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Revista Eletdnica Interagbes Socais — REIS . INTERACOES Revista de Ciéncias Sociais/ ISSN 2594-7664 4B: S O Cl A IS Reconhecimento: uma questao de justica Recognition: a matter of justice 0 Baptista dos Santos Resumo As hutas por reconhecimento, diferentemente das lutas por redistribuigao, nao tém como orientagao normativa, em primeiro plano, a eliminacdo das desiqualdades econdmicas, mas 0 combate ao preconceito e a discriminagao de determinados grupos e individuos. O objetivo deste artigo é discutir os motivos pelos quais para a filsofa americana Nancy Fraser (1947) 0 reconhecimento concebido como avtortealizacao das identidades de individuos ou grupos tende a inviabilizar a construgao de um paradigma de justica que englobe. simultaneamente, reconhecimento ¢ redistribuicdo. E demonstrar como essa autora elabora um modelo de reconhecimento, sem estar baseado na autorrealizacao identitiria, que ela acredita ser possivel promover a conciliagao entre as hutas por reconhecimento com as lutas por redistribuigdo. Palavras-chave Fraser; Reconhecimento; Redistribuigio, Abstract Struggles for recognition, unlike struggles for redistribution, are not normatively guided, in the foreground, in the direction of eliminating economic inequalities, but combating prejudice and discrimination against particular groups ang individuals. The purpose of this paper isto discuss the reasons why, for the American philosopher Nancy Fraser (1947), the recognition conceived as self-tealization of the identities of individuals or groups tends to make ‘unfeasible the construction of a paradigm of justice that simultaneously encompasses recognition and redistribution. Furthermore, this paper aims to demonstrate how this author elaborates a recognition model, without being based on identity self-realization, that she believes to be possible to promote the reconciliation between the struggles for recognition with the struggles for redistribution. Keywords Fraser: Recognition: Redistribution. REIS | v.3 | 2.2 | jul-dez. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Reconhecimento [96 Da redistribuicgao ao reconhecimento No final do século XX, mais especificamente a partir das décadas de 1960 e 1970, surgiram movimentos sociais como os movimentos negro, feminista ¢ homossexual que nao reivindicavam redistribuiclo de bens econémicos, mas a dignidade e o respeito, Tal reivindicagdo passou a ser denominada pela Filosofia Politica como luta por reconhecimento. A partir de entio, a politica do reconhecimento tem alcangado uma importancia cada vez maior nas tiltimas décadas, seja na Filosofia Politica e na Ciéncia Politica, seja na Sociologia, na Antropologia e no Direito, A concepsao de justiga social baseada na redistribuigao, para a filosofa americana Naney Fraser (2007), tem origem com a Revolucao Industrial. Devido a exploragao do trabalho pelo capital, a classe trabalhadora reagiu por meio de lutas que reivindicavam (re)distribuigao mais igualitaria de bens e servigos. As reivindicagdes por redistribuigao tornaram-se 0 paradigma de justiga social que norteou a produgdo teérica e praxis politica durante cerca de um século e meio. Segundo Fraser (2002), surgimento da politica do reconhecimento tem relago com a radicalizagao do processo de globalizagao a partir do ultimo quartel do século XX. Tal processo & mareado pela transiggo da forma de organizagio do trabalho fordista para uma fase pos-fordista, a qual esti centrada na producio para nichos do mereado e caracterizada pelo declinio da sindicalizagao, e aquela caracterizada pela produgdo em massa, por sindicatos fortes e pela normatividade do saldtio familia Outra consequéncia da intensificagdo da globalizagao, na concepgao da pensadora, foi fundamental para o surgimento das politicas do reconhecimento: o aumento da importancia que a cultura passa a ocupar nessa nova configuraciio social. Nesse sentido, um dos tragos mais importantes da globalizagio, portanto, é “[...] a politizagao generalizada da cultura [...]” (FRASER, 2002, p.8), especificamente, o surgimento das lutas pelo assentimento social das diferengas culturais, ou seja, das Jutas por reconhecimento da identidade de grupos e individuos em detrimento do modelo de justiga baseado na redistribuigao. Fraser (2006) aponta as consequéncias da globalizagao, a crise do Estado do Bem-estar social keynesiano, a partir da década de 1970, ¢ a implosio do comunismo do Leste Europeu como transformagdes institucionais ¢ ideologicas que contribuiram para a reorientagao politica no sentido de substituir 0 modelo de justica social baseado na redistribuigao e centrada na categoria “classe social” para modelo de justiga baseado no reconhecimento da identidade cultural. Segundo Fraser (2002), a progressiva transigao da justiga social baseada na redistribuigao para © reconhecimento ocorre no momento historico de aprofundamento das desigualdades sociais econdmicas, devido ao avango do neoliberalismo. Nao houve dois acontecimentos independentes; para ela, a consequéncia, a mudanga para o reconhecimento casou-se harmonicamente com 0 neoliberalismo econémico que procura mostrar que o igualitarismo socialista é inexequivel. Desse modo, as lutas pelo reconhecimento nao contribuem para construgdo de um modelo mais amplo de justica social. Na verdade, a sua proeminéncia tende a ocupar o lugar das lutas por redistribuigio. Essa reorientacio normativa de teorizagao social e priticas politicas, Fraser (2002) denomina como 0 problema da substituicio. Na préxima seco, pretendo explorar os argumentos de Fraser no sentido de tomar compreensiveis 0s motivos pelos quais ela considera que reconhecimento e redistribuicio nfo podem coabitar e contribuir para a construgdo de um paradigma de justiga mais amplo que seja capaz de REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Sérgio Baptista dos Santos [97 combater os males causados pela ma distribuicdo econdmica e pela hierarquia institucionalizada de valor. Redistribuigdo ou reconhecimento? Como ja foi discutido, Fraser (2006) diagnostica uma reorientagao normativa na Filosofia Politica © no mundo da vida, ow seja, a passagem das reivindicagdes por redistribuigo para as lutas por reconhecimento, Sua explicagdo para essa reorientacio normativa ¢ que redistribuigio & reconhecimento tém caracteristicas mutuamente excludentes, e, por isso, s4o incapazes de coabitarem emum mesmo modelo de justiga, Comeco discutindo como Fraser (2006) concebe a natureza de cada uma dessas formas de justiga. © “remédio”, de acordo com Fraser (2006), para injustigas constituidas na ordem material da sociedade sio um conjunto de medidas que procuram reduzir ou eliminar as desigualdades econdmicas, esse “remédio” é redistribui¢ao material. Por outro lado, o “remédio” para combater os males que surgem na ordem cultural da sociedade é o reconhecimento cultural, Reconhecimento é constituido por um conjunto de medidas que, segundo sua visio, faz com que grupos ou individuos, desrespeitados e desprezados pela sociedade, livrem-se das imagens estigmatizadas que os grupos dominantes thes impdem para obterem o respeito ea estima da sociedade como um todo. Desta forma, enquanto o sentido ultimo das politicas redistributivas é a redugdo ou eliminagdo da desigualdade econdmica, por outro lado, o sentido ultimo da politica do reconhecimento é a valorizagao positiva da diferenga, Portanto, segundo a distingao analitica da autora, a finalidade de cada uma dessas lutas opera em sentidos distintos. Ha situacdes, segundo Fraser (2006), em que os grupos sociais injustigados nao se apresentam em nenhuma das extremidades de seu espectro conceitual. Esses grupos sio chamados de “coletividades ambivalentes”, porque combinam caracteristicas de classe explorada e identidade desvalorizada; portanto, demandam redistribuigdo e reconhecimento. O género, assim como a “raga”, por exemplo, é uma dessas “coletividades ambivalentes.” O género, de acordo com Fraser (2006), € uma variante que estrutura diferengas entre trabalho remunerado e trabalho doméstico nao remunerado, naturalizado tais categorias, em sociedades androcéntricas e sexistas, como fungao prioritariamente feminina, O género também é uma variante que estrutura uma estratificagao dentro das ocupagdes remuneradas. As fungGes que tém melhores salérios so ocupadas, majoritariamente, por homens, enquanto, as fungdes de baixa remuneracio ha predominio das mulheres. Assim, 0 género estrutura uma diferenciagio econémica ocupacional dotada de certas caracteristicas de classe, pois ele softe uma espécie de injustica distributiva; e, por isso, demandam politicas redistributivas para que eliminem a estratificacdo social de género dentro da classe e entre ocupagdes remuneradas e no remuneradas: “[...] se o género nio é nada mais do que uma diferenciagio econdmico-politica, a justia exige, em suma, que ele seja abolido” (FRASER, 2006, p. 334), No entanto, segundo Fraser (2006), a injustiga contra as mulheres no ocorre apenas devido a ‘uma hierarquia econdmica que determina a distribuigdo de recursos na classe segundo o género, mas © género estrutura uma hierarquia cultural baseada em valores androcénticos © sexistas que classifieam priticas e propriedades femininas e as proprias mulheres como inferiores. Essa desvalorizacio se expressa muma variedade de danos softidos pelas mulheres, incluindo a violencia e a exploragao sexual, a violéncia doméstica generalizada; as representacdes banalizantes, objetificadoras e humilhantes na midia; 0 assédio e a desqualificagio em todas as esferas da vida cotidiana; a sujeigao as normas androcéntricas, que fazem com que as mulheres parecam inferiores ou desviantes ¢ REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Reconhecimento [98 que contribuem para manté-las em desvantagem, mesmo na auséncia de qualquer intengao de discriminar; a discriminagao atitudinal; a exctusdo ou marginalizagao das esferas piblicas e centros de decisio; e a negagao de direitos legais plenos e protesdes igualitarias (FRASER, 2006, p. 234). Esses danos, para Fraser (2006), demandam politica do reconhecimento. Eles sio “relativamente” auténomos em relagio a infiaestrutura econdmica e nio sio meramente “superestruturais”, ou seja, as manifestagdes priticas do androcentrismo e sexismo nfo sto expresses diretas e exclusivas da base material da sociedade e nio estio completamente descolados dessa base material. Por isso, a autora defende que a redistribuigdo ndo pode ser 0 tinico “remédio” para combater essas priticas, so necessarias doses “T...] adicionais e independentes [...]” (FRASER, 2006, p.234). Logo, as priticas sociais geradas pelo androcentrismo e sexismo para serem combatidas exigem dois ‘remédios’ de frascos diferentes, um para agir sobre a hierarguia econdmica e outro para agir sobre a hierarquia cultural. No primeiro caso 0 “remédio” é a redistribuigao e no segundo ¢ 0 reconhecimento. Apesar de uma “coletividade ambivalente” demandar duas ages diferentes, Fraser (2006) reconhece que, na verdade, as duas formas de injustica estio imbricadas ¢ se reforgam mutuamente construindo um circulo vieioso, Segundo esse circulo vicioso, a hierarquia de valores sexistas e androcéntricos, de acordo com Fraser (2006), legitima de forma tacita as desvantagens econdmicas das mulheres. Por consequéncia, as desvantagens econdmicas limitam a capacidade das mulheres Iutarem pela igualdade de participagio paritiria na vida social e no mereado de trabalho e, com isso, restringem seu poder de Iutar contra a hierarquia institucional de valores que classificam as mulheres como inferiores. Assim, género é uma coletividade ambivalente porque sofie de males relativamente distintos: uum ligado a ordem econémica e outro ligado 4 ordem cultural, os quais precisam de dois “remédios” distintos: reconhecimento e redistribuigao. No entanto, hé uma tensio entre esses paradigmas de justiga: redistribuigao e reconhecimento, como ja foi discutido, segundo o programa filosdfico de Fraser (2006), buscam objetivos distintos e, por esse motivo, caminham em diregSes diferentes. A redistribuicdo procura acabar com o género como variante que estrutura uma distribuigZo econémica desigual entre homens e mulheres. Portanto, o procedimento é buscar a igualdade. Por outro lado, as lutas por reconhecimento procuram desfazer sua autoimagem, suas caracteristicas da especificidade do género, que a hierarquia de valores androcéntricos reflete de forma degradante. Por isso, 0 objetivo das lutas por reconhecimento é valorizar a diferenga. Este, de acordo com Fraser (2006), € o dilema de toda a coletividade ambivalente: combinar reconhecimento e redistribmigao. Isso porque, como foi abordado, a redistribuicao busca promover a igualdade, desconsiderando as diferengas culturais das coletividades ambivalentes, mas as coletividades ambivalentes buscam, por meio de lutas pelo reconhecimento, estima publica por suas caracteristicas especificas, sua identidade, para desconstruir sua autoimagem degradada pelas hierarquias institucionalizadas de valor. “Eis, ento, a versio feminista do dilema da redistribuigio- reconhecimento: como as feministas podem lutar ao mesmo tempo para abolir a diferenciagio de género e para valorizar a especificidade de género?” (FRASER,2006, p.235). Contudo, Fraser (2002) acredita que € possivel construir um modelo de justiga que seja capaz de abranger dois conjuntos de preocupagdes. Esse deve conter as demandas das teorias de justiga distributiva, para responder & pobreza, a exploracao econdmica ¢ as desigualdades sociais. E. simultaneamente, deve incorporar as demandas por reconhecimento para combater o desrespeito, causado pelas hierarquias de status de valor cultural, que existem nas priticas sociais, REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Sérgio Baptista dos Santos [99 institucionalizadas nas sociedades contemporineas: racismo, machismo e homofobismo, por exemplo. ‘A proxima segio & dedicada 4 discussio sobre as bases filoséficas do modelo de justiga que Fraser (2007) acredita ser capaz de, simultaneamente, responder s demandas por reconiecimento ¢ por redistribuicao, Moralidade ou ética? Segundo Fraser (2007), a elaboracdo de um programa tedrico normativo que procure integrar redistribuigdo e reconhecimento, sem que um seja epifendmeno do outro, deve estar fundamentado em questdes filosdficas que envolvam a relagio entre “...] moralidade e ética, entre 0 correto ¢ 0 bem, entre a justica e a boa vida” (FRASER, 2007, p.103). A questio principal, entao, & procurar saber se 0s modelos de justiga tradicionalmente ligados 4 “moralidade” sao capazes de responder as demandas por reconhecimento da diferenca, ou se essa tarefa & uma questo para a “ética”. © conceit de justiga, na visio de Fraser (2007), € diferente do conceito de “boa vida". Questdes de justiga sio concebidas como o que & “o correto” e as questdes de “boa vida” como um problema do que ¢ 0 “bem”; “[...]a maioria dos fildsofos alinha a justiga distributiva com a Moralitét (moralidade) kantiana ¢ 0 reconhecimento com a Sittlichkeit (tica) hegeliana” (FRASER, 2007, p.104). Para Fraser (2007), por uma perspectiva, as normas de justiga sio concebidas como universalmente vinculatorias, pois independem da adesio voluntaria de individuos. Por outra, 0 reconhecimento da diferenga, a0 contrario, responde a demandas mais especificas, envolve avaliagies qualitativas sobre o valor de determinadas préticas e propriedades que caracterizam identidades de grupos e individuos. Essas avaliagdes precisam de um quadro de valor historicamente determinado e. portanto, impossivel de ser universalizado, A maior parte das discussdes da filosofia moral atualmente, de acordo com Fraser (2007), se debruga sobre disputas dessas duas diferentes ordens de normatividade. Tedricos politicos liberais defendem a concepgio de que “o correto” tem proemingncia sobre o “bem”. Para eles, as reinvindicagdes por justiga esto acima das reivindicagdes éticas. Por outro lado, comunitaristas afirmam que a nocio de uma moralidade universalmente vinculante, que nio leva em conta a ideia do “bem”, nfo tem coeréneia teérica, Para esses, demandas por valores culturalmente especificos devem se sobrepor aos “[...] apelos abstratos, Razio ou 4 Humanidade” (FRASER, 2007, p.104). Os adeptos do liberalismo, afirma Fraser (2007), com a justificativa de que as disparidades de oportunidades ferem o principio liberal da equidade, tendem a aderir 20s modelos distributivos de Justiga. Para eles, uma sociedade liberal deve eliminar as disparidades ilegitimas entre as oportunidades conferidas aos atores sociais; a aplicagio da equidade de oportunidades nao leva em conta “o bem” dos atores sociais, Por outro lado, segundo Fraser (2007), adeptos do “bem?” rejeitam 0 “formalismo vazio” das abordagens distributivas. Tratando a ética como uma questo da “boa vida”, eles procuram promover condigdes qualitativas para o desenvolvimento humano, contrariando principio liberal do tratamento igualitario, Esse debate, segundo Fraser (2007), impede a construgio de uma concepeao de justiga que incompore as demandas por redistribuigao e por reconhecimento, pois coloca essas duas dimensdes de justiga em polos opostos: REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Reconhecimento |100 ‘A distribuicao evidentemente pertence a0 lado da moralidade dessa disputa. 0 reconhecimento, entretanto, & primeira vista, parece pertencer & ética, uma vez que exige 0 julgamento sobre o valor de praticas, caracteristicas e identidades variadas (FRASER, 2007, p.105 Para a autora, essa forma unilateral de pensar leva a conclusio de que a redistribuigao e reconhecimento jamais poderdo ser coerentemeate combinados numa concepgio ampla de justiga. Todavia, acredita que essa tarefa seja possivel. Para realizar uma sintese coerente entre essas duas concepgdes de justiga, Fraser (2007) afirma ser preciso construir um modelo de reconhecimento desvinculado da ética. Para tanto, compromete-se a tratar“[...] as reivindicagdes por reconhecimento como reivindicagées por justiga dentro de uma nogao ampla de justiga.” (FRASER, 2007. p.105). Esse empreendimento tedrico, realizado por Fraser (2007), procura levar a politica do reconhecimento para a Moralitdt, impedindo que ela volte para a ética. A seguir, discuto como Fraser constroi seu programa tedrico normativo que procura conciliar redistribuicdo e reconhecimento tratando esse tiltimo como uma questao de justica e nao de ética. Reconhecimento: da identidade para o status Segundo Fraser (2002), em geral, o reconhecimento é visto pela perspeetiva da identidade, Assim, 0 que demanda o reconhecimento é a identidade especifica de individuos ou grupos. E, segundo Fraser (2002), por essa perspectiva, reconhecimento denegado pelos grupos hegeménicos deprecia a identidade dos grupos de menor poder, produzindo danos a sua autoimagem. A reparagio da falsa autoimagem dos grupos se da, de acordo com Fraser (2007), pela luta por reconhecimento que busca retificar a imagem de sua identidade degradada pelo grupo dominante. Para isso, esses grupos devem exibir sua identidade coletiva e publicamente em busca de respeito e de assentimento social. Se 0 resultado for positivo, obtém-se 0 “reconhecimento”, uma relagio nao distorcida consigo mesmo; “f...] relativamente 20 modelo identitirio, portanto, a politica de reconhecimento significa politica de identidade” (FRASER, 2002, p.15). Para Fraser (2002), a imagem degradada que um grupo de maior poder simbélico projeta sobre © outro pode ter sérios danosa identidade dos grupos de menor poder. No entanto, adverte que 0 modelo de reconhecimento que tem como eixo a identidade é problematico porque “[..] enfatiza a estrutura psiquica em detrimento das instituigdes sociais e da interaco social. Assim, ele arrisca substituir a mudanga social por formas intrusas de engenharia da consciéneia” (FRASER, 2007, p.106). Essa engenharia da consciéncia, segundo Fraser (2007), muitas vezes toma forma de um conmunitarismo que reifiea a identidade de certos grupos sociais. A consequéncia da reificagao cultural € que suas formas de luta pelo reconhecimento assumem um carater ndo baseado na interagio e no respeito entre diferentes. Tendem a fomentar o separatismo por meio da formacao de grupos fechados que promovem “[...] 0 chauvinismo, a intolerancia, o patriarcalismo e o autoritarismo” (FRASER, 2002, p.14). A reificagdo ignora as interagdes transculturais, trata as culturas como profundamente definidas, separadas e nao interativas, como se fosse dbvio onde uma termina ¢ a outra comega. A reificacio da cultura, para a autora, além do separatismo, provoca outros males sociais. Os grupos formados niio so caracterizados por relagdes de paz e harmonia. Ha diferencas em sua composigdo que a coletividade tenta apagar pela coercao; hi também, dentro deles, relagdes de poder e opressio, disputas politicas pela autoridade e lideranga do grupo, assim como por poder. “Entdo, em geral, 0 REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Sérgio Baptista dos Santos | 101 modelo da identidade aproxima-se muito facilmente de formas repressivas do comunitarismo” (FRASER, 2007, p.107). Por todos os problemas que Fraser (2007) atribui a politica do reconhecimento baseada na identidade e que por isso mostra-se inviével sua combinagio com a redistribuigdo, ela prope um modelo alternativo de reconhecimento. A sua proposta é conceber 0 reconhecimento como uma questio de status social. No modelo de status o que demanda reconhecimento nio é a identidade de ‘um grupo, mas o sfarus individual dos seus membros. Ele tem por finalidade promové-los como parceiros iguais nas interagdes sociais. Dessa forma, segundo Fraser (2007), 0 reconhecimento denegado nao desestrutura a identidade grupal, mas as relagdes assimétrieas de poder que tm como consequéncia a subordinagao social, barreiras para a participagao paritaria na vida social. Nesse caso, a reparagao ocorre por meio de uma politica de reconhecimento “nao-identitiria”. No modelo do status, 0 reconhecimento visa superar as relagdes de poder através da promogao de condigdes que levem os individuos subordinados a participarem da vida social com os demais membros de sua sociedade em condigdes de igualdade. ‘Nas situagGes em que os individuos interagem como pares numa relago simétrica de poder, hi reconhecimento reciproco e de igualdade de stars. De acordo com o modelo de justiga proposto por Fraser (2002), reconhecimento denegado no deixa de ser uma grave injustiga soffida pelas pessoas que se encontram em um patamar estatutétio digno de pouco ou nenlum valor social. Assim, sempre que ele ocorra ¢ imperativo que os individuos reivindiquem o reconhecimento. No entanto, essa busca por reconhecimento nao é baseada na identidade, mas tem por objetivo estabelecer relagdes sociais simétricas na esfera publica com a finalidade de acabar com a subordinag3o de grupos ou individuos. Nas palavras de Fraser: “[...] visa desinstitucionalizar padrdes de valor cultural que impedem a paridade de participacao e substitui-los por padrdes que a fomentam” (FRASER, 2002, p16). © reconhecimento concebido a partir do status & a forma elaborada por Fraser (2002) como ‘um para meio evitar a reificagio cultural. Ao deslocar a realizagio do reconhecimento da identidade de grupo, Fraser (2007) afirma que o que se deve atacar sio os efeitos das normas institucionalizadas sobre as capacidades de interagio; dessa forma, evita-se a substituigao da transformagao social pelas politicas de identidade. Fraser (2002) afirma que pelo modelo de status, a busca pelo reconhecimento recusa os moldes baseados no seff, evitando-se a valorizagio dos elementos constitutivos das identidades grupais por meio da essencializacao, a busca da “pureza” que, por sua vez, promove o separatismo em detrimento da mudanga histérica. De acordo com o modelo que Fraser (2002) prope, o reconhecimento denegado ¢ resultado dda relagao social de subordinagao produzida através de padres institueionalizados de valor cultural Ele ocorre quando as instituigdes sociais, que regulam a interagio de acordo com normas culturais, impedem a paridade de participagao. Ages que so obsticulos 4 paridade de participacdo, para Fraser (2007), sfio reguladas por ‘um quadro socialmente institucionalizado que define o valor dos atores de acordo com os padrdes de comportamento e priticas como normais e outros como deficientes ou inferiores. A finalidade da atribuigio de valores a priticas e propriedades ¢ vedar a alguns membros da sociedade a condigo de participarem com os demais em pé de igualdade. Nesses casos, 0 modelo de justiga de Fraser (2007) recomenda uma demanda por reconhecimento. No entanto, © reconhecimento aqui nio tem por objetivo valorizar a identidade de grupo, mas reverter um quadro de relagdes sociais assimétricas € promover a superago da subordinagao dos grupos inferiorizados. REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Reconhecimento |102 Dessa forma, Fraser (2007) acredita que o modelo de reconhecimento baseado no status evita muitas das dificuldades que 0 modelo baseado na identidade apresenta. Isso se deve ao fato de compreender o reconhecimento fora do campo da ética. Desse modo, o reconhecimento passa a ser concebido como uma questio de igualdade de status, definido entio como paridade participativa. Segundo Fraser (2007), enquanto o modelo de reconhecimento baseado na identidade inviabiliza sua combinagao com o modelo de redistribuigao, o modelo de status torna compativel redistribuigao € reconhecimento desde que haja prioridade do “correto” sobre o “bem”. Para Fraser (2007), a realizagio de qualquer programa te6rico normative que procure combinar redistribuigao e reconhecimento para construir um modelo abrangente de justiga, deve enfientar quatro questdes filosoficas cruciais: (i) saber se o reconhecimento é uma forma de justiga ou de autorrealizagao; (ii) compreender se a justica distributiva e o reconhecimento constituem modelos normativos distintos e sir generis, ¢ se algum deles pode ser subsumido ao outro; (iti) indagar se a justica demanda o reconhecimento daquilo que distingue individuos ou grupos ou 0 reconhecimento da nossa humanidade comum é suficiente; (iv) descobrir como distinguir as reivindicagdes por reconhecimento que sto justificadas daquelas que nio o so. Para provar que seu modelo de reconhecimento baseado no status é superior a0 modelo baseado na identidade, ela, portanto, submete seu modelo de reconhecimento a essas quatro questdes retérieas, Em suas automespostas ela esté travando um debate com o filésofo canadense Charles Taylor (1931) € 0 alemio Axel Honneth (1949), que concebem 0 reconhecimento baseado na identidade. O reconhecimento: justiga ou autorrealizagao? Na opinifio de Fraser (2007), tanto Taylor (2000) quanto Honneth (2003) consideram o reconheeimento como um problema da “boa vida”. Ser reconhecido, para esses autores, é uma condigdo fundamental para formagao de uma autoidentidade nio distorcida de individuos e grupos. Por outro lado, o reconhecimento denegado impede a antorrealizagio. Diferente de Honneth (2003) € Taylor (2000), Fraser (2007) considera 0 reconhecimento como uma questo de justiga. Desse modo, a negagio do reconhecimento nao é incorreta porque impede o pleno desenvolvimento humano, a autorrealizagao subjetiva, mas porque priva alguns grupos e individuos da condigao de parceiros plenos na interagao social devido aos padrdes institucionalizados de valoracao cultural. Nas palavras de Fraser: “Deve-se dizer, ento, que o no reconhecimento ¢ errado porque constitui uma forma de subordinacao institucionalizada — e, portato, uma séria violagio da justica” (FRASER, 2007, p.112). Conceber o reconhecimento como uma questo de justiga, oferece varias vantagens sobre a abordagem subjetivista de Taylor (2000) e Homneth (2003). A primeira vantagem, para Fraser (2007), € que o niio reconhecimento passa a ser concebido como subordinagio de siars e nao como autorrealizagio. Dessa forma, para Fraser (2002), 0 reconhecimento tem origem sociolégica endo psicoldgica. Portanto, o reconhecimento negado, em sua perspectiva, nao é apenas a desvalorizagao do se/f por conta das formas como ¢ visto pelos outros integrantes da sociedade. Ele designa a negagao queles, clasificados como inferiores na hierarquia cultural, da condicao de parceiros plenos na interagio social. Essas abordagens, baseadas nas distorgdes da estrutura da autoconsciéncia do oprimido, fazem com aqueles atores se encontrem firagilizados nas relagdes sociais e, por isso, sejam facilmente culpaveis. Portanto, segundo Fraser (2002), © modelo de reconhecimento tendo por base a identidade pressupde que a negacdo do reconhecimento proveca, nos individuos ¢ grupos, danos intemnos. Por outro lado, seu modelo de status concebe que tal negagzio causa danos extemnos. Ou seja, manifestam-se de forma a impedir que certos individuos figurem como membros plenos da sociedade: nesse seatido “[...] so moralmente indefensaveis independentemente de distorcerem ou nao a subjetividade dos oprimidos” (FRASER, 2007, p.114). REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Sérgio Baptista dos Santos |103 ‘A segunda vantagem que Fraser (2007) atribui a seu modelo de reconhecimento é a capacidade de ser moralmente vinculante sob as condigdes modernas de pluralismo de formas de vida, pois, para seu modelo de reconhecimento baseado na identidade, nenhuma concepgdo de “boa vida” pode ser universalmente compartilhada, Por esse motivo, as justificativas que defendem a politica do reconhecimento baseadas em termos de “boa vida” sio sectarias, Mas, apesar de no haver consenso sobre o “bem” em uma sociedade de pluralismo valorativo, nio ha problema se cada ator politico buscar 0 que concebe como sendo seu “bem”, segundo o modelo de Fraser (2007), desde que esses atores estejam convencidos de que sua concepgao de “bem” nao deve impedir que outros grupos procurem, em igualdade de condigdes, o que considerem seu “bem.” Portanto, para a fildsofa, a busca pela “boa vida” s6 toma o reconhecimento moralmente inaceitivel quando nega a outros individuos e grupos a possibilidade de buscarem o que entendem ser seu projeto de “boa vida”. Mesmo que nao esteja vedado aos individuos e grupos estabelecer € perseguir seus projetos de “boa vida”, a paridade de starus deve ser a pré-condigao para a busca da “boa vida”. De antemio, todos devem concordar que nao devem estar no horizonte de seus projetos elementos que privem outros grupos de buscarem seus projetos de “boa vida”. Portanto: (© que toma o nao reconhecimento moralmente inaceitivel, nessa perspectiva, & que isso nega a alguns individuos e grupos a possibilidade de participar, como iguais, com os demais, na interagao social. A norma da paridade partieipativa invocada aqui nao é sectaria no sentido referido. Ela pode justificar reivindicagdes por reconhecimento como normativamente vinculantes para todos aqueles que concordem em seguir os termos justos da interagao, sob as condi¢des do pluralismo valorativo (FRASER, 2007, p.113). © critério de reconhecimento, tendo como eixo a paridade participativa, é universalmente -vinculante; portanto, ele nao esta submetido a avalicdes éticas. De acordo com Fraser (2007), é justo conceder reconhecimento a grupos ou individuos que sio impedidos de participar da vida social como iguais. E, por outro lado, € injusta a concessdo de reconhecimento a certos grupos ou individuos quando esses impedem a paridade dos demais grupos. Por fim, a terceira vantagem que Fraser (2007) atribui a seu modelo de assentimento baseado no stanus & que ele estabelece critérios para determinar quem deve ter direito ao reconhecimento. Segundo seu modelo tedrico normativo, nem todas as reivindicagdes por reconhecimento so justas ¢, por isso, nfo devem ter direito & estima social. Toda reivindicagio de grupos e individuos que tem como consequéncia ou objetivo central a exclusio e subordinagao de outros grupos, como negros € mulheres, no deve ser aceita como justa pois impede paridade de status: E tals condigdes nfo sto asseguradas quando, por exemplo, padries institucionalizados de valoracao cultural depreciam, de modo difundido, feminino, © ‘nfo branco’, a homossexualidade © tudo o que é culturalmente a eles associado,[...] Quando esse & 0 caso, mulheres e/ou pessoas de cor e/ou gays e lésbicas enfrentam obstéculos na conquista de estima que nao so encontrados pelos demais. E todos, incluindo os homens brancos heterossexuais, enfrentam maiores obstaculos se eles optam por perseguir projetos e cultivar caracteristicas que sd culturalmente codificadas como femininas, homossexuais ou ‘nao brancas’ (FRASER, 2007, p.115), Portanto, para o modelo de assentimento baseado no starus justo conceder reconhecimento & grupos ou individuos que sio impedidos de participar da vida social como iguais; e injusta a coneessio de reconhecimento a certos grupos ou individuos quando esses impedem a paridade de REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Reconhecimento |104 participagao dos demais grupos. Por outro lado, a concepeao do reconhecimento baseado na identidade no estabelece critérios para definir quem é merecedor de estima social. Por todas essas razdes elencadas por Fraser (2007), ela considera seu modelo de reconhecimento, baseado na justiga, mais coerente e exequivel do que as perspectivas que consideram a necessidade de assentimento social como fundamental para a autorrealizagio de individuos e grupos. Justicga distributiva e o reconhecimento Para Fraser (2007), as teorias da justiga distributiva existentes nao sao capazes de subsumir coerentemente reconhecimento e redistribuigao. A filésofa afirma que varios tedricos distributivos entendem a importincia do srarus como elemento determinante para a redistribuigdo e dele tratam em suas abordagens, contudo, de forma insatisfatéria, pois reduzem siarus as dimensdes econdmica e legal, acreditando que uma distribuigZo justa de recursos e direitos é suficiente para reparago de uma relagio de reconhecimento denegado. Assim, Fraser (2007) entende que o falso reconhecimento nao & necessariamente, epifendmeno da injusta distribuigao. Ela ilustra seu argumento citando como exemplo o banqueiro de Wall Street, afto-americano, que nfo consegue pegar um taxi. Com esse exemplo, procura demonstrar que uma teoria da justiga deve examinar os padrdes institucionalizados de valor cultural para verificar se eles impossibilitam a paridade de participagao na sociedade. Por outro lado, Fraser (2007), numa critica direta a Honneth (2003), afirma que as desigualdades materiais no tém sua origem apenas na ordem cultural que valoriza algumes formas de trabalho e desvaloriza outras. Fraser (2007) nao discorda totalmente de que a ma distribuigao tenha origem na hierarquia institucionalizada de valor cultural, mas adverte que a injusta distribuigao nao € necessariamente epifendmeno do falso reconhecimento, A autora ratifica sua afirmagio com 0 exemplo de um homem branco, trabalhador industrial especializado, que fica desempregado devido uma fusdo corporativa especulativa, Com esse exemplo, Fraser (2007) procura demonstrar que nem sempre hi relagdo causal entre reconhecimento ¢ redistribuigdo, O operiio branco perde o emprego devido a um problema que tem origem na ordem econdmica, ou seja, na estrutura do capitalismo. Para tais casos, Fraser (2007) propée uma teoria da justiga que ultrapasse os padrdes de valoragio cultural e considere a dinamica do capitalismo. Pois, segundo ela, os mecanismos econdmicos nesse caso sio impessoais e, por isso, dissociados de qualquer forma de diseriminagao. Todavia, eles intervém de forma a negar a participagao de excluidos na vida social em igualdade de condigdes com os demais membros de sua sociedade ‘Na interpretaco de Fraser (2007), nem os teérieos da distribuiedo nem os do reconhecimento conseguiram éxito em juntar de forma coerente as solugaes para a ma distribuicao com as solugdes para o reconhecimento negado. Isso ocorre, para Fraser (2007), porque esses tedricos nao concebem distribuigao e o reconhecimento como distintos pontos de vista sobre a justiga. Portanto, conckui-se que, a seu ver, 0 combate aos males causados pela exploragao econdmica e opressio cultural deve considerar redistribuigo e reconhecimento como diferentes perspectivas de justiga. E, dessa forma, é possivel reunir reconhecimento e redistribuigdo no mesmo paradigma de justica, sem, com isso, reduzir um a outro. Segundo Fraser (2007), uma perspectiva ampla de justiga, que englobe reconhecimento e redistribuigio, demanda arranjos sociais que promovam a todos os membros da sociedade a capacidade de interagir uns com os outros como parceiros. Para que isso seja possivel, Fraser (2007) afirma que duas condigdes devem ser satisfeitas. A primeira, que Fraser (2002) denomina “condigdo REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Sérgio Baptista dos Santos [105 objetiva”, requer uma distribuigao de recursos materiais de modo a garantir a independéncia e 0 empoderamento dos participantes, Satisfazer essa condicao é eliminar os obstaculos provenientes das relagdes assimétricas de poder que se devem & desigualdade econdmica, os quais impedem a paridade de participacdo. Dessa forma, exelui-se a exploragio e as disparidades de riqueza, rendimento e tempo de lazer que impedem alguns individuos de interagir com outros como pares. A segunda condigao, que Fraser (2002) denomina “condigao intersubjetiva”, procura garantir a paridade participativa; demanda que os padrdes institueionalizados de valor cultural expressem respeito por todos os participantes ¢ garantam iguais oportunidades para aleangar o assentimento social. Ao cumprir essa condigao, eliminam-se os padrdes institucionalizados que desvalorizam sistematicamente individuos ou grupos devido as suas praticas e propriedades, negando-Ihes 0 starus de parceiros plenos nas interacdes sociais. Fraser (2002) observa que essas condigdes sao independentes, uma nao ¢ consequéncia das outras. Assim, nao ha como efetivar alguma de forma indireta como se a implementagao dessa trouxesse outra a reboque. “O resultado é uma concepcao bidimensional de justiga que abrange tanto a distribui¢do como o reconhecimento, sem reduzir um aspecto ao outro” (FRASER, 2002, p.13). A condicdo objetiva apresenta, tradicionalmente, preocupagdes que se alinham com a teoria da justiga distributiva, especialmente as relacionadas a estrutura econdmica da sociedade e as diferenciagdes de classes economicamente definidas. Ji a condigio intersubjetiva apresenta preocupagdes recentemente abordadas pela filosofia do reconhecimento, particularmente as referentes 4 ordem de status da sociedade e as hierarquias de status culturalmente definidas. Dessa forma, uma concepeio ampla da justiga, orientada pela norma da paridade participativa, inclui tanto redistribui¢do quanto reconhecimento, sem reduzir um a0 outro. Essa concepgao normativa, segundo Fraser (2002), pode conceber redistribuicao e reconhecimento como duas dimensdes de justiga irredutiveis, 0 que aumenta o escopo da atual concepgao de justiga. Fraser (2007), dessa forma, posiciona as lutas por redistribuigdo e reconhecimento no terreno comum da moralidade tirando-as do campo da ética. Reconhecimento: diferenga ou igualdade? © reconhecimento, na concepgao de Fraser (2007), é um procedimento para combater a injustiga social e niio para a satisfagio de uma necessidade humana genérica. Desse modo, a demanda por reconhecimento baseado na justica depende da forma correspondente a um nao reconhecimento. Quando o reconhecimento negado envolve a privagio da condigio humana de alguns individuos, 0 procedimento € © reconhecimento universalista. Ratificando essa ideia, a autora se remete ao epartheid sul-atticano: “...] @ primeira e mais fundamental compensagio para o apartheid sul- afticano foi a cidadania universal ‘ndo-racializada” (FRASER, 2007, p.121). Por outro lado, quando © nio reconhecimento envolve a negacio da especificidade de alguns, 0 procedimento deve ser 0 reconhecimento da especificidade No entanto, Fraser (2007) entende que nfo € toda reivindieacdo por reconhecimento que justifica a sua concessio. O critério que adota para avaliar se ¢ justo conceder 0 reconhecimento é saber se a negagao do assentimento social impede grupos e individuos de participarem da vida social como iguais. A promogao da justiga social deve ser proporcional ao dano softido por grupos ou individuos. Nesse sentido, a filésofa critica as abordagens de Taylor (2000) e Honneth (2003) alegando que nao explicam por que algumas diferengas sociais demandam reconhecimento e para outras ele nao é moralmente justificado como, por exemplo, para os homens brancos. REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Reconhecimento |106 Fraser (2007) acredita que, ao colocar as questdes de justiga em posicao central, percebe-se que a necessidade de reconhecimento para sujeitos subordinados nfo ¢ a mesma que para atores dominantes. E, portanto, somente as reivindicagdes que t&m como objetivo promover a paridade de participagdo podem ser justificadas, Dessa forma, a justiga requer reconhecimento somente em alguns casos em que a paridade de participacio é negada a grupos ou individuos. Esses argumentos, que defende o reconhecimento para proporcionar paridade de status, indieam trés criticas ao modelo de Taylor (2000) ¢ Honneth (2003): a primeira critica & que esses autores defendem apenas 0 reconhecimento do que é particular; a segunda, o reconhecimento do que é particular, da identidade de grupos ¢ individuos, para esses autores, tem como finalidade apenas proporcionar a autorrealizagio subjetiva sem consequéncias politicas e econdmicas ulteriores: , por ultima, a concepgio de reconhecimento, tanto para Taylor (2000) quanto para Honneth (2003), impossibilita que haja um critério para avaliar se todas as particularidades so dignas de reconhecimento, Deixo essa iiltima questo para a préxima secdo na qual a discussao € saber se ha critérios para distinguir formas de reconhecimento moralmente justas de outras nfo justas. Nesta seglo, a discussio se restringe aos dois primeiros pontos. Justificando as reivindicagdes por reconhecimento Para Fraser (2007), € necessdrio um critério que justifique a concessio por reconhecimento ou redistribuicdo. Honneth (2003) e Taylor (2000), por conceberem o reconhecimento com base na identidade, segundo Fraser (2007), defendem que todos devem ser reconhecidos em suas particularidades para se sentirem autorrealizados. No entanto, se o critério de Honneth (2003) e Taylor (2000) para a concessiio do reconhecimento baseia-se na necessidade genériea e universal de autorrealizagao, observa Fraser (2007), identidades racistas também deveriam ser reconhecidas porque proporcionam aos brancos pobres a possibilidade de manterem um sentimento de valor proprio por meio do contraste entre eles e seus supostos inferiores. Assim, 0 movimento contra 0 racismo sofieria resisténcia dos brancos pobres, pois impediria a autorrealizagao de suas identidades. Por isso, Fraser (2007) considera que a autorrealizagao nao pode ser a justificativa para as reivindicagdes por reconhecimento. O eritério adequado para obter reconhecimento ou redistribuigao, de acordo com sua abordagem, deve ser a paridade participativa que, a seu ver, se constitui como um critério geral capaz de distinguir as reivindicagdes justificadas das nao justificadas. Assim, de acordo com seu modelo de starus, Fraser (2007) afirma que os reivindicantes devem mostrar que os arranjos atuais os impedem de participar em condigao de igualdade com os outros na vida social. Fraser (2007) afirma que seu modelo, além de servir como eritério para avaliar se a politica de reconhecimento e redistribuigdo sio moralmente justificdveis, pode avaliar o procedimento para a promocio da paridade de participac2o, Para justificar a concessio de reconhecimento, segundo Fraser (2007), os grupos devem provar que as transformacdes sociais que reivindicam de fato irao promover a paridade de participagdo. O mesmo vale para os reivindicantes da redistribuigdo, eles devem mostrar que as reformas econdmicas que defendem irio proporcionar as condigdes objetivas para a participagao plena daqueles a quem sao atualmente negadas. Para mostrar a validade do seu modelo programitico, usa como exemplo a uniio homoafetiva: “[...] nesse caso, como ja vimos, na lei matrimonial, a institucionalizagao de uma norma cultural heterossexista nega a paridade de participagao a gays e Iésbicas” (FRASER, 2007, p.127). Essa situago, segundo 0 modelo de status proposto por Fraser (2007), ¢ injusta porque nega aos homossexuais a paridade participativa, colocando-os numa situagao juridica e social inferior a dos heterossexuais. Portanto, a promogao da paridade participativa deve por no mesmo starus as REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande ‘Sérgio Baptista dos Santos [107 parcerias homossexuais e as parcerias heterossexuais, legalizando o casamento entre pessoas do ‘mesmo sexo, Outro procedimento, no sentido de promover paridade participativa entre heterossexuais e homossexuais, seria “[..] desinstitucionalizar o padrio de valor heteronormativo.” (FRASER, 2007, p.127). Nesses dois casos, a ago, no sentido de colocar homossexuais no mesmo status que heterossexuais, ¢ baseada no principio da paridade participativa que, segundo Fraser (2007), se constitui como um eritério que, devido a sua objetividade, nio necessita de avaliagio baseada no prineipio da “boa vida”. Em sintese, a filésofa afirma que seu paradigma de justiga tedrico normativo, baseado no modelo de status, se constitui como um padrio eficaz para justificar demandas pelo reconhecimento de diferenga cultural, sem nenhum recurso & avaliagao ética. Consideragées finais As criticas de Fraser a politica do reconhecimento baseado na identidade, tal qual concebida por Taylor e Honneth, esti fundada em trés preocupagdes centrais: o problema da substituiglo, a auséncia de critérios para concessio do reconhecimento e a reificagao cultural e suas consequéncias, como a intolerincia e o separatismo. Para Fraser, as politicas do reconhecimento, que surgiram ao fim do século XX, nao corresponderaun as expectativas que eriadas em torno delas. A emergéneia dessa nova forma de justiga criou expectativas de que construiria, com as classicas demandas por redistribuiclo, um modelo de Justiga amplo, que daria conta dos males relatives mai distribuigdo de bens e servigos e aos males inscritos nas préticas culturais que, independente da condigao econémica, colocam certos individuos e grupos numa situagao de subordinagao social. No entanto, como procurei mostrar, Fraser entende que o surgimento das reivindicagdes por reconheeimento nio se mostrou compativel, tanto no mundo da politica vivida quanto nas discussdes académicas, com as lutas por redistribuigio. Em suas andlises, ela mostra como a redistribuigao ¢ 0 reconhecimento caminham em direedes opostas ¢ antagénicas. Enquanto a redistribuigio procura equalizar as diferengas econdmicas, as reinvindicagSes por reconhecimento procuram realgar as diferengas para denunciar ¢ lutar contra as formas de opressfio que nio tém origem econémica, mas nas hierarquias institucionalizadas de valor. Devido a incompatibilidade dessas duas nogdes de justica, para Fraser, ocorre uma migragao de atores politicos que antes defendiam as lutas por redistribuigao para 0 campo das reivindicagdes por reconhecimento, Essa migragio é o que chama de problema da substituigéo. O segundo problema que a politica do reconhecimento apresenta para Fraser é a incapacidade de separar as reivindicagdes legitimas das que nao sio legitimas. Isso porque, segundo a leitura que faz dos escritos de Taylor e de Honneth, esses autores considerariam que o reconhecimento é concebido apenas como uma questio de autorrealizacio de identidades. Como a autorrealizagio na modemidade, segundo Taylor (2000) e Honneth (2003), passa a ter um cariter vital, pois 0 aio reconhecimento traz sérios danos ao sentido da existéncia de grupos ¢ individuos, na visio de Fraser, esses autores estariam afirmando que todos tém direito ao assentimento social. Essa ineapacidade de discemir as demandas legitimas das ilegitimas, para Fraser, faz com que os reivindicantes por reconhecimento constituam um espectro amplo e heterogéneo que vai desde lutas que ela considera emancipatorias até as condenaveis. REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Reconhecimento |108 Outro problema que Fraser observa no reconhecimento baseado na autorrealizagao de identidades de grupos e individuos, é a reificaco cultural. © aspecto paradoxal do surgimento das lutas pelo reconhecimento, para Fraser, é que elas proliferaram apesar, e por causa, da intensificacdo dos contatos entre culturas e povos diferentes. Essa interagio entre diferentes se deve aos fluxos migratorios e meios de comunicagio globais que tendem a tomar cada vez mais hibridas todas as formas culturais, mesmo as que anteriormente eram vividas como “intactas”. No mundo cada vez mais globalizado, muitas utas por reconhecimento, segundo Fraser, transformam-se em um. conmunitarismo que reifica drasticamente as identidades de grupo. Portanto, as reinvindicagdes pelo reconhecimento nio promovem a interago e o respeito entre diferengas em configuragdes sociais cada vez mais multiculturais, 0 que ocore & a promocio do separatismo, o chauvinismo e a intolerancia. Com objetivo de resolver esses problemas, Fraser concebe um modelo de reconhecimento no baseado na identidade, mas no que procura promover a paridade de status, Esse modelo nao visa 4 autorrealizagdo das identidades, mas tem o objetivo de promover justica social. Desta forma, como foi discutido, Fraser constréi um paradigma de reconhecimento que acredita ser capaz de unir as demandas por redistribuigdo e as demandas por reconhecimento. E, também, estabelece um critério para a concessio do reconhecimento e redistribuigio para evitar os males da reificagio e suas consequéncias como o sectarismo ¢ a intolerancia. Em seu artigo Reconhecimento sem ética? (2007), Fraser tenta mostrar a eficiéneia de seu modelo de justiga baseado na paridade de stats sobre o reconhecimento que tem como eixo a identidade. Para isso, ela submete o sen modelo de reconhecimento a perguntas retoricas, pois sto elaboradas por ela mesma para confirmar a superioridade de seu paradigma de justiga sobre as concepedes de reconhecimento de Honneth e Taylor. Nesse artigo, Fraser submete seu programa filoséfico a quatro questées. No entanto, os trés problemas que descrevi aqui sintetizam esas, questes. Em suas “autorrespostas”, Fraser traz para o debate pontos dos programas filosdficos de Honneth (2003) e Taylor (2000) para compor seu argumento ¢ referendar seu o modelo de justiga como o mais eficiente para combater as consequéncias negativas do reconhecimento baseado na autorrealizagao. Referéncias FRASER, Nancy. A justia social na globalizagao: redistribuigao, reconhecimento ¢ participacao. Revista Critica de Ciéncias Sociais, n. 63, p. 7-20, 2002, FRASER, Nancy. Da redistribuiclo ao reconhecimento? Dilemas da justia numa era “pés-socialista” Cadernos de Campo, ¥. 13,1. 14/15, p. 231-239, 2006, FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, 0.70, p. 101-138, 2007. HONNETH, Axel. Lista por Reconhecimento. A Gramética Moral dos Conflitos Sociais. So Paulo: Ed. 34, 2003. TAYLOR, Charles. Argumentos filoséficas. Sao Paulo: Edigdes Loyola, 2000. REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande Sérgio Baptista dos Santos |109 Sérgio Baptista dos Santos — Doutor em Ciéncias Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: serbats@gmail.com. REIS | v.3 | a2 | jul-dea. 2019 | p.95-109 | Rio Grande

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