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O QUEE ANTROPOLOGIA LEGAL? Para examinarmos 0s conceitos de antropologia legal, devemos dis- cutir primeiro o problema do direito em si. Para um estudante do direito, a questao é relativamente simples: uma lei é uma regra proposta pelas or- ganizagOes proprias ao Estado. Geralmente é uma legislagéo com apro- vacao do Executivo e dos poderes judiciarios. Para 0 antropdlogo ¢ 0 so- cidlogo, a lei é algo muito mais complexo. O cientista social nfo est in- teressado apenas nas regras formais especificas e nas instituigdes do Esta- do, porém em todo o padrao das normas, e nas sangdes que mantém a ordem social e que permitem a uma sociedade funcionar. As leis formais do Estado sdo somente um elemento desse padrdo. De fato, o assunto da antropologia legal classica € exatamente o do direito ‘“‘primitivo’’, que é a lei nas sociedades simples e sem escrita, onde o Estado é ausente ou muito distante. Thomas Hobbes e muitos doutores da lei ensinaram que o Estado é um elemento necessario para garantir a ordem social. De acordo com a filosofia de Hobbes (Leviathan, 1968), sem o poder coercitivo do Estado a vida seria ‘‘grosseira, bruta e breve” na ‘“‘guerra de todos contra todos’’. A antropologia moderna provou que esta visdo da sociedade é em grande parte falsa. Muitas sociedades existiram e ainda existem sem quaisquer leis escritas, ou poder burocratico, ou violéncia organizada do Estado. Isto nao significa que essas sociedades nao tenham regras ou normas sociais, nem quer dizer que nao hi mecanismos de controle social ou sangOes contra aqueles que infringem essas regras. Todavia esses me- canismos existem em outras instituigdes que nao o Estado e, o que é ain- da mais importante, estas instituigées continuam a funcionar mesmo na moderna sociedade urbana. Ha muitas regras e costumes dentro de qualquer sociedade, que nao sdo leis formais mas que mesmo assim as pessoas obedecem. Isto é, nor- 9 mas e habitos que tém efeito real na ordem social ainda que nao sejam es- critos em cédigos ou livros de direito. De fato, provavelmente quase toda interagéo e comportamento sociais ocorrem sem acao direta alguma de qualquer Estado. Esta € a mensagem fundamental dos grandes socidlo- gos do direito, como Eugen Ehrlich (Fundamental principles of the so- ciology of law, 1936), Wilhelm Aubert (Sociology of law, 1969) e Jean Carbonnier (Flexible droit, 1971) — © papel relativamente secundario que o Estado representa na vida cotidiana e na manutengao da ordem so- cial. Carbonnier fez uma util distinc&o entre o grand droit — as leis ¢ ins- tituigdes do Estado, e 0 petit droit — as outras regras e instituigdes essen- ciais & ordem e a vida sociais. Entretanto isto nao significa que as pessoas vivendo em sociedades sem Estado, ou mesmo os modernos cidaddos urbanos, levando uma vi- da calma e honesta, sejam escravos dos costumes e obedecam as regras instintivamente e sem questionamento. Quase todos os filésofos juridi- cos, inclusive Hans Kelsen (General theory of law and state, 1952) e H. L. A. Hart (The concept of law, 1961), ensinaram que a natureza funda- mental do direito é o poder que tem a sociedade de aplicar sancdes ou pu- nir uma conduta disruptiva ou ‘‘ilegal’’. Hart sugeriu que em qualquer sociedade ha “‘regras primarias’’, isto é, sobre o comportamento do indi- viduo, ¢ ‘‘regras secundarias’’, normas da sociedade referentes as prima- rias, ou seja, formulas sociais para aplicar sancOes aqueles que nao obe- decem as regras primarias. O grande antropdlogo Paul Bohannan (The differing relms of the law. In: Law and warfare, 1967) propés uma visio semelhante quando escreveu que a maioria das sociedades tem ‘“‘dupla institucionalizagao”, isto é, instituigdes sobre conduta e instituicdes para punir condutas extravagantes. Para melhor compreensdo deste assunto, tomaremos como exemplo os esauimés (Inuit) do Alasca, Canada e Groenlandia que sobreviveram por cerea de 3.000 anos sem vestigio qualquer de Estado. “‘E dificil ima- ginar um povo que seja mais anarquico’’, disse um observador. £ sabi- do, por exemplo, que nao ha nenhuma palavra para ‘‘guerra’’ na lingua esquimé e realmente eles julgam que grupos de pessoas brigando uns contra os outros é uma tolice. Os esquimés vivem numa regiao onde, na época do inverno, o frio mata uma pessoa em cinco minutos se ela nao estiver adequadamente vestida. Eles tém sido tradicionalmente cacadores e muitos ainda 0 s4o e, no inverno, essa atividade torna-se bastante ardua, Partindo‘desse fator geografico basico, os esquimés desenvolveram durante muitos séculos uma série de leis que lhes permite sobreviver num dos ambientes mais hostis da terra. Uma dessas leis €: quem tem um excesso de carne ou ou- tro alimento deve reparti-lo com Os outros. Armazenar comida é um cri- me mortal na visio desse povo. Em seu ponto de vista, é natural as pes- soas dividirem seus bens. Devido a essa crenca, os primeiros comercian- tes ingleses nunca puderam instalar um posto comercial em territério es- 10 quimé. Os esquimés sempre estavam dispostos a repartir suas peles e ali- mentos com os ingleses, porém nunca conseguiram entender porque estes mantinham um estoque enorme de mantimentos sem dividi-lo. Tal pro- cedimento nao Ihes era natural ou, melhor, era ‘‘crime’’. Por trés vezes os ingleses estabeleceram postos comerciais no territério esquimé no sé- culo passado e por trés vezes, apds algumas discussdes sobre justica e di- visdo, as comunidades esquimds simplesmente mataram os comerciantes ingleses ¢ distribuiram seus alimentos. Isto foi ‘‘justo”’ para o direito es- quim6, ja que, para eles, o crime mortal nfio era 0 roubo, mas sim a ga- nancia. Modelos sobre a dualidade da lei Madelo proposto por Hans Kelsen (General theory, cit.) — aplicavel também em muitas teorias antropolégicas: exigéncias Modelo proposto pela teoria do conflito moderno (Chambliss, Law, order and power, 1971): Forcas sociais, politicas e pessoais il Outra lei esquim6 foi relatada pelo antropdlogo Knud Rasmussen (Intellectual culture of the Iglulik eskimos. In: Reports of the Fifth Thule Expedition — 1921-1924), da Groenlandia, em 1929. Uma regra geral de todas as sociedades esquiméds é: em épocas de privagdes, geralmente no inverno, os individuos que néo podem mais produzir ou cacar nao devem comer. Portanto, as vezes, deixavam-se morrer criangas nascidas no in- verno €, 0 que é também de se notar, esperava-se que as pessoas muito velhas, consideradas initeis 4 sociedade, se matassem. Este era um dos mais sagrados deveres dos idosos: devido aos rigores do inverno e a es- cassez de alimentos, eles deviam sacrificar-se para que os demais mem- bros do grupo pudessem sobreviver. Era bem possivel, em tais casos, que os velhos perambulassem pela neve e desaparecessem. Porém Rasmussen informou que era mais correto e honroso para o filho mais velho ajudar seus pais a cometerem o suicidio. Qualquer outra coisa era sinal de des- respeito. Ele conta o caso de uma familia com quem estava viajando em pleno inverno de 1921, em que a velha mae da familia decidiu que nao mais poderia continuar viajando. Para honra-la, o filho construiu-lhe um iglu sem saida e ela sentou-se nele confortavelmente. Depois disto, a familia inteira cantou misicas de despedida ao redor do iglu durante to- da a noite e continuou a viagem na manhd seguinte. Isto é homicidio na visio ocidental, mas também € 0 maior ato de justica para os esquimds. Este é, entéo, um postulado basico da antropologia legal, o de que as regras sao feitas a partir de bases sociais e econdmicas e precisam ser vistas em seu contetido social. Além disso, de acordo com Sally Falk Moore (Law as process, an anthropological approach, 1978) e outros an- tropélogos juridicos, as sociedades sem Estado, “‘primitivas’’, raramente tém leis nocivas ou intteis. Sem um instrumento para fazé-las cumprir e sem maneira de escrevé-las, as leis desnecessarias serdo geralmente esque- cidas dentro de poucos anos. Desse modo, as leis dos povos “‘primitivos”’ so freqiientemente muito mais verdadeiras do que as das sociedades mo- dernas, além de serem geralmente bem conhecidas por quase todos os membros da sociedade. Assim, é possivel falar de uma ‘‘cultura legal’’ como aquela estrutura ¢ hierarquia de normas e valores que permitem a uma pessoa sobreviver em seu ambiente, em sua sociedade. Além disso, as leis que compSem o padrdo legal das sociedades simples devem ser re- lativamente poucas, ja que nao as ha escritas e poucos sdo os especialis- tas em direito (se é que ha algum) para elabora-las. Assim, o antropdlogo legal concordaria nado com Kelsen, para quem o direito € uma ciéncia “pura’’, coerente em si mesma, mas poderia anuir com Oliver Wendell Holmes, ou seja, que a vida do direito ndo é a légica, mas a experiéncia, As regras da sociedade sem Estado, 0 direito ‘‘primitivo’’, s’o uma acu- mulac4o histérica das normas de vida social que se tem mostrado valio- sas ao longo das geragdes, no sentido de manter a ordem e a organizacao sociais. Essas regras sao freqitentemente expressas em formulas que se mostram estranhas aos estudiosos do direito europeu, em formas metafi- 12 sicas ou religiosas, e.0 desvio € muitas vezes:caracterizado como feitigaria ao invés de crime. Contudo, a sociedade pode funcionar muito bem desta mancira. N&o se deve supor, porém, que as sociedades simples e sem Estado nao tenham instituigdes de verdadciro poder para punir os transgresso- res. O modelo das regras primarias e secundarias proposto por Hart (The concept of law, cit.) pode aplicar-se igualmente a antropologia legal eao direito moderno. Para os antropélogos, contudo, as burocracias juridi- cas formais sfo apenas algumas dentre as diversas instituigdes que po- dem aplicar sang6es aos individuos. Anthony F. C. Wallace (Administrative forms of social organiza- tion, 1968) referiu trés instituicdes principais que formam a ordem so- cial. Sao elas: a familia, a comunidade e a administragao. As categorias sao imperfeitas, porém muito uteis, e podem ser com- binadas ou ainda mais divididas. A ‘‘administrac4o’’, por exemplo, pode incluir tanto corporagdes como um governo. Ambos tém o poder de apli- car sangdes. Porém, em geral, a divisdo é util para uma analise das forcas de ordem social em qualquer sociedade. No caso dos esquimés citado acima, pode-se ver a import4ncia tanto da familia como da comunidade em fazer cumprir as normas sociais. Estes fatores serio mais desenvolvi- dos no Capitulo IV. Uma série adicional de conceitos importantes de serem salientados sAo aqueles desenvolvidos por Max Weber em sua anilise de politica e lei (Economy and society, 1968). Eles estado correlacionados a contradicao fundamental em qualquer estudo juridico que, por sua vez, relacione-se com o problema da dualidade da lei ou com as regras primrias e secun- darias. O direito consiste numa série de normas e regras que s4o conside- radas, pelo menos por muitos, como boas e justas, e que deveriam ser obedecidas. Mas a lei é também um sistema de punir os individuos que desobedecem a essas regras. Esta € a grande quest&o, proposta por We- ber, que é assunto nao sé da antropologia legal, mas também de toda a ciéncia politica: por que um homem obedece a um outro? Nesta pergunta, Weber fez a disting¢ao fundamental entre: 1) autori- dade (Herrscha/ft), que é a obediéncia voluntaria porque o individuo cré que ele deve obedecer; e 2) poder (Macht), que é a obediéncia obtida ape- sar da oposicdo. Nas palavras mais exatas: ‘‘Autoridade éa probabilida- de de que uma ordem com um certo contetido seja obedecida por um gru- po definido de pessoas, qualquer que seja o motivo para esta obedién- cia’, enquanto ‘‘poder é a probabilidade de que esta ordem seja obedeci- da apesar da oposicao” (Weber, Economy and society, cit., p. 35). Outro conceito basico proposto por Weber é 0 da legitimacao. Este é, fundamentalmente, 0 processo de criar poder, ou um padrdo de or- dens e obediéncia justo na opinido das pessoas. A autoridade /egftimata autoridade sem oposi¢ao perceptivel, obediéncia livre. E importante ob- 13 servar que na opinido do cientista social, a legitimagao nao é simples- mente ato de uma legislatura ou de um 6rgio oficial, porém processo so- cial pelo qual os lideres de uma sociedade demonstram que suas ordens sao de interesse geral para 0 povo. Finalmente, ha certas distingOes basicas no tipo de pesquisa que os antropélogos fazem no dominio da lei, O primeiro ¢ 0 trabalho classico do antropélogo legal, jA parcialmente discutido, o estudo da ordem so- cial, de regras e sangdes em sociedades ‘‘simples’’, 0 “‘direito primitivo” na terminologia mais antiga (v. Hoebel, The law of primitive man: a study in comparative legal dinamics, 1954). Este é o campo tradicional da antropologia legal e ha centenas de estudos sobre este tema publica- dos, inclusive muitos dos grandes classicos da antropologia, que sero abordados nos préximos capitulos. A essa disciplina denominaremos an- tropologia legal. Um segundo tipo de pesquisa que tem interessado aos antropdlogos pode ser chamado de antropologia juridica, Bo emprego de métodos an- tropologicos de pesquisa, observacdo participante e comparagdo com modernas instituigdes do direito. Trabalhos nesta linha tém sido feitos na Policia, na magistratura e até em prisdes. Sao feitos estudos também nas instituigdes juridicas que ligam o Estado e a lei urbana ds comunidades Turais isoladas. Deve-se dizer que esté tipo de pesquisa €, as vezes, muito dificil de ser levado a termo, porque, como notou o grande antropdlogo do direito noruegués, Wilhelm Aubert (Sociology of law, cit.), os deten- tores do poder freqiientemente nao querem vé-lo como alvo de estudos, j& que eles tem poder, podem impedir tal pesquisa, se quiserem. O exem- plo mais dbvio disto é a dificuldade que envolve o estudo da sociologia politica. Um terceiro campo de pesquisa para o antrop6logo, bem como para © estudioso da ciéncia juridica, € o do direito comparado, cujas princi- pais escolas encontram-se na Franga e no México. O antropdélogo esta numa posi¢do excepcionalmente boa para auxiliar nesta espécie de traba- lho, pelo alcance de seu conhecimento multicultural e de sua consciéncia de muitos tipos diferentes de instituicgdes juridicas que nao as das socie- dades modernas ocidentais. Porém, até agora, a unido entre os campos do direito e da antropologia tem-se mostrado bem distante.

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