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i» x UNOCHAPECO REITOR: Odiloe Liz Poli VICE-REITOR DE PESQUISA, EXTENSAO #8 POS-GRADUAGAO: Ciasdin alcides lacoskt VICE-REITOR DE ADMINISTRAGAQ: Sady-Mazzioni VICE-REITORA DE GRADUACAO: Maria Luics de Sowss Lajas Planejamento urbano wo Brasil conceltos,dilogos« pitises/ lion Pri, Manoel Pereice (Ore). ~ Chapecse Argos, 2008 Mp, 1, Plangjamento urban. 1 Perk ison Manoel. 2. Titulo, cpp ais 99381 802 ‘Catlogacio: Vara Met 5 CRI 1a Bibiotece Central Unockapecd ISBN: 978-8 ARGOS Gonselho Edtoriah zon Antonio Pam (Presidents exandre Maurie Maio; Antonio Zany A, Le the Arlee Renkin Aids Edin Berl ce op Taine Hunibro Pai Revel an Luss Saban Luis Fi Sora de Cine Sts cos Avs Lane eas “alr Pgs Neus Frnander de Moura Ricca Bola Read ‘Cooréenader: Valdis Prigu! SUMARIO PREFACIO INTRODUGAO PARTEL PLANEJAMENTO URBANO: CONCEITOS E TRANSFERENCIAS © URBANISMO: PENSAMENTO. “FRACO” E PENSAMENTO PRATICO Yves Chalas A CONTRIBUICAO DA CULTURA TECNICA DO PLANEJAMENTO URBANO NO BRASTI. NUMA, PERSPECTIVA COMPARADA COM A GENESE DA GESTAO URBANA NA EUROPA, Luiz de Pinedo Quinto Jr. NG »* O URBANISMO: PENSAMENTO. “FRACO” E PENSAMENTO PRATICO Yes Chas + § a) ] Debrugar-se hoje sobre a pratica do urbanismo e, sobretudo, so- brea governanca das cidades é, em primeiro lugar, constatar que existe um florescimento de elementos novos que interferem nesta pratica, que até mesmo a determinam ou orientam e a transformam. Sio cles: ~ © papel menos diretivo e voluntarista do poder puiblico, Estado ou coletividades locais: a descentralizacao num modo de ado publica néo apenas menos centralizado, mas menos tccnocrat 9 € nueius rigiios ~ a perda dos modelos de referéncia ¢ o refluxo das utopias; + 0 declinio do planejamento ¢, em contrapartida, 0 progresso do processo de se fazer um projeto indissociavel da ideia de programacao aberta; ~ a multiplicacio dos atores e das instincias presentes no campo do urbano ¢ correlativamente a emergéncia neste mesmo campo de novas especialidades; " Tradugao Elson Manoe! Pereira e Alzira Krebs, Revisio Stella Maris Meira da Veiga. ~ a descompartimentalizacao das competéncias e, com ela, a cons- trugdo de novos saberes, transversais, que entrecruzam ou integram enfoques diferentes e que partem dos sctores ou campos anteriormente bem hermeéticos uns em relasio aos outros, como o social eo meio ambiente, © emprego ea cidade, ou ainda a mobilidade da cidade ete. ~ © aumento dos conflitos e dos protestos que emanam da vida associativa Uma pergunta se coloca desde entio: todos estes elementos novos nao significariam ou nao terminariam, através de seus efeitos cumulativos ou de inter-relagdes, por substituir 0 poder piiblico pela governanga urba- na? A expressio governanca urbana traduz o estado atual da pritica urba- nistica? Seria suficiente observar um ou varios ou mesmo o conjunto destes elementos novos em funcionamento na produgao da cidade para concluir que a tematica da governanca urbana ¢ doravante a dinica que merece aten- So ¢ reflexdo? Esta tematica aparece explicitamente na pratica urbanistica? A resposta é imprecisa. A governanga urbana no constitui a nica Perspectiva de adaptago possivel do urbanismo as novas realidades do mundo, se o termo de governanga urbana ¢ entendido como um modo de Producio ¢ de regulacao da cidade fundado na parceria projeto puiblico-pri- vado, isto é, na negociagdo das operacdes urbanas entre os representantes do oder publico ¢, no essencial, os agentes econdmicos. Fsta governanea urbana nndo se daria sem vantagens reais, tampouco sem mais inconvenientes. No tegistro de seus inegaveis predicados ela apresentaria, sobretudo, 0 da eficacia. Pela confrontacao direta entre pessoas do setor puiblico e do setor privado ela Permitiria a fuga da lentidaio que impoem os meandros das diversas media- Ses, do juridicismo inflacionario e dos conflits sociais. E, neste ultimo pon- 0, @ governanca seria particularmente positiva e bem-vinda, sobretudo na Franca, pois ela assinalaria a passagem progressiva de uma cultura do conflito a uma cultura da negociagao (Gaudin; Novarina, 1997). No registro negative de seus limites e de scus inconvenientes a governanga urbana apareceria como tum risco, até mesmo como uma ameaca para a democratcia e a cdadania, 0 imteresse pablico se veria reconduzido a um interesse de categorias, entre ov- tros, no jogo da aco negociada entre parceiros do puiblico e do privado. Ao risco de uma degeneragio da negociacio em negociata dos interesses puiblices haveria também o risco de uma despolitizagao da vida local, significando uma confusio definitiva entre democracia e gestao’, havendo também o risco de sujeigdo das cidades unicamente a l6gica econémica, tudo isso em nome do realismo, do pragmatismo e da eficacia’. O urbanismo, tal qual se pratica, engajou-se em outra perspectiva que nao a da governanca urbana? O urbanismo sem proieto, como a governanga urbana, integra os elementos novos emergidos da evolucdo das cidades, das mentalidades e das instituigoes, em muitos aspectos até mesmo se parece com a governanca urbana, mas a ela no se reduz porque o urba- nismo nao se submete a logica do projeto e & construgao de uma hegemonia qual a governanca urbana se converte. © urbanismo sem projeto difere da governanga urbana notadamente pelo fato de que ele néo leva a vida local & Gespolitizacio ¢ & sujeicao a produgao de imagens técnicas, ao contritrio, ele se inscreve em uma tentativa de repolitizacao da vida urbana, apresentan- do-se, por exemplo, como uma oferta de politica, de couceitualiaayio do conflito para os habitantes. O urbanismo sem projeto, 0 urbanismo em iberdade, distingue-se da governanca urbana pelo fato de nao limitar a niegeciacdo, muito menos a busca de solugdo na produsao e na regulagao da cidade, numa troca entre especialistas, politicos, técnicos e agentes +A democracia emerge da escolha relativamente clara ¢lepitimada pelo jogo eleitoral entre principios dferentesou opostos; 2 gestan emerge do compromissa entre principios diferentes ow opostos, Para ume ert 18 da governanga urbana, ver Wachter (2997), econdmicos. Ele abre esta busca coletiva de solugao aos habitantes ¢ a “quais- quer” usuarios, seja qual for o seu bairro de origems, com igual respeito para todos. Enfim, este verdadero urbanismo nao faz do interesse geral uma fice, nem 0 esquece. Sem projeto imaginario, ele ndo ¢ auséncia de projeto, mas exigencia quanto a maneira de fazer projeto; é outra maneira de se preocupar ‘com o interesse geral, em que se di tempo ¢ espaco para compé+lo. A pesquisa de campo mostra este urbanismo que que: naa trans formagao ou a evolugée da prética urbanistica em funcionamento, Chambéry, Grenoble e suas respectivas aglomeragses nos oferecem tais campos, porque estas cidades constituem ha muito tempo verdadeiros laboratories urbanisticos, do mesmo modo que Dunkerque ou Lille, por exemplo, nos informam sobre a refundacdo da coisa urbanistica, isto é sobre © ovo imaginacio de planejamento ¢ suas possibilidades' (Chalas; Gaudin; Genestier, 1998). Hii a concepgio de urbanismo sem projeto, ou com pensamento fraco, ow, ainda, urbanismo com ceferencial fraco ou ftio. Para compreendé a como uma forma de desenvolvimento da agao publica na pratica é ne- cessairio entender 0 pensamento fraco ou pritico. O que é preciso entender or pensamento fraco? f 0 contrario de um pe: mento simples, de um. Pensamento repleto de certezas e orientado para perspectivas de futuro slaramente tracaras. Um pensamento fraco é um pensament \ornado ‘mais incerto, mais complexo, menos sistemitico e, por isso, menos polé- mico, menos constituido em doutrina. O advento de novos modos de ser no mundo, de modos de agir ¢ de fazer na sociedade iria ao encontro de certas transformagdes de nossa modernidade, ou certas formas de dectinio, © que alguns chamam o fim da modernidade, como Gianni Vattimo, a quem, alids, devemos a expresso pensamento fraco’ * Oconesito pensamento “fraco”(pensée faible) foi baseado na obra de Gianni Vattimo, La fine delis Modern. Esa obra foi traducida do italiano para o portugues por Eduardo Brando 2 surgimento do pensamento fraco caracterizaria os periodos de mutagbes histéricas, grandes ou pequenas, espetaculares ou discretas, em que a sociedade se situaria em um “entre-dois”: entre dois mundos, enwre duas culturas, no meio de uma redefinicao da transcendéncia e da imanéncia, que privaria o pensamento de pontos de referéncia imperati- vos e Ihe permitiria apenas orientagées relativas. © pensamento fraco, se nao é um pensamento sem referencial, é pelo menos um pensamento com referencial fraco Ou com “referencial frio” © referencial € uma construsio social da realidade e uma representagdo ou uma visio do mundo que a4 um sentido & agao publica ¢ assegura igualmente uma certa coesio social Cobert; Muller, 1987; Faure; Pollet; Warin, 1995). Donde a possibilidaie de chamar nio apenas de urbanismo sem projeto ou com pensamento fraco, mas também de urbanismo com referencial fraco ou referencial ftio uma certa forma de desenvolvimento da acao publica urbana na pritica, Este urbanismo em si, pritico ou com pensamento fraco, nés p>- derfamos igualmente chamar de um urbanismo com legitimidade fraca, entendendo por legitimidade nao o que denota legitimagio e racionaliza- sao a posteriori de uma relacéo de forga, mas o reconhecimento de uma ordem social comum, fundada no direito e na razdo. A legitimidade fraca corresponde a nma situagio ou a um espago no qual advém uma legitisai- dade diferente do poder jd adquirido, uma legitimidade ainda problemi- tica em seu exercicio pelo fato de que ela nao esta no momento atual em evidéncia ou com consentimento social amplo, embora tenha esta possibi- lidade no plano cultural. Ha legitimidade fraca quando surge um novo Poder com uma credibilidade reinvidicada. em 1996, que utlizou 6 terme “pensamento fraco” Nou do tradutor. 1.0 fermi em italiano pensicro debo, A figura do bairro-pretexto Como se apropriar do pensamento fraco em urbanismo? Quais so 08 Primeiros suportes ou os suportes privilegiados de expressio do pensamento fraco em urbanismo a partir dos quais se pode esperar nao apenas perceb € aponta-lo, mas igualmente decifri-lo e aprofundat a andlise? Do mesmo modo que existe hoje um flores lo jento de elementos novos, como a descentrali 140, a multiplicagdo dos atores e das instancias, ou ainda a multiplicagio dos modelos que influenciam de maneira decisi- va © rumo tomado pela pritica urbanistica, aparece no campo das preo- cupagses desta mesma pratica e canstruidos por esta, cada vez mais obje tos nao claramente identificados, como a politica da cidade, o desenvolvi- mento sustentavel, a prevengio de riscos maiores, 0 bairro (Chalas; Gaudin; Genestier, 1998). Estes objetos sao pretextos para se fazer precisa- mente 0 urbanismo de pensamento fraco, evidenciando todas as razses de eliminagdo do projeto. Uma das manifestagoes mais esclarecedoras da imaginacao dos Profissionais da cidade, em busca de uma reformulagdo do urbanismo baseada em um pensamento fraco, continua sendo a pri ‘ica da concertagao ou da participacio dos habitantes na escala dita de baitro. O que podemos observar através do urbanismo recorrente, que se produz nas “unides de bairros’, “servigos-bairros’, “diélogos-bairros”, “iniciativas-bairros” ¢ ou- tras associacdes ou dispositivos em que o ponto de vista dos habitantes € solicitado? Em primeiro Tugar, um paradoxo. Ninguém em tais assembléias sabe o que abrange a palavra baitro, mas todo mundo se acomoda muito bem a esta situacdo, um pouco como se 0 vazio ou a amplitude deixada Pelo uso desta palavra fossem a prépria condicio do surgimento de todas as expresses € de todas as descobertas possivei ‘Uma ver ultrapassada a produgao de imagens alimentada pela nos- talgia do vilarejo na cidade, o bairzo aparece como um termo cujo emprego ¢ feito regularmente na comunicagao entre politicos, urbanistas ¢ habitan- tes, sem que designe uma evidéncia claramente perceptivel ou corresponds a uma definigio minima preestabelecida, Nem ha mais, se € que um dia exis- tiu, um sentido comum do bairro ao qual se apegar. Nestas trocas entre politicos, urbanistas ¢ habitantes, o bairro designa realidades indefinides, sem nexo, freqiientemente contraditérias. Nao hd realmente critério a par- tir do qual se possa fundar a nogao de bairro: nem o perimetro, nem a arquitetura, nem a historia urbana, nem a trama urbana, nem a morfologia, espacial global, nem a funcionalidade, nem a composicao social. Nao ape- nas o bairro nao tem realidade bem referenciavel ou representaso que sca compartilhada por todos, mas, além disso, todos sabem, urbanistas e habi- tantes, que os bairros, todos os bairros, nao sio mais 0 que eram, que a vida de bairro quase desapareceu, que as relaghes de vizinhanga enfraqueceram- se consideravelmente, que no hé mais ou hé muito pouca solidariedade ¢e aproximacdo, que os centros de interesses, as amizades, os parentescos, 0s lazeres, 0 consumo se situa para todo mundo hoje fora do bairro. Entao por que sdo feitas estas reunides? © que esperam delas os participantes? O que realmente acontece ai? Elas server a qual realidade e que objetivos? O bairro € um pretexto, e é por isso que o bairro continua hoje a desempenhar um papel e a servir de referencia, Nas reuniges ditas de bair- Fo, qualquer que seja a forma, convidam-se e comparecem pessoas em nome do baicro ¢ ai se faz outra coisa, Nessas reunides hé menos questaes de bairro propriamente ditas que uma nova fusdo da acio politica ¢ urbe- nistica. O bairro nde um fim em si, mas um meio, um apoio, um terreno, ou melhor, ume terra fértil da qual o urbanismo se utiliza para se revelare provar enquanto urbanisme praticante. A palavra pretexto na expressio bairro-pretexto nao é, pois, de se compreender no sentido pejorative de falso-fugitivo, de desculpa hipdcrita ou de compld, nem mesmo no sentida mais neutro de fingimento, de aparéncia, mas na sentido dinamico, ¢ talvez também mais positivo, de realizador de uma translagao, Uma tal acepea> se aproxima, alias, do sentido primeiro ou literal da palavra pretexto, a qual designa um texto, um objeto ou uma cena que nao tém nada de cen- tral porque sua funcio € precisamente a de preceder, de preparar ou de introduzir no texto, no objeto ow na cena essenciais, Do conjunto das falas recolhidas de atores ~ quer estes atores, exn Chambéry ou em Grenoble, sejam urbanistas propriamente ditos, politi 05 relacionados ao urbanismo, arquitetos ou mesmo responsdveis de pro- jeto -. € preciso reter aquelas que parecem particularmente significativas deste novo estado do urbanismo. “Tem se bem consciéncia, apesar de tudo, de que o bairro tal qual cle existia ¢ uma realidade em deciinio”; “O bairro co} ua a ser uma definigao de perimetro que denota realmente urbanistas de trinta anos atrds, ¢ voltamos a ela hoje"; “O politico ¢ confrontado seja com proble- mas de intercomunidade, seja com problemas de proximidade de bairro me faz pensar em um albergue espanhol°”;“Eu acho que a nogio de bairro ¢, apesar de tudo, muito geral. E uma nogéo muito flexivel”; “O bair- “A nogao ro € uma outra maneira de fazer 0 urbanismo que rompe com o urbanismo do passado"; “O bairro remete a uma outra maneira de fazer politica” Por que a acéo urban{stica procura refundar-se novamente sobre a base de um pensamento pritico? Que obrigacdo, que urgéncia se Ihe im- oe? A resposta esti dividida em dois compartimentos, ¢ se ela nao é enun- ciada diretamente pelos préprios atores, pelo menos esti claramente con- {ida em seus propésitos. © pensamento pratico tornou-se uma necessidade ¢ deste modo um recurso (esta palavra foi pronunciada por varios atores interrogados), bem como uma estratégia, porque no é mais possivel & aio desenvolver-se sobre a base de um pensamento tedrico tinico. Todo 0 * Expressio francese que design um lugar para onde cada individuo trazalguma coisa, N.T. 26 ator é hoje um ator com pensamento pratico. E se nao se encontra mais 9u se encontra cada vez menos pensamento teérica, ator ou agao fundados sobre um pensamento tedrico, ¢ porque os tempos mudaram, tornaram- se incertos, eos horizontes se turvam, Nenhuma certeza, nenhum modelo, nenbuma utopia, nenhuma visio do futuro impde-se com evidéncia nem. com a forga de ontem. Nada mais hoje caminha por si s6. Além disso, se rao ha mais problemas 2 resolver hoje do que havia ontem, em revanche, «a5 respostas a estes problemas tornaram-se cada ver menos fiiceis © cada vez. menos garantidas. Nao é a auséncia de escolha que complica tudo, a0 contrario, o mimezo demasiado de escolhas. Face a uma questo, a um. problema, néo hé uma ou duas escolhas que se apresentam ¢ uma ou duas alternativas, mas, como reconhecem 0s atores, uma multiplicidade com- plexa de escolhas e de alternativas, todas possiveis. © que os socidlogos chamam de “o fim das grandes narrativas” (Lyotard, 1979) nao significa outra coisa sendo a erradicacdo de um pro: \s his- cesso de producio ou de manutensao de fundamentos e perspecti tOricas gragas ao qual se formavam na sociedade unanimidades e unidades sociais amplas e referenciaveis que alimentavam, ¢ a0 mesmo tempo se alimentavam, da existéncia de teorias. O crescimento da forca das oposi- G6es, protestos contra qualquer projeto, a multiplicacio sem precedenies dos recursos ¢ das associagoes de defesa das usudrios ou de circunvizinhas, © ceticismo dos habirantes, o espirito c: ico agugado ¢ corrosivo do ida ido simples etc. Em resumo, todos estes novos movimentos esparsos, cefemeros € sempre renovados que observam com lucidez os atores, éos quais se queixam s veres, provam o fim das unanimidades e das unidades sociais amplas e referenciéveis, e pouco a pouco, por uma espécie de de- monstragio &s avessas ou recorrente, o fim de um sistema social erigido sobre a coexisténcia pacifica ou conflitante de pensamentos tedricos, o fim das grandes narragdes sobre os fundamentos primeiros ou ltimos do socal ©, para coroar o todo, a dificuldade muito concreta, muit pragmatica na qual se encontra o ator que deve decidir, escolher, analisar, encontrar so- lucoes e respostas nao apenas aceitaveis, mas actitas por todos, Nossas sociedades modernas se tornam sociedades-de incerteza, ¢ em tal contexto os sistemas de pensamento ou de decisio mais determina- dos ndo resistem, Apenas 0s sistemas flexiveis, abertos, com determinacao minima ou varidvel, ou ainda com identidade regulavel, isto ¢, sistemas que comportam eles prOprios uma dose nio negligencidvel de incerteza e de indecidibilidade, adaptam-se e podem pretender a uma relativa eficé- cia, Em outros termos, € preciso categorias praticas ¢ flexiveis de racioci- nio para pensar ou dominar situagdes incertas, que so demasiadamente dispersas ou paradoxais. E nao ha aqui, nesta postura, nenhuma especula- $20 ou contra-senso. Hé muito tempo a prépria fisica © as matematicas ‘mostraram que ¢ possivel desenvolver um processo nao apenas de conhe- cimento, mas igualmente de dominio e de produsao wil, concreta, a par- tir da incerteza, do incompleto, do caos, do indeterminado, do descontinuo, de conjuntos flexiveis, de variaveis aleatérias, de logicas contraditérias ue sao as do “terceiro-incluido”, onde uma coisa pode pertencer a duas classes complementares, do reversivel, do desequilibrio, da catéstrofe, da bifurcacao, do nao-previsivel etc. Os teoremas ligados a descoberta desta nova visio do mundo matizaram a histéria cientifica do século XX. Quan- to as ciéneias do home e da Sociedade, eas tampouco escapam deste tipo de asao. Yves Barel, por exemplo, especialista do paradoxo, se é que ele existe, evidenciou através de um corpus de uma excepcional erudigao, que inclui as disciplinas da histéria, da economia, da politica, da psicologia, das religides, que os homens nao podiam esperar controlar situagées pa- radoxais senao pela elaboracdo de contra-estratégias, elas préprias para- doxais (Barel, 1978; Amiot; Billiard; Brams, 1993), que admitissem em seu. seio a contradigao logica (O bairto, tal qual ele aparece entre os atores (indefinido, labil, contra dlitorio), € 8 propria expresso do desenvolvimento de uma contra-estratégia paradoxal em resposta a situacao paradoxal criada pelas pressées valorizadoras € desvalorizadoras em todos os campos: social, politico ou econdmico. Manter a nogio de bairro na indeterminacao permite a ela se referir para agit sobre dois ou varios planos ao mesmo tempo e de thaneira contradi- Loria, porque a situacio tomada paradoxal, isto é, dispersa, intangivel, oscilando permanentemente de uma contradiggo a outra, nao oferece outras possibilidades. No espirita dos atores, o bairto pode servir 20 mesmo tempo ao universal, levado pelo discurso republicano da igual- dade de tratamento para todos os habitantes, ¢ av particular, que se traduz nos discursos e nos feitos pela preocupagao pragmatica de agir “caso a caso’, “milimetricamente’, “em funcao do contexte’, "segundo os alvos” ou “as singularidades dos problemas ou das quest6es”, quer estas singularidades sejam as das populagdes, dos espacos construidos ou da historia “unica”, “sem igual” dos lugares considerados etc. Todas estas express6es fazem parte, integralmente, da linguagem corrente dos atores interrogados. llustragao: “Mesmo se hé orientacdes politicas dominantes, ha sempre adap. tages em fungao dus caracteristicas de um bairro, problemas sociais ¢ econdmicos que ai se apresentam, da vinda de um tipo de populacdo ou so contrario da fixagao h4 muito tempo de um outro tipo de populacao. Enfim, tudo isto séo coisas que se ponderam milimetricamente:” As modalidades do pensamento pratico em urbanismo urbanismo pratico declina-se segundo cinco aspectos diferentes, ‘ou antes, segundo cinco modalidades possiveis. © urbanismo pritico é um urbanismo ndo-espacialista ou nao-globalizante, um urbanismo performativo ou nio-diretivo, um urbanismo integrador ou sistémico ¢ néo sistemat'- co, um urbanismo apofitico ou urbanismo em negativo, enfim, um urbanismo politico ¢ nao mais tecnicista. Estas cinco modalidades decor- rem uma da outra sem hierarquia, Basta comecar a se debrucar sobre uma elas para se chegar quase inexoravelmente as quatro outras. Estas moda- lidades se apoiam mutuamente, nao se explicam de maneira satisfatoria Sendo uma em relagao a outra, melhor ainda, sendo quando nés as envol- vemos sob um mesmo olhar. O urbanismo nao-espacialista © espacialismo é a visao enaltecida por um certo urbanismo, o da ‘eorla ¢ da planificacio, hoje em declinio, segundo o qual existe uma liga- ‘sie direta, mecanica e univoca entre espaco construido ¢ vida social, O urbanismo espacialista € assim ideologia do espaco que contém ou espaco indutor, isto ¢ espago construido que implica ou desenvolve certas prt cas de morar e censura outras. Para o urbanismo espacialista, 0 espaco construido transcende a vida social para o melhor e para o pio, Desde entio, 0 utbanismo espacialista ¢ ogicamente levado a considerar que ele €€ 80 pode ser 0 instrumento principal nao apenas do bem morar ou do ‘mal morar, mas igualmente do bem viver ou do mal viver e nada mais, £ inutil voltar a célebre formula: “O urbanismo é a chave da felicidade do homem.” Através dela € mais ficil compreender o que une de maneira indefectivel o espacialismo ¢ © pensamento tedrico em urbanismo. O ur- banismo teorizado € necessariamente um urbanismo espacialista, Mudar sociedade pare torn-la melhor, para salvé-la dela mesma, para regeneri- la, €, na otica do urbanismo teorizado, mudar o espaco construido de mancira radical, isto é, mudar inteiramente a cidade, fazé-la e refazé-la como se fosse uma tabula rasa, de grandes gestos de arquitetura urbana Sobre vastas porcdes de territérios e de utopias ou de cidades ideaisimagi- nadas a longo prazo. 30 Certas declaragoes, como as de Le Corbusier, por exemplo, nio deveriam ser esquecidas por serem muito sintomaticas deste urbanismo a0 mesmo tempo espacialista e seguro de seu papel, que contou com tant: precursores e descendentes. “Tudo esta por ser feito! Tarefa imensal”, pro- clamava Le Corbusier, contemplando Paris, ow ainda: “Meu dever, minha busca, é de tentar por este homem, hoje, fora da infelicidade, fora da catés trofe.” (Damisch, 1987, p. 16-18). Entretanto, se fosse preciso dar uma data, o inicio dos anos 80, segundo o que podemos observar através de nossas enquetes feitas com as profissionais da cidade, durante 15 anos, marca uma inflexdo em dirego 10 que chamamos de um urbanismo prético que, para falar esquematicamente parece suceder ao velho urbanismo teorizado. E se ha um sinal que nio engana a respeito desta mutacio é exatamente o da erosio da ideologia espacialista. Esclarecendo: com quinze anos de intervalo, os mesmos urbs- nistas interrogados nao sustentam mais © mesmo discurso quanto ao pi- pel desempenhado pelo espago construido na questao da felicidade ou da infelicidade de viver na cidade ou em outro lugar. Assim, antes dos anos 80, os urbanistas que trabathavam (¢ ainda trabalham) em Echirolles, por exemplo, municipio préximo a Grenoble, ‘io hesitavam em proclamar sua ideologia espacialista, seu apego aos gran- des yesios fundadores ¢ a utopia inerente a seu metier: “Nos estamos no centro das relagdes entre o problema espacial e o problema social:”“Impora ctiar espacos propicios aos encontros, as trocas e capazes de suscitar 0 senti~ mento de pertenca.”“E preciso organizar o espaco urbano de modo a que as pessoas rompam com um certo miimero de nostalgias” etc. E sobre a utopi: “E preciso reconhecer que estamos na utopia, que vivemos permanentemen- ‘te com ela, Por qué? Porque gerir, urbanizar, é fazer o jogo desta utopia ca ‘qual temos quotidianamente necessidade. Eu tenho utopia para vender, se- _ndo eu ndo faria este trabalho”; “Nao se faz nada sem a utopia, isto chama-se nada. Fla é sempre esta espécie de horizonte e passamos a vida a tentar dela nos aproximar.” (Chalas; Torgue, 1987). 3 Os entrevistados, falando sobre os mesmos lugares, quinze anos depois declaram em um tom completamente diferente, modesto e aberto, Que notadamente o econémico, e nao mais o espaco construido, constitui © fator decisivo e explicativo do bom ou mau funcionamento da vida social moderna, particularmente no que se refere aos subirbios dos grandes con- juntos em dificuldade, outrora tio desacreditados pela péssima qualidade de sua arquitetura ¢ de seu urbanismo: “O subtirbio ¢ caracterieado por uma crise econémica’; “O problema nimero um, o mais difundido, é a Pauperizagio das pessoas que moram no subtitbio. E 0 fato de que eles estio cada vez mais pobres, porque para a maioria eles tém um problema face ao emprego que torna as coisas catastrficas”; “Numa época em que havia trabalho para todo mundo, havia uma espécie de euforia. Hoje, eu ‘me tornei muito mais humilde”; “Sendo eu mesmo de formagao urbanista, Posso dizer que estamos muito longe da cultura da utopia e do projeto grandioso outrora encampado pelos urbanistas.” O urbanismo performative Quer ele seja radical ou , ou moderadamente radical, o urbanis- mo teorizado repousa sobre uma racionalidede edificadora e organizadora do espaco, de tipo linear, onde as diferentes fases, desde a definicao dos objeti- vos até a entrega do projeto realizado, passando pela adogao dos instrumen- tos institucionais ¢ operacionais apropriados, se sucedem segundo um Geterminismo em cascata, sem retomno possvel, em retroagdo decisva, por exemplo, sobre os objetivos ou os programas iniciais com vistas a sua redefinigdo, tendo em vista os primeiros resultados concretos obtidos, O urbanismo pode ser qualificado de urbanismo pritica quando sua agdo consiste nao mais em dar, na condigdo de especialista, solucaes eia- boradas aos seus pr6prios cuidados, nem mesmo em submeter suas soluyses 20 debate publico, mas, sob sua Stica pelo menos, ein encontrar solue partir do debate piblico. © urbanismo pritico ¢ v urbanismo que no tem verdadeiro projeto ou solucdo antes do debate piblico, Espera-se que assim seja. E este seu método, seu encaminhamento, Espera-se que o projeto resalte do debate puiblico, a partir da contribuigao de saberes, informagdes ou com: peténcias de todos os parceiros envolvidos, politicos, autoridades economi- as, 05 habitantes ¢ os urbanistas. “Os grandes conjuntos habitacionais correspondiam a um modelo, Agora nao se tem mais modelo, Entdo, procts- ra-se e pensa-se que se vai talvez encontrar uma solucdo na diregao dos habi- tantes ¢ da palavra habitante’, diz um dos urbanistas interrogados; outro: “Em muitos casas de projetos de planejamento urbano, ainda nao se tem a idéia bem precisa, Procura-se, ¢ todas as sugestdes sao bem-vindas.” \Q debate publico} tal como ele é idealmente encarado no urbanis. ‘mo pritico, nao ¢ um debate sobre o projeto, mas um debate para o proie- to, isto ¢, um debate que serve a descoberta do proprio projeto, Neste senti- do, a iniciativa do urbanismo pratico se quer nao normativa e prescriptiva, ‘mas heuristica ¢ performativa, Nao é a linha reta que melhor traduz a din’ mica de tais trocas. A figura do cizculo seria mais conveniente, porque é antes um vai-e-vem de perguntas ¢ de propostas entre as diferentes partes envolvidas em um projeto que se efetua pelo modo de evolucio circular ou Sinusoidal, melhor: solenoidal. © solendide é formado pelo enrolar de um fio em espiral regular ao redor de um eixo ficticio © cada volta da espira permite definir melhor este eixo e seu angulo de visio. O projet a ser elabo- rado corresponderia de algum modo a este eixo de solenide ¢ o debate Publico as voltas de espira sucessivas que progressivamente definem o eixo indeterminado no inicio. Hustragées sempre a partir de nossas entrevistes com 08 atores: “Ha sistemas de id-e-volta, Antes fazer algo rigido ou alga de mais definitivo, prefigura-se um uso com algo que é provisério, Vé-se como isto funciona e depois readapta-se”; “a gente é levado a fazer as coisas 3 Por toques, depois a observar, depois a corrigir a direco”; “Pode-se falar de um emprego mais flexivel dos projetos, mais evolutivo.” Assim, o urbanismo pratico nao admite mais partir de um quadro referencial marcado pelas légicas dualistas do tipo oferta/demanda, per- gunta/resposta, problema/solucdo, ou ainda concepgao/us . comando/pro: jeto, parecer/decisto. No novo quadro de referéncia no qual deseja inscrever- se 0 urbanismo pratico, as clivagens se estancam e os papéis se embaralham. O uso pode também se fazer concepgao, a demanda pode e deve se fazer oferta, © conhecimento, a resposta, a decisio nio so mais operagdes separadas no tempo, em fases distintas, ou segundo a fungio ou a especialidade dos par- ctiros, porque est postulado que cada uma detém pelo menos uma parte da compreensao dos problemas que se apresentam ¢ igualmente uma parte das. solugoes possiveis de produzir, Esta postulagdo é enunciada sob muitas ver- s6es pelos profissionais da cidade, mas sempre de maneira muito direta:“O problema pode ser colocado seja por uns seja por outros, isto me parece claro’; “Voces, habitantes, detém a solugdo conosco; vocés podem nos aju- dar, poder publico, a elaborar novas solugSes. Nao faremos sem woods”; “E verdade que ha um estagio prévio que 6 a informagao e ha um outro estigio que eu chamaria de informagio reciproca"; “Uma estratégia de diagndstico compartilhado, isto é, a montagem de um certo nuimero de grupos mistos de trahalho ~ politicos, habitantes, téenicos ~ que tentam decantar uum certo miimero de questdes” Debate, confronto, negociagio, compromisso ou consenso, sim, estas modalidades do agir podem ser consideradas como os referenciais do urbanismo pratico, nio porque eles seriam apenas elementos de mediacao entre posiges bem garantidas por cada um e, assim, entre dais projetos diferentes, mas porque eles esto ou procuram estar a servico de referenciais mais fundamentais, como a informagao reciproca, o diagndstico compar- tilhado, a descoberta coletiva ¢ progressiva do projeto (a claboragao solenoidal do projeto), a implicagao de cada um no projeto. © urbanismo integrador Em um processo de integragao qualquer, o todo é maior que a soma das partes, além de diferente, mas, sobretudo, elé nao existe antes cas partes, antes da reunido das partes. Este aspecto, o mais essencial da integracao, permanece por demais negligenciado. Nao sao as partes quese agregam a um todo dado previamente; sao as préprias partes que se inter- pelam e originam neste momento, e somente a partir deste momento, um todo, O fendmeno de integrasio nesta stica significa adaptacio reciproca de todas as partes envolvidas, grandes ou pequenas, compromisso entre objetivos de qualquer natureza, e, mais fortemente, resultado com 0 que esta altima nogo supée de inovacao, de invengao, de criagio. 0 urbanismo ¢ integrador porque percebe que nossos territérias contemporineos se tornam mais fluidos, mais méveis, mais multiplos e tam- bem maisnebulosos, mais indeterminados, mais incertos, mais imprevisiveis, em uma palavra, mais complexos. Nesta complexidade, 0 urbanismo se adapta, privilegiando as logicas surgidas dos sistemas combinatérios Uanvier, 1994), isto é, as interacGes diversas e inscritas no espaco € no tempo entre diferentes parceiros, de preferéncia as oriundas de uma racionalidade linear, univoca e seqilencial, guiada por uma ambicio de dominio radical ¢ conformador do espago, qualquer que seja sua exten- So. Em um contexto de alta complexidade, as informagdes, os conheci= mentos, os dadus sto méveis e dispersos. Nenhuin individuo, nenhuma instituisdo pode pretender possui-los na totalidade ou mesmo ser capaz de capitalizd-los. Sua penetracao requer uma colaboracio plural e demanda Fecomposicao, Somente uma atitude flexivel (Lorrain, 1993), aberta, atenta 4 cada projeto, as forgas presentes, as expressies, &s trajetdrias, mas tam- bém as oportunidades e as potencialidade: tem chances de obter sucesso. Em um universo tornado complexo, a capacidade de combinar, de entrecruzar, de reunificar segundo as situagées ¢, portanto, com um alcance limitado, conta mais que a obstinagio em impor uma grande idéia ou ‘uma grande visio, Em outros termos, foi a propria caducidade do urba- nismo teorizado tornado uma fabrica de imagens que promoveu a imagi- nacio viva do urbanismo pritico. Nossos entrevistados nos revelaram esta nova dimensio integradora do urbanismo: “Nao se pode mais se dar ao luxo de fazer contra"; “Uma agdo, penso que ela serve, seja qual for, a partir do momento em que ela é coletiva”; “Ha toda uma tecnicidade a inventar relagio para uma popula- ‘so que esté cada vez mais pluralizada e diversificada”; “Demo-nos conta de que ter sucesso na reinsercao social de uma pessoa é tentar afasté-la, do melhor modo possivel, da prescrigdo social”; “Estamos organizando reu- nides coletivas para por o problema sobre a mesa ¢ para que uns ¢ outros facam propostas. E sinceramente, hoje, eu nao sei no que isto vai dar”; “Eu indo sei como ¢ preciso imaginar as coisas. Em relagao a diferentes proble- ‘mas, sinceramente, eu me interrogo tanto quanto os habitantes” 0 urbanismo apofitico E apofética a maneira de pensar ou de agir que denota logica de evitamento, logica em vicuo ou ainda moral negativa. E apofitica, em ‘outros termos, a atitude que consiste em se preocupar mais com o mal do que com o bem, mais com 0 negativo do que com o positivo, mais com o exterior do que com 0 interior, mais com o supérfluo do que com o essen- I etc.; isto por estratégia, de modo a deixar ao bem, ao positivo, ao interior, a0 essencial.o maior ntimero possivel de chances, de possibilida Ges e de liberdade de existir. © apotitico provém do desvio e ndo do fron- tal, da preservacdo e nao do dominio. Para melhor se compreender o que ¢ apofatismo ¢ preciso saber que ele pode nascer igualmente do religioso e até mesmo do politico. Assim, um 36 certo enfoque da divindade foi, ¢ pode ainda ser, apofitico naquilo que sle evita, por temor do sacrilégio, sobretudo, por dificuldade em elaborar um saber sobre a divindade, de pronunciar tal qual o nome de Deus, de procu- rar responder diretamente a pergunta de o que é Deus ¢ ainda menos aquela de quem é Deus. © raciocinio religioso ¢ 0 seguinte: ha mais coisa na divinda- ce do que pode conceber o espirito humano, De modo que conceber Deus & Jo apenas inverter de man: blasfematéria o sentido da Criagdo, pois Deus concebe 0 homem ¢ nio © contrario como também ¢ operar uma redusio empobrecedora da nocéo divina para o préprio homem. Nao hi interesse para o homem em ser claro, nitido e preciso em relacao a Deus, pelo menos conceitualmente, Partir de uma idéia bem definida e completa de Deus € forgosamente correr o risco de limitar os caminhos que os homens tomam, sem 0 saber, para ascender a Deus. Segundo a légica apofatica, 10 invés de tomar todos os caminhos, é preferivel ainda dizer 0 que nao ¢ ou quem ndo é Deus para se ter mais chances de encontré-lo, Do mesmo modo, a democracia mais leiga provem também, ¢ em seus princfpios mais fundamentais, de uma légica apofatica, O Estado en uma democracia nao tem por funcao fazer o bem ou dizer o que ele €. Seu Papel € evitar que a vida social se transforme em um inferno. O que peo ‘menos € uma nuance, O que a democracia sempre pede ao Estado? Que ele garanta a existéncia de espacos informais no interior dos quais o exercicio efetivo da liberdade possa se desenvolver; que ele organize © melhor que Puder as condicoes exteriores e coletivas que permitem aos individuos vi- ver segundo o que eles consideram ser o bem ou sua vocagao; que ele impe- 52 as opressdes reciprocas sem oprimir em seu nome. A partir disso cada ‘um poder encontrar sua felicidade, se € que esta nocio tem uma realidade neste mundo vil. As democracias dizem: “Entendamo-nos sobre o que pode set o mal’, A democracia é um pensamento fraco do bem. Por urbanismo apofitico é preciso, pois, entender que o urbanism> € conduzido a se preocupar nao mais com a felicidade para todos, como 0 ppreconizava o urbanismo teorizado, mas com a minima sujeigao ou com a minima dificuldade para cada um na elaboracao do projeto. Através disto, preciso entender igualmente que 0 urbanismo pritico, e com pensamento face, recorta certos aspectos da l6gica procedimental. Com efeito, em rela so & problematica do interesse geral, © urbanismo pratico em sua versio apotitica coloca metodologicamente o vazio ou o enigma como ponto de partida de suta a¢ao ¢ nao o repleto ou um contetido qualquer. Ele nao parte do interesse geral que ¢: ira a priori, que seria determinado ou conhecido ‘em sua substancia (Scherrer, 1995) antes de qualquer ago, mas ele af chega a0 procuri-lo ¢ ae produzi-lo coletivamente em fungio dos projetos. Eis uma amostra da transcrigao de nossas entrevistas sobre esta questao: “Os proprios urbanistas tornaram-se mais modestos”; “Sabemos que podemos nos enganar”; “Meu papel ¢ o de trabalhar em torno de um certo niimero de intervengdes e de projetos de modo a evitar os efeitos reativos”; “Dirigimo-nos aos habitantes para Ihes dizer: ajudem-nos a melhor gerir, ajudem-nos a definir o que esti no limite do correto e do aceitvel”; “Qualquer que seja o projeto, é preciso partir mais a montante possivel com os habitantes e depois nao hesitar em exprimir nossas prépri- as hesitagSes. E isto. Se nbs nos fazemos perguntas € porque ads temos diividas”; “Eu nao Ihe digo que mao temos as vezes a tentagaio de impor coisas, mas tentamos limitar este defeito”: “As vezes mesmo, sobre certos Projetos, pode-se adotar uma sohicdo que nao é a melhor mas que seré melhor aceita pelos habitantes e que, por isso, torna-se a melhor’ © urbanismo politico A politizagao de urbanisino ou 0 urbanismo politico significa, em primeito lugar ¢ concretamente, ndo apenas que os politicos ocupam a cena piiblica que ¢ a do urbanismo que eles estao em contato direto com 38 ‘os habitantes no mesmo terreno, porque eles sempre tiveram mais ou menos este tipo de pritica, mas significa que sto os politicos mais que os técnicos, que hoje, sobre a questo dos bairros, da cidade e dos projetos, respondem, 1ou oferecem, ouvem ou propdem e negociam solucdies. A politizagao do urbanismo significa antes e mais fundamentalmen- te que o debate putblico e aberto, de esséncia politica, sobre a organizagio da cidade e do estar-junto na cidade torna-se a garantia de um melhor urbanis- ‘mo ou de um urbanismo dtimo mais do que a exceléncia técnica, estética, funcional e rac nal, Ou ainda, mais importante do que a ideologia enquan- to discurso construido sobre o social, com um contetido estruturado, um. pleno sentido, enunciados precisos, propostas ¢ soluydes. Conseqitentemente, no urbanismo politico enquanto faceta ou versio do urbanismo pritico,o termo politica remete menos a transcendéncia € mais a imanéncia. f a politica compreendida como oferta de politica na -gao dos habitantes, ¢ a politica como apelo 8 invengao ou & reinvengao da cidade por ela mesma. O ar dos tempos que se aspira nos servicos de urbanism municipais nao nos engana neste ponto. Os modelos técnicos tanto quanto as construgdes tedricas sao tidos neste caso por suspeitos; trata-se de ser pragmitico. “Tem-se necessidade de tm discurso e de um vocabuldrio que ndo se encontra na teoria’, é possivel ouvir em Chambéry, no mais alto nivel de responsabilidade em matéria de urbanismo e de or- ganizacio, ou ainda: “A ciéncia infusa preciso sempre preferir a ciéncia difusa e assim também os saberes urbano: © caso de Grenoble ¢ igualmente revelador. Quando a questio é 0 urbanismo de Grenoble, € exoravelmente feita alusio a0 “mito de Grenoble”. A propésito deste mito ¢ preciso guardar duas coisas essenciais * Esta Gltima frase ndo foi extraida de noseas entrevistas, mas do livro escrito pelo prefeite de “hambéry: Lette ouverte aux 400.000 Chamberiens (Besson, 1994). 38 sobre as quais estdo de acordo todos ou quase todos os observadores ou os analistas. quer eles pertencam a cidade quer nao. Em primeiro lugar, as datas que posicionam a duragao ou o apogeu deste mito no urbanismo de Grenoble: 1965-1980; elas constituem um recorte histérico que corrobora bem 0 fato segundo o qual o inicio dos anos 80 constitui uma reviravolta nna maneira de pensar ¢ de fazer o urbanismo’. A seguir, o proprio contet- do do mito que pode se resumir em trés formulas abundantemente reto- madas pelos politolégos e pelos socidlogos que se debrucaram sobre este perfodo: “renascimento do reformismo técnico na France” (Lavau, 1965), “equado moderniza¢ao-despolitizagao” ( Viasson-Ponté, 1965), “verbalismo ideolégico inflacionista” (Braneteau, 1997). Em Grenoble, na época, tratar os problemas da cidade era fazé-lo em fungio dos dados mais recentes da técnica ~ Dubedout, era 0 engenheiro que fazia o bem a cidade — e era também alimentar sem cessar, pelo discurso, uma visio do que poderia ser a ftura ¢ inelutavel sociedade socialista, bem como a nova vida e a nova cidade que dela transcorreriam, Hoje, no urbanismo pritico que tende a substituir o urbanismo teorizado, as antigas aderéncias ou dialéticas entre aesfera ideoldgica e a esfera da técnica, que Jiirgen Habermas havia anali- sado enquanto expresses de uma certa forma de modernidade (Habermas, 1973), se desagregaram. O bairro (c com ele toda q cidade) nao é mais, ou nao é mais somente ou prioritariamente, a rea de aplicacao técnica de uma teoria urbana que deseja fazer advir uma forma espaci A dimensio formal ¢ técnica do projeto torna-se secundaria em relagao a sua dimensio politica. Neste sentido, é possivel falar-se de uma despacializacdo da ques- 180 urbana em proveito de sua)repolitizagdo. Para terminar, deixemos ‘A datagao do mito de Grenoble varia evidentemente segundo 08 autores, mas de apenas alguns anos de diferenca. Esta datagdo recobre apravimadamente os és mandatos manic pats sucessivos de Hubert Dubedout, de 1965 a 1983, 40 mais uma vez a palavra aos atores: “Nos velamos para que os contratos de cidade nao sejam pilotados por pessoas que vem do HARD”; “E preciso raciocinar que, por um lado, nao se pode equipar tudo e em toda a parte, € por outro lado, que as expectativas do cidadao nao se dio senao em relagio a0 material”; “Fu tenho 25 anos de urbanismo local. Mesmo agora eu tenho, pois, um pouco de receio, Bem, eu acho que sofremos terrivelmen- da cidade”; “Minha responsabilidade é ¢ de por em forma ¢ de organizar espagos de negaciacio com os habitantes” tecom um enfoque tecnocrat NG t Referéncias z s AMIOT, Michel; BILLIARD, Isabele; BRAMS, Lucien. 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Q surgimento do Plano Diretor como um importante instrumento de planejamento urbano tem que necessariamente ser contextualizado na conjuntura politica, ccondmica ¢ social da segunda metade do século XIX. Durante a segunda revolucdo industrial, 0s paises que se industricli- zaram tardiamente, como Alemanha, Riss . Japao ¢ Italia, passaram or um complexo e rapido processo de crescimento urbano, resultando em muitos conflitos urbanos decorrentes dos novos problemas como falta de moradia, de infra-estrutura e de areas industriais, A Alemanha, apés sua unificacao em 1871, em pouco mais de duas décadas vai se transformar nume das mais importantes economias da Europa. A historiografia classica da histGria da arquiterura e do urbanismo escrita por Lewis Munford, Leonardo Benévolo, Pevsner, Giedion ¢ outros auutores afirma que o surgimnento do planejamento urbane moderno origina se nas experiéncias do Movimento Moderno e das resolugdes dos Congressos Internacionais Arquitetura Moderna ¢ principalmente nos CIAM? de 1928 " Os congressos internacionais de arguivetura moderna foram forums importantes deform lasdo e divulgaio do idedrio do modernismo e recionalismo nnsaros vine.

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