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@ cienciaavida Existéncia De que maneirao estilo de vida do homem contemporaneo tem influenciado de forma negativa a sua sade psiquica? Um estudo sobrea doenca elec l=) Ve EU ESCHOPENHAUER FILOSOFIA DA EDUCACAO Wet elcete rere ci clurects nos éxitos.escolares sob 0 olhar de BOURDIEU MASSA E PODER Hare Uel- Ulan pertencimento, em HANNAH ARENDT As tecnociéncias podem ou devem ser concebidase compreendidas também como problema? Essa é uma grande indagacdo para oestudo da Filosofia em relagdo as novas tecnologias problema, no melo teGrico-reflexivo-cientt- fico, 6 simplesmente a pergunta, A questao (ou questoes mais seminais que movem 0 investigador, pesquisador e cientista, que instigam seu trabalho cotidiano, que com- pelem sistematicamente 0 clesenvalvimento de suas te- ses, dando-Ihes sentido, enfim, o problema é, numa sé palavra, 0 objeto de estudo eleito, o foco de nossa aten- io, nosso campo de investigacéo. O filésofo das tecno- ciéncias—que, por sua vez, se ocupa em pensar erefletir acerca de seus fundamentos e premissas mais essenciais (tecnociéncias), bem como sobre as kigicas € consequ- ncias sistémicas que se consumam na prépria so biéncia em que elas operam — tem a drcua missdo de tomar problema uma pretensa solugao. Sim, pois, inva- jam- Por Uma razdo ooletica riavelmente, tecnologia Ciéncia, ou seja, as tecnocién- cias, sao forcas © poténcias importantes de nossa cultura Civilizada concebidas e valoradas socialmente como pre- cdominantemente benéficas as sociedades que as fomen- tam. Eisso no deixa de fazer algum sentido, ja que ter ciéncia de algo, a prior, compreendendo ce antemao sua légica estrutural fenoménica, isto 6, detendo teeno- logia apropriada para entender sua ac3o mundana, signi fica, quase sempre, poder (também) intererire controlar sua prépria manifestacdo existencial, ou seja, poder tam- bém explorar e transformar substancialmente esse algo {ente, ser ou objeto). ‘Quem nos ajuciaré a compreender melhor esse con- texto altamente imbricado da Filosofia, Hist6ria e critica da tecnologia é 0 professor e filésofo espanhol Ignacio ‘Alexandre Quaresma escrtor ens, pesquisador de tecroloase consequéncies socioambientai, ‘com especial interes na erica da tecnologia. E membro da Renanosome, vinculado 8 FB e memibro do Conselho Edtoral de Cifriciae Sociedade da Revista internacional de Ciencia y Sociedad, do Common Cround Publishing. -quaresma@otrailcom swinn:portalciencinevida.combr + Filosofia sna * Um universo com cae ur distintos em todos seus niv interpretados nos Quintanilla Navarro, da Escola de Filosofia de Madi. Nascido em 1960, Ignacio Navarro trabalha nas éreas da teoria do conhecimento, historia do pensamento modlemo e Filosofia da técnica, var lancou, ha pouco, um livo de Epistemologia muito interessante intitulado Techné —La Filosofia y el sentido de la téenica, e conce- cleu uma entrevista exclusiva a Filosofia. FILOSOFIA * Técnicas e tecnologias possuem um sentido intrinseco, interno a elas mesmas, ou seus sentidos derivam Gnica e exclusivamente de nés? Navarro * A tecnologia humana nao é uma dimenséo trivial do universo. Um universo com técnica e um universo sem técnica s4o radicalmente distintos em todos seus niveis de realidade e no podem ser in- terpretados nos mesmos termos, Por essa razdo, uma teoria geral da realidade na qual a técnica desempe- nhe um papel secundatio ou trivial € uma ma teoria da realidade. A tecnologia humana nao se baseia — como sugere Kant, em algum momento de sua obra = no simples uso engenhoso de um “aproveitamento” da natureza, A tecnologia humana, pelo contrério, fa- brica a realidade mais radical das coisas; ao menos de algumas coisas, e, entre elas, provavelmente, do homem. A tecnologia humana subsume a natureza na Hist6ria e, nesse sentido, é uma forca muito mais po- derosa do que @ prépria natureza. Acho importante destacar essa ideia, porque as nossas mais profundas inércias de pensamento, que vem dos gregos, ainda di ficultam muito a nossa reilexao sobre a técnica como evento crucial no universo. No entanto, na mudanca tecnoldgica, a nossa forca, intencao e cratividade ob- jetivas sa0 muito mais profundas e poderosas do que ‘costumamos pensar — e, apesar disso, as técnicas e tecnologias que o homem implementa possuem um sentido intrinseco que, com frequéncia, ndo somos capazes de compreender, valorizar e controlar. FILOSOFIA * Seu livro sustenta que “a Filosofia da técnica é 0 grande desafio que tém os fil6sofos no momento atual, e que esse tem sido o grande Sao sem técnica radicalrnente de realidade e nado podem ser resmos termos tema oculto de toda Filosofia do século XX”. Diga- -nos 0 porqué. Navarro * Nossa tradigao de pensamento filos6fico sente incdmodo com a técnica, e ndo é raro vermos grandes intelectuais incapazes de pensar seriamente sobre esse tema sem fazé-lo a partir da Ciéncia ou da Economia, por exemplo, que sao campos mais con- vencionais. O advento de uma nova etapa tecnol6- gica na hist6ria da humanidade é o evento hist6rico, Gientifico e filos6fico mais importante do século XX. Seus efeitos praticos e teéricos so incomensurdveis —comecandlo com a desativacdo das categorias “na tureza” ou “Ciéncia’ tal como as entendemos desde 5 gregos. Desde o seu aparecimento sobre a Terra, a inteligéncia humana tem enfrentado a realidade, le- vando como horizonte de autocompreensio timo o caréter inexorvel da natureza, providéncia ou desti- no 0 que era, até certo ponto, exagerado e inexato ‘como agora sabemos. AS riovas geracdes tém como horizonte de autocompreensdo, pela primeira vez na historia humana, o de que tudo é possivel — 0 que € também, até certo ponto, exagerado e inexato. Os primeiros intelectuais europeus que intufram essa mu- danga—e que tinham crescido sem internet, sem Va~ 1m e sem séries de televisio — prognosticaram uma cultura da ang(istia, néusea ou vécuo. Mas quando, em 1969, Armstrong cravou a bandeira dos EUA na Lua, a néusea nilista europeia ficou conjurada e con- vertida em um simples artigo da Wikipedia. A grande missdo secreta da NASA — tao secreta que nem eles mesmos sabiam — era refutar Sartre, e eles consegui- ram, Abriu-se assim um mundo de possi cexisténcia fascinante e apavorante, divert $0, a0 qual nés ainda nao nos habituamos. FILOSOFIA * Comente sua afirmacao: “A Filoso- fia das técnicas € 0 verdadeiro tema filoséfico de nosso tempo”. Navarro * A técnica humana, enquanto objeto espect- fico de reflexao filas6fica, consolida-se ao longo do sé- culo XX. Podemos dizer que, no século XX, surge uma vwe.portaclenciaevidacom.br + Filosofia céndasoda 7 ENTREVISTA Ignacio Navarro Filosofia explicita da técnica. A primeira vista, so pou- os 0s grandes pensadores que assumem esse fato € dedicam a técnica obras mais signficativas. No entan- to, quando se analisam as obras de pensadores tao dis- pares como Dewey e Heidegger, Habermas e Popper, Derrida, Bergson, Ortega y Gasset ou Wittgens Hussert ou Arendt, encontramo-nos sempre no co- ragdo de suas argumentagées, no mais crucial delas, ‘com 0 mesmo problema: 0 problema de uma revisio radical das relagdes entre contemplar e produzir. Isso requer habiltar, por parte do filésofo, uma verdadeira razao poiética ou produtiva em termos de igualdade coma razao teérica e a razao pratica. Esse 6, na minha pinido, o denominador comum real da Filosofia do século XX, embora a maioria dos fildsofos ainda néo tenha consciéncia disso. Essa tarefa ndo se improvisa ‘em uma ou duas geracoes porque requer, entre outras coisas, reescrever a Hist6ria da Filosofia. No inicio do século XX, a ditima grande Filosofia “tradicional” ~ a de Nietzsche ou Heidegger, por exemplo faz uma Giltima tentativa de escamotear a crise e salvar 0s tras- tes da cosmovisdo grega centrando-se na Estética, na ‘Arte ou na Linguagem. A primazia poiésis € antecipada concedida, sim, mas s6 a poiésis dos poetas que se quer fazer passar pela poiésis mais genuina. Mas a hu- mana mais genuina é a dos engenheiros, e essa sugere que a realidade em si é acessivel ao homem como pro- duto; e é af que o pensamento do século XXI comeca ase tornar interessante. 8 + Filosofia cienciasvida FILOSOFIA + “Na Filosofia da técnica nao ha so- mente um Ambito novo de problemas e temas de estudo, sendo, ademais, uma nova visio de todos 0s problemas ¢ temas da Filosofia desde os gregos. E a prépria histéria da Filosofia, portanto, deve ser reescrita & luz da reflexéo contemporanea sobre a técnica.” Nao seria essa uma maneira demasia- damente tecnocéntrica de enxergar e conceituar a realidade e a propria Historia? Navarro * Sim, 6 uma visio muito tecnocéntrica, mas tem fundamento. Quando se quer ser claro sempre & preciso exagerar um pouco. Uma Filosofia do pro- duzir, como jé disse Arist6teles, embora nunca tenha chegado a desenvolvé-la, supde que um filme que sempre teve dois protagonistas ~ a teoria e a pré- xis ~ 6, de fato, uma histéria com trés protagonistas. Por exemplo, um pressuposto implcito essencial de toda nossa Filosofia até o século XX & que s6 pode haver conhecimento cientifico genuino do natural € Etica universal genuina desde © natural. A Filosofia do século XX descobre que apenas hd conhecimento Cientifico do antficial e que © artificial € genuino e plenamente real. Também constata que uma eticida- de baseada na previsio de resultados é virtualmente inoperante em cointextos tecnoldgicos como 0 nosso. FILOSOFIA + “O ser humano tem sido [...] sempre um ser artificial.” Por favor, fale-nos um pouco mais sobre essa faceta de nossa humanidade. i i : O que define de forma mais rigorosa a situacgéo do ser humano frente a realidade é 0 acesso ao ser, aco a partir de um ser projetado ou possivel Navarro * Em 1951, num congresso organizado em Darmstadt pelos arquitetos alemaes em meio a crise de moradia na Europe, 0s fildsofos Martin Heidegger e José Ortega y Gasset apresentaram duas visies con- trapostas do ser humano edo ser em geral. O elemen- to de divergéncia crucial era justamente a resposta a essa pergunta. No pensamento de Heidegger, pelo menos naquele tempo, assumia-se uma tensao dia- Iética entre um morar humano desde a técnica e um morar humano prévio. Ortega denuncia ess2 abor dagem como a do mito do homem além da técnica, ‘Ao estudar pausadamente a argumentacao dos dois autores, descobre-se mais pontos de convergéncia do que parece, mas é claro que temos um dilema funda- mental. Eu acho que, de fato, um ser humano além da técnica 6 um mito, no pior sentido do termo, uma faléicia que distorce radicalmente a condigao humana ea esséncia da técnica. Nao apenas da técnica atval, mas de toda técnica que o ser humano tem atingido. © que define de forma mais rigorosa a situacio do ser humano frente & realidade 6 0 acesso ao ser, dado a partir de um ser projetado ou possivel. Na verdade, © real s6 se perfila nesse jogo entre o que hi, 0 que pode haver e © que queremos que haja, S6 um ser que projeta casas, pontes ou navios pode contem- plar florestas, mares ou desertos. O olhar humano sempre projeto de ser, e sem esse projeto de ser que fundamenta a técnica nao hé olhar humano possivel FILOSOFIA ¢ “E um exercicio mental relativamente novo em nossa tradicao literaria 0 de filosofar dire- tamente sobre um evento técnico.” Que beneficio podemos obter ao concebermos e refletirmos so- bre as técnicas e tecnologias que criamos (lambém) como problemas e ndo apenas como solucdest Navarzo * Quando falamos em refletir sobre a téc- nica, costumamos pensar imediatamente sobre seus perigos e riscos. Esse um erro grave. Para comecar, 0s perigos que ameacam a condicéo humana, néo resultam apenas (e nem principalmente) da técnica, ‘Além disso, 0 risco 6 inerente a condigao humana ¢ a tarefa da razio quanto ao progresso técnico ndo pode ser a de eliminar qualquer risco, mas deve ser, antes, a de estabelecer os procedimentos mais justos pata minimizar os riscos que optamos por assumir. Mas, sobretudo, deve ficar claro que a técnica hu- mana supée, antes de uma reflexao sobre riscos ~ 0 que é inevitavel e importante — outra reflexao pré- via e muito mais fundamental sobre a condicao hu- mana e sobre o ser. A técnica se impoe & Ontologia como ponto de partida de reflexao radical. Aliés, a quantidade de bem, de beleza e de verdade que a técnica humana introduz no universo e a dignidade intrinseca da criagdo técnica séo aspectos em que a nossa tradicéo hummanstica ainda nao tem prestado atengao suficiente, FILOSOFIA + O que realmente mudou em nossa compreensio filoséfica nesses 2.500 anos de pen- samento ocidental sobre as técnicas, e que conclu- ses podemos abter dessa erratica trajetdria? Nava * Para comecar, 0 ser humano é intrins camente técnico e nao existe uma humanidade pr -tecnolégica, como jé tem sido assinalado, Além dis- s0, a técnica é propriamente histérica, ou seja, um estadio tecnolégico imutavel é uma situagdo contra- dit6ria, pois técnica é equivalente a mudanca tec- nolégica. Em seguida, a técnica tem a sua propria historia, uina hist6ria que nao é basicamente a da Ciéncia ou a da Economia. Sabemos também que a historia da técnica humana nfo é uma sequéncia de atos isolados de invengao nem o principal mo- tor da Historia, mas ela tem com os outros aspectos culturais, socials, econdmicos ou epistemolégicos de cada sociedade uma relagao de causalidade reci- proca e miiltipla, Finalmente, nds também sabemnos que no ha um Gnico vetor de progresso técnico predeterminado que apenas possa escolher a ve- locidade. Existem miitiplos modelos de pragresso técnico possiveis, e a escolha entre esses modelos constitu’ uma das principals tarefas da razio em cada geracio. wine poacencaevda.com.br + Filosofia dincatsita* © r |_ENTREVISTA | igndti8|Navarro eNTREVE “| a & 1) p O00) ae A impossibilidade de imaginar um estado tecnolégico perfeito e definitivo 6 urn das paradoxas mais fascinantes da condigaéo humana e da Filosofia da técnica FILOSOFIA + “Poucos dogmas téo perigosos circu- Jam hoje por nossa mentalidade como o de que so- mente existe uma diregio de progresso tecnolégico ou social ~e se avanca ou retrocede por ela como um trem por sua via.” Que perigos seriam esses, € quais alternativas seriam possi Navarro * O exercicio da praxis Etica e da politica «em nossas sociedades hoje se concretiza, sobretudo, em opgoes tecnoldgicas. A escolha de um partido politico, um modelo de familia ou uma Organizacso no Governamental (ONG) para colaborar termina por coneretizar-se na recusa de determinados artefa- tos ou usos e na proposi¢ao de outros. Na verdade, sempre tem sido assim, como Lewis Mumford nos ‘mostra em seus trabalhos, mas atualmente 6 to claro € imediato que o ambito todo de “o que devemos fazer” kantiano coincide virtualmente com o de quais possibilidades técnicas aceitamos e quais recusamos. Assumir um Gnico sentido de mudanga tecnol6gica é renunciar & razao pratica. FILOSOFIA + “A técnica determina também [dentre ‘muitas outras coisas] nossa capacidade simbdlica e nossos modelos explicativos fundamentais da reali- dade: o homem como maquina, a mente como com- putador, 0 universo como explosio, a fabrica como rel6gio.” Vocé esta de acordo com essa percepcaio predominantemente mecanicista e reducionista acer- ca de Ambitos e propriedades tao especificos e com- plexos como 0 biolégico e 0 cognitivo, por exemplo? Seriam as metéforas maquinicas apropriadas para nos ajudar a compreender esses universos e reinos? Navaeso * Sem davida, elas tém sido apropriadas e continuardo sendo, Averroes resumiu uma longa tra= dicdo de pensamento medieval com a tese de que o Universo s6 nos € cognoscivel sob a forma de um arte- fato criado por um artifice. O artefato & um transcen- dental do ser. Na verdade, a etapa tecnolégica que nossa geracdo inaugura supde o fim da cosmovisao mecanicista do universo que tem dominado durante a século XIX e inicio do XX. A primazia das nogdes de sistema e unidade de informacao sobre as de agre- gado e unidade de matéria é um requisito essencial dda nossa tecnologia da informacdo e de nossa nova imagem do mundo. FILOSOFIA * “Nao esté claro 0 que é que delimita o natural e 0 artificial ou até que ponto os produtos da atividade humana deixam de ser naturais.” Como praticas intrusivas e deterministas — como a clona- ‘gem, engenharia e manipulacéo genéticas ~ podem vira se tornar “naturais” socialmente, j4 que sao fru- to daatividade tecnocientifica humana? E, por outro lado, 0 que isso significa ontologicamente para os humanos, jé que s4o ages que intervém arti tecnologicamente em suas manifestagGes mais es- truturais ¢ essenciais, tornando-os (seres humanos) também produtos de sua prépria tecnicizacao? Navarzo * Criar um ser humano nao € um capricho de mentes desviadas, é uma motivagao intrinseca do nosso programa de compreender o mundo a partir da Era Madera. Até que ponto esse programa pode con- ter eros metafisicas ou antropolégicos fundamentats, ‘ou requerer precisdes epistemol6gicas e morals muito importantes, 6 outra questo. As praticas basicas do ser humano, como a pintura do corpo, a perfuragéo dele ‘oua vestimenta caracterizam um programa hist6rico de apropriacdo artificial da corporeidade que se inicia com 2 propria Histéria, Depois, esse programa passa pelas vacinas ou os implantes dentals até culminay, finalmen- te, na figura do ciborgue. Nao poclemos esquecer que © uso de substancias psicotrépicas 6 contemporineo 20 emprego de ferramentas, como Ortega gostava de lembrar, e que todas as grandles tradigGes espirituats do mundo envolvem 0 maneio de determinadas técnicas de controle do nosso sistema nervoso. Aliés, quando significado do termo natureza 6 estudado em todas as fases de nossa Historia, constata-se uma interdepen- déncia l6gica inlucivel com o significado € 0 uso de sobrenatureza e de artficio. Estritamente falando, voce nao pode ter uma compreenséo adequada de qual- quer um deles separado dos outros dois. vwn.poralcencinevidacombr + Filosofia cinciatvide* 11 ENTREVISTA Ignacio Navarro FILOSOFIA * Desenvolvimento tecnolégico nao sig- nifica necessariamente desenvolvimento humano, isso todos nés temos muito claro, Todavia, diante de tamanho poderio de interferéncia e controle, como 0 filésofo pode contribuir para a construcdo de um repert6rio critico e ferramental reflexivo acerca das técnicas e tecnologias que produzimos e usamos? Navanto * Construir esse repertério critco e reflexivo 6a tarefa mais importante e urgente da Filosofia hoje. Fu acho que toda a sociedade tem 0 direito de nos pedir contas nesse sentido, e que a Filosofia, nao tanto “0s filésofos” enquanto um grupo fechado, tem uma tarefa bem definida e complexa como a que tivemos na era das revolugées modemas. A divergéncia entre mudanga tecnolégica e realizacio humana 6 a nova Situacdo do velho tema que é o pecado original. Esta- mos realmente envolvidos em uma encruzilhada que nos coloca entre a Torre de Babel e o Templo de Salo- mao. Nao 6 0s intelectuais, mas também as criangas nas escolas devem conhecer e lidar com essa tarefa que 6 de todos; mas apenas uma verdadeira atitude filosofica permitird esclarecer os conceitos e valores nea envolvides. FILOSOFIA * As sociedades determinam suas tec- nologias, mas, a um s6 tempo, sao também de- terminadas por elas. Isso vale principalmente em relacdo aos delicados campos da Biotecnologia, como as pesquisas e experiéncias com células- -tronco, clonagem, transgenias e hibridizagoes, em que as tecnologias e tecnociéncias acabam deter- minando aquilo que, de fato, somos e seremos en- quanto seres vivos. Qual é sua posicao a respeito dessa recursividade reciprocamente influenciante e determinante? Navarro * De fato, as sociedades determinam e sio determinadas por suas mudangas tecnologicas. Na verdade, essa interacdo é uma excelente definicao de cultura. O que é importante ter em mente é que essa interacao determina a definicao dos verdadeiros valo- res e princfpios fundamentais le nossa convivéncia; 6 o ndicleo de nossa qualidacle moral, Se os programas de educacdo nas escolas ou as declaracées da Orga- nizacdo das Nagbes Unidas (ONU) ndo estiverem ali- nhados com esse niicleo, serao inditeis. Por exemplo, © que é um ser humano, e quais sao os seus direitos de primeira, terceira ou quinta geragio, 6 algo que 12 + Filosofia ciéncasvida definimos em nossas regras e em nossa praxis com embrides, moribundos ou com transplantes. Talvez a Filosofia nao tenha uma resposta consensual sobre questoes como 0 aborto ou o uso de embrides hu- manos, mas © que nds jé sabemos € que podemos concordar normativamente com essas questes, mas ‘0 que declaramos em nossas constituigdes ou docu- mentos é 0 que conta. Portanto, nessas questées tio ‘ruciais & imperdodvel a banalizacao e 0 desprezo pela dliferenca. A atitude de quem acha, em Biotec- nologia, por exemplo, que a divergéncia sé se explica Porque os outros s40 tolos, maus ou ambos é a forma mais recente e mais letal de barbérie. Nesse sentido, a presuncao de alguns experts e 0 trabalho de alguns ativismos de todas as cores e tendéncias estao sendo moral ¢ intelectualmente devastadores. FILOSOFIA « Por fim, segundo seu entendimento, que mundo é esse que estamos construindo dia a dia com nossa sagacidade e engenho tecnolégico? Serd admirével? Ser repugnante? O que esse futu- ro tecnologizado, tao presente nos discursos e tec- noideologias dos neoutépicos, nos reservard afinal? Luzes? Trevas? Ambas as coisas? Navarko * Isso é quase uma pergunta teolégica. Mais uma vez uma pergunta kai que pode- mos esperar toma a forma de uma questao tecno- l6gica. Parece claro que a resposta que se impoe a partir da prudéncia é aquela que vaticina luzes sombras. Mas acredito que também langa muita luz considerar a possibilidade de que s6 pode haver um final, ou seja, que o fim da histéria ~ seja 0 que for (© que queiramos dizer com isso ~ seré maravilhoso ou repugnante, mas ndo ambas coisas ao mesmo tempo. Temos de levar em conta que nossa nova etapa tecnolégica também muda a nossa situagso em relagao a0 papel da utopia. Na modernidade classica, assume-se uma utopia comum, mas inatin- givel como elemento definitério da funcao ut6pi ‘Apés Dachau ou Hiroshima, no entanto, o jogo é outro. Sabemos que hé utopias realizaveis e a ques- a0 6 como evitar que o vizinho - especialmente 0 mais poderoso ~ Ihe imponha sua utopia particular. Em qualquer caso, a impossibilidade de imaginar um estado tecnolégico perieito e definitive € um dos paradoxos mais fascinantes da condigdo humana e da Filosofia da técnica. il

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