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I Novas competéncias profissionais A reestruturacdo produtiva transforma a natureza do trabalho e define © novo perfil do trabalhador do século XI, cujas caracteristicas so muito diferentes daquelas dos trabalhadores da organizacio taylorista e fordista do processo de trabalho. Mas, isso nao quer dizer que a reestruturacao das industrias e dos escritérios tenha feito ressurgir 0 trabalhador profissional no sentido tradicional do termo.e, mais precisamente, em seu sentido francés, cunhado por Georges Friedmann em O Trabalho em Migalhas e retomado néo s6 por Alain Touraine, mas também por outros autores como Braverman, Coriat, Freyssenet etc. Ou seja: 0s trabalhadores das industrias e escritérios tecnolégica e organizacionalmente moderizados rea- lizam tarefas altamente qualificadas, mas que no sao préprias de nenhum oficio de base, isto é, que nao pertencem a nenhum conjunto ou familia de trabalhos. Segundo Freyssenet (197, p. 114), “a qualificacéo de um trabalho é medida pelo grau e frequéncia da atividade intelectual que exige para ser executado” Como o grau e a frequéncia da utilizacao das faculdades intelectuais s4o, por sua vez, medidos pelo tempo estritamente necessario de aprendizagem e de instrugo para a realizacdo de uma tarefa ou de um conjunto de tarefas, pode-se afirmar que os trabalhadores das empresas modernizadas sao altamente qualificados, pois deles se exigem instrucao minima de Ensino Médio e muitos cursos de aprendizagem e treinamento. Além disso, embora também realizem tarefas repetitivas, que necessitam muito mais de senso de responsabilidade do que reflexao, os novos traba- Ihadores se submetem a situagées de trabalho aleatérias e indeterminadas que requerem, segundo Davies, qualidades ou qualificagées muito especiais: flexibilidade, adaptacao e iniciativa para enfrenta-las corretamente. Os acon- tecimentos aleatorios e indeterminados, isto 6, imprevisiveis no tempo (as to time) e imprevisiveis em sua natureza (as to nature) impdem intervencdes qualificadas sobre o processo de trabalho, Por isso: 1.9) 0s trabalhadores devem ter um grande repertério de respostas, pois a natureza das intervengoes necessérias ndo é conhecida; 97 Novas competéncias profissionais 98 2.2)no podem depender da hierarquia (supervisors) pois devem respon- der imediatamente aos acontecimentos que intervém de modo irre- gular e repentin 3.°)devem ser autorizados a efetuar as tarefas necessarias com sua propria iniciativa (DAVIES, apud CORIAT, p.115).. Ora, como se sabe, respostas variadas, répidas e de iniciativa propria no so exigéncias que se impdem aos trabalhadores das fases anteriores & automatizacao e/ou informatizagao do processo de trabalho, definidos pela desqualificagao de suas tarefas, mas também nao sao suficientes para carac- terizar 0 trabalhador profissional, cujo trabalho exige, além daquelas qualifi- cages, o conhecimento de um oficio de base que faz dele umonipraticante polivalente’, nas palavras de Georges Friedmann. Suas fungées se realizam a partir de decis6es prdprias, fundadas no conhecimento e controle sobre a totalidade do processo de trabalho e na polivaléncia de suas qualificacées. Determinada, em grande parte, pelo estado das técnicas e dos meios de producao, a evolucao do trabalho implica, segundo Alain Touraine, evoluao na propria nogao de qualificacao, no se podendo definir de maneira perma- nente as diferencas entre trabalhadores de papéis profissionais diversos. A qualificacao, portanto, mede cada vez mais 0 papel do individuo no sistema técnico e humano de producaa, [...] a saber, um conjunto de atividades definidas pelo seu lugar no circuito de producao, que supde certas caracteristicas psicolégicas. (TOURAINE, 1973, p.467) Até a década de 1980, a grande maioria dos estudos sociolégicos sobre 0 mundo do trabalho consagroua tese da polarizacao das qualificacdes, segundo a qual a moderna tecnologia, ao intensificar a divisdo do trabalho, seria respon- savel pelo desenvolvimento de um processo com duplo e contraditério efeito: de um lado, a desqualificagao da grande massa de trabalhadores e, de outro, a superqualificagao de uma minoria, Os estudos mais importantes, como os de Braverman (1980), Freyssenet (1977), Coriat (1978), H. Kern e M. Shumann (1980, € 1984), por exemplo, explicam esse processo pela continua perda do dominio operario sobre o processo de trabalho, iniciada ja na fase manufatureira, € 0 desenvolvimento das especializacées nas fases seguintes, inclusive nas indus- trias automatizadas, cuja tecnologia aprofundaria a desqualificacao dos operé- rios da producao, reduzindo-os a meros vigilantes de méquinas e, ao mesmo tempo, provocaria superqualificagao do trabalho de algumas categorias, como os da manutengao, técnicos, engenheiros e profissionais de informatica. Entretanto, os estudos de meados da década de 1980 para cé tem desmen- tido essa tendéncia e permitido indicar outras, muito mais otimistas, que apon- Novas competéncias profissionais tam para 0 desenvolvimento do processo de requalificacao do trabalho nas empresas modernas. O resultado foi o abandono da tese da polarizacao das qualificacées pelos mesmos autores que contribuiram para a sua aceitacao. Kern e Schumann, por exemplo, em 1981, voltaram as mesmas empresas por eles analisadas nos anos 1960, chegando a conclusées contrarias aquelas que foram objeto de suas preocupacées em Trabalho Industrial e Consciéncia dos Trabalhadores: Nao houve acentuacéo da diviso do trabalho mas, ao contrario, em muitos lugares, sérios esforcos foram feitos para dar aos postos de trabalho definicdes mais amplas. Em lugar de uma degradacdo das qualificagées, a preocupagdo com uma utilizacao mais global da competéncia operdria tornou-se evidente. Nao houve deterioracdo, mas de- senvolvimento da formagao, com renovagao de seu contetido. Numa palavra: 05 compor- ‘tamentos sob tutela foram substituidos, muito frequentemente por comportamentos, independentemente das oposicbes de interesse, de respeito & pessoa do trabalhador. (KERN; SCHUMANN, 1984) A tese da desqualificacao dos trabalhadores desenvolvida enfaticamente por Braverman fol também rejeitada por Jones e Wood com a nocao, por eles introduzida, de “qualificagbes tacitas’, cujo mérito é 0 de demonstrar que qual- quer tarefa, mesmo nos empregos considerados nao qualificados, se realiza a partir de um saber, ou seja, “os trabalhadores utilizam uma certa qualificacao e intervém amplamente em todo o processo de trabalho concebido pelas dire- ‘gOes" JONES; WOOD, 1984). Segundo esses autores, varios aspectos do conhecimento humano determinam a capacidade dos trabalhadores de utilizacao de suas qualificagées e constituem o que denominam conhecimento ou qualificacao tacita’, As dimensdes principais da qualificacao tacita seriam: a pratica das tarefas rotineiras que implica um processo de aprendizagem pelo qual as qualificagées sio adquiridas através da experiéncia; os diferentes graus de consciéncia conforme a atividade a executar e a necessidade de os trabalhadores desenvolverem qualificagées de cooperacao, dada a natureza coletiva do processo de trabalho. A nogao de qualificagées tacitas amplia © conceito de qualificacao do trabalho, nao mais tratando-o apenas como 0 conjunto de conhecimentos e/ou habilidades especificos requeridos para a realizacao de uma tarefa. Além disso, o trabalhador deve trazer consigo um outro conjunto de conhecimentos e habilidades de cardter genérico, no unicamente adquirido de maneira formal, nos cursos de treinamento, por exemplo, sem 0 qual nao seria possivel nem mesmo a aprendizagem do primeiro conjunto. Isso implica afirmar que nao hé trabalho totalmente desqualificado e, evidentemente, quanto maior a complexidade das tarefas a realizar, maior sera o numero de qualificagées tacitas exigidas. Ao mesmo 99 Novas competéncias profissionais 100 tempo, implica negara tese de Braverman sobre o total controle do proceso de trabalho pela direcdo, mesmo nas empresas de tecnologia moderna, pois uma parte desse controle sera sempre exercido pelo trabalhador que faré o maquinario funcionar também em fungao de suas qualificagoes tacitas. Freyssenet, j4na década de 1980 e ainda recentemente, também reconhe- ce 0 desenvolvimento de um proceso de enriquecimento da qualificacao nas empresas modernas, isto é, um proceso de requalificacao do trabalho. Ainda hoje o debate se centraliza em torno do que Piore e Sabel, em 1984, denominavam “especializacao flexivel’, cuja origem & 0 modelo da compe- t€ncia representado pela bem-sucedida empresa japonesa. AAs qualificagées exigidas no interior desse “novo modelo produtivo’, representado pelo modelo empresarial japonés, contrastam fortemente com aquelas relacionadas com a l6gica taylorista de remuneracao, de definicao de postos de trabalho e de competéncias: trata-se da capacidade de pensar, de decidir, de ter iniciativa e responsabilidade, de fabricar e consertar, de administrar a producéo e a qualidade a partir da linha, isto é ser simultaneamente operério da produao e de manutencao, inspetor de qualidade e engenheiro. (HIRATA, 1994, p. 126) © modelo da competéncia supée a reformulagao do proprio significado de qualificacao para o trabalho, agora compreendida em suas miltiplas dimensées, isto 6, em seus “componentes implicitos e ndo organizados e em seus componentes explicitos eorganizados:educacao escolar, formacaotécnica e educagao profissional” (AOKI, apud HIRATA, 1994, p. 128). De certa maneira, retoma também a nocao de qualficagées tacitas ou sociais, decompondo-a em “qualificacdo real (conjunto de competéncias e habilidades, técnicas profissionais, escolarese socials) eem qualificagéo operatéria’(potencialidades empregadas por um operador para enfrentar uma situacao de trabalho). Como a estrutura industrial e de prestagao de servicos é constituida na atualidade, sobretudo da informacao com base no conhecimento e a corre- ta utilizago da informacao, ha consenso entre os autores em dois aspectos essenciais. O primeiro refere-se as exigéncias impostas pela reestruturacao que podem ser assim sintetizadas nas palavras de Vanilda Paiva (1993, p. 317): [J capacidade de manipular mentalmente modelos, pensamento conceptual com raciocinio: abstrato, compreensao do processo de producao, apreciagao de tendéncias, limites e significado dos dados estatisticos, capacidade (e precisdo) de comunicacao verbal, oral e visual, responsabilidade, capacidade de preencher multiplos papéis na producao e de répida adaptagao a novas geracées de ferramentas e maquinarias. Em outras palavras: aos trabalhadores das empresas modernas impéem- -se capacidade de abstracao, raciocinio critico e presteza de intervencao, isto 6, capacidade para er, interpretar e decidir com base em dados formalizados Novas competéncias profissionais e fornecidos pelas maquinas, além de qualidades sociomotivacionais, de personalidade e cardter, que garantam o bom relacionamento com os colegas das equipes de trabalho. As tecnologias da informacao e as novas técnicas gerenciais esto exigin- do, portanto, um trabalhador que seja capaz de efetivar conhecimentos, ou seja, capaz de utiliz-los corretamente na solucao de problemas do dia a dia do trabalho eno processo de tomada de decisées que hoje devem ser rapidas devido 8 compresséo espaco-tempo provocada pela informatizacéo. Trata- -se, assim, do reconhecimento da necessidade de se pér fim ao problema universalmente constatado do analfabetismo funcional. Diplomas nao mais expressam a real aquisicéo da capacidade de efetivar conhecimentos na solugao de problemas, porque o proceso de avaliacao dos candidatos a um emprego é cada vez mais determinado pela capacidade de resolucao de problemas simulados do que pela apresentacao de um curriculo pontuado de titulos formalmente adquiridos, como também pela demonstracao do preenchimento de requisitos pessoais de ordem sociomotivacional que permitem a integracéo dos trabalhadores as equipes multifuncionais e, portanto, heterogéneas. Sem diivida alguma, somente um ensino de boa qualidade - sobretudo © Ensino Fundamental ~ pode garantir a formagao deste novo trabalhador cuja virtude sera a de ter aprendido a aprender, adaptando-se rapidamen- te as novas situacdes para, de fato, encontrar-se em condi¢ées intelectuais, mentais e sociomotivacionais de trabalhar nas novas condicées. O segundo aspecto da questo refere-se a substituicéo do conceito de qualificagao profissional pelo conceito de competéncia, acima delineado. Muitos autores tém demonstrado a inadequacao do conceito de qualificacao profissional para caracterizaro perfildos trabalhadores da economia informal. Na medida em que as novas tecnologias e as novas técnicas gerenciais, isto €, a nova légica organizacional do processo de trabalho tende a fazer desaparecer os postos de trabalho individualmente assumidos, enfatizando a nocao de processo e nao mais a de estrutura e funcdo, perde significado 0 conceito de qualificacao profissional elaborado para indicar as qualificacdes do emprego, do posto de trabalho, ou seja, as dificuldades para a realizacao das tarefas a ele inerentes e as qualidades ou qualificagées requeridas do trabalhador para realizé-las bem. © conceito de competéncia, tal como tem sido desenvolvido e utiliza- do, ao contrario do conceito de qualificagao profissional, concentra-se nas 101 Novas competéncias profissionais 102 qualidades intelectuais, mentais, culturais, sociomotivacionais da pessoa do trabalhador e que Ihe permitem a compreensao da totalidade do proceso de trabalho, a versatilidade em varias tarefas, a capacidade de tomar decisbes rapidas e corretas e a participagdo em equipes multifuncionais. iinteresse de um enfoque pela competéncia é que ele permite concentrar a atencao. sobre a pessoa mais do que sobre o posto de trabalho e possibilita associar as qualidades requeridas do individuo e as formas de cooperacao intersubjetivas caracteristicas dos novos modelos produtivos. A grande qualidade - e talvez o risco? - do canceito de competéncia é a de remeter, sem mediacées, a um sujeito e a uma subjetividade. Qualificacao é um conceito multidimensional e pode remeter a qualificacao do emprego, do posto de trabalho, a qualificacao do individuo, & relacao social capital/trabalho etc. (HIRATA, 1997, p.31) As dificuldades para corresponder as novas exigéncias dos mercados de trabalho impdem um enorme sacrificio e sofrimento para milhdes de trabalhadores & procura de um emprego ou mesmo preocupados com a manutencao de seus empregos sem que tenham tido a oportunidade de adquirir os requisitos que hoje definem a competéncia. Para adquiri-los é preciso voltar aos bancos escolares do Ensino Fundamental, Médio ou Su- perior, em cursos noturnos, frequentar aulas de informatica, tentar aprender inglés etc. ou conformar-se com a condicao de excluido do mercado formal de trabalho. Apesar da manutencao de formas tradicionais de organizacao do proceso de trabalho em alguns ramos da economia, 0s altos indices de desemprego permitem as empresas proceder a um processo seletivo rigoroso dos candidatos a um emprego, impondo-Ihes sofisticadas competéncias mesmo quando os postos de trabalho a ocupar nao as requerem. E exatamente aqui que se associam as nocgdes de empregabilidade e competéncia. Se a empregabilidade é a probabilidade de saida do desem- prego ou capacidade de obter um emprego, as duas nogées se associam na medida em que a obtenco de um emprego, como também a sua manuten- co, dependem da competéncia do candidato ou empregado, num processo de atribuigdo de toda a responsabilidade pelo desemprego a incapacidade do trabalhador. Sao sérias as implicagées politicas e sociais dessa associacdo dos conceitos de empregabilidade e competéncia, pois sabemos que varios fatores determinam a situacao dos mercados de trabalho, sobretudo os de ordem macroeconémica que resultam da adogdo de politicas econdmicas € sociais especificas e das conjunturas econémicas nacionais e internacio- nais que favorecam a geracao de empregos e que ultrapassam a vontade e o Ambito da atuacao do individuo. Novas competéncias profissionais Além disso, as transformacées tecnolégicas e organizacionais do mundo dotrabalho, como ja salientamos, tendema reduzirsignificativamenteaoferta de empregos e, por isso, a aquisigao de novas competéncias profissionais por meio da educacao escolarizada nao terd como consequéncia a garantia de emprego para a maioria da forca de trabalho disponivel mesmo em conjunturas econémicas altamente favoraveis. Por essa razao, o conceito de empregabilidade tem limitado alcance social: © jovem estudante de hoje deve ser muito mais preparado para assumir a responsabilidade de garantir a propria sobrevivéncia ea de sua futura familia nao como empregado, mas como trabalhador auténomo, sujeito de novas relacées sociais de trabalho. Perde importancia, pois, o conceito de empregabilidade e sua compreensao como uma radicalizagao da teoria do capital humano, téo duramente criticada desde © nascedouro. Ganha importancia a educacéo escolarizada para permitir a sobrevivéncia do maior numero de pessoas quaisquer que sejam as relacées de trabalho, assalariadas ou ndo, gracas & aquisicao das competéncias necessarias para a realizagao do trabalho nas novas condicées tecnolégicas e organizacionais da producao e da prestacao de servicos, sendo processo irreversivel o desenvolvimento cientifico e tecnolégico. E essas competéncias para trabalhar nas novas condigées resultam do desenvolvimento das potencialidades de inteligéncia, criatividade, espirito

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