You are on page 1of 12
12 cog. P. Isa Colegio Esplci Cxtico Conse eco Alfeede Boi Antonio Candido Auguseo Massi Davi Artigueci J. Flora Susskind Gilda de Melo e Souza Roberto Schwarz Alfredo Bosi CEU, INFERNO Ensaios de critica literaria e ideoldgica TL uvraria [Al duas cidades: editoralil34 Mirio de Andrade (1893-1945), em bico-de-pena sealizado por Lasar Segall em 1927, um ana antes da publicasio do romance Mucunuiina:v her sem nemirscardeer Situagdo de Macunaima “Oh, doce amiga, é certo que seriamos felizes Na auséncia deste calamitoso Brasil!.,.” Mario de Andrade, “Poemas da amiga” O nome da rapsédia é Macunatma, mas nfo é sé Ma- cunaima, Mario de Andrade quis dizer alguma coisa do seu protagonista e acrescentou ao titulo um atributo paradoxal: 0 heréi sem nenbum cardter. No epilogo volta a intengao de qualificé-lo: “[...] eu botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases ¢ os casos de Macunaima, heréi de nossa gente”. Em ambas as construgées hd de comum o nome ¢ 0 epiteto fundamental. O nome, Macunatma, centro da rap- sédia. O epiteto, herdi. A diferenca esté na cauda de cada proposigao: no comeco, sem nenhum cardter; no fim, de nossa gente. O que se pode inferir, analisando as citagoes, € a pre- senga viva, no autor, de duas motivagées tio fortes que se converteram em mols da composisio da obra: a) por um lado, 0 desejo de contar e cantar episédios em corno de uma figura lendéria que o fascinara pelos mais diversos imiotivos que trazia ém si os atributos do herdi, entendido no senso mais lato possivel de um ser entre hu- 187 Céu, inferno ‘mano e mitico, que desempenha certos papéis, vai em busca de um bem essencial, arrosta perigos, sofie mudangas ex- traordinérias, enfim vence ou malogra...; para tanto, ne- cessdrio compor “as frases e os casos"; b) por outro lado, o desejo no menos imperioso de pensar 0 povo brasileiro, nossa gence, peroendo as crilhas “cruzadas ou superpostas da sua existéncia selvagem, colo- nial ¢ moderna, & procura de uma identidade que, de tio plural que ¢, beira a surpresa e a indeterminagao; dai sero “heréi sem nenhum cardter. Compreender Macunaima é sondar ambas as motiva- ses: a de narrar, que é lidica ¢ estéticas a de interpre que ¢ histérica ¢ ideolégica ~ “Sao dois projetos que sé chamam e se interpenetram. Mas cada um tem as suas exigéncias préprias ¢ 0s seus mo- dos de aparecer na rapsédia, E a sua combinacdo sera res- ponsivel por uma riqueza de formas e significados que ain- da hoje desafia a critica, O propésito deste ensaio nao ¢ fazer mais uma leitura de Macunaima; basta-me remeter 0 leitor a trés obras do maior valor que tentam, por vias diversas, decifrar 0 enig- ma do seu sentido imanente: Roteiro de Macunaima, de Ca- valcanti Proenga; Morfologia do Macunaima, de Haroldo de Campos; O tpi e 0 alaside, de Gilda de Mello ¢ Souza. Remeto, igualmente, & admirdvel edicio critica preparada por Telé Porto Ancona Lopez, cujo texto sigo em todas as transcrigoes.! | Cavalcanti Proenga, Roteire de Macunaima, Séo Paulo, Anhem- bi, 1955: Haroldo de Campos, Morfolegia do Mactnaima, Sio Pau- lo, Perspectiva, 1972; Gilda de Mello eSouza, O tupi eo alaside, Si0 188 | Situagao de Macunaima © que importa aqui € situar Macunaima no roveiro estético e ideolégico de Mario e, ainda que sumariamen- te, no contexto de signos e valores dominantes na Repi- blica Velha, que, ao sair luz o livro, vivia os seus tiltimos momentos. O discurso sobre aquelas motivagoes basicas, o contar € 0 interpretar, poderd servir de fio condutor. Primeitamente, hiem Macunaimaum tratamento nat- rativo da matéria e uma estilizacao da linguagem que nas- ceram de certas opcées artisticas impensaveis sem a referén- cia direta as poéticas da vanguarda modernista. Nestor Victor, por certo.o melhor talento critico da go- ragao simbolista, & qual sobreviveu, percebia no “futurismo” da obra recém-publicada de Mério uma tendéncia de levar 20 tiltimo grau o processo onirico, “um tipo de pensamento préprio & crianca como a gente primitiva’. E continuava: “Como nés sonhamos a noite, assim vivem os seus personagens de dia. Tudo em tomo desses imaginados seres é sonho ¢ sono. Com eles parece que se realiza a quarta dimensio suspeitada pelos cinsteinianos. Aque- a. em que pode ser que vivam os espititos. Para essa fauna supostamente humana o espago e 0 tempo em Paulo, Duas Cidades, 1979. A ediglo critica de Macunaima: 0 hersi sem nenhara cardzer, organizada por Telé Porto Ancona Lope, sit pela LTC, Rio de laneico, 1978. Céu, interno que vivemos sujcitos nao exisiem, De um instante para outro eles se transportam a distincias enormes.” O que o leitor arguro estava intuindo, a seu modo, era 0 cardter de fantasia inerente & composicio da rapsédia; e © seu projeto, coerentemente realizado, de transpor os li- mites do descritivismo urbano ou sertanejo (entio ainda vivo em nossas letras) por meio de um andamento antes legendétio do que naturalist, documental. Todas as grandes aventuras literdrias cmpreendidas na Europa desde o inicio do século XX iam nessa direco:trans- cender 0 c6digo dito “realista”, ou melhor, positivista, jd de- caido a cliché de estilo ea esterestipo de personagem. Fu- turismo, Dadafsmo, Surrealismo, Expressionismo propu- aham-se a captar as imagens de uma nova era da técnica ¢ davelocidade, ou entdo de um eterno inconsciente, sem pren- dé-las nas categorias de tempo ¢ espago tal como as con- vencionalizara a pritica literdria do Oitocentos “burgués? Q denominador comum das novas poéticas era prin- cipio da libertagao: dos géneros fixos, da psicologia centrada em tipos, da metrificagao parnasiana, da prosa rente a0 coti- diano domesticado, prosa em que o mot juste era sempre o que se localizava no juste milieu. Anarrativa de Macunafma, enquanto “fantasia esteu- tural”, para retomar a férmula bem achada de Haroldo de Campos, seguitia leis peculiares a0s contos maravilhosos, 2 Nestor Victor, “ Macunaima”, em Os de hoje: figuras do movi- mento modernita, Séo Paulo, Moderna, 1938. © texto saiu primei- ramente em O Globo, 8/10/1928, ApudTelé P. A. Lopez, ed. critica de Macinatrnainy cits p. 342. 190 Situagao de Macunaima produzidos pela cultura popular no mundo todo, mas sé encontraveis em estado puro nas mitologias dos povos égra- fos. Em perspectiva diversa, embora também voltada para aprender a chave formal da obra, Gilda de Mello ¢ Souza aponcou na busca da muiraquité uma versio carnavalizada da Demanda do Santo Graal. De qualquer modo, nessa ou naquela leitura, o paradigma é uma modalidade arcaica de ficgao, anterior ao romance ¢ & novela de costumes. Ora, 0 Modernismo brasileiro assumiu, nos fins da dé- cada de 20, uma feigdo primitivista muito nitida. As pre- sengas fortes de Tylor, Frazer, Lévy-Bruhl e Freud, além do intuito de tocar as matrizes de um imagindrio “nosso”, me- diane @ invengio artistica, deram a forma ¢ 0 tom a esse petiodo fecundo da atividade literdria de Mario de Andra- de. E até mesmo o seu posterior nacionalismo musical ¢ os seus valores de engajamento — que 0 norteariam nos anos de 30 ¢ nos tempos escuros da Segunda Guerra — nfo se compreenderiam bem sem 0 confionto com a etapa que culminou na tedagio de Macunaima, O quese chama “primitivismo estético” do periodo em. quese gestou a rapsédia vem a significar uma reviravolta nos processos de zaimesis literaria. A busca intensa do sentido interno e das motivagGes selvagens e recalcadas, que ora se dao, ora se escondem na mascara dos atos e das palavras, é comum & psicandlise (de que ha marcas evidentes na cons- trugio de Amar, verbo intransitive), a0 Surtealismo ¢ ao Ex- pressionismo. Um fastio das estilizagoes brilhantes e afeta- das que povoavam a cena da belle époguetem como correlato a sondagem do mundo onirico individual e, em mais am- pla esfera, o encontro maravilhado com imagens ¢ ritmos das culturas ndo-européias. Eo momento da Africa, da art 191 Céu, nterno nigre, ¢, logo depois, do jazz afto-americano. Na América Latina, a hora ¢ de redescobrir as fontes pré-colombianas. A civilizagio mais requintada conhece, entre os dois tertiveis conflitos interimperialistas, 0 encanto dos rituais simbélicos mais remotos, dos mitos e das manifestacées foleléricas mais “cstranhas’. Do pensanseity selvageity, ex fim, batizado na época de “mentalidade primiciva”. Algo de comum ou, mais precisamente, de analdgico, vai-se articulando entre esse universo, colonizado e oprimi- do havia séculos, ¢ as novas estéricas cujo horizonte de sen- tido cra a denegagao da mente racionalizadora imposta 20 planeta intciro desde que se consolidara o modo de viver ¢ pensar capitalista. Nessa rede de afinidades entende-se 0 veio neo-indianista ¢ neofolclérico do Modernismo brasi- leiro. E também a hegemonia do poético sobre outras for- mas de expresso que caracterizou o movimento na sua fase inicial e polémica: Paulicéia desvairada, Pan-Brasil, Ritmo dissoluto, Losango cigui, Cla do jabuti, Martim Cereré, Co- bra Norato... Amensagem primitivo-modernista (o paradoxo é sig- nificativo) parecia nao caber nos cbdigos de prosa herda- dos da tradicao naturalista menor ¢ do regionalismo tipi- co da Reptiblica Velha das Letras. E por isso que os textos em prosa mais mordentes do period foram, sistematica- mente, desvios daquele estilo convencional. Trata-se das Memérias sentimentais de Jodo Miramar, de Serafim Ponte Grande (ambos de Oswald de Andrade) e de Macunaima. As duas primeiras obras desarticulam esquemas romanes- cos jd batidos, operando um uso consciente da montagem e da parédia. Quanto 3 dicgao complexa de Mario, reto- ma processos de composicio e de linguagem da narrativa 1 Situagao de Macunaima ral indigena ou arcaico-popular. Com um pouco de a-von- tade interpretative, pode-se dizer: “pés-realismo”,, no pri- meiro caso; “pré-realismo”, no segundo. Em ambos di-se a recusa de repetir a maneica meio documental, meio or- namental, que jé aquela alcura mentia ao gosto ¢ & cons ciéncia critica do escritur wnuderne.4 Historicamente, essa percepeao da inatualidade de um certo estilo de narrar (constituido nos fins do século XIX) 86 teve condigses de formar-se ¢ radicalizar-se no interior do segimento cultural mais “avangado” do pais, a burgue- sia paulistana aberta a influéncias internacionais, entio fil- tradas pela inteligéncia francesa. © moderno em Paris e o modernista entre nés iam & caga do primitive, e reconheciam-se nele. Foi do coracao de uma Sao Paulo reeuropeizada pelas modas do art nowveaue pelo fluxo intenso da imigracio, ¢ jd encrada na era da maquina e das relagdes capitalistas, que péde gerar-se uma recusa dristica do tom ¢ do teor neo- parnasiano ainda vigente nas provincias ¢ no Rio de Janei- ro da Academia Brasileira de Letras. © modernisca passa a aspirar ao brilho agudo de ago da civilizagio industrial em expansio, que 08 manifestos futuristas proclamam, ou entao 2 uma forma selvagem de * Matio de Andrade, comentando o seu processo de composisao, afirma: “Fantasiei quando queria e sobrecudo quando carecia pra que a invengio permanecesse arte e nfo documentagéo seca de estudo. Basta vera macumba carioca desgeograficada com cuidado, com cle- mentos dos candomblés baianos e das pajelancas parzenses.” (“Ano- tagées para o preficio”, em Macimnaima: a margem eo texto, de Tele PLA. Lopez, Sao Paulo, Hucitee, 1974, p. 94). 198 Céu, inferno. contracultura que vinha elegendo os seus emblemas entre 08 simbolos do inconsciente. Mario de Andrade, ances de ser 0 criador de Mucunai- ma, foi o pocta vanguardista de Paulicéia desvairadac 0 des- cobridor do Brasil totémico em Cla do jabuti. O sew traba- Iho formal quis incorporas, ao longo daqucles inquietes anos 20, nfo s6 as estridéncias da nova metrépole como também os ritmos encantatérios da pajelanga ¢ do candomble. ‘A projegao livre de mitos ¢ express6es indigenas ou po- pulares no texto elaboradissimo de Macunaima nao con- tava com modelos narrativos na liveracura brasileira, a néo ser em alguns lances felizes, mas raros, do regionalista Si- mbes Lopes Neto, cujos Contos gauchescos Mario admirava. ‘Mas em Lopes Neto prevaleciam critérios de documento everossimilhanca, mesmo quando 0 objeto fosse lendario. Quanto aos paralelas que um estudioso de félego, Ca- valcanti Proenga, fez da rapsédia com /nacema, eu diria que io curiosos ¢ sugestivos, mas bastante probleméticos.4 A escrita de Jracema afasta-se da oralidade popula seu andamento ¢ refinadamente literdrio, ainda quando se entretece de palavras ou metiforas vertidas livremente do tupi. O seu modelo nobre se chama visconde de Chateau briand ou, mais modestamente, o idilico Bernardin de Saint-Pierre de Paulo e Virginia. Macunaima, ao contririo, desenvolve-se rente a construgées coloquiais, nao refugindo a expresses jocosas ou obscenas, tudo dentro de uma sin- taxe quase falada e de uma estilizacao préxima do conto maravilhoso, 4 Roteivo de Macunatma, cit. pp. 34-8. Situagao de Macunaima A rigor, Macunaima € tdo conscientemente literério quanto /nacema: a diferenga est no modo extremamente livre de assumir a linguagem oral na escrita, que é peculiar ao estilo da rapsédia, e to marcado que alguns leitores menos avisados, ou induzidos pelas atitudes polemicas dos modernistas, acreditaram que se tratava de uma obra com- posta em “lingua brasileira”, tese que Mario de Andrade jamais endossou. A modernidade da sua dicedo afere-se pela ousadia e pelo jeito desabrido do Iéxico e do ritmo frésico, solto. O ponto de referéncia, € de aberto contraste, acha-se na pro- sa de ficgio regionalista menor, corrente até a terceira dé- cada do século XX} nesta, 0 registro lingiiistico ¢ duplo, mantendo-se entre aspas, ou em itdlico, as palavras arcai- co-populares ¢ a prosddia rustica, isolando-as ostensiva- mente do discurso culto, lacus que 0 autor ocupa sempre que assume a sua identidade de narrador. Em Macunaima, a fusio dos cédigos popular ¢ erudi to representa uma conquista praticamente nova, que ndo deixou de surpreender, se nfo chocar até mesmo um filé- logo de critérios progressistas como Joao Ribeiro.> Comenta, a propésito, Telé Porto Ancona Lopez na sua introdugo & obra: 5 Jodo Ribeiro escreveu a crbnica “Macunaima, heréi sem ne- hum caricer” para 0 Jornal do Brasil (31/10/1928); nela critica a “incongruéncia” com que Mario teria juntado mitos ¢ anedotas dis- pares, mas ressalva 0 “humor” que anima o texto ¢ aponta a “magia” ‘como a arte ou l6gica imanente na sua conscrusio. A crbnica est trans- ctica por Telé PA. Lopez, na ed. crltica de Mactmaima. cit. pp. 344.6, - 196 C6u, interno “Na criagio popular, 0 autor pudera encontcar, ‘do sem surpresa, soluc6es bastante semelhantes a idéias suas sobre polifonia poética ou verso harméni. 0, quando observava, por exemplo, as enuumeragSes com auséncia de pausa nas emboladas. Ese quisermos ir mais Longe, essa mesma rejeicao das pausas ou das virgulas pudera também set por ele encontrada no Manifesto Técnico da Literanura Futarista, tio valoti- zado por nossos modernistas.”° O aproveitamento poétice da fala do homem iletrado seria reproposto, com outro horizonte de sentido e outro gosto, por Guimaraes Rosa a partir de Sagarana até Primei- ras estérias, O que estrema, porém, a solucao estilistica de Mario, apartando-a da escrita de Rosa, é um veio franca- mente satirico que salga o texto ¢ acusa um foco narrativo ludicamente distaiiciado da sua matéria, ainda quando pa- rece apenas glosar as suas fontes. Esse intervalo da conscién= cla narrante torna possivel o tom jocoso de tantas passagens €, no extremo, o tom parddico (da “Carta pras Icamiabas’, por exemplo, antiparnasiana, antiprovinciana), responsiveis pela dialetizacdo interna dos fatores estruturais da histéria oral. O herdi, as figuras secundérias que Ihe fazer coro, a intriga, a desctigéo dos espagos, a ordena¢io temporal, tudo € trabalhado por uma perspectiva nova, anti-regionalista, que avanga para a dissociacéo humoristica, ou entio vol- ta-se para um trabalho de bricolage em que o pensamento magico ¢ mediado pelos jogos de arte. - S Bd. critica de Macunairmi, cit.. pp. XLE-XLIL 196 Situagao de Macunaima O fundo aei tira se disfarga e se atenua em meio a brincadeiras de linguagem ¢ de construgao. Se o lastro “negativo” nao fosse contrabalancado pela adesio lidica € simpatica & Mente selvagem, o sentido tiltimo de Macui- niima se Cifratia ha Mais Cdustica das acusagSes j4 movidas as mirologias do carater nacional brasileiro. No entanto, nao é bem assim, pois coabitam no corpo farrativo os dois valores: 0 moderno da perspectiva critica ¢ 0 arcaico da composicéo rapsddica. (© autor, que taritas vezes se interrogou sobre 0 génc- 10 literario em que coubesse a sua invengéo, acabou chaman- do-a de “poema herdi-cdmico”, nome que daria conta da contaminatio de base: “Um poema herdi-cémico, eagoando do ser psi- coldgico brasileiro, fixado numa pigina de lenda, & maneira mistica dos poemas tradicionais, O real ¢ 0 fantistico fundidos num plano. O simbolo, a sétira a fantasia livre fundidos. Auséncia de regionalismo pela fusdo das caracteristicas regionais. Um Brasil sé eum herdi s6."” A novidade artistica de Macunaima alcanga o nivel da inteligibilidade histérica quando vista & luz da segunda 7 Carea a Sousa da Silveira (26/4/1935), em Lygia Fernandes (org), Mario de Andrade escreve cartas a Alcen, Meyer e ousros, Rio de Janeio, Edizora do Autor, 1968, p. 166. - 197 Céu, inferno motivagio forte de Mirio de Andrade, a que me referi no comego do ensaio: 9 scu projeto de pensar o povo brasi- Ieiro, pois o herdi é “herdi de nossa gente”, Apesar de todos os negaceios do autor, alids relacivi- zados por ele préprio em cartas e preficios, nao se pode fu- gir ao problema da interpretagéo contextual da obra: que telagao guarda a raps6dia com a leitura do Brasil que Ma- to vinha tentando fazer desde o comeco da sua producio intelectual? Em O'tupi eo alatide, Gilda de Mello ¢ Souza formula de modo preciso 0s dados fundamentais da questio. “No inicio, Métio de Andrade tesistiu em reco- nhecer a face verdadeira de sua criacéo e tomou ape- nas como ‘um jeito pensativo e gozado de descansar uumas férias’ a violenta explosio que na verdade arre- ‘matava um periodo fecundo de estudo e de diividas sobre a cultura brasileira. Mas aos poucos foi obriga- do aaceitar que de fato semeara o texto com uma in- finidade de intensoes, referéncias figuradas, simbolos «que tudo isso definia os elementos de uma psicolo- gia propria, de uma culeura nacional ¢ de uma filoso- fia que oscilava entre ‘otimismo a0 excesso e pessimis- mo ao excesso’, entre a confianca na Providéncia ¢ a energia do projeto.”* O “orimismo” resultaria de sentimentos nacionalistas ou, em sentido lato, nativistas, que parecem ser estruturais entre os povos egressos do sistema colonial no século XIX, 8 Omupieo alaide, ct, pp. 9-10. 198 Situagde de Macunaima quando se definiram as novas formagdes nacionais latino- americans. Entre nds, José de Alencar ¢ os romanticos cria- ram, ao longo do Segundo Impétio, as figuras ¢ os ropoides- se nacionalismo com a exaltago da terra ¢ do indio. No fim do século e com a geracéo republicana que precede & vira get modemista de Siu Paulo, 0 nacionalisiny se rasnifica em veios politicos entre si diversos (Raul Pompéia, Olavo Bilac, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Eduardo Pra- do, Araripe Jr., Lima Barreto, Manuel Bonfim...), mas jé entio ¢ contrastado pela corrente de “pessimismo ao exces- 30”, que mistura as raz6es do darwinismo social com o pe- sado racismo alimentado pelos novos impérios coloniais na Africa e na Asia. O primeiro pés-guerra, tempo central na formagio de Mitio de Andrade (que estiéia como poeta vanguardista no principio dos anos 20), vive uma atmosfera saturada de questées nacionais. O cadinho da velha cultura colonial- escravista se vinha alterando com a entrada do Brasil (e de Sao Paulo, em primeiro lugar) no regime da industriali: ‘fo, da imigracio, da modernizacio, enfim E o periodo por exceléncia dos grandes projetos, fer- mento das esperangas revoluciondrias da Coluna Prestes € da Revolugéo de Outubro de 1930; ¢, em contrapartida, das desalentadas comparagGes entre o atraso do pais ¢ 0 avango da Europa ¢ dos Estados Unidos: confrontos que deséguam no pessimismo de origem neocolonial. E voltam a rona dos discursos as teotias das racas superiores ¢ inferio- res, ¢ as hipdteses negativistas da mestigagem ¢ do clima tropical, que provinham de intérpretes formados ainda no século XIX, quando um evolucionismo linear aplicado a povos inteiros se impunha como doutrina hegeménica. 199 6, interno Doutrina que, com poucas variantes ou arenuag6es, preva- leceu até a Segunda Guerra Mundial. Na dinamica ideolégica do autor de Macunatma pare- ‘ce que se articulou um lugar ideal de encontro entte dois ve- tores cujas diregGes acabariam sendo, as vezes, opostas: 0 ve- torda membria afetivae o vetor do pensamento social eritico. ‘Ameméria, investida de um pathos fortissimo, foi tra- zendo pata o interior da rapsédia um quase infinito vivei ro de imagens cenas, ritos ¢ lendas, frases ¢ casos que cons- titufam 0 seu mais caro tesouro, a fonte inexaurivel do seu populitio luso-afro-indio-caboclo... O trabalho de organizagio artistica dessa variada po- randuba atesta, em primeiro lugar, a seriedade com que Mario a reconhecia como um complexo sistema de formas significantes, e que ele identificava com a culeura brasilei- ra subconsciente, ndo-letrada. Culcura em que se inseriam nao apenas os indigenas, mas também os caipiras ¢ serta- ngjos, os negros, os mulatos, os cafiuzos e (por que nao?) 0 branco que vive entre a técnice € a magia, como se vé no capitulo “Macumba’, descrigao de uma sesso a que no faltaram jornalistas, ricagos e “empregados-piblicos, mui- tos empregados-ptiblicos!”. A origem étnica de cada fio cultural de base importa menos do que o tecido resultante; este, sim, assume com 0 passar do tempo um matiz préprio que se reconhece, afi- nal, como brasileiro. O heréi é herdi de nossa gente: frmu- la que substituiu, nos manuscritos de Mario de Andrade, a outra, menos feliz, herdi de nossa napa No entanto, nao hé em Macunaima a contemplagio serena de uma sintese. Ao conttirio, o autor insiste no mo- do de ser incoerente ¢ desencontrado desse “carter” que, 200 Situagao de Macunaima de tao plural, resulta em ser ‘nenhum”. E aquele possivel ‘otimismo, que era amor is falas ¢ 05 feitos populares, ao seu ceor livre e instintivo, esbarra ma constatagéo melancé- lica de uma amorfia sem medula nem projet. O herdi de nossa gente ¢ ctipido, lascivo, glutio, indolence, covarde, mentiroso, ainda que por seus desustres ieieya a piedude do céu que o abrigard entre as constelagdes. E a Ursa Maior. Se, na ordem do imaginério, a rapsédia se constrdi aco- Ihendo ¢ assimilando gostosamente uma variada “antolo- gia do nosso folclore”, na ordem dos valores sobe ao pri- meiro plano um retraco do Brasil bastante préximo do que foi tragado pelo ensalsta a quem Mario dedicou Maciinat- ma: Paulo Prado. Reivato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira ¢ hoje um livro quase esquecido. Quando saiu, porém, aleangou éxito excepcional: quatro edigées entre 1928 ¢ 1931. O momento era propicio para tentar explicacées do Brasil, pais que se via a si mesmo como um ponto de interrogacao. ‘Terra tropical e mestiga condenada ao atraso, ou promessa de um eldorado sul-americano? A diagnose de Paulo Pra- do, expoente da burguesia cafeeira em ctise, é arrasadora: © brasileiro como subproduto da cupidez e da luxisia de- senfreada de portugueses aventurciros, tudo agravado pelos males de séculos de decadéncia. Devassid’o mais cobiga teriam dado um composto de melancolia ¢ “romantismo”. Nao obstante 0 teor arbitririo dos jutzos de Paulo Pra- do, importa ver que através de suas palavras se patenteava um estado de espirito, uma aticude depressiva em face do ethos brasileiros e que esse sentimento era partilhado por Ma- tio, que escolheu um “herdi” desconcertante (Makunaima, 0 Grande Mau) para protagonista do seu retrato do Brasil. 201 Céu, inferno © Makunaima das cribos da Guiana ¢ da Venezuela amaz6nica € um ser perigoso, cheio de malicia ¢ perversi- dade, tal qual’se colhe na leicura da obra etnogrifica de Koch-Griinberg (Vor Roroimazum Orinoco. II. Mythen und Legenden der Taulipang und Arekund Indianer, Scuctgart, 1923), que Maria lew, anoron e seguiu de perto em tantor pasos da rapsédia.? Esse Grande Mau vive no regime do instinto, as soltas, usando da esperteza para escapar aos deveres da socialidade adulta. Lembra, axiologicamente, a visio sombria de Paulo Prado, eremete formalmente a um entrangado de tipose com- portamentos selvagens ou, lato sensu, populares, que Mario de Andrade urdira com suas leituras ¢ experiéncias pessoas, Entretanto, 0 que relativiza e até certo ponto resgata 0s atributos ruins do herdi de nossa gente ¢ 0 tratamento liidico dado pelo narrador a essa figura central. Alguma coisa de visceralmente infantil cria em torno de Macunaima uma aura de espontaneidade polimorfa que parece situd- Jo em um espago aquém da consciéncia entendida como responsabilidade ou coesio moral. Isto nao significa que 0 seu mundo ignore as duras realidades do castigo, bem pre- sentes ¢ ativas na determinagio do enredo, mas nao capa- zes de constituir uma pessoa, vermo que setia de todo ina- dequado para qualificar Macunaima, Mario de Andrade procurou manter-se, em geral, fiel ao modo de construcéo dos hersis da mitologia amazénica, acionados direca e pre- mentemente pelos estimulos do prazer ou do medo. ° Ver o estudo comparativo feito por Telé P. A. Lopez, em Ma- cunatma: a margem e o texto, cit., pp. 27-72. 202 Situagao de Macunaima A dificuldade, sentida em primeiro lugar pelo préprio autor, de definir a identidade simbélica do heréi em ter- mos de carécer brasileiro, vem do cruzamento de perspec- tivas que enforma a rapsédia. Se, por um lado, o ponto de vista “civilizado”, “moderno” ¢ “racional” de wm Mario de Andeade compe uma figura que vale como sitira picante de todas as idealizacdes romanticas do echos nacional, por outro lado, a flecha critica também parte do olho “primi- tivo”, “arcaico” ¢ “mitopoético” de ouéro Mario de Andrade para atingir em cheio a cidade do progresso: os ridiculos da burguesia paulista, com os seus novos-ricos (0 regatao en- dinheirado, Venceslau Pietro Pietra) e a sua cultura tida por grosseira ¢ exibicionisra ou, no caso dos quatrocentées, pe- dante e antiquada. A “Carta pras Icamiabas”, to longa e pontilhada de intengdes parddicas, é a expresso complexa dessa irrisdo do academicismo bandeirante, de suas pro- sipias e sestros, fingindo o autor uma percepgio selvagem, de fora; ¢ aqui o modelo dos cronistas verndculos é, 20 mes- mo tempo, imitado ¢ invertido. O que chamo de cruzamento de perspectivas, to fe- cundo na hora da criagdo artistica, deixa irtesolvida a ten- 4o fundadora. Coexistem ou alternam, na gangorraideo- Logica, o orimismo eo pessimismo em face dos destinos do povo brasileiro. Creio que tal irresolucao é cognitiva e afe- tiva: Macunaima se inscreve no quadro de perplexidades que tem por nomes Retrato do Brasil, Casa-grande & sen- zal, Raizes do Brasil, todas obtas pensadas em um tempo dilacerado pelo desejo de compreender o pais, acusar as suas mazelas, mas remir a hipoteca das teorias colonizado- ras e racistas que havia tantos anos pesava sobre 2 nossa vi- da intelectual. 203 Cou, interna Osestudos mais penetrantes escritos sobre a poesia de Mario de Andrade trouxeram 3 luz as forcas contraditérias que a constituiram, dando-lhe, tantas vezes, um pathos dra- mittico. Paciente arlequinada, de Victor Knoll, e Figuragdo da intimidade, de Joo Luiz Lafeté, trabalham, em registros criticus diversos, o tema nuclear da divisio — sofrida, pa- tente ou mascarada — que se dé, no melhor Mario, quer pela expresso do ew, quer pela visio do social. !2 Para Macunaima, nem a cidade representa uma safda para a selva, nem a selva para a cidade. O sentido é de im- passe; e dor pelo impasse. Nem € felic 0 mundo amazdnico (metonimia de um vasto Brasil que vive fora da civilizacio moderna), porque nele os embates contra as intempéries, as pragas ¢ as pestes, os monsiros e os espiritos vingado- res, podem levar & mingua 4 morte (“Dera tangoloman- golo na ttibo Tapanhuma ¢ os filhos dela se acabaram de um em um”); nem a vida urbana, mal europeizada e jé semi-americanizada, consegue dar 3 nossa gente um habitat acolhedor: “iralianinhos” séo “destinados a alimentarem as fabricas de dureos potentados, ¢ a servirem, escravos, o des- canso aromético dos Cresos”. E por toda parte 0 que se vé a méquina hostil, a politica rasteira e 0 dinheito: “o curri- culum vitae da civilizasao, a que hoje fazemos ponto de honra em pertencermos”. “Mas a taba cresceu... Tigiteras agressivas, Pra trés! Agora o asfalto anda em Tabatingiera. 1© Victor Knoll, Paciente arlequinada, Sa0 Paulo, Hucitec, 1983; Joo Luiz Laferd, Figurasao da intimidade, Sio Paulo, Martins Eon- tes, 1986, 208 Situagao de Macunatma Mal se esgueira um pajé entre locomorivas E 0 forde assusta os manes lentos do Anhangtiera (Tabatingiiera”, em Losango cdgui) O brasileiro seria um homem desavindo consigo mes- mo. Nao encontrando lugar proprio nem na mata nem na mettdpole, nem no Uraricoera nem na Paulicéia, ele padece em ambos, Nao por acaso Macunaima desiste de viver na sua terra. Mas fugir para onde? Para o céu, onde é possfvel morar como estrela e bri- Ihar de um “brilho incil”: “A Ursa Maior é Macunaima. E mesmo 0 heréi capenga que de ranto penar na terra sem satide e com muita sativa, se aborreceu de tudo, foi-se embora ¢ banza solitério no campo vasto do céu.” A filosofia da preguiga tropical se espiricualiza ¢ vica ia sublimada, Se alcangarmos ler corretamente a bela imagem do fe- cho, teremos condigies de melhor sicuar a obra no proceso mito-ideolégico de Mario de Andrade. Q tom derradeiro, em ver de sugerir uma “apotcose” (2 palavra é do autor ¢ foi dica em mais de uma ocasiao), parece afinado por um canto em decrescendo. E. um descante que jé se ouvira entre as pautas do Retrato do Brasile que se tornaria a modular em um passo antolégico de Raizes do Brasil: “Somos ain- da hoje uns desterrados em nossa terra”, A leitura que Mario fez do episédio, em carta a Alva- ro Lins, reforga a impressio de um triste exilio césmic: in Céu, inferno “Veja 0 ‘caso” de Macunatma. (..] Pouco impor- 13, si muito sorti escrevendo certas péginas do livro: importa mais, pelo menos pra mim mesmo, lembrar que quando 0 hersi desiste dos combates da terra e re- solve ir viver ‘o brilho initil das estrelas’, eu chorei. ‘Tudo, nos capiculos finais, foi escrito numa comuyio enorme, numa tristeza, por varias veres sent os olhos umidecidos, porque eu nde queria que fosse assim! E até hoje (€ 0 livro meu que nunca pego, néo porque ache ruim, mas porque detesto sentimentalmente ele), as duas ou trés vezes que reli este final, a mesma co- ‘mosio, a mesma tristeza, o mesmo desejo amoroso de que nao fosse assim, me coavulsionaram.”'! A confissio néo poderia ter sido mais franca nem mais patética, A evasio magica que sela o livro ¢ mais um exem- plo de aproveitamento em chave critica de uma narrativa mitolégica. E a multiplicidade do ser, é a fratura insandvel do “cu sou trezentos”, é enfim a instabilidade comum 20 poeta e ao herdi que tem por efeito a rentincia aos seus modos-de-existir passados ou recentes. Macunaima perde a muiraquita, perde a protegia de Ci Mae do Mato ea de Veia Sol, amulhera-se com uma porcuguesa, mas nem por isso adquire uma identidade fixa, branca e “civilizada”, O seu destino, alids, vem a ser precisamente este: nfo assumir nenhuma identidade conscante, O que era percebido por Mitio como um né angustiante eo levavaa conferir 4 rap- 1 Carra de 4/7/1942, em Lygia Fernandes (org.), Mario escreve cartes Aleeines Cit, pp. 43-4. * 206 Situagao de Macunaima sédia € a0 seu quase contemporineo Cla do jabutio signi- ficado de fim de uma etapa.'? Essa tiltima afirmagio, embora feita a propésito de um roteiro individual, vale também para o movimento de idéias ¢ formas da literatura brasileira posterior 20 climax do mo- dernismo paulista, O chamado romance de 30, ueo-realista e social, nao seguiu as pegadas de Macunatma nem se me- dasou com seus lampejos perdidos no firmamento. Pro- curou, ao contririo, enraizar fortemente as suas histérias e 0s seus personagens em espagos ¢ tempos bem circunscti- tos, extraindo de situagdes culturais tipicas a sua viséo do Brasil. Foi o romance do engenho e da fabrica, do agreste edo pampa. Romance que o leitor e critico Mario de An- drade acompanhou com admiragio. Macunaima ficou banzando “inutilmente” como astro solitério nos percursos da ficgio micopoética brasileira, até que, passados quarenta e tantos anos, 0 Tropicalismo 0 con- templou de novo, transpondo-o com entusiasmo para 0 cinema ¢ o teatro no espirito contracultural de 68. Em 1974 serviu de argumento para o samba-enredo da Escola de Samba Portela ‘Anti-realismo formal, extremos de sdtira e parddia, ale- gorias de orimismo e pessimismo surrealmente cruzadas, € rodo um enorme desejo de fugir para outros mundos onde a propria palavra “realidade” nao se fizesse t20 imperiosa: cis algumas das razoes desse renascimento sazonal de uma obra que guarda ainda nas suas dobras nao poucos desafios 20 trabalho de interpreracio. "2 Carta a Sousa da Silveira, bide, p. 66. 207

You might also like