dis- curso de Rousseau (1750) e também pelo grande terremo- to “sem sentido” de Lisboa (1755). Partindo da investigagao de problemas internos da filosofia, Kant vai avancar nao s6 até as origens mas também até os limites da razao pura, tanto da tedrica como da pratica. Kant fica profundamente impressionado com o pro- gresso das ciéncias naturais modernas (Galilei, Newton) e com o desenvolvimento anterior da Légica e da Mate- mitica. Por isso, parece-lhe intoleravel que a Primeira Filo- INTRODUCAO Figura 1. Kant. Desenho de Puttrich, de cerca de 1798. XX IMMANUEL KANT sofia, chamada tradicionalmente de Metaffsica, perma- nega envolvida em uma disputa sem fim em torno das questdes de Deus, da liberdade e da imortalidade. Kant considera esta controvérsia sobre os fundamentos meta- fisicos um escandalo que a filosofia tem que superar, caso ela pretenda realmente manter seu lugar entre as ciéncias. A fim de conduzir a filosofia ao caminho seguro de uma ciéncia, Kant deixa de lado, primeiramente, a inves- tigacdo sobre Deus, a liberdade ¢ a imortalidade. Ele co- meca num ponto mais basico e pergunta se a filosofia pri- meira, a metafisica, pode ser ciéncia. Antes de investigar, a partir dos seus principios, o nesso mundo natural e social, a filosofia tem a tarefa de examinar a sua propria possi- bilidade. A filosofia ndo vai mais comegar como metafi- sica; ela comega como teoria da filosofia, como teoria de uma metafisica cientifica. oo, A questo da metafisica como ciéncia introduz na discussao filosdfica uma radicalidade até entao desconhe- cida. Essa radicalidade se torna possivel somente através de um novo e mais profundo modo de pensar. Kant 0 des- cobre na critica transcendental da raz4o. Por meio dela ele analisa a capacidade da razao e fundamenta um filosofar cientifico auténomo, sem deixar de determinar o necessa- rio limite deste tltimo. Quem vé em Kant apenas a origem de uma nova metafisica assume, portanto, uma visao nao menos unilateral do que aquele que 0 considera, como Mendelssohn, um mero “destruidor da metafisica”. - A quest&o de uma filosofia cientifica auténoma nao pode ser resolvida de modo abstrato, mas somente por uma investigagdo de problemas objetivos centrais. Com efeito, uma filosofia aut6noma, a filosofia enquanto cién- cia racional, pressupde que o conhecer ¢ 0 agir humanes, no 4mbito do Direito, da Histéria e da Religiao, e nos juizos INTRODUCAO: XXI estéticos e teleolégicos, contém certos elementos que sao validos independentemente de toda empiria; pois sé nes- se caso pode-se conhecé-los filosoficamente, e njo apenas pelas ciéncias empiricas. Por isso, a questao central kan- tiana da possibilidade de uma filosofia cientifica auténo- ma nao € uma questo preliminar; ela implica a aborda- gem de problemas substanciais. Em investigacdes de ori- ginalidade exemplar e de sutileza conceitual, Kant tenta mostrar como os diversos campos do nosso conhecimen- to sao constituidos efetivamente por elementos indepen- dentes da experiéncia. Assim, ele explica como sao pos- siveis, apesar da finitude (receptividade e sensibilidade) do ser humano, a universalidade e a necessidade do ver- dadeiro saber, do agir moral ete. Uma filosofia cientifica exige, no entanto, que os ele- mentos independentes da experiéncia se deixem encon- trar mediante um método e expor de modo sistemdtico. Segundo Kant, isso se efetua na critica transcendental da tazao. Foi a descoberta dos elementos nao empiricos e da critica da raz3o como meio da sua andlise que real- mente fez época. Ela revolucionou o modo tradicional do pensar e conseguiu, no entender de Kant, colocar a filo- sofia sobre um fundamento definitivamente seguro. Até quem se mantém cético com respeito a tal pretensiio de fundamentacao deve reconhecer que Kant mudou radical- mente o cenério filoséfico: a teoria do conhecimento e do objeto, a ética, a filosofia da historia e da Teligiao, e tam- bém a filosofia da arte. Se pensamos em conhecimentos 4 priori e a posteriori, em juizos sintéticos e analiticos, ar- gumentos transcendentais, idéias regulativas e constitu- tivas, no imperativo categérico ou na autonomia da von- tade — o mimero dos conceitos e problemas da discussdo atual que tém sua origem em Kant é surpreendentemen- Xx IMMANUEL KANT te grande. As mais diversas orientagdes do pensamento escolheram Kant como ponto de referéncia, seja em sen- tido critico, seja em sentido afirmativo. Os conceitos-chave da filosofia kantiana, critica, razéo e liberdade, sao as palavras decisivas da “época da revolu- ao francesa” (de 1770 a 1815, aproximadamente). Assim, Kant nao é apenas um dos classicos eminentes da filoso- fia e um interlocutor importante da época atual. Ele é, ao mesmo tempo, um dos representantes mais significati- vos daquela época que Jaspers intitulou de “tempo eixo” e que tem influenciado muito, até hoje, nosso pensamen- to e o nosso mundo de vida sociopolitico. Apesar disso, nao podemos ver em Kant 0 precursor da atualidade. Pois ha, por um lado, muitos filésofos con- temporaneos que criticam Kant em pontos essenciais. E, por outro, Kant néo é um antecessor das ciéncias natu- rais, humanas e sociais contemporaneas, nem fundador da atual filosofia da ciéncia. Kant também nao é promo- tor da transicao dos Estados democraticos de direito para Estados sociais. O positivismo légico ¢ a filosofia analitica contestam elementos independentes da experiéncia e exi- gem, assim como 0 estruturalismo, uma rentincia a qual- quer tipo de fundamentagao ultima. A ética de Kant & questionada pelo utilitarismo ou pela “ética do discurso . a sua filosofia da liberdade pelo determinismo e behavio- tismo, a sua filosofia do direito pelo positivismo. Em resu- mo: Kant esta em desacordo com importantes tendéncias em filosofia, ciéncia e politica. Na medida em que Kant nao esta conforme com a consciéncia da nossa época, a leitura dos seus escritos fa- cilmente provoca certa resisténcia interna. A seguinte in- trodugdo a biografia, no desenvolvimento filoséfico e sua influéncia, mas sobretudo a obra, tenta abrandar tal re- INTRODUGAO XXII sisténcia e fazer do leitor nao necessariamente um parti- dario de Kant, mas despertar pelo menos seu interesse e tornar compreensivel a constante influéncia que sua filo- sofia tern desde a sua origem até nossos dias. Uma introducao no pensamento de Kant pode esco- lher como fio condutor a histéria do seu desenvolvimento filos6fico ou a histéria da sua influéncia. Para ambos os caminhos hd boas razées. Por isso, esbogaremos primei- ro o desenvolvimento (caps. 2-3) e no final (cap. 14) a in- fluéncia do pensamento kantiano, entremeando, de vez em quando, algumas indicagdes histéricas. Mas 0 nticleo da nossa exposicdo constituirao os escritos principais. Pois € neles que o pensamento de Kant alcanga, depois de um trabalho preliminar de anos e decénios, aquela forma que © proprio fildsofo considerou como decisiva. Sem dtivi- da, as obras péstumas de Kant esclarecem muitos aspec- tos histéricos e tematicos cuja desconsideragiio faria com que alguns elementos de teoria permanecessem obscuros ou estranhos; também é certo que as prelegdes revelam certos pressupostos e complementagSes importantes, e que o material do ultimo periodo, o chamado “Opus pos- fumum”, sugere continuagdes e modificagdes que uma ex- Posi¢ao mais profunda deve tomar em consideragao. Mas de maior prioridade sao os escritos criticos principais, com seus problemas e conceitos basicos, suas propostas de so- lugdo e a estrutura argumentativa delas. Uma introdugao nao fornece um comentario porme- norizado que enfoque as miltiplas dificuldades de uma teoria. Pretende, antes, apontar para 0 alto nivel de refle- xo, a diferenciacao conceitual e a consideravel consistén- cia que, nao obstante algumas ambigitidades e contradi- goes, caracterizam a proposta filoséfica de Kant. Por outro lado, a filosofia transcendental nao é livre de certos pre- XXIV IMMANUEL KANT conceitos cientificos e politicos, como, por exemplo, a opi- nido de que existe s6 uma geometria, a euclidiana, ou a convicgao de que o cidadao economicamente indepen- dente é superior em comparac&o com o economicamente dependente. Uma exposicgao sélida tem que assinalar tais elementos, mas deve também mostrar que eles nao fa- zem parte da propria reflexao transcendental de princi- pios. Isso nao exclui, entretanto, que, em outros estudos, possa ser oportuno submeter o pensamento kantiano a uma critica sistematica. No entanto, a presente introdu- ¢4o a vida, 4 obra e a influéncia de Kant se atém, no todo, a seguinte maxima: j4 que Kant nao pode mais falar, faz sentido interpreté-lo de modo dindmico e favoravel. Uma filosofia séria se dedica aos problemas funda- mentais do homem, segundo Kant: na medida em que se manifesta neles um interesse da razdo. Tal interesse con- flui nas trés perguntas célebres: 1, Que posso saber? 2. Que devo fazer? 3. Que me € permitido esperar? (KrV, B 833). Essa introdugao adota a triparticgo e apresenta primeiro a Critica da raziio pura, depois a filosofia moral e do direito e, em terceiro lugar, a filosofia da histéria e da religido. Mas quem absolutiza essa triparticao desconsidera a impor- tante tarefa mediadora da Critica da faculdade do juizo; devido a sua grande relevancia sistemitica e objetiva, ela é abordada numa parte especial. Devo agradecer particularmente aos colegas Riidiger Bittner, Norbert Hinske e Karl Schuhmann suas amisto- sas observacées criticas, a Viera Erben-Pollak e Edith Zic- kert a paciente transcricéo do manuscrito, e aos meus colaboradores Lothar Samson, Lukas K. Sosoe e Bernard Schwegler a ajuda prestada na correcdo e na confeccdo dos indices. I AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO Dificilmente se pode escrever uma biografia emocio- nante sobre Kant; sua vida exterior foi equilibrada e mond- tona. Nés nao encontramos episédios que pudessem cha- mar a atencao de seus contemporaneos, nem aventuras que pudessem despertar o interesse da posteridade. Kant nao levou, como Rousseau, uma vida errante, nem se cor- tespondeu, como Leibniz, com todos os grandes persona- gens de seu tempo; diferentemente de Platio ou Hobbes, no esteve envolvido em empreendimentos politicos, nem em histérias amorosas, como Schelling. Também o seu es- tilo de vida nao teve nada de extravagante: nem vesti- menta esquisita nem a cabeleira, ner gestos patéticos do “Sturm und Drang”. Kant era de um carter extraordinaria- mente reservado. Ainda que a sua obra critica talvez se deva, igual & de filésofos como Santo Agostinho, Descartes ou Pascal, a uma iluminacdo stibita (cf. Refl. 5037), Kant no fala em nenhum de seus escritos de uma vivéncia filo- sdfica que houvesse alterado bruscamente o seu pensa- mento anterior. Assim, no encontramos nada que corres- ponda a imagem de um génio. Entao, a personalidade e a 2 IMMANUEL KANT biografia de Kant sao decepcionantes? E verdade, como afirmou Heine (83), que Kant nao foi um génio? Podemos entender Kant somente por sua obra, na qual se expressa com rigor inquebrantavel e com uma ex- clusividade quase inquietante. Essa obra se chama ciéncia, sobretudo ciéneia racional: conhecimento da natureza e da moral, do direito, da religiao, da histéria e da arte, a partir de principios a priori. Ainda mais que de outros filésofos, pode-se afirmar de Kant que os acontecimentos se pro- duzem no pensamento; Kant nao possui outra biografia senao a histéria do seu filosofar. Entre os grandes filésofos da modernidade Kant é (talvez depois de Chr. Wolff) 0 primeiro que ganha o seu sustento através do exercicio profissional da dacéncia na sua disciplina. Ao contrario da maioria dos representantes do esclarecimento inglés e francés, levou a vida de um dou- to burgués, uma vida rica em trabalho, mas pobre em acon- tecimentos externos. Isso significa também que, em Kant, a filosofia académica adquire uma originalidade inova- dora. Esta tradicao continua em Fichte, Schelling e Hegel pata romper-se depois; filésofos come Schopenhauer, Kierkegaard e Marx se mantém alheios e inclusive opos- tos aos pensadores académicos, tanto como Comte, Mill e Nietzsche. Kant nunca abandonou a regiéo de Konigs- berg, sua cidade natal. Apesar disso, numerosos escritos de Kant, de natureza nao especulativa, revelam, além de fantasia e de humor, um conhecimento extraordinario do mundo, Kant deve este conhecimento a leitura, 8 com- preensao e a uma rara capacidade de imaginacao criativa. Nossos conhecimentos da vida, da personalidade e do desenvolvimento filosdfico de Kant adquirimo-los, em grande parte, através de sua correspondéncia. As cartas constituem uma importante complementacao e continua- cdo dos tratados escritos de Kant. Elas documentam a AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 3 evolugdo académica, as relagdes com amigos, parentes, colegas e estudantes. Falam de seu relacionamento com célebres personagens contemporaneos, com correntes @ acontecimentos culturais e nos permitem conhecer o pri- meiro efeito da filosofia kantiana. Porém, ”s6 ocasional- mente e, por assim dizer, com resisténcia, deixam trans- parecer uma disposigdo ou um interesse pessoal” (Cas- sirer, 4). Nao menos significativas que as cartas so as primeiras biografias de seus contemporaneos Borowski, Jachmann, Wasianski, Hasse e Rink. Todos eles viveram também em Kénigsberg e tiveram um longo trato pessoal com 0 filésofo. Dado que a maioria das cartas escritas e recebidas por Kant sao posteriores a 1770, quando Kant ja tinha 46 anos de idade, e que, além disso, a biografia dos contempora- neos se centra no periodo de maturidade de Kant, enfim, que as anedotas sobre seus caprichos caracteristicos sao desta época, existe o perigo de conceber a personalidade de Kant excessivamente a partir da perspectiva de sua ve- lhice e de sua propensao a rigidez e ao pedantismo. Na tealidade Kant era socidvel ¢ até galante no seu estilo de vida. Mas cada vez mais tomou forma a sua vocacdo que, finalmente, sobrepés-se a todos os outros interesses a filo- sofia transcendental critica, que o proprio Kant viveu como uma revolugéo do pensamento e se mostrara efetivamen- te revolucionaria na histéria da filosofia européia. 2. O PERIODO PRE-CRITICO 2,1 Familia, escola, universidade Immanuel Kant nasceu no dia 22 de abril de 1724 como o quarto de nove filhos de um modesto seleiro nos 4 IMMANUEL KANT suburbios de Kénigsberg e foi batizado no dia seguinte com o nome de Emanuel (“...Deus conosco”). Como ou- tros intelectuais do esclarecimento alemao, Kant provém de um meio modesto ou até pobre. A sua cidade natal era a capital economicamente prospera da Prussia Orien- tal com um porto de comércio internacional, freqiientado Por comerciantes ingleses que trocavam vinho e especia- tias provenientes de suas col6nias por cereais ou gado rus- so. A cidade, situada no extremo nordeste dos paises de lingua alema, surgiu da unificagao de trés cidades (Alts- tadt, Lobenicht, Kneiphof) s6 no ano de nascimento de Kant: 0 filésofo e Kénigsberg' sao da mesma idade. A opiniao de Kant segundo a qual seu avé foi emi- grante da Escécia (Briefe, 744/406) nao pode ser compro- vada pelos arquivos. O bisavé Richard Kant era natural de Kurland (sendo duas de suas filhas, no entanto, casa- das com escoceses), a familia da mae, Anna Regina, provém de Niinberg e Tiibingen. Ojovem Immanuel freqiienta a escola do hospital de Vorstadt (1730-32), e a partir dos oito anos o Friedrichs- kollegium (1732-40), na época um dos melhores colégios da Alemanha. Devido a pobreza de seus pais, Kant de- pende do apoio de amigos, particularmente do diretor do colégio e professor de teologia Franz Albert Schultz (1692- 1763), discipulo importante do grande fildsofo do esclare- cimento alemao Christian Wolff (1697-1754), que desco- bre jé muito cedo o talento de Kant. O Friedrichs-Gymnasium, chamado pejorativamen- te pela populacdo de “albergue pietista”, é regido por um severo estatuto religioso. Boa parte do estudo é dedicada a instrugao religiosa (estudo do catecismo) e ao culto; o 1, Hoje Kaliningrad. (N. do T.) I a ci cee ner ireetnmerinmcanme AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO § Figura 2. Konigsberg. Vista da cidade, de cerca de 1766. Detalhe de uma gravura em cobre da época. hebraico e o grego sao ensinados a partir da leitura do An- tigo e Novo Testamento; a matemiatica e as ciéncias natu- rais desempenham papel secundario. Parece que apenas as aulas de latim sao dadas com certa competéncia e conse- guem despertar o duradouro interesse de Kant. No outono de 1740, Kant sai do Fridericianum como o segundo me- thor aluno da turma; ainda na sua velhice ele se recorda “com angtstia e horror da escravidao juvenil” do tempo de colégio. A familia de Kant esta também impregnada pelo pie- tismo, aquele movimento religioso surgido no século XVII dentro do protestantismo alem&o, para a renovagao de uma vida piedosa, tendo em vista a reforma da Igreja sobre essa base. Apesar de toda sua distancia das formas de cul- to, Kant sempre apreciava aquela atitude de vida que faz 6 IMMANUEL KANT pensar na calma e serenidade imperturbavel de um sabio estdico. A mae, que Kant sempre venerava pela sua inte- ligéncia natural e pela sua auténtica religiosidade, faleceu no ano de 1737 e foi sepultada na noite anterior a véspera de Natal, quando Kant contava com 13 anos de idade. Depois de passar pelo exame de ingresso, Kant, aos 16 anos, matricula-se na Albertina, a universidade de K6- nigsberg. Com a ajuda de parentes ¢ de aulas particulares, mas, segundo o testemunho de seu colega Heilsberg, tam- bém através do jogo de bilhar, estuda (de 1740 a 46) ma- temAtica e ciéncias da natureza, teologia, filosofia e letras classicas latinas. De grande influéncia é o professor de lé- gica e metafisica Martin Knutzen (1713-1751), também discipulo de Wolff, que, se nao fosse a sua morte prema- tura, se tornaria talvez um grande fildsofo. Foi este profes- sor de formacdo universal que chama a atencao de Kant sobretudo para as ciéncias naturais; nomeadamente a fi- sica de Isaac Newton (1643-1725) torna-se para ele mo- delo de ciéncia rigorosa. Mas freqiienta também as aulas de Knutzen sobre filosofia do direito (“Direito Natural”). 2.2 Professor particular e primeiros escritos Depois da morte do pai (1746), Kant sai da universi- dade e ganha sua vida - como era comum na época para os letrados sem meios - como professor particular (pre- ceptor), primeiro na casa do pregador Andersch, depois na casa do latifundidrio Major von Hiilsen (até aproximada- mente 1753) e, finalmente, na casa do conde Keyserling. Neste periodo Kant no apenas se familiariza com um es- tilo elegante de vida social, mas amplia também o seu co- nhecimento filos6fico e das ciéncias naturais. No entanto, AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 7 no seu primeiro escrito Gedanken von der wahren Schétzung der lebendigen Kriifte [Pensamentos sobre a verdadeira ava- liagdo das forgas vivas] (de 1746, publicado em 1749), Kant ainda nao acertou 0 alvo. Invacando “a liberdade do en- tendimento humano” (I 8), ele tenta encontrar uma solu- 40 de compromisso para resolver “uma das maiores ci- ses entre os gedmetras da Europa” (1 16). Na disputa em torno do calculo da forga (F) a partir da massa (m) e velo- cidade (v), Kant da razao aos leibnizianos (F = m . 7) no que concerne 4s “forgas vivas”, isto é, aos movimentos li- vres. Por outro lado, ele concorda com Descartes e a sua Escola quanto as “forgas mortas”, isto é, os movimentos nao livres. A solugao verdadeira (F = ‘2 m . ¥), publicada por D’Alembert em 1743, permanece desconsiderada. Chama a atengao a elevada auto-estima do jovem de 22 anos: “Eu ja tracei o curso que pretendo seguir. Encetarei meu caminho e nada me impedira de prossegui-lo” {I 10). Kant nao escreve no idioma académico internacio- nal dos doutos, latim, mas sim — como jé fizeram, em par- te, G. W. Leibniz, Thomasius e Wolff — em claro alemao. Ainda que os resultados da investigagaio sejam escassos, jase vislumbra o esforco critico-construtivo de mediagao em que se baseia a sua critica transcendental da razo. Tam- bém se tornam claros os interesses pelas ciéncias naturais, que predominam nos seus estudos durante os préximos dez anos. Ao mesmo tempo, Kant se anuncia como filé- sofo, j que ele incorpora a disputa pelo cdlculo da forga numa problematica mais abrangente. Ele se escandaliza com a experiéncia de que os mais importantes cientistas de sua época nao conseguiram chegar a um acordo sobre um problema tao preciso. Assim ele vé ameagada a idéia de uma razdo humana universal. A duvida e ao mesmo tempo a confian¢a na razao humana acompanharao Kant até a elaboragao da filosofia transcendental critica. 8 IMMANUEL KANT Depois do regresso a Kinigsberg, 0 filésofo desen- volve uma notavel atividade produtiva. Em marco de 1755 aparece anénimo o escrito Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels (Historia geral da natureza e teoria do céul, “elaborada segundo os principios de Newton”. Kant esboca uma teoria da origem do sistema planetario e de todo o cosmos que se apdia exclusivamente em “ra- 26es naturais”, prescindindo de consideracdes teoldgicas. Algumas partes importantes deste trabalho, especialmen- te a teoria sobre os anéis de Saturno e as nebulosas, sio confirmadas posteriormente pelas observacdes do astrd- nome Herschel (1738-1822). A explicagdo puramente me- canica da formagao do universo que Kant propée per- manece entretanto desconhecida; é s6 nos meados do século XIX que se descobre sua importancia para a ciéncia natural. Com algumas modificagdes na base da hipdtese da origem do mundo (1796) de Laplace, desenvolvida in- dependentemente de Kant, essa explicacdo constitui por muito tempo, sob o nome da “teoria de Kant-Laplace”, uma importante base de discussao da astronomia. Em 1755, Kant obtém em Kénigsberg 0 titulo de mes- tre em filosofia (nunca fez um doutorado), com uma tese sobre 0 fogo: Meditationum quarundam de igne succincta delineatio. Sua conferéncia publica de 12 de junho, Vom leichteren und vom griindlichen Vortrag der Philosophie [So- bre a exposicdo mais superficial e sobre a exposicdo pro- funda da filosofia], é ouvida por um numero muito grande de pessoas doutas ¢ ilustres da cidade. No mesmo ano, Kant obtém a livre-docéncia com 0 estudo Principiorum primorum cognitionis metaphysicae nova dilucidatio [Nova elucidac4o dos primeiros principios do conhecimento me- tafisico]. Passa a ser “magister legens”, correspondente ao atual “Privatdozent”, que nao recebe um salario do Esta- AVIDA E 0 DESENVOLVIMENTO EILOSOFICO 9 do e vive dos ganhos da livre-docéncia e das aulas par- ticulares para estudantes. Kant ataca na Nova dilucidatio a metafisica da esco- la wolffiana, uma elaboracao sistematica da filosofia de Leibniz. Ele discute a relagao do principio real de razao su- ficiente de Leibniz com o principio légico de contradicdo. Kant esta de acordo com Christian August Crusius (1715- 1775), discipulo independente de Leibniz e critico de Wolff, em que a tentativa de subordinar o principio real ao prin- cpio légico esta condenada ao fracasso. Assim, ele ques- tiona o suposto basico do racionalismo wolffiano segundo 0 qual todos os principios do conhecimento podem ser reduzidos finalmente a um Gnico principio comum. Kant esta, entretanto, ainda longe de chegar & sua tese poste- tior sobre a natureza sintética de todo conhecimento da realidade. Kant continua se dedicando a questées das ciéncias naturais. Naquela época no existe ainda uma separacdo rigorosa entre conhecimento empirico e conhecimento filos6fico da natureza. Kant escreve sobre “tremores de terra observados desde algum tempo”, sobretudo sobre aquele terremoto que em 12 de novembro de 1755 des- truiu dois tergos da cidade de Lisboa e fez. com que a ques- tao da teodicéia, da justificacdo de Deus ante a sofrimento humano no mundo, se tornasse muito discutida em toda Europa. Jd transluz, neste escrito, a primazia, posteriormen- te central, da razao pratica sobre a raz4o teérica (1460). Muito moderna parece a definicao das menores par- ticulas enquanto “forga que enche o espaco”, que Kant di na Monadologia physica (1756), 0 terceiro tratado, depois do De igne e da Nova dilucidatio, cuja disputa publica cons- tituiu o pré-requisito para a cadeira de professor extraor- dindrio do “Extraordinariat”. Importante para a ciéncia 10 IMMANUEL KANT natural é a explicagéo de Kant sobre a origem dos ventos alfsios e das moncdes (Neue Anmerkungen zur Erlduterung der Theorie der Winde [Novas observac6es pata a explica- cdo da teoria dos ventos], 1756). 2.3 O professor bem-sucedido e mestre elegante No outono de 1755 Kant inicia sua atividade docente, um trabalho penoso (cf. Briefe, vol. XII: 13/8), de aproxi- madamente 16 horas semanais, que por razdes econdmi- cas se elevam as vezes a 20 ou mais horas. Por isso, os pri- meiros anos da docéncia académica de Kant sao em termos de publicag6es um periodo de siléncio; entre os anos de 1757 e 1761 nenhum escrito importante é publicado. No ano de 1756, e mais uma vez em 1758, 0 fildsofo concorre para uma catedra extraordinaria de logica e me- tafisica. No entanto, essa vaga, sem titular desde a morte de Knutzen, cinco anos antes, continua desocupada por causa da ecloséo da Guerra dos Sete Anos. Igualmente sem sucesso ficam os seus esforcos para conseguir a vaga de professor titular de légica e metafisica, que é preen- chida pelo seu colega de mais idade F. J. Buck. No verao de 1764 Kant recusa a oferta de uma catedra de arte poé- tica, que inclui, entre outras, a tarefa de redigir as mensa- gens de saudacdo ao rei. Apenas no ano de 1766 obtém seu primeiro cargo remunerado, modestamente dotado, de um vice-bibliotecdrio da biblioteca real. Apesar dos seus grandes éxitos cientificos e pedagdgicos, Kant tem que esperar até o ano de 1770, isto é, até a idade de 46 anos, para conseguir a ansiada catedra de légica e metatisica. Nao obstante, havia recusado no outono do ano anterior um convite da Universidade de Erlangen e outro da Uni- AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO TL versidade de Jena, alegando seus vinculos com sua cida- de natal, seu grande circulo de amigos e sua débil satide. Como é uso da sua época, Kant nao expée sua pré- pria filosofia. Nao é s6 no periodo pré-critico que Kant en- sina com base em manuais (Kompendien); a ldgica segundo a Vernunftlehre de G. F. Meier (1718-1777), sucessor de Wolff em Halle; a ética e a metafisica freqiientemente se- gundo A. G, Baumgarten (1714-1762), um discipulo autd- nomo de Wolff; o direito natural segundo o Ius naturale do jurista Achenwall, de Géttingen etc. Apesar disso, suas aulas nao so meras pardfrases de um pensamento pre- fabricado, trata-se, pelo contrario, de um “discurso livre, sazonado de graga e humor. Freqiientemente citagdes e alusées a escritos que tinha acabado de ler; as vezes anedo- tas, ainda que sempre pertinentes” (Borowski, em: Gross, 86). Mais que qualquer outro de seus colegas, Kant sabe ensinar nao a filosofia, mas o filosofar: um pensar critico e livre de preconceitos. Kant possui uma imaginac30 mui- to viva e ao mesmo tempo exata; numa ocasiao ele sur- preende a um inglés com sua descricdo extraordinaria- mente precisa da ponte de Westminster. O filésofo tem um grande afa de saber e por isso estd familiarizado com um numero bastante grande de areas de pesquisa de sua épo- ca; nao é somente um teérico sagaz, mas gosta também de estudar no “livro do mundo”. Suas aulas, que sempre estimulam a propria reflexao, despertam grande interesse, desde o inicio. O piiblico, uma mistura de prussianos e estrangeiros, sobretudo bilticos, tussos e polacos, “tem quase idolatrado” Kant por varios decénios (Jachmann, em: Gross, 135 s.). No trato pessoal, 0 jovem livre-docente mostra um calor humano e uma cordialidade que nao esperarfamos encontrar em Kant. Entre seus alunos encontramos 0 poeta e filésofo Johann 12 IMMANUEL KANT Gottfried Herder (1744-1803), que chama imediatamente a atengao de Kant. (Na sua Abhandlung iiber den Ursprung der Sprache, de 1772, Herder antecipa idéias importantes das ciéncias e da filosofia modemas: a abertura ao mundo, a limitagdo organica e instintiva do homem, a dependén- cia de sua capacidade lingiiistica da imperfeicao e a in- terdependéncia de linguagem e pensamento. Mas esta- belece também o fundamento para sua posterior critica a Kant (cf. mais adiante, capitulo 14.1). Nas suas aulas Kant revela a extraordinaria amplitude de seu horizonte. Nao ensina somente légica e metafisi- ca, mas também fisica matematica e geografia fisica (uma disciplina académica que ele mesmo introduz com muito orgulho), antropologia e pedagogia (a partir.do semestre de inverno de 1772-1773), filosofia da religiao (teologia natural), moral, direito natural (a partir do semestre de in- verno de 1766-1767), enciclopédia filos6fica (a partir de 1767-1768) e até mesmo fortificagao e pirotecnia. Varias ve- zes, Kant chega a ser decano da sua faculdade, e nos dois semestres de verdo de 1786 e 1788, reitor da universidade. Apesar de toda sua dedicagao ao ensino e a investi- gacao cientifica, estas atividades ocupam somente a pri- meira metade de sua jornada. A outra metade pertence a vida social. Junto com amigos e conhecidos, Kant passa o tempo em extensos almogos, jogando bilhar e cartas e fre- qiientando 0 teatro e os mais renomados sal6es da cida- de. Na sua qualidade de debatedor brilhante, Kant se tor- na um héspede muito apreciado. Maria Charlotta Jakobi, a esposa de um amigo banqueiro e conselheiro titular co- mercial, uma das mais solicitadas e também mais comen- tadas mulheres de K6nigsberg, borda uma corda de espa- da“ para o grande fildsofo” e lhe manda “um beijo de sim- patia” (Briefe, 24/14). No salao da condessa de Keyserling ha sempre um lugar de honra para Kant. O fildsofo de Ké- AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 13 Figura 3. Kant e seus contemporaneos. Litografia segundo uma pin- tura de Dérstling. nigsberg Johann Georg Hamann (1730-1788) j4 teme que Kant seja retirado de seus projetos cientificos pelo rede- moinho das distragdes sociais. “O senhor magister Kant era nessa época realmente o mais galante homem do mundo: andava de vestidos bordados, usava um postillion d'amour e visitava todas as tertilias” (Battiger, I, 133). Provavelmente, a atitude alegre de Kant é favorecida em parte pela primeira ocupagao russa de Kénigsberg nos anos 1758-1762. O espirito liberal da ocupagiio trouxe para “a velha e antiquada cidade toda a amplitude e 0 cosmo- politismo do estilo de vida oriental” (Stavenhagen, 21). Ahierarquia social torna-se mais flexivel, a severidade pie- tista cede a uma atitude mais livre e a austeridade prus- siana a um estilo de vida quase luxuoso. Também Kant “participa animadamente dos encontros sociais nas resi- déncias e nos cassinos de oficiais” (Stavenhagen, 19). 14 IMMANUEL KANT Corresponde a vida elegante de cosmopolita o estilo das publicagées, com as quais Kant ganha o seu primei- ro renome literério na Alemanha. Por mais que Heine ironize (75) o “estilo acartonado, cinzento e seco” da Cri- tica da razéo pura, pelo qual Kant pretende “distinguir-se dos filésofos populares de seu tempo, preocupados com a clareza mais burguesa”, ele elogia 0 estilo elegante das primeiras publicag6es: “repletas de bom humor, ao modo dos ensaios franceses”. 3. A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL CRITICA 3.1 A caminho da Critica da razaéo pura Depois do ano de 1761 Kant mostra de novo uma ad- miravel produtividade. Os pensadores que mais o influen- ciam sao, na filosofia tedrica, David Hume (1711-1776) e, na filosofia pratica, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cujo retrato é o Gnico adorno que se encontra no escrité- rio de Kant. Kant se ocupa dos problemas classicos da me- tafisica, como as provas da existéncia de Deus e os fun- damentos da moral. Todavia, reconhece cada vez mais claramente as dificuldades para resolver esses problemas com os recursos tradicionais de pensamento. Ao fim se vé obrigado a deixar de lado a metafisica e a desenvolver uma “ciéncia propedéutica” (Il 395) a fim de preparar 0 terreno para uma metafisica futura. Inicialmente Kant se integra ao movimento do esclarecimento tardio alemao. Igual a este movimento, e contra o método sintético de Wolff, ele entende a filosofia como anilise. Kant inicia uma amistosa correspondéncia com notaveis representantes do esclarecimento alemo, assim como, desde 1765, com A VIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 15 0 filésofo e matematico Johann Heinrich Lambert (1728- 1777) e, desde 1766, com o precursor da emancipacao do judaismo na Alemanha, Moses Mendelssohn (1729-1786), amigo de Lessing e do editor Nicolai. Mas a “propedéuti- ca da metafisica” de Kant se transforma finalmente numa filosofia radicalmente nova e claramente distanciada do movimento iluminista alemao; a Critica da razdo pura se entende, em oposicao deliberada a analise, como filoso- fia da sintese. No tratado Der einzig mégliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes [O tinico argumento pos- sivel para uma demonstragao da existéncia de Deus], de final de 1762, com data de publicagéo de 1763, 0 exame das provas especulativas da existéncia de Deus nao re- sulta ainda t&éo negativo como na Critica da razio pura. Nao obstante, j4 formula a tese que seré mais tarde de im- portancia central: “A existéncia nao é nenhum predicado” (1 72), Refuta trés dos argumentos tradicionais da existén- cia de Deus e recusa também a formulacao cartesiana da quarta, da prova ontolégica; mas atribui a uma outra ver- sao toda a forca “que se exige de uma demonstracdo” (II 161). No entanto, Kant nao oferece a demonstrago com- pleta, mas apenas desenvolve o fundamento da prova. A Untersuchung iiber die Deutlichkeit der Grundsiitze der natiirlichen Theologie und der Moral [Investigagao so- bre a nitidez dos principios da teologia natural e da moral], concluida em 1762, porém publicada em 1764, é contem- plada com 0 segundo prémio da Academia de Ciéncias de Berlim; o primeiro prémio é outorgado a Mendelssohn. O escrito premiado permanece ainda inteiramente no campo da andlise. Igual aos fildsofos analiticos de hoje, Kant est convencido de que na filosofia e, sobretudo, “em metafisica deve-se proceder de modo analitico, uma 16 IMMANUEL KANT vez que ela visa aclarar conhecimentos confusos” (II 289). Kant exige, nao s6 para os principios da teologia natural, mas também para os da moralidade, o maximo grau de evidéncia filosdfica. Nao obstante, seria preciso “primei- ramente verificar” se na ética tem razao o racionalismo ou 0 empirismo, ou seja, “se é somente a faculdade de co- nhecimento ou o sentimento (0 fundamento primeiro, in- terno da faculdade de desejar) o que decide sobre os seus primeiros principios” (II 300). Com o ensaio premiado e o escrito sobre a existéncia de Deus, Kant se torna conhe- cido em toda a Alemanha, mas também ja esta provo- cando certas criticas. Uma primeira autocritica a filosofia como andlise en- contra-se no escrito Versuch den Begriff der negativen Gréos- sen in die Weltweisheit einzuftihren [Tentativa de introdu- zir o conceito de grandezas negativas na filosofia] (1763). Kant destaca 0 carter distinto do conhecimento metafi- sico ante o conhecimento matematico e di muito valor 4 diferenga entre uma oposicao real e uma contradigao 16- gica, j4 que tanto a oposicao real quanto o fundamento real (a causa de um efeito) escapam a qualquer conheci- mento analitico. No tratado Traume eines Geistersehers, erlautert durch Trdume der Metaphysik [Sonhos de um visiondrio esclare- cidos pelos sonhos da metafisica] de 1766, Kant mostra com o exemplo do visiondrio sueco (“grande fantasista”) Emanuel Swedenborg (1689-1772) como — na medida em que se abandona o fundamento seguro da experiéncia — pode-se incorrer por via estritamente logica nas mais es- tranhas conclusées e sistemas. Aqui Kant se afasta defini- tivamente da doutrina metafisica racionalista de Leibniz e de Wolff, como também da teoria dos seus “seguidores” independentes, A. G. Baumgarten e C. A. Crusius. Kant ja AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 17 nao define a metafisica como um sistema racional, mas como “uma ciéncia dos limites da razio humana’, sem ain- da poder, no entanto, fixar exatamente esses limites (II 368). Determinar esses limites claramente sera doravante sua tarefa principal. Assim, Kant se encontra com a nova teoria inglesa do conhecimento, sobretudo a teoria cética e empirista de David Hume, de quem ele dird mais tarde que “ele primeiro me despertou do sono dogmatico e deu um outro rumo a minhas investigagdes no campo da filo- sofia especulativa” (Prol., IV 260). Kant se deixa convencer pela critica de Hume a metafisica dogmética (An Enquiry concerning Human Understanding, 1748), sem reconhecer, no entanto, as suas conclusdes empiristas e céticas. Se- gundo Hume, o principio da causalidade tem sua origem no costume; para Kant, no entendimento puro. No caminho em direcdo 4 filosofia critica, a disserta- ga0 De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis [Sobre a forma e os principios do mundo sensivel e inte- ligivel] (1770), que Kant escreve para obter a cétedra de professor, tem uma particular importancia. Kant oferece aqui um “exercicio preliminar” (propedéutica) 4 metaff- sica. Como esta enquanto filosofia pura nao contém prin- cipios empiricos (§§ 8 e 23), é necessdrio fazer um corte radical entre duas formas de conhecimento, a saber: 0 co- nhecimento sensivel das coisas tal como aparecem (phae- nomena) e o conhecimento inteligivel das coisas tal como sao (noumena). Kant ainda afirma, com base nos conceitos puros do entendimento, as futuras categorias, algo que ele negara posteriormente na Critica da raziio pura: a pos- sibilidade de um conhecimento das coisas em si, um co- nhecimento que ultrapassa 0 saber matemiatico e a expe- riéncia e independe da sensibilidade. No entanto, Kant ja dispde de alguns pressupostos importantes de sua critica transcendental da raz4o. O co- 18 IMMANUEL KANT nhecimento dos fenémenos, diz ele, € um conhecimen- to inteiramente verdadeiro (§ 11). A intuicéo nao é um conhecer confuso (§ 7), e sim uma fonte genuina de co- nhecimento. As representacGes de espaco e de tempo nao se originam nos sentidos; sao intuigoes puras subjacen- tes a estes que constituem as condigdes gerais, porém sub- jetivas, para coordenar todo o material sensivel (§§ 13-15). E a matemiatica pura que investiga a forma de todo o nosso conhecimento sensivel (§ 12). Com respeito a éti- ca, Kant afirma que os conceitos morais sao conhecidos por meio do entendimento puro; por isso pertencem a filosofia pura (§§ 7 e 9, cf. Briefe, 54/33), Como critério, estabelece, no entanto, a perfeicao (§ 9), que posterior- mente rejeita como principio. Para que a filosofia pura, a metafisica, seja possivel como ciéncia e néo “empurre eternamente sua pedra de Sisifo”, deve preceder a ela o método (§ 23). Segundo a sua mais importante prescricao, “é preciso ter muita cau- tela com que os principios proprios do conhecimenio sensivel nao ultrapassem os seus limites nem afetem o intelectual” (8 24). No sentido da futura dialética transcendental, a disserta- ¢ao termina com a tentativa de esclarecer os principios que permitem explicar como a metafisica cai em enganos ao misturar o conhecimento puro do entendimento com elementos sensiveis (§§ 24-30). Primeiramente, Kant apenas pretende revisar a disser- tagdo e amplia-la em “algumas paginas”. Com esse inten- to, no entanto, se envolve em um processo de reflexdo que se estendera por mais de dez anos, contra toda expecta- tiva e apesar da impaciéncia tensa e até das queixas oca- sionais de seus amigos e admiradores (cf. Briefe, 101/66). sobretudo a correspondéncia com seu discipulo predile- to e futuro amigo Marcus Herz (1747-1803) que mostra AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 19 como Kant esbo¢a planos e projetos em abundancia, que sao revisados permanentemente e se anulam uns aos ou- tros; 0 caminho até a filosofia critica nao se mostra nada retilineo, A esses projetos pertence uma Phaenomenologia generalis que, no entanto, nao é — antecipando a Fenomeno- logia do espirito de Hegel - uma “ciéncia dos fendmenos da consciéncia”, mas — mais proxima de Lambert — uma “ciéncia da consciéncia dos fendmenos”. Um projeto am- pliado e finalmente deixado de lado orienta-se até os limi- tes da sensibilidade e da raziio. Nele Kant aborda a questo “como meu entendimento pode formar para si mesmo conceitos totalmente a priori dos objetos, com os quais as coisas devem concordar necessariamente” (Briefe, 65/42). A resposta, a saber, a “deducao transcendental dos con- ceitos do entendimento puro” da Critica da raziio pura, corrige profundamente a posigdo fundamental da disser- tagao de 1770. Quanto ao entendimento, Kant afirma ago- ra que ele € incapaz de conhecer as coisas; as categorias nao possibilitam nenhum conhecimento real do mundo inteligivel, mas nada mais sao do que uma antecipagao de toda experiéncia possivel. ambém a problemética das antinomias, cujo inicio remonta aos anos 50 (cf. Monado- logia physica, 1756), aparece numa nova versio. Nao é mais a confusao entre sensibilidade e entendimento, mas a confusao entre fendmeno e coisa em si o que constitui a raiz daquelas contradigdes em que a razAo se envolve ne- cessariamente. Com efeito, € possivel descobrir as anti- nomias como tais, mas nao as eliminar; a dialética passa a ser uma caracteristica constitutiva da razdo humana, o si- nal de sua finitude. Faralelamente a revisdo dos problemas ocorre na “dé- cada silenciosa” (Dilthey) uma revisao profunda dos con- ceitos (cf. Briefe, 101/66). Kant, que nao gosta de introduzir 20 IMMANUEL KANT novos termos, adota expresses como “percep¢ao”, “in- tuigdo” e “puro” do Essay de Locke e dos Nouveaux essays de Leibniz; expressdes como “categoria”, “transcendental”, “analitica” e “dialética” provém da tradigao aristotélica alema; “antinomia”, “paralogismo” e “anfibolia” encon- tramos em manuais do século XVII. Ao fim, 0 vocabulé- tio da primeira Critica mudou profundamente em com- paracao com o periodo pré-critico (cf. Tonelli, 1964). 3.2 A realizacao da filosofia transcendental critica Depois de um periodo de mais de dez anos em que reflete, projeta e rejeita varias tentativas de solucdo, Kant escreve a Kritik der reinen Vernunft [Critica da razdo pura] “em quase quatro ou cinco meses, quase a bala” (Briefe, 188/115, cf. 187/114). A redacdo acelerada de uma obra tao imensa quantitativamente faz supor que Kant recorreu a extensos trabalhos prévios. Esta circunstancia e a falta de tempo para “dar a cada parte, com a lima na mao, o seu acabamento, o seu polimento e sua agilidade” (ibid.}, ex- plicam “alguns desalinhos ou precipitagdes no estilo e também algumas obscuridades” (Briefe, 155/99). Depois de um pericdo de 11 anos sem publicagao, que contrasta fortemente com a forca expressiva do movi- mento contemporaneo de Sturm und Drang, aparece fi- nalmente, em maio de 1781, a primeira das obras princi- pais de Kant, impacientemente esperada por amigos e colegas, segundo Schopenhauer, “o mais importante li- vro jamais escrito na Europa” (Ges. Briefe, ed. por A. Hiibs- cher, n? 157). O laborioso professor universitario, o inves- tigador e escritor filosdfico apreciado por muitos, porém considerado por outros — por exemplo, pelos académicos AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 21 de Géttingen — como mero diletante, mostra-se agora, aos 57 anos, um génio filos6fico. Primeiro, no entanto, Kant observa consternado que seu livro fica quase sem repercussao. Moses Mendelssohn, cujo juizo espera com especial interesse, dispensa irritado a leitura da obra “capaz de consumir os nervos” (Briefe, 174/108; 153/97). Na prestigiosa revista Géttingische An- zeigen von Gelehrten Sachen, de 19 de janeiro de 1782, apa- rece uma critica anénima, salpicada de malévola ironia, tedigida pelo “fildsofo popular” Christian Garve (1742- 1798), e extremamente abreviada pelo editor J. G. H. Feder. O professor de matematica de Konigsberg Johann Schultz, um dos colegas mais préximos de Kant, expressa a atmos- fera reinante ao declarar com pesar nas suas Erlduterun- gen iiber des Herrn Professor Kant Critik der reinen Vernunft [Comentdrios acerca da Critica da raziio pura do Sr. Pro- fessor Kant] (1784) que até fildsofos profissionais se quei- xam da obscuridade insuportavel e da incompreensibili- dade desse escrito, e mais: que ele parece “mesmo para a maioria do publico erudito como se estivesse escrito em hierdglifos” (segundo Vorlander, I 286). Apesar disso Kant est4 convencido de que “o pri- meiro atordoamento, gerado por uma quantidade de con- ceitos completamente inabituais e por uma linguagem ainda mais insdlita, se perderé com o tempo” (Briefe, 187/114). De fato, depois de poucos anos a atmosfera muda completamente, a Critica da razio pura desenvolve seu significado secular, que se estende até nossos dias. Apesar das obras de Hegel, Marx, Mill e Nietzsche, apesar de Frege, Husserl, Heidegger, Russell e Wittgenstein, nin- guém poderia indicar um corte mais profundo na histé- tia da filosofia moderna do que o causado pela Critica da razio pura. 22 IMMANUEL KANT Primeiro 0 publico alemao e logo depois o dos pai- ses vizinhos se atrevem a seguir “as espinhosas sendas da critica” (B XLII) e descobrem o seu carater filosofica- mente explosivo. Kant é tema de discussao em todas as partes e sua fama vai além das fronteiras da Alemanha. O filésofo de Kénigsberg recebe numerosas distingdes; em 1786, é nomeado membro da Academia de Ciéncias de Berlim, em 1794, da de Sao Petersburgo e, em 1798, da de Siena. Depois da primeira Critica aparece em rapida suces- sao um grande numero de outros escritos. Nas Prolegome- na zu einer jeden kiinftigen Metaphysik die als Wissenschaft wird auftreten kinnen [Prolegomena (“notas preliminares”) a toda metafisica futura que possa apresentar-se como ciéncia] (1783), Kant, provocado pela recepcao tardia e por mal-entendidos fundamentais, da uma introdugao resumida a critica transcendental da razao, usando o”“mé- todo analitico” em vez do “método sintético”. Seguem-se o escrito fundamental sobre a filosofia da historia Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbiirgerlicher Absicht [Idéia de uma historia universal de um ponto de vista cosmopo- lita], o tratado Beantwortung der Frage: Was ist Aufkldrung? [Resposta a pergunta: que é esclarecimento?] (ambos de 1784) e sua primeira grande obra sobre filosofia moral, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten [Fundamentacao da metafisica dos costumes] (1785). Exatamente cem anos depois da obra revolucionaria de Newton Philosophiae naturalis principia mathematica, e com evidente alusao a este famoso titulo, aparece, em 1786, Metaphysische Anfangsgriinde der Naturwissenschaft [Principios metafisicos da ciéncia natural] com a inten- ¢ao de determinar o ambito dos principios @ priori na fi- sica. Depois da segunda edigao, substancialmente modi- AVIDA E 0 DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 23 ficada, da Critica da razito pura (1787), so publicados a Kri- tik der praktischen Vernunft (Critica da razao ptatica] (1788), a Kritik der Urteilskraft [Critica do juizo] (1790) e Die Re- ligion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft [A religiao dentro dos limites da simples razéo] (1793). Por causa des- te escrito Kant entra em conflito com a censura prussiana. 3.3 O conflito com a censura A vida de Kant coincide primeiro com o reinado dos reis prussianos Frederico Guilherme I, 0 Rei Sargento (1713-1740), e Frederico II, 0 Grande (1740-1786), dois representantes exemplares do absolutismo ilustrado. Do ponto de vista juridico, todo poder politico se concentra na coroa da Prussia, que com a anexacao da Silésia e da Prissia Ocidental se converte numa grande poténcia eu- ropéia. Na realidade constitucional, entretanto, os poderes corporativos intermédios desempenham um papel im- portante. Sobretudo na época do Rei Sargento surge, por iniciativa do governo, um Estado de bem-estar social au- toritario, com um exército desproporcionadamente forte, com uma politica econémica mercantilista que serve tan- to a corporagao militar quanto ao desenvolvimento de um pais pobre em recursos, com uma burocracia moder- na, um sistema fiscal rigoroso e um regime juridico orde- nado. A rentincia de ambos os reis a justica de gabinete, assim como 0 reconhecimento de uma jurisdicdo inde- pendente, a amenizacao da justica penal e a abolicao da tortura, 0 exame estatal e a remuneragdo dos juristas, a criagao de instancias juridicas uniformes e de cédigos de processos criminais, penais e penitencidrios: tudo isso faz com que a Pnissia se transforme de um Estado policial 24 IMMANUEL KANT num Estado de Direito com diviséo de poderes e numa das comunidades mais progressistas da época. Sobretudo a tolerancia confessional da Prussia é exemplar. Ja Frederico Guilherme I cuidava muito dela, e Frederico II, o apreciador e conhecedor da literatura e da filosofia francesas, faz da tolerancia definitivamente um dos valores fundamentais do Estado prussiano. Os per- seguidos por motivos religiosos sao sempre bem recebi- dos na Prussia, como os huguenotes expulsos da Franga ou os catélicos da Boémia e Moravia e de Salzburgo; tam- bém os judeus nao ficam excluidos da reforma estatal. Conforme o Allgemeinen Landrecht fiir Preussischen Staa- ien [Codigo geral de direito territorial para os Estados prus- sianos], elaborado por Frederico Il e aprovado por seu sucessor, ninguém pode ser molestado por suas convic- Ges religiosas, nem pode ser interrogado, zombado nem perseguido por isso, Com tais disposigdes constitucionais, a Prissia alcanga um grau de liberdade religiosa que nao dista muito daquele dos recém-constituidos Estados Uni- dos da América, e que a Gra-Bretanha s6 alcancaria du- rante o século XIX. Nao obstante, o privilégio da aristo- cracia e a submiss4o dos camponeses aos senhores ainda permanecem, extremos que Kant critica. Pois também os camponeses da regio oriental, originariamente livres, tor- naram-se, entretanto, dependentes da aristocracia sem direito garantido de herdar suas terras e tratados como servos, ja que a aristocracia nao pode explorar seus lati- fiindios sem a servidao feudal. O sucessor de Frederico o Grande, Frederico Guilher- me II (1786-1797), leva adiante s6 em parte a abertura para um Estado de direito ilustrado. Embora promulgue o Cédigo Geral no ano de 1794, na realidade poe fim a tolerancia de seus predecessores com o Edito de Religiao AVIDA EO DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 25 (1788) de seu ministro J. Chr. von Willner. Este decreto coloca Kant numa situagao delicada quando ele apresenta seu escrito sobre a religiao 4 mal-afamada Immiediat-Exa- minations-Kommission de Berlim, sem estar obrigado a fazé-lo, ja que o escrito devia aparecer na revista Berlinis- che Monatsschrift, que é imprimida em Jena, e portanto no exterior. Apesar disso, a censura deixa passar a primeira parte sem reclamacao. Nega, no entanto, a licenga de im- pressdo a segunda. Entdo Kant resolve publicar juntas as quatro partes do escrito em forma de livro. Para obter a licenga de impressao, ele se dirige 4 Faculdade de Teolo- gia Konigsberg, a fim de esta aclarar a questao prévia se 0 escrito cabe ao 4mbito de competéncia da teologia (Brie- fe, 4941293), Depois de receber uma resposta negativa desta Faculdade, Kant se dirige ao decano da Faculdade de Filosofia do lugar da impressao, Jena, e obtém o impri- matur. Apesar disso, seu caso continua sendo tratado em Berlim: 0 préprio rei intervém contra Kant. Enquanto na Alemanha ja circulam boatos sobre um processo inquisi- torial contra Kant, sobre sua exoneracao, seu desterro e sua emigracao, 0 filésofo publica, em junho, seu segun- do tratado de filosofia da religiao, Das Ende aller Dinge [O fim de todas as coisas] (1794), uma obra magistral de iro- nia filosdfica, tingida de melancolia. Em clara alusao a po- litica religiosa prussiana, Kant fala de um cristianismo, que, em vez de armar-se de “amabilidade moral”, aparece “armado de autoridade despética”, de soberania do “An- ticristo”, que iniciara assim “seu breve governo, baseado provavelmente no medo e no egoismo” (VIII 339). Evi- dentemente, Kant conhece o risco de tais declaracdes e esta preparado para qualquer eventualidade: “Convenci- do de ter agido sempre com toda escrupulosidade e den- tro da legalidade, espero com tranqiiilidade o fim desses procedimentos curiosos” (Briefe, 590/345). 26 IMMANUEL KANT Figura 4. A casa de Kant em Kénigsberg, segundo um desenho de 1844. Em 1? de outubro de 1794 é publicada, assinada por Willner, uma ordem de gabinete de Frederico Guilher- me II, que diz que Kant “abusara de sua filosofia para de- turpar e menosprezar algumas doutrinas fundamentais da Sagrada Escritura e do Cristianismo” e faltara com o seu “dever como instrutor da juventude”. A ordem exige de Kant, com seus 70 anos no auge de sua fama, que se abs- tenha, daf em diante, de ensinar tais idéias, “a fim de nao cair em nossa desgraga”. Wéllner conclui ameagando que “pot ordem especial da Sua Majestade Real, Vossa Se- nhoria, em caso de desobediéncia, terd que contar inevi- tavelmente com medidas desagradaveis” (Fak., VII 6). Na sua extensa resposta, Kant contesta a acusa¢ao le- vantada contra ele. Como “instrutor do povo”, ele nao pode ter ofendido a “religido do Estado”, j4 que o escrito sobre a AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 27 religiao “representa para 0 ptiblico um livro incompreen- sivel e fechado, e somente um assunto a tratar entre pro- fessores da Faculdade”. De resto, alega que a obra nao con- tém “nenhuma apreciagao do cristianismo”, de modo que “também nao pode ser culpada de uma depreciagiio dele: pois, na verdade, contém apenas uma apreciacao da re- ligido natural” (Fak., VIL 8; cf. Briefe, 607/356). Apesar disso e para surpresa de seus amigos e adversarios, Kant con- clui sua resposta com uma rentincia a qualquer outra ma- nifestagdo no ambito da filosofia da religiao (Fak., VII 10) — pelo menos enquanto 0 rei viver. 3.4 A obra da senectude Jé durante a longa preparacao da Critica da razéio pura muda o estilo de vida de Kant. O mestre elegante passa a ser 0 sabio solitdrio que leva uma vida concentrada e até pedante, comentada com simpatia pelos primeiros bié- grafos, mas por Heine, muito pelo contrario, com escarnio. Sem o planejamento minucioso do dia, com sua exata se- paracao de trabalho cientifico e vida social, sem o esforco permanente de evitar chamar a atengao e de esquivar toda popularidade (cf. Briefe, 70/48, 121/79), Kant, desde seu nascimento de satide fraca, de baixa estatura e até um pouco aleijado, dificilmente poderia ter levado a cabo seu extenso programa docente e, sobretudo, sua imensa obra de investigagao, Pertence também ao perfil do velho Kant o estilo das suas cartas, que carecem de qualquer referén- cia privada ao destinatédrio. Fora das repetidas observacdes sobre a instabilidade da sua satide, nao hé lugar para as “banalidades” da vida cotidiana, para comentarios sobre 0 tempo, a natureza ou 0 respectivo estado de animo.Tem- oR IMMANUEL KANT se a impressdo de que em sua velhice Kant mostra uma certa timidez. No entanto, melhor seria dizer 0 seguinte: somente por meio da rigorosa retragaéo de sua pessoa na obra, Kant consegue elaborar passo a passo sua filosofia transcendental critica e colocar com isso novos parame- tros ao pensamento europeu. O primeiro escrito que Kant publica depois do con- flito com a censura é 0 tratado de filosofia do direito e da histéria Zum ewigen Frieden [A paz perpétua] (1795). A exposi¢ao sistematica da filosofia do direito aparece, no entanto, pela primeira vez na Metaphysik der Sitten [Me- tafisica dos costumes] (1797), a saber, na sua primeira par- te Metaphysische Anfangsgriinde der Rechtslehre [Principios metafisicos da doutrina do direito]; a segunda parte, Me- taphysische Anfangsgriinde der Tugendlehre [Principios me- tafisicos da doutrina da virtude], contém a filosofia moral sistematica de Kant. Depois de ter reduzido aos poucos a sua atividade docente nos ultimos anos, em julho de 1796, aos 73 anos de idade, Kant dé o seu tiltimo curso. Dois anos depois publica, além da Anthropologie in pragmatischer Hinsicht [Antropologia sob a perspectiva pragmatica] (1798), 0 es- crito Streit der Fakultdten [O conflito das faculdades], obra essa em que ele, depois da morte de Frederico Guilher- me II, retoma novamente a questao da religido. A partir de 1799 aparecem os primeiros sintomas de declinio; em 1801 Kant se vé obrigado a confiar ao bidgrafo e prega- dor Wasianski a diregdo de seus negécios. Por este motivo nao chega a ser concluida a ultima obra empreendida por Kant, hoje conhecida como Opus postumum. As modifi- cagées substanciais que Kant se propde introduzir mos- tram, como seu desenvolvimento filoséfico no seu todo, que nao entende seu pensamento como uma doutrina ja AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 29 concluida, mas como um processo permanente de ela- boragao de novas idéias e novas questdes. No Opus postumum, Kant pretende reconduzir, pas- 80 a passo, 0 pensar aprioristico ao 4mbito do empirico, para superar 0 abismo entre a critica transcendental da ra- 280 e a experiéncia real. Os planos para uma “transicao” dos Principios metafisicos da ciéncia natural a fisica (Briefe, 781/426) remontam ao come¢o dos anos 90. O primeiro es- bogo sistematico surge em torno de 1796. Um papel de- cisivo desempenha o programa de uma teoria aprioristi- ca da corporeidade. Pois o corpo como sistema de forgas autoconscientes nao cumpre s6 a fungao de um objeto em- pirico; ele 6 também o sistema subjetivo no qual se de- senvolve o movimento da razdo (cf. XXII 357), Sabendo da importancia extraordinaria da sua nova obra, ele se sente profundamente deprimido com 0 pro- gresso lento do seu trabalho (ibid.). No seu tiltimo ano, Kant percebe com tremenda clareza como se esvaem com rapidez suas forgas fisicas e intelectuais. No dia 8 de ou- tubro de 1803 cai gravemente enfermo pela primeira vez em sua vida, e quatro meses depois, em 12 de fevereiro de 1804, as 11 horas da manha de domingo, a morte pde fim 4 sua vida frégil. Aos 28 dias de fevereiro, Immanuel Kant é conduzido “ao toque de todos os sinos da cidade”, em cortejo fanebre, “acompanhado de milhares de pes- soas”, a igreja catedral e universitdria de sua cidade na- tal, e sepultado no jazigo dos professores (Wasianski, em Gross, 306). Acima do seu timulo é colocada mais tarde uma placa comemorativa com a famosa frase da Critica da razio pritica (V 161): "Duas coisas enchem o animo de admiragao e veneragdo sempre novas e crescentes quanto mais freqiiente e mais persistentemente delas se ocupa a reflexao: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em Figura’5. Testamento de Kant, ultima pagina. mim.” Kant, solteiro durante toda a vida e sem filhos, lega a sua irm e aos sobrinhos o montante de 21352 Taler, de qualquer modo mais que 25 ordenados anuais da cate- dra de filosofia de Halle. AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 31 Ainda em vida de Kant sao impressas algumas de suas prelecGes universitdrias, como a Logik (1800), a Physische Geographie (1802) e Uber Padagogik (1803). Mais tarde sao publicadas as prelecdes Uber die philosophische Religions- lehre [Sobre a doutrina filos6fica da religiao] (1817), Die ‘Metaphysik (1821), Menschenkunde oder philosophische Anth- ropologie [Teoria do homem ou Antropologia filosdfica] (1831) e Ethik (s6 em 1924). Conforme desejo expresso de Kant, suas primeiras biografias aparecem somente depois de sua morte. Tl. O QUE POSSO SABER? A CRITICA DA RAZAO PURA 4. O PROGRAMA DE UMA CRITICA TRANSCENDENTAL DA RAZAO 4.1— O campo de batalha da metafisica (“Prefacio” 4 primeira edicdo) Kant denomina a ciéncia fundamental filosdfica, por ele projetada, de filosofia transcendental. Para diferen- cid-la da filosofia transcendental medieval, pode-se falar de filosofia transcendental critica. Kant a desenvolve pri- meiro com referéncia a razao como faculdade de conheci- mento. Esta ele chama também de razao teérica ou espe- culativa, a diferenga da razdo pratica, ou seja, da faculdade de desejar. Por isso a primeira critica pode ser chamada mais exatamente “critica da razo especulativa pura” (B XXII). O fato de Kant renunciar ao adjetivo adicional indi- ca que ele, ao redigir esta obra, estava pensando somente numa unica critica da razdo. “Ainda que as vezes a argumentac&o tome um cami- nho sinuoso nos seus pormenores, a Critica da razio pura 34 IMMANUEL KANT é, no seu conjunto, uma obra bem composta. O “prefa- cio” primeira edigao expde, num tom dramatico, a trd- gica situacgao em que se encontra a razao humana, uma situagao que exige a sua propria critica, determinando as investigagGes seguintes e encontrando seu desenlace so- mente depois de uma grande volta na segunda parte, a saber, na “Dialética”. Sem explicagées prolixas Kant nos confronta com a condicao precaria da metafisica, a qual aparece como ne- cessdria e ao mesmo tempo impossivel. Pois impéem-se a razao humana certas questdes que ndo podem ser rejei- tadas, mas tampouco podem ser respondidas (A VII). Tais questdes ndo podem ser rejeitadas porque a razao busca, ante a variedade de observagGes e experiéncias, certos prin- cipios gerais que revelem essa variedade, néo como um caos, sendéo como um todo estruturado, como coesao e unidade. Ja as ciéncias naturais procuram por tais princi- pios, que elas unificam em teorias gerais. A metafisica nao quer outra coisa a nao ser continuar perguntando até o final, em vez de parar a meio caminho. A interrogacao se completa com certos principios que nao estado ja condi- cionados por outros; os principios ultimos s4o incondicio- nais. Enquanto a razao se mantiver na experiéncia, sem- pre vai encontrar condi¢des cada vez mais remotas, mas nunca algo incondicionado. Para poder, apesar disso, pdr fim a interrogacao, a raz4o “recorre a principios... que transcendem toda experiéncia possivel, mas que parecem, nao obstante, tao insuspeitos que até o senso comum consente com eles” (A VIII). Parece que o ultimo funda- mento da experiéncia se encontra além de toda a expe- riéncia. Por isso sua investigac&o se chama metafisica, li- teralmente: além (meta) da fisica, da natureza. A tentativa de obter conhecimentos independente- mente da experiéncia precipita a razdo “em escuridao e O QUE POSSO SABER? A CRITICA DA RAZAO PURA 35 contradi¢ées” (ibid.). Por um lado, mostrard Kant mais tar- de, ha boas razGes para afirmar que o mundo tem um co- meco, que Deus existe, que a vontade é livre e a alma é imortal; por outro lado, podemos também encontrar boas tazGes para afirmar 0 contrdrio, assim como que nao é possivel dizer qual é a posigao certa. Como os principios afirmados devem formar a base da experiéncia, parece na- tural verificd-los na experiéncia. Mas esta nao pode ser o critério, j4 que os principios metafisicos estao, por defi- nigao, além de toda experiéncia. Aquilo que constitui a metafisica, a saber, 0 transcender da experiéncia, é tam- bém a razao de que ela seja impossivel como ciéncia. NAo 820 obstaculos externos que se opdem A metafisica. E sua propria natureza, ou seja, o conhecimento independen- te da experiéncia ou conhecimento puro da raz4o, que a estorva; assim, a metafisica se torna campo primordial de disputas intermindveis (A VID. A primeira das partes litigantes constitui a metafisi- ca tacionalista, representada na época moderna por no- mes como Descartes, Espinosa, Malebranche e Leibniz, entre outros. Kant pensa, todavia, primeiro na metafisica escolar de Wolff, que nesta época prevalece nas cdtedras universitarias. Wolff considera a experiéncia como fonte genuina de conhecimento, mas acredita, porém, na possi- bilidade de conhecer algo sobre a realidade com o mero pensar (razo pura). Kant toma os racionalistas por dog- maticos e despéticos porque impéem ao homem deter- minadas suposigGes basicas sem critica prévia da razao, por exemplo, que a alma é de natureza simples e imortal, que o mundo tem um comego e Deus existe. As controvérsias entre os dogmiticos fazem com que a metafisica acabe em anarquia, e como segunda parte li- tigante aparecem os céticos, que minam “os fundamentos

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