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wdsérie Criancas ¢ adolescentes nas ruas de Sito Paulo Isabel C. R. da Cunha Frontana A Bxposigdio Universal de 1889 em Paris Heloisa Barbuy A outra familia: concubinato, Igreja ¢ escandalo na colénia F. Torres-Londonio Sob o signo da nova ordem - Intelectuais autoritdrios no Brasil e na Argentina José Luis B. Beired Tipalogia documental de partidos ¢ associagies politicas brasileiras André Porto Ancona Lopez José Luis Bendicho Beired SOB O SIGNO DA NOVA ORDEM Intelectuais autoritdrios no Brasil e na Argentina (1914-1945) CH social] Edigses Loyola José Luiz Benpicho Berrep (1961) realizou seus estudos de graduagdo, mestrado ¢ doutorado em Histdria, na Universidade de Sao Paulo. Em sua trajetéria de histériador tem se dedicado ao estudo, da Hist6ria da América Latina, tendo publicado: Movimento Operdrio Argentino: das origens ao peronismo (1890-1946), Sao Paulo, Brasiliense, 1984 ¢ Breve Histdria da Argentina, Sao Paulo, Atica, 1996. E professor de Histéria da América junto a0 Departamento de Histéria da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (UNESP/ Campus de Assis), desde 1986. Programa de Pés-graduacéo em Histéria Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da USP Rua do Lago n° 77 — Cidade Universitaria 05508-900 Sao Paulo, SP Edigdes Loyola Rua 1822 n° 347 — Ipiranga 04216-000 Sao Paulo, SP Caixa Postal 42.335 ~ 04299-970 Sao Paulo, SP Tel.: (O**11) 6914-1922 Fax: (O**11) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br e-mail: loyola@ibm.net Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrdnico ou mecanico, incluindo fotocépia e gravagdo) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissdo escrita da Editora. ISBN: 85-15-02016-5 © EDICOES LOYOLA, Sio Paulo, Brasil, 1999 SUMARIO AGRADECIMENTOS ..... 7 APRESENTACAO i PREFACIO .... 13 INTRODUGAC..... 17 Cartru.o 1: OS CAMPOS INTELECTUAIS: ~ AUTO-IMAGEM E CONFIGURACAO 1.1. A direita nacionalista no Brasil ... 1.2. A direita nacionalista na Argentina 1.3. O papel dos intelectuais Cartruto 2: OS DIAGNOSTICOS DA CRISE 69 2.1. As dimensées internacionais da crise 70 2.2. As dimensées nacionais da crise... 79 2.3. O diagndstico da crise: uma perspectiva comparada 97 CapituLo 3: AS ALTERNATIVAS. 3.1. O Estado corporativo-autoritério 3.2. Intervencionismo estatal e nacionalismo econémico 3.3. A cruzada catélica 103 3.4, Militarismo e imperialismo .... 3.5. Conclusao CAPITULO 4: REPRESENTACOES E FUNDAMENTOS TEORICOS DO FENOMENO POLITICO 4.1. O culto ao golpe de Estado e ao lider carismitico .. 4.2. A concepgao de soberania politica 4.3. A questao da legitimidade do poder politico 44, Conclusao Carfruto 5: IDEOLOGIA NACIONALISTA E REPRESENTAQOES DA NACAO..... 5.1. A génese da ideologia nacionalista de direita 5.2. A nagao brasileira: romantismo e realismo 5.3. Argentina: a restauragdo de uma nacido alienada 5.4. Comparando as matrizes nacionais ...... Captruto 6: INTERPRETACOES HISTORICAS E USOS DO PASSADO 6.1. Contextos historiograficos e culturai 6.2. Argentina: os combates pela contra-histéria . 6.3. Brasil: a construcéo incompleta da nagao como problema histérico... 6.4. O sentido do processo histdrico.. 6.5. A fungao politica da historia . CONSIDERACOES FINAIS FONTES E BIBLIOGRAFIA...... AGRADECIMENTOS Este trabalho foi realizado com o apoio de diversas pessoas e insti- tuigées, as quais nao posso deixar de prestar meus agradecimentos. Inicialmente, a Dr* Maria Ligia Coelho Prado, por sua amizade e incentivo, pela orientagao clara e segura, assim como pela presteza e cui- dado na leitura dos materiais. Os colegas e amigos da Faculdade de Ciéncias e Letras da Unesp foram constantes ao longo do trabalho. Nossas discussées foram muito fecundas para o desenvolvimento da investigacao. Sou especialmente grato a Aureo Busetto e Tania Regina de Luca pela leitura critica, e a Modesto Florenzano, cujos comentérios foram importantes para a tevisao de as- pectos da histéria das idéias politicas. Anna Maria Martinez Corréa, Iara Liz. F. S. Souza, Glacyra Lazzari Leite, Maria Guadalupe Pedrero-Sanchez, Fabio de Souza Andrade e Antonio Celso Ferreira estiveram sempre pre- sentes com seu incentivo e sugestdes. A realizagdo de um estdgio de pesquisa em Buenos Aires em 1992, sob a orientagao do Prof. Waldo Ansaldi (Universidade de Buenos Aires), foi essencial para viabilizar 0 trabalho. Ao professor Ansaldi devo nao apenas a correta orientagdo da pesquisa na Argentina, mas também su- gestdes ao meu projeto e uma fértil relacdo intelectual. Agradeco as integrantes da banca, doutoras Maria Ligia Prado, Ma- tia Helena Rolim Capelato, Anna Maria Martinez Corréa, Maria Victoria S08 0 StGNO DA NovA ORDEM: OS INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO BRASIL & NA ARGENTINA (1914-1945) lembrar os escritos do general Golbery do Couto e Silva, para entender que certos grupos pensam o Brasil, por seu territdrioe por suas potencialidades, como o pais naturalmente destinado a hegemonia sul-americana. Tais problemas precisam, corajosamente, ser levados em conta paty se conhecer a histdria das relacdes diplomaticas entre os dois paises, CO Seus momentos de aproximagao, de distanciamento ou de disputa. Por. tanto, comparar o pensamento autoritdrio e nacionalista no Brasil e Na Argentina contribui para levar a assumir uma perspectiva tealista con telacdo as possibilidades concretas de integragdo do Mercosul. Em uma palavra, este livro de José Luis Beired, além de constituir. “Se em exemplo de trabalho intelectual sério e vigoroso, andlise paradig_ matica por sua clareza e densidade, contribui para repensar questdey politicas transcendentais no Brasil e na América Latina. Nestes tempos de crise, solugées autoritdrias encontram eco e se reproduzem., Assim, conhecer o campo intelectual da direita nacionalista se apresenta comg Passo decisivo para realizar o bom combate. Maria LiciA COELHO Prado Departamento de Historia Universidade de Sao Paula INTRODUCAO Brasil e Argentina foram palco de desenvolvimento de uma nova direita politica no periodo entre as duas guerras mundiais, a qual susten- tou bandeiras nacionalistas e antiliberais. Por meio de diversas corren- tes, o nacionalismo vinha se manifestando de maneira crescente nos dois paises desde 0 inicio do século XX, mantendo-se sempre fiel aos canones liberais'. Porém, os acontecimentos desencadeados na Europa pela Pri- meira Guerra, articulados as transformagées do cendrio politico brasilei- 10 € argentino, determinaram uma inflexao do nacionalismo, que passou a adquirir contornos cada vez mais autoritérios. Abriu-se o caminho para a organizagéo de uma ampla corrente politica e intelectual que denomi- namos “direita nacionalista” ou “nacionalismo de direita”, sobre a qual nos debrucaremos neste livro. Tanto os intelectuais que viveram a década de 1910 como os estudio- sos do periodo sao unanimes em assinalar o terremoto ideologico produzi- do pela Primeira Guerra e pelo advento da Revolugao Russa. Nos dois pai- ses, os tradicionais apelos nacionalistas propagados pela literatura e pelo sistema educacional foram considerados insuficientes para enfrentar um novo contexto tido como ameagador para a integridade da ordem politica e social. Surgiu entéo um novo nacionalismo de carter militante, que propu- 1. Cf. Liicia Lippi Oliveira, A questdo nacional na Primeira Repiblica, Séo Paulo, Brasiliense, 1990; Carlos Payd, Eduardo Cardenas, El primer nacionalismo argentino en Ma- nuel Gdlvez y Ricardo Rojas, Buenos Aires, Pefia Lillo, 1978; David Rock, “Las Huellas de la Tradicién”, in La Argentina autoritaria. Los nacionalistas, su historia y su influencia en ta vida publica, Buenos Aires, Ariel, 1993. WwW ‘SOB 0 SIGHO DA NOVA ORDEM: 0S INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO BRASIL E NA ARGENTINA (1914-1945) nha um programa de luta politica e a necessidade de organizagao de movi- Mentos que deveriam atuar em prol da salvacdo da nagao*, Poucos fenémenos politicos tiveram alcance téo amplo e profundo quanto a Primeira Guerra, a ponto de Eric Hobsbawm defini-la como marco inicial do século XX*. Quando a velha ordem liberal construida ao longo do século XIX desabou, descortinou-se um cendrio de diividas quan- to a nova ordem que substituiria os destrocos da era do liberalismo, cuja ideologia servira até ento para configurar o sistema de relagdes interna- cionais e a politica interior dos Estados nacionais. Por meio da Revolu- g4o russa e da ascensao do fascismo, a extrema-esquerda e a extrema- -direita transformaram-se nas grandes forgas emergentes que se propuse- tam como tarefa disputar o carater da “nova ordem” mundial e os destinos da humanidade. A partir de entéo, uma vigorosa direita politica estendeu seus tentdculos pela Europa, com um programa nacionalista, antiliberal, antiigualitario, xenéfobo e, por vezes, anti-semita e imperialista. Este livro objetiva precisamente analisar comparativamente a organi- zacao ¢ a ideologia dessa nova direita no Brasil e na Argentina, cujos princi- pais quadros foram constituidos por membros de uma categoria social espe- cifica: os intelectuais. A intelectualidade considerava-se 0 tinico segmento da sociedade capaz de oferecer respostas aos problemas nacionais e de im- primir uma direcdo politica a seus respectivos paises. Partia-se do pressu- posto de que 0 Brasil e a Argentina passavam por uma crise de proporcdes catastroficas, cuja solugdo dependia de atar os destinos da nac4o a nova ordem mundial. Nesse sentido, os intelectuais empenharam-se na tarefa de traduzir em termos nacionais a nova ordem que se impunha na Europa por meio da expansio das experiéncias autoritérias ¢ totalitarias. Definimos as duas guerras mundiais como balizas cronolégicas deste estudo por entendermos que esse perfodo foi marcado por uma crise es- trutural do sistema liberal*com relagéo a qual a América Latina no este- 2. Lucia Lippi Oliveira, op. cit., p. 145; David Rock, op. cit., pp. 100-101. 3. Eric Hobsbawm, Era dos extremos: o breve século XX. 1914-1991, Sao Paulo, Cia. das Letras, 1995. 4. Eric Hobsbawm denomina “Era da Catdstrofe” o momento histérico aberto pelo fim da era ou civilizagao liberal, precipitado pela guerra de 1914; uma série de valores e de insti- tuigées entraram em colapso: a desconfianga diante das ditaduras, o compromisso com go- vernos constitucionais eleitos e garantidores da lei, um conjunto aceito de direitos ¢ liberda- des dos cidadaos (de expressao, publicagdo e reuniao); Estados e sociedades norteados pelos valores da razio, do debate piiblico, da educagao, da ciéncia e do progresso da condicio humana. Cf. id., ibid., pp. 113-114. 18 Intropucdg ve alheia. Nos diversos paises desta drea verificou-se uma série de fend- menos que puseram em xeque a antiga ordem oligdrquica-liberal: 0 co- lapso do sistema agroexportador herdado do século XIX, a crise de legiti- magao dos modelos institucionais vigentes, a emergéncia de novos ato- tes politicos e sociais, o surgimento de novos movimentos culturais e a formulagao de novos projetos ideoldégicos. Tanto no Brasil como na Argentina, a forma como essa crise foi experimentada teve profundas e duradouras conseqiiéncias. No Brasil, tivemos os movimentos tenentistas, a Revolucgdo de 1930 e o Estado Novo. Dai surgiu um modelo de Estado intervencionista que fundou sua legiti- midade na defesa do desenvolvimento econémico, da integracdo territo- rial, dos direitos sociais, tudo isso em nome do interesse nacional. Por outro lado, a Argentina viveu uma notavel democratizagao politica com 0 acesso da Unido Civica Radical ao poder em 1916, € passou por duas gcandes rupturas institucionais marcadas pelo antiliberalismo e pelo na- cionalismo: a primeira em 1930, com o golpe militar que derrubou o ra- dical Hipélito Yrigoyen da presidéncia, e a outra em 1943, com outro golpe militar que acabou por desembocar na eleigao presidencial de Juan Domingo Perén, em 1946. O surgimento do nacionalismo de direita significou uma ruptura com o padrao tradicional da direita preexistente em ambos os paises, a0 assumir a defesa de posigdes antiliberais, nacionalistas, estatistas e corporativistas. A direita nacionalista era qualitativamente diversa da direita existente até entéo — quer liberal, quer conservadora —, pois recusava de forma completa os principios e as regras institucionais libe- tais. Nesse sentido, contra o avango da modernidade politica e cultural, propunha a manutencdo das “tradicdes nacionais” e defendia principios antiliberais e antiigualitdrios. Liberdade e igualdade eram tidas como pu- tas abstragdes a ser substituidas por outros valores politicos que privile- giassem a autoridade, a ordem, a hierarquia e a obediéncia. Nos dois paises, os membros da direita nacionalista participaram ativamente de um acirrado debate que pés em questdo todas as idéias vinculadas a tradicdo iluminista. Os problemas nacionais passaram a ser atribuidos a incongruéncia entre a realidade e 0 artificialismo das insti- tuigées liberais. Supunha-se que o liberalismo devia ser substituido por uma “auténtica ideologia nacional”, pois era nio apenas uma importa- cdo com nefastos efeitos sobre essas nagdes, como também estava defi- nhando em seus paises de origem, o que provava sua inata incoeréncia. 19 Sono sino DA NOWA ORDEM: 05 INTELECTUAS AFTORITARIOE NO BAAS ENA ARGENTINA (1914-1945) Os intelectuais autoritarios atuaram de forma incisiva por mein de movimentos e publicagées, conseguindo afirmar-se como participes dy debate sobre a formulagdo de alternativas 4 ordem oligérquica-liberal, 4. posicao desses intelectuais junto as camadas dirigentes nao foi eqUiva, jente no Brasil e na Argentina, e veremos que foram mais prestigiadys g legitimados no primeiro pais que no segundo. De qualquer modo, iNtro, duziram uma série de propostas, temas, interpretagées ¢ representayieg sobre as questées nacionais que imprimiram uma inflexdo no ambient, politico e intelectual de ambos os paises’, O elenco de alternativas sugeridas para a superacao da ordem libe_ ral teve como ponto de partida a realizagao de diagnésticos sobre 4 Crise contemporanea. A nogdo de crise adquiriu nova significagao apés a Prj_ meira Guerra Mundial, que passou a ser identificada como o fator degjs;_ vo para o fim de uma era da civilizagao ocidental. Os significados qa “nova ordem” dependeram dos diagndsticos da crise, e, por isso, 0 pro. grama para superar os problemas nacionais nao foi univoco € contem. plou as seguintes alternativas: a) criagdo de um Estado corporativo-aytg. ritdrio; b) industrializagao, nacionalismo econémico e intervencionism, estatal na economia; c) reespiritualizacao da sociedade e do Estado; a) imperialismo militar. A proposicdo de tal programa foi acompanhada por um dehate centrado em trés eixos que visavam redefinir os fundamentos do Poder politico, da nacionalidade e da meméria historica da coletividade. Polity. camente, procurou-se negar os principios politicos liberais e democratj. cos em favor do autoritarismo, do elitismo e do corporativismo; um dog principais alvos foi o princfpio da soberania popular. O debate sobre g nacdo objetivou valorizar suas definigdes culturais — cultura, tradigdes, lingua, raga, meio e religiao — em detrimento do conceito politico, fixa- doa partir da Revolugdo Francesa, que compreendia a nado como Corpo politico dotado de direitos de soberania. Quanto a questao da histéria, entendia-se que ambos os paises tinham se desviado do “curso natural” de sua trajetéria histérica, pondo em questdo a nacionalidade; o passado 5. Para o Brasil, Bolivar Lamounier assinalou o papel desempenhado por intelectuais autoritérios como Alberto Torres, Oliveira Vianna, Francisco Campos e Azevedo Amaral. Cf. Bolivar Lamounier, “Formacéo de um pensamento politico autoritério na Primeira Re- publica. Uma interpretagao”, in Histéria geral da civilizagao brasileira, tomo HII, volume [1 (org. Boris Fausto), SA Paulo, Difel, 1977. 20 Intropucéo foi assim reinterpretado a luz das questées do presente, de modo a expli- car como a trajetoria da histéria nacional desembocava na op¢ao pelas solugées politicas autoritarias. Este livro pretende explicar certos aspectos da ideologia nacionalis- ta de direita buscando superar tanto a perspectiva nominalista — centra- da em um ou outro intelectual, uma ou outra publicagao ou organizagéo — como a homogeneizadora — que trata o conjunto sem diferenciar as partes. Nesse sentido, buscaré assinalar os matizes das correntes da di- reita nacionalista sem perder nunca de vista a unidade do conjunto em que se inseriam. Para tanto, optamos por selecionar um elenco de temas e questdes relativamente delimitados, a partir dos quais exploraremos a produgao ideoldgica. Além disso, compararemos fenémenos andlogos si- tuados em dois paises latino-americanos, o que tem sido pouco habitual na historiografia e que consideramos fundamental para melhor compreen- der nao s6 0 Brasil e a Argentina, mas, num sentido amplo, a historia da América Latina. Marcos teéricos e metodoldgicos A significativa quantidade e variedade de intelectuais, grupos poli- ticos, livros, revistas e jornais que aqui abordamos condicionou sua sis- tematizacao a partir de uma série de critérios tedricos e metodoldgicos. O conceito de campo permitiu-nos trabalhar aquele conjunto de intelectuais e suportes materiais como integrantes de um campo intelec- tual e ideolégico especifico: a direita nacionalista. Tomamos 0 campo como um sistema de relagdo de forgas em que seus integrantes concor- tem com 0 objetivo de se impor sobre os outros agentes e disputar a hegemonia com as forgas restantes do espectro ideoldgico, politico e cul- tural6, Apenas por questdes praticas chamamos campo a direita naciona- lista, pois trata-se antes de um subcampo que integra com outras corren- tes o campo politico, intelectual e ideoldgico. Os intelectuais da direita nacionalista desenvolveram com vontade militante uma ideologia e um conjunto de propostas com o intuito de no apenas intervir na esfera politica, mas também de transformar-se 6. A respeito do conceito de campo, ver Pierre Bourdieu, O poder simbélico, Lisboa, Difel, 1989, pp. 7-15; 64-73. 21 S08 0 sioNo DA Nova ORDEM: 05 INTELBCTUAIS AUTORITARIOS NO BRASIL ENA ARGENTINA (1914-1945) em “consciéncia” e “lideranca” das classes dirigentes. Tais intelecyyaig atuaram numa zona de intersecdo entre dois campos, 0 politico e 0 jhte. lectual’, e evidenciaram a enorme influéncia que essa categoria S0vial Podia ter nas sociedades brasileira e argentina da época. Ao investigar a direita nacionalista, constatamos que — embgtg conjunto de intelectuais, publicagdes € organizagdes possuissem chytg unidade por seu cardter antiliberal e nacionalista — sua divisdo em 4ub_ correntes ideolégicas permitia uma melhor compreensao tanto de Sag Partes como do todo’. Essa divisio resultava dos diferentes pressupostog te6ricos, programase interpretagdes da realidade que informavam 08 Cyn. Ponentes dessa nova direita. Além disso, percebemos que os conjujtos dos dois paises nao eram simétricos. Havia, por exemplo, intelectuais de um dos paises sem equivalentes no outro. 7 O conceito de campo permitiu-nos equacionar as subdivisdes d4 dj. Teita nacionalista como um dado constitutivo e definidor de sua Prdptig conformacao. Os campos intelectuais dos dois paises estruturavam-ye a Partir de certos pélos ideoldgicos: na Argentina, a direita nacionalista apre. sentava uma estrutura diddica; no Brasil, o campo possuia uma conforma. Sao triddica®. Em outras palavras, os agentes e suportes materiais da dizej. ta nacionalista argentina distribuiam-se entre dois pdlos ideoldgicos: tate. lico e fascista. As posigées de seus componentes ou encontravam-se nog limites do campo, coincidindo com os préprios pélos, ou situavam-sa em algum ponto entre os dois extremos — neste caso, ocorria com freqiiénejg a mescla de elementos fascistas e catélicos em um mesmo agente. Em contrapartida, no Brasil, a direita nacionalista apresentava-g¢ configurada por trés pdlos: fascista, catdlico e cientificista. A assimétria entre os campos dos dois paises decorria principalmente da existéncig do terceiro pélo!, que nao tinha similar na Argentina. O recurso ao conceito de campo como espago dominado por cértos POlos a partir dos quais as posigdes no campo sao definidas torna-se, 7. Sobre a questo da intersegdo entre os campos, ver id., ibid., pp. 55-57. 8. Estamos usando coletivos singulares — por exemplo conjunto, campo — para nomear fendmenos relativos tanto ao Brasil como a Argentina, 9. Sobre a estrutura dos campos, ver P. Bourdieu, op. cit., p. 180. 10. Entendemos por cientificista a corrente intelectual informada pelo positivismo em Suas diversas manifestacdes: sociclogia comtiana, evolucionismo, organicismo, darwinismo Social, biologisma, mesologia e antropogeografia. 22 Inrropucho pois, fecunda para dar conta de um objeto que é dinamico ao longo do tempo. De outro lado, também oferece uma chave para superar a dificul- dade de separar rigidamente as diferentes correntes da direita naciona- lista, bem como para compreender o cruzamento das trajetérias de cer- tos intelectuais no interior do nacionalismo de direita. Esquematicamente, os componentes da direita nacionalista aqui estudados distribuiam-se da seguinte maneira no interior do campo poli- tico e intelectual: Brasil 1) Polo cientificista: congregava os intelectuais que encaravam a realidade social como um fenémeno evolutivo regulado por leis natu- rais!", Enquanto na postura iluminista a razdo era a fonte explicativa e norteadora da agdo humana, na perspectiva cientificista esse papel pro- vinha do conhecimento cientifico. O trabalho intelectual deveria voltar- -se para a descoberta das leis naturais que regiam 0 social, de modo a explicar e conduzir o desenvolvimento humano. O positivismo, que dei- xou profundas marcas no pensamento intelectual brasileiro, foi uma das expressées do cientificismo. Francisco José de Oliveira Vianna e Antonio José do Azevedo Amaral sao figuras representativas dessa cor- rente ideoldgica. 2) Pélo catélico: tomamos o grupo de intelectuais que gravitavam em torno da revista catélica A Ordem (1921-1945)? e do Centro Dom Vital como sua mais pura expresso. Jackson de Figueiredo e depois Al- ceu Amoroso Lima, mais conhecido como Tristao de Athaide (1893- -1983), foram seus principais lideres e referéncias intelectuais. 3) Pélo fascista: o integralismo foi a principal expressao dessa ten- déncia da direita antiliberal, ao lado de outros movimentos menores. 11. Tomamos a expressdo “cientificista” de Roque Maciel Spencer de Barros, A Itustra- ao brasileira e a idéia de universidade, Sao Paulo, FFC da USP, 1959, pp. 33; 113-118. O autor identifica trés tipos de “mentalidade” intelectual entre 1870 ¢ 1914: catélico-conservadora, liberal e cientificista. 12. A Ordem teve como diretores Jackson de Figueiredo, Tristéo de Athaide e Perillo Gomes, ¢ contou com os seguintes colaboradores: H. Sobral Pinto, Hamilton Nogueira, Augusto Frederico Schmidt, Jonathas Serrano, Plinio Corréa de Oliveira, Pedro Dantas, Luiz Delgado e Afonso Celso, entre outros. 23 SoB 0 SIONO DA NOVA ORDEM: 0S INTELECTYAIS AUTORITARIOS NO BRASIL E NA ARGENTINA (1914-1945) Centramos nossa atencdo nos escritos de Plinio Salgado e Miguel Reale, dois dos principais lideres integralistas. Argentina 1) Pélo catélico: reunia o conjunto de intelectuais que participa- yam da revista Criterio, equivalente argentina de A Ordem. Dentre eles, destacamos os padres Julio Meinvielle e Gustavo Franceschi, além de César Pico, Tomas Casares; havia figuras que escreviam na revista mas estavam vinculadas a outras publicagdes: Juan Carulla (editorialista do jornal La Nueva Repiblica e depois diretor de Bandera Argentina, jornal de posigao filofascista), Ernesto Palacio e Rodolfo Irazusta (diretores de La Nueva Republica), Enrique P. Osés (diretor da revista e depois funda- dor de dois jornais de posigdes protonazistas: Crisol € Pampero). 2) Polo fascista: esta posicao foi integrada por figuras como Enrique P. Osés, Carlos Ibarguren, Roberto Laferrére, Juan Carulla e 0 poeta € escritor Leopoldo Lugones. A maioria deles participava de agrupagées fascistas. 3) Uma terceira corrente pode ser situada entre os dois pdlos ante- tiores. Era composta principalmente por intelectuais que se agrupavam em torno dos jornais La Nueva Reptiblica (1927-1932) e Nuevo Ordern (1940-1942)"3 ¢ da revista Nueva Politica (1940-1943)*4, A respeito das relagées entre os intelectuais, verificou-se certo en- trelagamento de suas trajetérias nos dois paises. No Brasil, intelectuais das trés correntes que assinalei escreveram por exemplo na revista Hig- rarchia. O laicato e a propria ctipula eclesiastica catélica flertaram com o integralismo ou 0 apoiaram explicitamente, pois este nao sé fazia a defe- sa do catolicismo como também era a mais potente organizacao politica contestadora do comunismo e do liberalismo. Uma definigao ideoldgica em termos absolutos dos intelectuais argen- tinos é tarefa freqiientemente impossivel, pelo fato de muitos deles articula- 13, Era dirigido por Ernesto Paldcio ¢ contava com Julio ¢ Rodolfo Irazusta, Ricardo Font Ezcurra, Pedro Juan Vignale, Carlos Steffens Soler, Leonardo Castellani, Héctor Llambjas, Mario Garay ¢ Bruno Jacovella, entre outros. 14. A revista era dirigida por Marcelo Sanchez Sorondo e contou com os seguintes inte- lectuais: Federico thargures, igndcio B. Anzéategui, Maximo Etchecopar, Héctor Saenz y Quesada, Héctor Llambias, Nimio de Anquin, Juan Pablo Olivier, Héctor Bernardo, Alvaro de las Casas, Ricardo Zorraquin Beca, Alejandro Ruiz-Guifiazu, Carlos Steffens Soler e Carlos Astrada, entre outros. 24 IntrooucAo rem contetidos ideolégicos fasvistas e catélicos, por exemplo o grupo neo- republicano e o de Nueva Politica. Ademais, determinados nacionalistas participaram de diferentes tevistas e jornais, 4s vezes simultaneamente. Entretanto, pode-se afirmar que a defesa do catolicismo era um denomina- dor comum permanente, com a notéria excegao de Leopoldo Lugones. De qualquer modo, em contraste com o Brasil, salta a vista o fato de nao haver na Argentina qualquer intelectual da direita nacionalista com posigées cientificistas. Essa assimetria fundava-se em fatores histéricos e veremos ao longo do livro como ela explica uma série de diferengas entre os intelectuais brasileiros e argentinos. wee Tomamos por base jornais, revistas e livros produzidos pela direita nacionalista entre as duas guerras mundiais, evitando o uso de escritos posteriores dos intelectuais aqui tratados. A repercussao daqueles veicu- los extrapolou em muito as pequenas dimensdes da maioria dos circulos intelectuais € politicos, contribuindo para a constituicao de um ptiblico informado pelas idéias daquela direita. A partir de tais fontes, foi possivel desvendar a racionalidade inscrita na produgao ideoldgica da direita nacio- nalista, ou, em outros termos, elucidar certos elementos constitutivos da dominagéo simbélica projetada por este segmento do campo intelectual. Entretanto, no exame do assunto no Brasil nos deteremos em no- vembro de 1937, ou seja, no momento de instauragao do Estado Novo. Utilizamos este critério na medida em que consideramos que sob o Estado Novo houve uma recomposi¢ao ideolégica do campo intelectual em fun- cdo das aliangas, aproximagées ou oposigées entre os intelectuais e o Esta- do. Aqueles que a partir de posigoes nacionalistas de direita apoiaram e participaram do novo regime tornaram-se idedlogos a seu servigo, e por- tanto a ideologia desenvolvida a partir de entao deve ser examinada com uma perspectiva particular. Quanto a Argentina, o limite de 1945 nao nos deixa penetrar no perido peronista (1946-1955), cujo estudo também de- manda os cuidados mencionados com relagao ao Estado Novo. Entendemos que os documentos produzidos no periodo proposto sao suficientes para a realizagio de uma andlise da racionalidade interna do sistema ideoldgico da direita nacionalista — 0 que nao exclui sua contex- tualizagdo dentro e fora do campo intelectual. Consideramos o conjunto de textos selecionados para esta andlise um corpo cocrente de documentos, 25 S08 0 SIGNO DA NOVA ORDEM: OS INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO Basie NA ARGENTINA (1914-1945) formado por diferentes séries, mas dotado de homogeneidade e unidade. Q corpo documental ¢ aberto, pois outras fontes ¢ intelectuais poderiam ser agregados, mas 0 consideramos suficiente para os propésitos deste traba- Tho, porque foram selecionados alguns dos intelectuais e documentos mais representativos da producdo ideoldgica da direita nacionalista!s, A maioria dos jornais, livros e revistas em questao constitufram g suporte material a partir do qual foi possfvel que determinados circulos de intelectuais se organizassem quando nao contavam com um partidg ou associacgao legalmente formalizada. E 0 caso dos jornais La Nueva Repiblica e Nuevo Orden e de tevistas como A Ordem, Criterio e Nueva Politica, que ao mesmo tempo difundiam suas idéias'*, Nesse sentido, desempenharam o papel de “lugar” de organizacao politica dos intelec- tuais, operando como se fossem clubes politicos. E importante registrar que o papel assinalado as publicagées foi tig mais importante na medida em que tais intelectuais recusaram-se, ng maioria dos casos, a formar partidos, tenha sido por principio doutring- rio — € 0 caso da direita argentina — ou por questao de estratégia — g Igreja reprovava, por exemplo, a criagao de partidos catélicos. Mesmo 9 integralismo sé chegou a se transformar em partido com o intuito de chegar ao poder e destruir o sistema representativo. Em sintese, analisaremos certas “séries de discursos” que estruty- raram a realidade a partir de determinados pressupostos, de modo a afiy- mar certos grupos no interior do campo intelectual e politico; a produzir uma nova cultura politica’’ e até um novo imagindrio'®, capazes de se impor como uma nova forma de dominacao simbélica. 15. Sobre os fundamentos a respeito do corpo documental ver Miche! Foucault, A arqueg- logia do saber, 3* ed., Rio de Janeiro, Forense-Universitéria, 1987, pp. 11-13. 16. Na Franca determinadas revistas também desempenharam esse papel na organiza. So da intelectualidade de direita. Eo caso da Revue de VAction Francaise (1899), que s¢ transformou em 1908 no jornal diério L’Action Frangaise. E também de um conjunto de Publicagées patrocinadas pelos chamado: +1931), Revue Frangaise (1930-1933), Réaction (1930-1932), Revue du Sidcle (1933-1934), La Revuedu XXe Siecle (1935-1939), Combat (1934-1935), Sprit (1934-1940) e Nouveau Ordre (1934-1938). Ver Jean-Louis Loubet del Bayle, Les non-conformistes des annés 30. Une tentative de renouvellement de la pensée politique francaise, Paris, Seuil, 1987, 2° ed, Estas publicagdes formavam um movimento politico intelectual demarcado por idéias catélicas ¢ fascistas. 17. Por cultura politica devemos entender 0 conjunto de atitudes, crengas, normas ¢ valores comuns a toda uma populacdo, assim como das inclinagées ¢ padrdes que podem sey encontrados em segmentos dessa populagdo. Cf. Gabriel Almond, G. Bingham Powell Jr., Uma teoria politica comparada, Rio de Janeiro, Zahar, 1980, p. 20. 18. Cf. Bronislaw Baczko, “Imaginagao social”, in Enciclopedia Einaudi. Anthopos-Ho- mem, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, pp. 311-312. 26 nrropucio: Para abordar a produgao ideoldgica presente no material documental desta pesquisa, utilizamos 0 conceito de ideologia politica ou sistema ideolégico, como visio de mundo estruturada e estrurante que objetiva assinalar o sentido dos atos coletivos, tragar 0 modelo da sociedade legi- tima em termos de fins, fundamentos e organizacao, bem como a forma legitima de manifestagao da autoridade politica!®. Ademais, a ideologia politica unifica os homens em torno de um conjunto de aspiracdes, sen- timentos e idéias, conferindo assim identidade a um grupo que sé opée a outros”?, Compreendemos os sistemas ideolégicos como artefatos simbdlicos formados por conjuntos articulados de representagées. A representacao pode ser definida como a enunciaao, ou nomeagao, de algo que esta au- sente, conferindo a este um determinado significado que, longe de ser uum reflexo, consiste basicamente numa interpretagao. Entendemos ser 0 conceito de representagao mais apropriado que o de mentalidade, para os fins deste estudo. Isto é, para explicar a produgdo de sistemas ideoldgi- cos, de modo articulado as estratégias de legitimagao e de disputa do po- der politico e simbélico'. A imposigao de valores, de uma concepgao de mundo de um grupo, é uma das estratégias para alcangar uma posicao de dominio no interior de certo campo e com relaco ao conjunto da socie- dade. Assim, tomamos as representagdes como produtos da pratica social elaborados segundo determinadas estratégias de seus agentes, que devem ser enfocados qualitativamente e nao quantitativamente, como em uma concepcdo estruturalista das mentalidades”2. Qual o lugar deste estudo no contexto da historiografia politica? Trata-se de uma histéria comparativa das idéias e dos agentes politicos realizada na perspectiva da histéria do politico. Segundo este enfoque, a histéria politica deixa de ser concebida exclusivamente como historia da 19. CE. Pierre Ansart, Ideologias, conflitos e poder, Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p. 36. 20. Roges Chartier, A histéria culeural. Entre prdticas ¢representagées, Lisboa, Difel, 1990, p.47. 21. C8. id,, ibid., pp. 19-23; Pierre Ansart, op. cit., pp 35-46; Pierre Bourdieu, op. cit., PP 7-15, Bourdieu considera as representagdes “enunciados perfomativos que pretendem que acontega aquilo que enunciam” (p. 118). 22, Roger Chartier, op. cit., pp. 29-53. Para o autor, “as Jutas de sepresentaghes tém tanta importéncia quanto as lutas econdmicas na compreensio dos mecanismos pelos quais um grupo impée, ou tenta impor, a sua concepcao do mundo social, os valores que sto os seus, € 0 seu dominio” Cf. p. 17. 27 ‘S0B 0 SIGNO DA NOVA ORDEM: 08 INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO BRASIL E NA ARGENTINA (1914-1945) politica, isto ¢, como fenémeno restrito a organizacées partidarias e ing’ tituigdes estatais. O objeto da histéria politica amplia-se, pois o dominjd do politico nao tem fronteiras fixas: ele tanto pode dilatar-se até inclujf toda a realidade, absorvendo a esfera privada, como retrair-se ao extre’ mo. Cada momento da historia define o grau de abrangéncia, os espagns ocupados ou os dominios perpassados pelo politico’. Em nosso caso veremos como 0 politico comunica-se com os dom{’ nios mais diversos: com a disciplina histérica, com o debate sobre a defy nigao da nagao, de sua identidade e de seus simbolos, com a religido, coy! as relagées internacionais, com a economia, além evidentemente do Eg tado e da politica no sentido estrito dos termos. O francés Pierre Rosanvallon sugeriu uma proposta de trabalho extremamente sugestiva para o estudo da histéria das idéias politicas24, que consideramos pertinente para o desenvolvimento deste estudo. Dg’ fende ele a realizagao de uma “histdria conceitual do politico” como altey’ nativa as formas tradicionais de histéria das idéias politicas, dentre a6 quais enumera: a tentagao do diciondrio, a histéria das doutrinas, a con paracao textual, o reconstrutivismo e o tipologismo. Evocando Max Webeg, Rosanvallon objetiva reconstruir a maneira pela qual os atores elaborays sua percepcao das situagées, como pensam sua agdo e seus impasses?!. Nessa perspectiva, este trabalho objetiva abordar a produgao ideoldgics da direita nacionalista buscando explicitar e explicar a racionalidade dé suas representagées, de seus conceitos, de forma articulada as agdes dos intg- lectuais. Para isso, ndo nos restringiremos aos textos produzidos pela di- feita nacionalista, mas consideraremos também a dinamica instituciongl do Brasil, da Argentina e do contexto internacional, assim como as ter s6es que atravessavam o campo nacionalista. Como trabalho comparativo, este estudo nos impés uma série de de safios teéricos e metodoldgicos que poderiam ser sintetizados por meio dé trés questdes: o que é a comparacao, por que comparar, como comparar? Consideramos que o tratamento comparativo abre a possibilidade de compreender de forma mais global os fendmenos histéricos. Recor: 23. Cf. René Remond, “Du politique”, in René Remmond (org.), Pour sue histoire politique, Paris, Seuil, 1988, pp. 379-387. 24, Pierre Rosanvallon, “Pour une histoire conceptuelle du politique ( note de travail)”, Revue de Synthese, IV, nos 1-2, jan.-jun. 1986, p. 96. 25. 1d,, ibid., pp. 101-102. 28 Intropucho TC dando Mare Bloch, a generalizacao e o aperfeigoamento do método com- parativo sao necessidades que se impéem aos estudos histéricos. O en- tendimento da racionalidade de um fenémeno particular passa pela com- paragdo com outros similares”®. Para Bloch, a comparagcao é fundamental para compreender a historia e para visualizar novas questdes. Entendemos que o objeto desta pesquisa contempla os requisitos sugeridos por Marc Bloch. Temos dois fendmenos que guardam inume- ras analogias: a formulagao de andlises sobre a natureza dos problemas nacionais, num contexto de crise do liberalismo, por parte de intelectuais que se posicionam a partir de uma perspectiva nacionalista e com graus variados de autoritarismo. Por outro lado, os lugares onde os fenémenos se manifestam sdo diferentes, tém histérias peculiares, com problemas especificos e tradigdes culturais diversas, embora os dois paises sejam vizinhos, periféricos e de colonizagao ibérica. Nao temos divida de que 0 esforgo comparativo propiciard a reali- zagao futura de sinteses mais elaboradas sobre esta e outras teméticas da historia latino-americana. Nesse sentido, nao nos furtamos a lutar con- tra aquele considerado, por Bloch, o maior obstdculo 4 historia compara- tiva: “[...] ele é de ordem intelectual; ele vem de hdbitos de trabalho, que sem diivida nao é impossivel reformar.?”” 26. Mare Bloch, “Pour une histoire comparée des societés européennes”, in Mélanges historiques, tomo I, Paris, S.F.V.E.N., 1963 (1* ed. do artigo, 1928), p. 22. Outros autores posteriores também sustentaram enfaticamente 0 método comparativo. Para Bourdieu, este é 0 método fundamental — ao permitir pensar relacionalmente ¢ analogicamente — para o estudo dos campos; P. Bourdieu, op. cit, pp. 32-33. 27. Mare Bloch, op. cit., p. 38. 20 pearehoiter of) nin .. sageabeienderisens zobr stamp stint sendy tatu x: Sateen ohne feex. Ont apdimanp enw omit adores sep BORE : -ipitenlehara tole ascites 8 sapiosigind gh oniuq aqme BCR thd kavilern ion ay) aadomidaped shae eeracl 20:4 eantsidonpanna: gireilsvag en. renfeeesete zich: 00 pods z © psa ele one fh gio tive TS cAPITULO 1 OS CAMPOS INTELECTUAIS: - AUTO-IMAGEM E CONFIGURACAO O desenvolvimento da direita nacionalista foi condicionado pelas ca- tacteristicas do ambiente intelectual e pelas transformagoes sociopoliticas do Brasil e da Argentina. O pano de fundo de ambas as situagées foi uma acelerada modernizacao econémica, cujos desdobramentos foram o cresci- mento e a transformagao radical da paisagem dos principais centros urba- nos', ao lado da expansao das classes média e operdria. O cenario das grandes cidades foi se tornando cada vez mais cosmopo- lita e palco privilegiado de crescentes disputas politicas, ideoldgicas, sociais e culturais, que se traduziram num conjunto de oposigées: rural/urbano, litoral/sertao, nacionalismo/cosmopolitismo, modernismo/passadismo, modernidade/tradicao, espiritualismo/materialismo, nativo/imigrante, mas- sas/elites, oligarquia/democracia, liberalismo/antiliberalismo, esquerda/di- reita, industrialismo/agrarismo, entre as mais significativas. Os intelectuais, como produtores de bens simbélicos, ganharam cada vez maior importan- ciae visibilidade social num cenario marcado pelo crescimento vertiginoso do mercado editorial de livros, jornais e revistas. Por outro lado, as polémicas levantadas pela emergéncia das vanguardas estéticas articularam-se a dis- cussao sobre os problemas nacionais, fazendo com que cultura e politica se 1. Ocrescimento de determinadas cidades foi vertiginoso. Buenos Aires passou de 677.000 habitantes em 1895, para 2.415.000 em 1936. Entre 1900 ¢ 1940, Sao Paulo saltou de 239.820 habitantes para 1.258.482; ¢ o Rio de Janeiro de 811.443 para 1.519.010. 31 S08 0 SIQNO DA NOVA ORDEM: OS INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO BRASIL E NA ARGENTINA (1914-1945) tornassem mais do que nunca termos indissociaveis. Foi exatamente ness? contexto de transformagées globais da sociedade brasileira e argentina qué onacionalismo deixou de ser um movimento essencialmente cultural e lite’ rario para tornar-se cada vez mais politico. Segundo o historiador britanico David Rock, a Primeira Guery4 Mundial, a Revolugdo russa e a chegada da Unido Civica Radical ao po” der determinaram as mudangas no nacionalismo argentino”. Este foi abay donando seus contornos pré-politicos para transformar-se num movi’ mento furiosamente critico das instituigdes liherais. Um dos primeirg$ sinais dessa mudanga foi a criagdo da Liga Patriotica Argentina em 1919- movimento de critica e de agdo publica para combater 0 movimento sip dical, o anarquismo e o comunismo?, em nome da patria, da ordem social e da religiao catdlica. Fundada por iniciativa de clubes da elite de Buengs Aires e de associacoes militares, a Liga ganhou relevante apoio das clas: ses dominantes e médias. Desenvolveu ampla atividade de proselitigmo ¢ apoiou a repressio governamental aos movimentos de trabalhadores inclusive por meio de agées paramilitares. Entretanto, a Liga ndo chegov a desenvolver as caracteristicas da direita nacionalista, por exemplo 0 antiliberalismo politico e econémico, nem a pretensao de tornar-se umd forga politica de vanguarda com vistas a destruir a ordem liberal pard substitui-la por outro regime politico. Também foi muito importante 0 papel desempenhado por La Fronda, jornal didrio fundado em 1919, no qual escreveram muitos dos que iriam compor o nacionalismo de direita- O jornal sustentava posigées conservadoras e criticas a democracia, a imigragao ¢ ao “yrigoyenismo” — corrente do radicalismo que era lidera- da pelo presidente Hipdlito Yrigoyen e buscava mobilizar o eleitorado popular e de classe média urbana’. Paralelamente, no Brasil surgiram intimeras organizacées e publi- cagées nacionalistas, com posturas que iam do liberalismo & extrema- -direita. Com um enfoque nos marcos liberais, tivemos a Liga Naciona- 2. Cf. David Rock, La Argentina autoritaria Los nacionalistas, su historia y su influencis ena vida piblica, Buenos Aires, Ariel, 1993, p. 100. 3. Sobre a Liga, ver Sandra McGee Deutsch, Counterrevolution in Argentina. 1900 1932. The Argentine Patriotic League, University of Nebraska Press, s/d. 4. Esta corrente também foi chamada de “personalista” pelos opositores de Yri dentro da Unido Civica Radical, que organizaram a chamada ala “antipersonalista”, liderad® por Marcelo T. Alvear — presidente da repiiblica entre 1922 e 1924 —, contra as posigaes “populistas” e o apelo carismatico de Yrigoyen. 32 OS CAMPOS INTELECTUAIS: AUTO-IMAGEM E CONFIGURAGAO lista de S40 Paulo (1917-1924), que defendia a “verdade eleitoral”, o com- bate a abstencdo e a fraude nas eleigées’; e a Revista do Brasil (1916- -1924), langada por iniciativa de um grupo de intelectuais vinculados ao Estado de Sao Paulo, com a disposigao de diagnosticar os problemas bra- sileiros ¢ apontar solugées®. Intelectuais como Alcebiades Delamare, pu- blicagdes como Brazilea (1917-1918) e Gil Blas (1919-1923) e movi- mentos como a Agdo Social Nacionalista representaram uma transigdo para o nacionalismo de direita, articulando o pensamento nacionalista com o catolicismo; de qualquer modo, defendia-se nao sé a manuteng4o como até 0 aperfeicoamento da ordem politica liberal do Estado brasileiro’. Lticia Lippi Oliveira tem uma avaliacdo equivalente a de David Rock quanto a periodizacao da mutagao do nacionalismo. Para a autora, este assumiu um cardter “militante” a partir da Primeira Guerra, abando- nando-se o viés ufanista calcado no amor teltirico 4 natureza ou na exaltagao das qualidades das racas que formavam o homem brasileiro. Em lugar disso, impunham-se os programas de luta e a organizagao de movimentos em prol da salvacao do Brasil®. Para melhor compreender a natureza da direita nacionalista, anali- saremos seu desenvolvimente no Brasil e na Argentina durante a época entre as duas grandes guerras, assinalando sua a¢do politica, seus inte- lectuais, suas publicagées, organizaqées e posigdes ideoldgicas. 1.1, A direita nacionalista no Brasil Os anos 20 foram decisivos para a configuragiio da ideologia e da corrente intelectual autoritaria-nacionalista, na medida em que uma sé- rie de fenémenos convergiam para reforgar a sensagao de que o modelo 5. Silvia Levi Moreira, A liga nacionalista de Sio Paulo: ideologia ¢ atuag&o, So Paulo, mimeo., Universidade de Sao Paulo, 1982. 6, De acordo com seus editores, “{...] esté no seu programa ser um reflexo da alma nacio- nal, essa alma brasflica sufocada pelo estrangeirismo invasor e pelo esnobismo infrene das Grandes capitais” (Revista do Brasil, n. 47, v. XII, ano IV, nov. 1919, p. 193). Sobre a revista, ver Tania Regina de Luca, A “Revista do Brasil”: um diagnéstico para a (N)ap&o, Sao Paulo, mimeo., tese de doutorado, FFLCH da USP, 1996. 7. Em 1920 foi criado 0 movimento Agdo Social Nacionalista, tendo como fundador Afonso Celso e como presidente de honra Epitécio Pessoa. Alcebiades Delamare era diretor dle Gil Blas e publicou o livro As duas bandeiras: catolicismo ¢ brasilidade, Rio de janeiro, Anuério do Brasil/Centro Dom Vital, 1924. Cf. Liicia Lippi Oliveira, A questéo nacional na Primeira Repiblica, Sdo Paulo, Atica, 1990, pp. 149-157. 8. CE. id,, ibid., pp. 145-158. 33 ‘SOB 0 SIGNO DA NOVA ORDEM: 0S INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO BRASIL E NA ARGENTINA (1914-1945) politico liberal-oligarquico era incapaz de responder aos desafios de en” Ao. Entre os acontecimentos mais marcantes, destacaram-se 0 moviment0 tenentista iniciado em 1922 — com a Revolta do Forte de Copacabana —» a Semana Modernista, a fundacdo do Partido Comunista Brasileiro e do Centro Dom Vital. Além disso, desde o ciclo de greves operarias do periad0 1917-1920, o Estado mostrava também sua falta de instrumentos ade’ quados para lidar com um quadro social cada vez mais conflituoso. Naquela década, firmou-se na maior parte do campo intelectual 9 diagnostico que se desenvolveria nos anos 30: o problema nacional resi dia na cépia de modelos estrangeiros e na falta de contato entre as ingti- tuigdes e a realidade brasileira. Consolidou-se entre os intelectuais.a cons” ciéncia da necessidade de sua intervengo no cendrio nacional, o que fo! levado a efeito por meio da participagao em publicagdes e movimentos nacionalistas, j4 referidos anteriormente. A Revolugao de 1930, por su4 vez, abriu a perspectiva de grandes transformagées e aprofundou a dis’ puta ideoldgica, da qual participaram ativamente os intelectuais, por mei? de movimentos como a Acao Integralista Brasileira, pela articulagéo cos o aparelho de Estado — caso de Oliveira Vianna e dos setores catélicos —e mediante uma producio intelectual expressamente destinada a is tervir ideoldgica e politicamente. Até o golpe do Estado Novo, intelectuais de todos os matizes lutaram, por um lado, para influenciar nos destinos do movedigo quadro nacional e, por outro, para adentrar no aparelho dé Estado. Os intelectuais da direita nacionalista, em particular, lograra? seus objetivos de influenciar o aparelho de Estado, que soube cooptd-105 para sua estratégia de dominacao e utilizou boa parte de suas idéias. 0S integralistas, no entanto, ficaram de fora da articulag4o estabelecida pel? regime estadonovista com os intelectuais, depois de sua tentativa frus” trada de golpe contra Vargas, em 1938. Um dos aspectos mais marcantes de todo o campo intelectual brasi- leiro desde fins do século XIX até o periodo entreguerras foi o lugar qué ocuparam as ciéncias humanas — principalmente a sociologia, mas tan” bém a historia, a antropologia e a geografia — no entendimento e 7 proposicao de solugées para os problemas nacionais®. O dominio de cef- tos conhecimentos capazes de salvar a nacdo foi um dos grandes argv 9, Cf. Roberto Ventura, Estilo tropical. Histéria cultural e polémicas literdrias ne Brash. Sao Paulo, Cia. das Letras, 1991; Bolivar Lamounier, “Formacdo de um pensamento pol{tit autoritério na Primeira Reptiblica. Uma interpretacao”, in Histéria geral da civilizagao brat 34 Os CAMPOS INTELECTUAIS: AUTO-IMAGEM & CONFIGURACAO mentos em favor do papel de “elite dirigente” que os intelectuais se autoconferiram e que esperavam fosse legitimado pelo Estado e pela socie- dade , Eles achavam-se imbuidos de uma misso de salvacao nacional — o Brasil era sempre encarado como um conjunto de problemas a resolver —, ¢ para tanto consideravam imperativo intervir no campo politico. A visio elitista implicava nao apenas 0 respeito pela hierarquia social, herdada ou adquirida, mas condicionava também certa concep¢ao da politica como competéncia. De maneira que a arte do bom governo passava pelo saber cientifico!!. A despeito das diferentes posigdes dos intelectuais, havia con- senso sobre a necessidade de conhecer cientificamente a realidade nacio- nal para formular alternativas adequadas ao Brasil que confrontassem os falsos modelos importados, principalmente o liberal!?, que vigorava institucionalmente, mas também os de esquerda, pois estimulavam as mas- sas para o questionamento da ordem'9, Em suma, os intelectuais arroga- vam-se © monopélio do saber legitimo necessdrio para atuar na esfera pu- blica, em detrimento de outras categorias sociais. Euclides da Cunha foi reconhecido como um dos mais importantes precursores dessa geracao de intelectuais preocupados em descobrir 0 Brasil. Em Os sertées, consagrou uma nova maneira de enxergar o pais, baseada na observacao das condigées materiais de existéncia e na psico- leira, tomo IIL, volume 2 (org. Boris Fausto), Sio Paulo, Difel, 1977; Daniel Pécaut, Intelectuais ¢.4 politica no Brasil. Entre 0 povo e a nagao, Sao Paulo, Atica, 1990; Adalberto Marson, A ideologia nacional em Alberto Torres, S40 Paulo, Duas Cidades, 1979; Luciano Martins, “A genese de uma intelligentsia — os intelectuais e a politica no Brasil, 1920 a 1940”, Revista Brasileira de Ciéncias Sociais, n. 4, vol. 2, junho de 1987, pp. 65-87; e Lacia Lippi Oliveira, “Introdugdo”, in Lucia L. Oliveira (coord.), Elite intelectual e debate politico nos anos 30, Rio de Janeiro, FGV, 1980, pp. 31-70. 10. A referéncia aos intelectuais brasileiros como uma categoria com “vocagio para elite dirigente” permeia varios trabalhos. Ver especialmente Daniel Pécaut, op. cit, p. 22.; Sérgio Miceli, Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945), Sdo Paulo, Difel, 1979. 11. Cf. D. Pécaut, op. cit, p. 30. 12. Sobre o campo ideolégico liberal ver: Maria Ligia Coelho Prado, A democracia ilus- trada, O Partido Democrdtico de Sao Paulo (1926-1934), Sao Paulo, Atica, 1985; Maria Hele- na Rolim Capelato, Os arautos do liberalismo. Imprensa paulista: 1920-1945, Sao Paulo, Brasiliense, 1989; Maria Helena R. Capelato & Maria Ligia Coelho Prado, O bravo matutino, Imprensa ¢ ideologia: 0 Jornal “O Estado de Sdo Paulo”, Séo Paulo, Alfa-Omega, 1980; Luiz Werneck Vianna, Liberalismo e sindicato no Brasil, Rio de Janciro, Paze Terra, 1976; Maria Victéria Benevides, A UDNe oudenismo, Ambigitidades do liberalismo brasileiro (1945-1965), Rio de Janeiro, Paz.e Terra, 1981, 13. Como veremos, tal consenso em torno do conhecimento nao excluia a intervengdo de outros elementos na definiggo das alternativas pata o Brasil. No caso do laicato catélico, por exemplo, o papel da religido era fundamental. 35 ‘5010 SIGNO DA NOVA ORDEM: OS INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO BRASIL E NA ARGENTINA (1914-1945) Jogia de seus tipos humanos. Nao foi a toa que a gerag4o nacionalists yalorizou o homem, os temas e problemas brasileiros, procurando vé-los “tal qual eles eram”, em reacdo ao estrangeirismo € a0 idealismo. Conhe- cer a realidade nacional tornou-se umn imperativo, um programa cientifitg, tima missao intelectual, uma questo de patriotismo: apagavam-se as fron- teiras tradicionais entre o homem de letras e o homem de acdo, entre 0 escritor profissional e o homem publico, entre o artista ¢ a comunidade's. Alberto Torres foi outra figura fundamental para todos os inteleg tuais nacionalistas que o sucederam, até pelo menos a década de 40. Oli- veira Vianna afirma a inexisténcia de arriére pensée em Alberto Torres ¢ dedica boa parte de Problemas de politica objectiva a discussdo de suas idéias'5. Segundo Torres, 0 problema brasileiro era essencialmente eco" nomico. Torres trabalhava com a nogdo da existéncia de um “ciclo biold- gico” da economia, o qual se apresentava “doente” no Brasil. Em sev entender, esse ciclo, assentado na valoriza¢ao do trabalho e na producg? para consumo interno, jamais se organizara na colonia, na qual o wnic? objetivo era extrair riquezas exportdveis para a metropole. Era preciso pér um fim ao processo de dilapidagao das riquezas brasileitas — mine rais, vegetais, fertilidade do solo — antes que fosse tarde demais. A “organizacado nacional” deveria ser o programa de reformas voltadas para sanar esses males, ainda vigentes no século XX. Consistia nus projeto agrarista, baseado na producdo para consumo, secundariamen” te para exportacdo, e com uma disciplinada e eficiente organizacao pat@ o trabalho. Uma forte preocupagao era fixar o homem ao campo, props ciando-lhe meios para produzir de modo cooperativo ou como pequen? proprietario’, Desorganizacdo e decomposicao, duas palavras definidoras da rea lidade brasileira na leitura de Alberto Torres. Entre os fatores desa- gregadores do pais, enumerava: a imigracao e as minorias estrangeiras; 4 diferenciagao sociopsicoldgica e cultural entre os tipos humanos das re gides do pais; o antiurbanismo individualista e o anti-solidarismo, deri vados da formagio colonial; a diversidade das religides; os conflitos enti 14, CE. Nicolau Sevcenko, Literatura como missdo: tensdes sociais ¢ criagéo cultural s Primcira Republica, Sio Paulo, Brasiliense, 1989, p. 232. 15. Cf. Oliveira Vianna, Problemas de polftica objectiva, S40 Paulo, Cia. Editora Nacions!. 1930, p. 232. 16. Cf. Adalberto Marson, op. cit., p. 171. 36 OS CAMPOS INTELSCTUAIS: AUTO-IMAGEM E CONFIGURAGAO, os setores da economia — industria, comércio e agricultura —; a autono- mia dos Estados no tocante as relagdes comerciais, vinculando-se direta- mente ao exterior; o movimento migratério para os centros urbanos; € a anarquia e dispersao da politica local'’. Quem levaria a cabo o projeto de unificacao, de construgao da nacio- nalidade? Para Torres, as elites politicas apenas reproduziam as defor- magées sociais da Primeira Republica; antimilitarista, ele nao depositava confianga no exército. Também nao confiava nas instituigdes, mas ape- nas nas pessoas de boa vontade, com sentido patridtico. A solucao sé podia vir de uma elite intelectual politicamente comprometida com a nacionalidade, que agisse por meio da imprensa, da educacao, da opiniao pliblica e do estudo!8, A essas figuras iluminadas caberia a conducao do processo de reformas. Nos paises novos, como 0 Brasil, era essencial que uma elite dirigisse a construgio da nagfo, processo que na Europa, por exemplo, ocorrera de modo mais natural ao longo da histéria. Por isso, Torres admirava paises como_ Alemanha, Japao, Australia e Nova Zelandia, “obras d’arte politica”"’, exemplos da potencialidade de paises novos dotados de uma esclarecida elite dirigente no comando do Estado. Ao lado de Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos conformaram uma corrente de idéias decisiva no balizamento do debate politico e intelectual entre os anos 10 40. Bolivar Lamounier, num importante estudo sobre as idéias autoritarias no Brasil, considera que, apesar das diferengas entre esses intelectuais a respeito de determi- nadas questées, suas reflexdes formaram um conjunto que expressava um pensamento autoritario do qual era possivel extrair os componentes fundadores de uma nova ideologia de Estado”. Tal ideologia legitimava o papel tutelar do Estado com relagéo a sociedade, justificava a hipertrofia estatal e defendia a diregdo do Estado por uma elite politica e intelectual- mente esclarecida. Conformavam um espago intelectual que aqui deno- minamos “cientificista”. Além disso, essa ideologia caracterizava-se pe- los seguintes elementos: prevaléncia do “principio estatal” sobre o “princi- pio de mercado” no que tange a organizacao do poder; visao organico- 17. Cf, Alberto Torres, A organizago nacional, Sao Paulo, Cia. Editora Nacional, 1933, . 1d. ibid., p. 182. 19. Id., ibid. 20. Cf. Bolivar Lamounier, op. cit. 37 ‘Sop 0 SIOKO DA NOVA ORDED: OS INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO BRASIL E Na Anczwmina (1914-1945) -corporativa da sociedade; visdo paternalista-autoritaria do conflito socials que devia ser vigiado, reprimido e controlado; principio da “nao-organizg’ cdo da sociedade civil”; principio da “nao-mobilizagdo” da sociedad: “objetivismo tecnocratico”; ¢ a tese de que o Estado autoritério consis numa espécie de “Leviata benevolente”, que ao mesmo tempo zelava pula sociedade e a corrigia”!, A teorizacao da passagem do Estado liberal ao Estado autoritariy & jntervencionista nao era uma imitagao das idéias européias, mas 0 reS\y) tado de um diagnéstico da crise politica brasileira que levava em consiqe” racao as transformagées da realidade internacional. Implicou a autong" mizagao da esfera estatal diante dos interesses imediatos dos grupos d¢ interesse — partidos, associagdes de classe — e a criagao, a partit da tecnocracia e da intelligentsia, de novos objetivos de desenvolvimento nacional. Os principais tedricos dessa ideologia de Estado foram intelec- tuais que participatam ativamente da vida publica, com passagens iy portantes em diversos governos’?. Oliveira Vianna ocupou o cargo dé diretor da Carteira Comercial e Financeira do Instituto de Fomenty @ Economia Agricola do Rio de Janeiro durante a década de 20, integrot as comissdes técnicas do Ministério do Trabalho durante o Governo Pyo- visorio e, de 1932 a 1940, foi consultor juridico do mesmo Ministérjo, desempenhando importante papel na elaboracdo da legislacdo trabalhis- ta do varguismo. Como jornalista, Azevedo Amaral integrou divergos emprteendimentos jornalisticos, vinculado durante os anos 30 ao jotnal A Nagéo e & revista Diretrizes. Participou intensamente da importante revista Cultura politica, junto com Francisco Campos, Almir de Andrade e Lourival Fontes. Azevedo Amaral tem sido reconhecido como um dos mais articulados e conscientes formuladores de diretrizes para o Estado Novo. Também na década de 30 publicou importantes obras, que exarsi- naremos aqui, além de intimeros artigos na revista Cultura politica — revista patrocinada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda du- rante o Estado Novo, ela foi um dos principais espacos de producao ideo ldgica do regime. 21. Tais elementos foram assinalados por Bolivar Lamounier, ibid. 22. Alberto Torres foi presidente do Estado do Rio de Janeiro e membro do Suprem? Superior Tribunal durante a Primeira Republica. Francisco Campos foi deputado estadual federal, ministro da Educagio ¢ Satide do Governo Provisério pés-1930, consultor geral da Republica, secretdrio de Educagéo e Cultura do Distrito Federal e ministro da Justica d¢ 1937 a 1942, participando diretamente na elaboragao da Constituicao de 1937. 38 (Os CAMPOS INTELECTUAIS: AUTO-IMAGEM E CONFIGURACKO Os intelectuais catélicos formaram outra corrente, que interveio de modo organizado a partir dos anos 20 em prol da Igreja e das idéias caté- licas. Foi uma reago a perda de status da Igreja como sécio privilegiado do sistema de poder politico brasileiro. Processo que comecara em 1870¢ culminara com o advento da tepublica. A revista A Ordem, criada em 1921, e o Centro Dom Vital, fundado no ano seguinte, foram as duas mais importantes iniciativas da ofensiva catélica. Até sua morte em 1928, esse movimento promovido pelo laicato catélico foi liderado por Jackson de Figueiredo, que se baseava no pensa- mento contra-revoluciondrio francés do século XIX produzido por Louis de Bonald e Joseph de Maistre. Acirradamente nacionalista € antilusitano, via no catolicismo a principal base da tradicao brasileira, a pedra angular de nossa nacionalidade, que naqueles fervilhantes anos 20 era vista como ameagada por “ismos” — cosmopolitismo, liberalismo, comunismo, ma- terialismo ¢ outros —- que contrariavam os designios de Deus. Com a morte prematura de Jackson de Figueiredo, a lideranga do laicato passou as maos de Tristao de Athaide, intelectual de grande en- vergadura que desempenhou papel central nao apenas nos meios catéli- cos mas também no cendrio cultural brasileiro das décadas posteriores. Athaide afirmava que era dever do laicato agir no terreno politico para manter o catolicismo no Brasil, por meio da agdo sobre a nagao € o Esta- do23. O cumprimento desse dever passava pela realizagao de uma tarefa dividida em duas etapas: uma que dizia respeito a nado; outra referente ao Estado. Enquanto agir sobre a nacdo significava trabalhar na esfera cultural, agir sobre o Estado significava cristianizd-lo. Eram etapas concomitantes, nao sucessivas. A Ordem e o Centro Dom Vital respondiam Aquela primeira agao, voltada para a espiritualizacdo da nacao. Jé a agéo sobre a Constituinte de 1933, por meio da Liga Eleitoral Catélica (LEC), respondia a segunda tarefa, pois devia-se também “|...] agir diretamente sobre o Estado, de modo a poder conservar a nagdo as suas caracteristi- cas cristas”*4, A LEC visava a uma dupla tarefa: a) despertar os catélicos da indi- ferenca em que viviam diante dos problemas politicos; b) e obter dos 23, Nos anos 30, diversas organizagées foram criadas para influenciar os destinos politi- cos do pais: a Liga Eleitoral Catdlica (1932), a Agao Universitéria Catélica, o Instituto Caté- lico de Estudos Superiores e a Acdo Catélica (1935). ‘T. de Athaide, “Dever Politico dos Catélicos”, in A Ordem, n. 25 (nova série), pp. 161-168, 24, Tristdo de Athaide era o secretério da Liga. Id., ibid., p. 163. 39 ‘Son 0 SIONO DA NOVA ORDEM: OS INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO BRASIL E NA ARGENTINA (1914-1945) partidos & candidatos indiferentes ou hesitantes compromissos formajs de votarem com a doutrina social catélica nas matérias de orientagao social superior — familia, educacao e religido®>, Os eleitores eram convo- cados a votar nos partidos e candidatos que acatassem o programa minj- mo da Liga, composto por trés pontos: defesa da indissolubilidade do casamento, assim como seu reconhecimento para efeitos civis; incorpg- racao legal do ensino religioso nas escolas; e regulamentacao da assistén- cia religiosa facultativa as forgas armadas, prisées, hospitais etc.2®> As eleigdes de maio de 1933 Jevaram a maioria dos candidatos propostos pela LEC 4 Assembléia Constituinte, e sua plataforma alcangou ali extra- ordinaria repercussao. Triunfaram nao apenas os pontos minimos, mas também o programa mdximo da LEC, cujo aspecto social foi em grande medida incorporado ao capitulo da “ordem econémica e social”2?. Segundo José Oscar Beozzo, estabeleceu-se uma nova relacdo entre Estado e Igreja a partir da Constituinte. Quatro décadas depois da procla- macao da republica, a Igreja se rearticulou ao Estado, preservando sua liberdade com relagao a ele, ao mesmo tempo que eliminava os empecilhos que o Estado leigo lhe anteptinha para penetrar em seus aparelhos ideolé- gicos. A Igreja conseguiu estabelecer o principio da cooperagdo com o Es- tado, o que significou, na pratica, verbas governamentais para escolas, hospitais, e instituigdes beneficentes mantidas pela Igreja. Com a ajuda do laicato, a Igreja logrou integrar novamente o bloco no poder, junto com as varias facgdes das classes dominantes: as antigas oligarquias rurais, a bur- guesia comercial e financeira e a recém-articulada burguesia industrial?s. A intervengao em assuntos politicos foi marca constante da revista A Ordem durante 0 petiodo entre 1921 e 1945, porém caracterizada por uma série de matizes, sobre os quais nao ha consenso entre os estudio- sos. Para Ménica Pimenta Velloso, a revista teve trés fases: de 1921 a 1928, sob a direcao de Jackson de Figueiredo, pautada por uma orienta go politico-doutrindria; de 1928 a 1934, sob a direcao de Tristao de 25. Tristéo de Athaide, “As eleigées para a Constituinte”, in A Ordem, nn, 39 € 40, maio ¢ junho de 1933, ano XIII. 26, José Oscar Beozzo, “A Igreja entre a revolugao de 1930, o Estado Novo ¢ @ redemocratizacdo”, in Histéria geral da civilizagéa brasileira (org. Boris Fausto), Séo Paulo, Difel, 1986, p. 306. Beozzo também relaciona o restante do programa de dez pontos da LEC 27. 1d., “O sentido da nossa vitéria”, in Indicagaes politicas, Rio de Janeiro, Civilizagao Brasileira, 1936, p. 129. 28. J. O, Beozzo, “A Igreja...”, op. cit., p. 307. 40 (Os CAMPOS INTELECTUAIS: AUTO-AMAGEM E CONPIGURAGAO Athafde, quando teria privilegiado a “agao espiritual e social”; e depois de 1935, quando se engajou mais diretamente no debate politico?®. Ma- ria Teresa Sadek propde que em 1934 a pauta da revista teria se invertido no sentido de intervir diretamente nos assuntos politicos, apoiando ex- plicitamente o que parecia ser o principal grupo de direita em ascensao, a Acdo Integralista Brasileira*°. A andlise dessas autoras sobre a trajetéria de A Ordem de uma posi- cao espiritualista para outra mais politica é correta, mas entendemos que a preocupago da revista, e em particular de Athaide, com relagao aos temas politicos ¢ institucionais foi anterior, datando de pelo menos 1932, quando tomou o partido da revolugao paulista, iniciou uma série de arti- gos que formavam a plataforma da Igreja para a Constituinte e conclamou 0s cat6licos a influir nos assuntos politicos de modo organizado. De qual- quer modo, entre os anos 20 € 30 evidencia-se um processo de crescente intervengdo dos intelectuais catdlicos na vida publica brasileira, o que serd decisivo para conferir-lhes um lugar-central no cendrio cultural e politico dos anos 30 e 40. A terceira grande corrente intelectual da época foi também a mais radical agrupacao politica de direita dos anos 30: 0 integralismo, forma- do por um ntimero relativamente elevado de quadros politicos e intelec- tuais egressos dos partidos tradicionais da Primeira Reptiblica, cujas car- reiras haviam sido interrompidas pelas derrotas de 1930 e 1932. A indefinicdo ideoldgica do regime politico pés-1930 ea expectati- va de influencid-lo levaram Plinio Salgado a criar o jornal A Razdo em meados de 193151. No inicio, o objetivo dessa empreitada era oferecer fundamentos ideoldgicos ao Governo Provisério para que este se trans- formasse numa ditadura. Diante da indiferenga do regime a sua prega- ao, o jornal deslocou-se para a oposigéo a partir de abril de 1932. 29. Ménica Pimenta Veloso, “A Ordem: uma revista de doutrina politica ¢ cultura caté- lica”, in Revista de ciéncia politica, 21 (3), pp. 117-160, julho/setembro de 1978. 30. Maria Teresa Sadek, Machiavel, Machiavéis: a tragédia octaviana, Sao Paulo, Simbo- lo, 1978, p. 169. 31. A orientacao politica do jornal coube a Salgado e Santiago Dantas. Em carta a seu amigo — 0 poeta Augusto Federico Schmidt —, referiu-se entusiasmado ao seu desejo de criar um jornal com cardter de “nacionalismo radical”. Ojornal funcionou até 23 de maio de 1931, quando stia sede foi incendiada por partidérios da revolugio paulista. Hélgio Trindade assinala que o jornal cumprita a fungfo almejada por Salgado. Este publicou mais de trezen- tos artigos em que fixou as bases ideolégicas do integralismo e estabeleceu contato politico entre intelectuais ¢ ativistas politicos de diversas regides do pajs. Cf. Hélgio Trindade, Integralismo — O fascismo brasileiro na década de 1930, Sao Paulo, Difel, 1979, pp. 79-96. 41 ‘So 0 SIGNO DA NOVA ORDEM: 05 INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO BRASILE NA ARGENTINA (1914-1945) © jornal foi um instrumento decisivo para a organizacao de up movimento politico de direita independente do Governo Provis6rio: 3 Sociedade de Estudos Politicos (SEP), fundada em margo de 1932, pos iniciativa de Plinio Salgado. Espaco de reflexdo e articulagao de inteleg- tuais e movimentos dispersos da extrema-direita brasileira, a SEP teve como principal resultado a criagdo da Acdo Integralista Brasileira (AIB) em outubro de 1932%, Plinio Salgado, ex-membro do Partido Republica no Paulista, transformou-se no chefe nacional do integralismo, movimento que contou entre seus principais dirigentes com Miguel Reale, Olbiano de Mello ¢ Gustavo Barroso. Foi o principal movimento fascista da Amé- rica Latina, atingindo cifras espetaculares para a época: em 1935, Salga- do avaliava haver 1.123 grupos organizados em 548 municipios, com 400 mil filiados*. Apesar de certas divergéncias entre os dirigentes integralistas a tes- peito dos fundamentos teéricos da ideologia do movimento, havia cop- senso sobre uma série de principios doutrindrios bdsicos. A critica a0 liberalismo, 4 democracia, ao comunismo e ao capitalismo, na medida €m que representavam o avanco do materialismo e da ciéncia desde o inicio dos tempos modernos. O capitalismo era criticado em suas dimen- s6es monopolista, internacional ¢ financeira. O combate as ideologias e exploraco econémica internacional passava pela afirmacao de posturas nacionalistas nos planos politico, econémico e cultural. A partir de uma concepgao espiritualista da vida, 0 integralismo visava a realizagao do individuo integral (espiritual, moral, politico e eco némico); da sociabilidade natural e sagrada propiciada pela familia; e da harmonia social por meio da organizagao das classes em corporacées- Tal concepgao supunha (1) a hierarquia natural e moral como funda mento da autoridade, de tal forma que o pai era a autoridade natural sobre a familia; o Estado, a autoridade natural e moral sobre a sociedade, e Deus a autoridade necessdria sobre tudo; e (2) a organicidade social € politica, que tinha como principio a integracao das partes no todo e per- mitia encarar o Estado nacional como a expressdo juridica, politica ¢ 32. O processo de criagdo de A Razdo, da SEP ¢ da Acdo Integralista Brasileira test excelente reconstrugao e andlise em H. Trindade, op. cit. * Embora estimativas moderadas calculem 0 montant. e entre 100 e 200 mil filiados part 0 period de auge (1937), as cifras eram de qualquer modo muito significativas. 42 Os CAMPOS INTELECTUAIS: AUTO-IMAGEM E CONFIGURACAO moral da nacdo**. Os integralistas construiram uma filosofia da histéria que postulava o aperfeigoamento progressivo da humanidade. Salgado apontava quatro fases da evolucéo humana: a politeista, a monoteista, a ateista e finalmente a integral, também denominada Quarta Humanida- de. Para atingir esta ultima etapa, era necessdria uma “revolucgdo inte- gral” que fosse ao mesmo tempo ética, elitista e herdica. Essa revolugdo abriria as portas para a construgao de um novo tipo de Estado, o Estado Integral, que seria totalitario ¢ dotado de uma estrutura corporativista. O movimento integralista teve uma ideologia eclética, que, enraizada num nacionalismo telurico, no messianismo mistico de uma nova raga mestica e incorporando os grandes temas do pensamento autoritario bra- sileiro anterior, se fundiu numa nova sintese que incorporou 0 tradi- cionalismo social ¢ religioso do integralismo portugués e do salazarismo, 0 corporativismo do fascismo italiano e 0 anti-semitismo de inspirag4o nazista**, 1.2. A direita nacionalista na Argentina Como corrente de acao e pensamento, a direita nacionalista argen- tina apenas ganhou vida na década de 20, no processo de reagao contra os governos da Uniao Civica Radical. Em 1916, Hipélito Yrigoyen foi eleito presidente da republica pelo radicalismo, com maioria no Congres- so Nacional, pondo fim aos governos liberal-conservadores no poder des- de a década de 1880. Tal vitdria foi possivel gragas 4 promulgacao da Lei Séenz Pefia, em 1912, que ampliou o direito de voto ao tornd-lo secreto e obrigatério aos maiores de 18 anos do sexo masculino, numa tentativa de auto-reforma do regime oligarquico. A presidéncia de Yrigoyen repre- sentou um verdadeiro cataclismo politico para os setores destituidos do poder, apesar de nao propor reformas significativas que alterassem 0 status quo. Yrigoyen desenvolveu uma politica favoravel classe média, a de- terminados setores operdrios e segmentos das classes dominantes, e a menor das acusagdes de seus inimigos era a de demagogia pela busca de apoio entre os setores populares®*. Depois da gestéo do também radical 33, Cf. M. Chau, “Notas sobre o pensamento conservador nos anos trinta: Plinio Salgs- do”, in op. cit., p. 40. ‘34. CEH. Trindade, op. cit., p. 279. 35. David Rock, El radicalismo argentino, 1890-1930, Buenos Aires, Amorrortu, 1977. 43 ‘SOB 0 SIGNO DA NOVA ORDEM: OS INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO Brasil & NA ARGENTINA (1914-1945) Marcelo T. de Alvear (1922-1928), que impds um governo de catgter mais conservador, Yrigoyen foi reeleito em 1928. Durante os governos radicais, principalmente sob Yrigoyen, dé,¢n- volveram-se experiéncias de democratizacao social, politica e cyltyral contra as quais os nacionalistas de direita mobilizaram suas bandei/as. Em 1918, o movimento da Reforma Universitaria, iniciado em Cérdgba, alastrou-se por todo o sistema universitdrio, demandando reformay do ensino e democratizacdo da gestio da Universidade, transformada &m lugar de pressao das classes médias, que, ao promover um movimenty de renovagao e reformas no plano governamental, cientifico e cultural, sn- tou com sucesso romper o monopélio educativo das elites ilustradas*#. O movimento sindical obteve substantivo apoio governamental em dyter- minadas circunstancias de luta por reivindicages aos patroes. As glas- ses médias afirmaram sua cota de poder politico como fiadoras eleityfais e grandes beneficiarias das decisSes governamentais do radicalismo, que permitiu certa redistribuicao de riqueza e poder entre os setores médios € populares, sem abalar o sistema agroexportador, porém descontentan- do os grupos sociais detentores de uma perspectiva oligarquica, tradicio- nalista e elitista. O periodo radical foi também muito fértil culturalmente e permitiv o desenvolvimento de intimeros movimentos de vanguarda artistica ¢ literdria que expressavam esteticamente as transformagées e tensdes que se operavam na sociedade argentina. Diante de um mercado crescente de bens culturais, os intelectuais lancaram-se ao trabalho de alcancar a yni- versidade e a opiniao publica, assinalando no plano cultural a forga eco- némica da classe média. Naquele contexto, o mercado de bens cultytais argentino era maior e mais estruturado que o brasileiro em virtude do indice de alfabetizacdo na Argentina e do poder aquisitivo da populagao, muito maiores que os do Brasil”. Renovacidn (1923), Proa (1924), Martin Fierro (1924), Claridad (1926), Criterio (1928) foram algumas das reVis- tas em que a nagao foi tematizada como um problema abordado pelas 36. Patricia Funes, “Nacién, patria, argentinidad. La reflexién intelectual sobre la nacido on la década de 1920”, in Waldo Ansaldi et alii, Representaciones Inconclusas. Las Clases, los Actores y los Discursos de la Memoria, 1912-1946, Buenos Aires, Biblos, 1996, p. 131. 37. Em meados de 1930, em Buenos Aires, os analfabetos nativos constituem apenas 2.39% de um total de 6,64%. Cf. Beatriz Sarlo, Una modernidad periférica: Buenos Aires, 1920 y 1930, Buenos Aires, Nueva Vision, 1988, p. 18. 44 Os CAMPOS INTELECTUAIS: AUTO-IMAGEM E CONFIGURACAC mais diversas perspectivas: socialistas, nacionalistas, liberais, catélicas, anticlericais, entre outras®®. Portanto, nesse cendrio de efervescéncia cultural e questionamento da antiga ordem olig4rquica sobreveio a crise econémica de 1929, aba- lando as jé dificeis condigées de governabilidade de Yrigoyen, em seu segundo mandato. Sob criticas dos vdrios segmentos sociais, ele foi de- posto em 30 de setembro de 1930, por uma coalizao de forcas conserva doras, nacionalistas e militares, encabecadas pelo general José Félix Uriburu, que sustentava um programa autoritdrio-corporativista. Durante os anos 20, boa parte da imprensa dedicou-se a atacar os contetidos democraticos dos governos radicais em nome do retorno aos valores conservadores da ordem politica e social. O poeta e escritor Leopoldo Lugones (1874-1938) foi uma das figuras pioneiras dessa re- aco. Considerado por Jorge Luis Borges 0 maior escritor argentino deste século, evoluiu do anarquismo na juventude a identificagao com o fas- cismo. A partir dos anos 20, Lugones passou a defender um conjunto de idéias caracterizadas por nacionalismo, imperialismo, militarismo, corporativismo, social-darwinismo, recusa da soberania popular e re- ptidio aos imigrantes. Lugones era figura ndo apenas fundamental, mas também singular no contexto do desenvolvimento do nacionalismo de direita, tanto por sua trajetéria como por apontar problemas e solugdes assumidas pelo restante dessa corrrente intelectual. Polémico, extrava- gante, refinado e de ar aristocrdtico, influenciou todo um campo inte- lectual de direita de rafzes catdlicas, mesmo sendo ateu confesso, uma extravagancia a mais num pais profundamente catélico como a Argen- tina. Entretanto, converteu-se ao catolicismo pouco antes de suicidar- -se em 1938. Para ele, o perigo para a Argentina era duplo: externo ¢ interno, este representado pelos imigrantes portadores de ideologias estranhas. Era, pois, necessdria entre os cidaddos uma “atitude militante, semelhante a militar” — “exaltar 0 amor a Patria até 0 misticismo, ¢ 0 seu respeito até a veneracdo”3%, Contra a Unido Civica Radical e todo processo de democratizagao politica, clamou por uma elite que restabelecesse a or- 38. Cf. Patricia Funes, op. cit. 39. Cf. Leopoldo Lugones, “Ante ta doble amenaza”, in El payador y antologia de poesia y prosa (prol.: Jorge Luis Borges; sel., not. y cron: Guillermo Ara), Caracas, Biblioteca ‘Ayacucho, 1979. 45 ‘SOB 0 SIGNO DA NOVA ORDEM: 0S INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO BRASIL & NA ARGENTINA (1914-1945) dem social. No exército, viu a “tiltima aristocracia”, a derradeira possi. ldade de organizagao hierdrquica diante da dissolugao demagégica‘?. O jornal La Nueva Repiiblica® foi entao o principal suporte para a organizagao do nacionalismo de direita*2. Em torno dele articulou-se \yy circulo de jovens intelectuais convencidos de que precisavam levar adiante uma tarefa de salvagdo nacional contra uma vasta conspiracdo de forqag inimigas da Argentina*, Esses lideres do nacionalismo argentino cong;. deravam que 0s movimentos nacionalistas atuais manifestam-se em todos 0s paises como uma restauracdo dos principios politicos tradicionajg, da idéia classica de governo, em oposigao aos erros do douty}. narismo democratico [...]. Diante dos mitos dissolventes dos de- magogos, afirmam as verdades fundamentais que so a vida e a grandeza das nagGes: ordem, autoridade, hierarquia“. A teeleigao de Yrigoyen, em 1928, evidenciou para essa jovem qj. reita que a disputa eleitoral era um terreno definitivamente perdido pe. los conservadores ¢ nacionalistas, em favor do apelo democratico dos tadicais. Inconformados com o novo cendrio politico, avaliaram que a contengao da participacao politica das classes médias e populares, bem, como a restauragao da ordem tradicional, implicavam 0 abandono da tg. tica eleitoral em favor do uso da forca militar. O jornal liderou um moyj- mento de opiniao ptiblica em favor do golpe militar e criou um “brago politico”, a Liga Republicana, que articulou com militares a conspiracgo que levou o general José Félix Uriburu ao poder em 1930. Nesse processo, o grupo de La Nueva Replica — transformado no principal nucleo ideoldgico do novo regime — langou as bases ideoldgicas da direita nacionalista. Por outro lado, em seus quatro anos de existén- 40. Id., “El Discurso de Ayacucho”, in id., p. 306. 41. Comecou a circular a partir de dezemro de 1927. 42.0 jornal foi alternadamente dirigido por Ernesto Palécio e Rodolfo Trazusta, que Juntamente com o irmao, Julio Irazusta, formavam o micleo fundamental do chamado grupo {heo-republicano”, Estavam entre os demais integrantes do jornal: Juan Carulla, Marie Lassaga, Mario Amadeo, Fulgencio Bedoya, Alherto Ezcurra Medrano, A. Garona Catbia, Samuel Medrano, Ricardo Zorraquin Becii, Juan Carlos Villafane, Juan Carlos Villagra Lizardo Zia, ¢ Isidoro Garcia Santillén. 43. E, Paldcio, “Organicemos ia contrarrevolucién”, in LNR, apud El pensamiento nacia- nalista — I, Buenos Aires, Obligado, 1975, pp. 10-13. 44. 1d., “Nacionalismo y Democracia”, in id, p. 114. 46 (Os CAMPOS IINTELECTUAIS: AUTO-IMAGEM E CONFIGURACAQ, cia, congregou um significativo quadro de intelectuais que se organiza- tam em torno de diversos circulos, organizagées e publicagées naciona- listas, ao longo das duas décadas posteriores. Do repertério ideolégico sustentado pelos neo-republicanos, por ora vale destacar alguns elemen- tos que passaram a integrar a tradicdo nacionalista de direita na Argenti- na: catolicismo, corporativismo, autoritarismo, militarismo, hispanismo e€ anti-semitismo. Porém, a almejada “revolugao nacionalista” nao passou de um tre- mendo fiasco e terminou por frustrar as pretensGes politicas da jovem intelectualidade da direita nacionalista que apoiara o movimento. As clas- ses dominantes agroexportadoras, que a haviam apoiado, rapidamente raciocinaram que lhes era mais conveniente passat o poder a um novo governo que reproduzisse o antigo esquema de poder liberal-oligarquico. Nesse sentido, havia uma visdo instrumental das classes dominantes com relacdo aos nacionalistas, bem como uma grande desconfianga diante do extremismo de suas propostas. O general Uriburu nao suportou a pressao dos partidos politicos e das classes dirigentes —- que pretendiam, apesar de apoiarem o golpe, reinstaurar o sistema regresentativo — e convocou eleigGes em novem- bro de 1931. O candidato vitorioso a presidéncia foi outro militar, o ge- neral Agustin P. Justo, eleito com o apoio de conservadores, de uma di sidéncia de direita do Partido Socialista e do radicalismo antipersonalista. Essa corrente expressava 0 radicalismo antiyrioyenista e, com posigdes de direita, foi a principal forga politica dos anos 30. Tal coalizdo conser- vadora, denominada Concordancia, retomou os velhos habitos da fraude eleitoral para vencer as eleigdes e implementou medidas que favorece- ram amplamente o capital estrangeiro — sobretudo britanico — investi- do em setores como petrdleo, ferrovias, transporte utbano, frigorificos, comércio de carnes e servigos publicos. Os nacionalistas argentinos fica- ram fora do poder até o fim daquela fase, que denominaram “Década Infa- me” — expressao cunhada para definir um periodo marcado por escdnda- los financeiros que beneficiavam os interesses britanicos —, sendo tolera- dos pelo fato de servirem de anteparo ao comunismo ¢ por seus membros terem boas relagdes com militares e vinculos familiares de prestigio. As experiéncias politicas do grupo de La Nueva Repiiblica desembo- caram na rearticulacao daqueles intelectuais nacionalistas ao longo dos anos seguintes. Alguns jé eram bastante famosos, como Leopoldo Lugones 47 ‘SOB 0 SIGNO DA NOVA ORDEM: OS INTELECTUAIS AUTORITARIOS NO BRASIL £ NA ARGENTINA (1914-1945) e Manuel Galvez, outros nem tanto, por exemplo Ernesto Palacio, Que participara da revista literaria Martin Fierro. De qualquer modo, a Majo. ria de seus membros era formada por estreantes ou figuras pouco conke. cidas nos meios cultural, jornalistico e politico. O jornal e seu brago po. Kitico, a Liga Republicana, estimularam o aparecimento de outras pubyj. cages e organizagées nacionalistas de direita que conformaram um Yer- dadeiro campo intelectual e politico de extrema direita. Entre os intelg. tuais destacaram-se: Ernesto Palacio, os irmaos Julio e Rodolfo Traztya, Julio Meinvielle, Enrique P. Osés, Juan Carulla, Tomas Casares, Cégar Pico, Carlos e Federico Ibarguren, Alejandro Ruiz-Guifiazu, Manyel Sanchez Sorondo, Alberto Ezcurra Medrano, além de Leopoldo Lugones ¢ Manuel Galvez*s. Paralelamente, surgiram intimeras organizagiey ¢ publicagdes nacionalistas**. Cinco escritores europeus, identificados com a chamada “Revolp- ¢a0 Conservadora”, exerceram poderosa e duradoura influéncia Negga vertente nacionalista: 0 alemao Oswald Spengler (1880-1936), 0 ruggo Nicolai Berdiaeff (1874-1948), o espanhol Ramiro Maeztu (1875-1936 € os franceses Hilaire Belloc (1870-1953) e Charles Maurras (1868-1989). Segundo Cristian Buchruker, nao ha nenhum tema fundamental do na- cionalismo de direita argentino que nao possa ser encontrado nesses au tores. Destacam-se o tradicionalismo de raiz catdlica, o maniqueismo cOmo filosofia da hist6ria, o elitismo, 0 culto ao lider, a idealizagao da Idade Média, a definic&o da modernidade como contexte marcado pela deca déncia e pela subversao da ordem, a teoria da conspiracao universal e a Proposicao de alternativas politicas autoritdrias*”. Dos intelectuais europeus citados, o papel de Maurras foi certamente © mais incisivo, tanto no plano teérico como na pratica politica. O en- contro dos nacionalistas com seu pensamento deu-se por meio das via- gens de estudos na Franga, pela leitura da imprensa francesa em Buenos Aires e gracas ao Institute de l'Université de Paris A Buenos Aires. Inau gurado em 1922, o instituto teve como primeiro presidente o nacionalis- 45. Sobre os intelectuais qu Buchrucker, op. cit., pp. 118-123. 46. Para se ter uma idéia houve em torno de treze organizacgdes principais ¢ dezesseis agrupagdes menores; ¢ 22 jornais ¢ revistas, entre o final dos anos 20 e inicio dos anos 40. Inclufmos a revista Criterio nessa lista. Cf. Cristidn Buchrucker, op. cit., pp. 116-117. 47. CE. id,, ibid., pp. 163-174. e compunham movimento nacionalista ver Cristién 48

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