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Referéncias (CSEKO, Lui C. Uma Eucagio Musil para Século 21 ~ nots para uma conferéncia IN: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIACAO BRASILEIRA DE EDUCAGAO MUSICAL, 3, 1991, Salador. Anti. Porto Alegre: ABEM, 1991, p. 195-213 DELEUZE, Gilles. Dien e Repti, Rio Janeiro: Graal, 1988, FREIRE, Paulo; GUIMARAES, Sérgio. Sabre Blucagio (Did). 1, 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, GRIFFITHS, Paul, A Misica Modema: uma historia concisa de Debussy a Boulez. Rio de Janeivo: Jorge Zahar Ealitor, 1998. GUATTARI, Felix. As Ths Erlegas. 2" ed. Campinas, SP: Papirus Editor, 1990, KOELEREUTTER, Hans J. Educicio Musical no Tereeito Mando: fungi, problemas « posibilidades. Cademos de Eso ~ Educagio Musical, Sio Paul, 1, p. 1-8 1990. KOELLREUTTER, Hans J. Encontro com H. J. Koellreuter. Entrevista. Cademos dd Bsudo: educagio musical, Belo Horizone, x. 6, p. 131-144, 1997, LARROSA, Jorge. Nous sobre a experitnca © o ser de experitncia, Rvs Basilica dts Buagio, n° ¥9, 200. 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Tead.: Alda de Oliveira © Cristina Tourinho, Sio Paulo: Moderna, 2003. 98 Capitulo 4 Educacao de adultos e oficina de apreciagdo musical: projeto de formacgado permanente Adriana Rodrigues Didier 1A problematizacéo Convidada para fazer parte do Programa Horizontes Culturais (PHC), dedicado & formacio de plateia para manifestagbes artisticas, me vi, como docente, entre 1997 e 2002, frente a questdes bastante mobilizantes. Questées que podem ser resumidas numa s6: a representacio da miisica para o professor ~ a relacio que ele tem com a miisica, com a educacio musical e com os espagos culturais dedicados & arte dos sons em sua cidade. Isso se expressa na stia vida como cidadio e repercute no cotidiano de sta profissi0. Ou seja, talvez alguns esquemnas de acio ¢ pensamento construfdos ao longo de sua histéria reverberem, na vida adulta, comandando condutas no dia a dia das relagdes de trabalho. OPHC, promovido pela Prefeiturado Rio de Janeiro, uma parceria ‘entre a Secretaria Municipal de Cultura e a Secretaria Municipal de Educagio, consistia em oferecer ao professor da rede municipal oficinas quinzenais de mtisica, teatro, contagio de hist6rias ¢ danca (por ano, quatro médulos bimestrais), além de ingressos semanais para espetéculos nos teatros da Prefeitura do RJ. Um dos objetivos declarados do Programa Horizontes Culturaisera “dar condigbes paraa expansto dos horizontes culturais”. Daf seu nome. Para mim, uma expansio nao significa negar histérias de vida, nem fazer pedagogias assistencialista, bancéria ou paternalista. Paulo Freire, em seu trabalho, nfo teve intengGes neste sentido. Buscava a autonomia, a emancipacio. Queria 0 diélogo com a sociedade. Expandir e ampliar os horizontes culturais sio um direito do cidadio. Outro objetivo declarado do Programa era “aprofundar conhecimentos das linguagens artisticas”. O que quer dizer esta expresso? Aprofundar conhecimentos das linguagens artisticas pode abarcar nada além do que um contetido informativo ~ “Beethoven nasceu no dia tal” -, on uma lista de t6picos sobre géneros, periodos, a vida de ‘um compositor. Um aprofundamento das linguagens artsticas no PHC ro poderia se confundir com tal enciclopedismo e ediucacio bancitia'. Fui convidadaa dar oficinas de miisica, que aconteciam duas vezes por més, sempre com dus horas de duracio. Nas ficinas eram oferecidos Ccupons para. ida aos espetéculos, cupons que eram trocados por ingressos no local do espeticulo, mediante © pagamento de R$ 1. O professor de cada oficina deveria programar uma ou duas idas a espeticulos com a turma, Os espagos culturais da cidade, em especial os teatros ¢ lonas culturais da Prefeitura do RJ, 0 Theatro Municipal e a Sala Cectlia ‘Meirelles, que pertencem a rede estadual, todos esses eram os espacos culturais do PHC, localizados no entorno da Lapa (e adjacéncias). Durante os seisanos do PHC, foram vérias as oportunidades que tivemos para assistir a eventos na Sala Cecflia Meirelles, no Centro Cultural Banco do Brasil e no Theatro Municipal —6peras, concertos de mtisica, shows de MPB, Bienal de Miisica Contemporinea. Sempre havia a doagio de convites pela prépria instituicio, ou pelos grupos que se apresentavam, ou por instituiges que alugavam o local para as suas apresentacdes. Os professores foram percebendo que nio se tratava de mais um programa de “reciclagem”, Tratava-se de uma oportunidade de ampliar suas experiéncias com as culturas e frequentar gratuitamente os espeticulos levando um acompanhante. Mas af é que se encontrava a questio-problema: como frequentar, participar, entender, apreciar, perceber, principalmente gostar ¢ “curtir” 0 programa sem se sentir perdido, inferiorizado por néo dominar a linguagem, e experimentar ‘um mal-estar por achar que nfo pertence ao local da programacio, sentindo-se, mais uma vez, em situagio desconfortivel, como um peixe fora d'égua? Ministrei trés das sete oficinas de miisica: duas no Centro de Referéncia da SME (Centro do Rio) e uma na Praga Seca (Jacarepagu). ‘Compreender como se processa a educacio musical de professores da rede municipal de ensino passou a ser objeto da minha atencio. Fui buscando perceber o caminho da educacio musical em suas vidas. Chamo de educagio musical todo contato que tiveram com a :néisica em algum momento da sua infincia e adolescéncia e que marcou sua formacio musical. Limitei a minha atengio ao professor inscrito 100 nessas trés oficinas: como ele constréi sua relagio com os espagos culturais da cidade, em especial os teatros e lonas culeurais da Prefeitura do RJ, 0 ‘Theatro Municipal e a Sala Cecilia Meirelles, que seriam os espagos culturais do PHC? 2 Oficina de musica na formacao permanente do publico adulto: o caso Projeto Horizontes Culturais Que propésito poderia ter uma oficina de miisica num projeto de formagio permanente do piiblico adulto? No caso do PHC, a oficina de mtisica que dirigi foi pensada como espaco de educacio que pudesse vir a contribuir para a construgio de uma outra subjetividade, nao caracterizada pela “liquidagi0” dos sujeitos, ‘mas pela luta por emancipacio®, Esse era 0 seu compromisso social. E tem como fim contribuir para aautonomia e a emancipacio dos sujeitos. Partimos da premissa de que a instituigdo escolar, as agéncias de fomento 2 cultura e os projetos de cultura e educacio comoo PHC, todos eles sio instincias formadoras de subjetividade. Em todos eles podem operat micropoderes, ¢ todos eles podem ser atravessados por linhas de forca, desde as que produzem a poténcia de emancipacio atéas que acabam por apresentar para os sujeitos algo como ja dado a priori e tendo um dado valor, dispensando dele qualquer atividade estruturante, qualquer exercicio do pensamento: [..] as tarefas de seu tempo nao sio captadas pelo homem simples, mas a ele apresentadas por uma “elite” que as interpreta ¢ Ihas entrega em forma de receita, de preseri¢io a ser seguida. E, quando julga, que se salva seguindo as prescrigées, afoga-se no anonimato nivelador da massificacio, sem esperanga e sem fé, domesticado e acomodado: ja iio é sujeito. Rebaixa-sea puro objeto. Coisifica-se (Freire, 1979, p. 43). No funcionamento do ambiente educacional da oficina, 0 primordial eram as histrias de vida desses sujeitos adultos-professores ¢ acomunicacio entre todos neste grupo. Um dos prinefpios fundamentais da oficina de miisica consistia em partir do fato musical, da propria obra, encontrando af uma questio, um afeto, um ponto de interesse, uma tot “brecha” para fazer a ideia crescer. Portanto, a oficina de miisica no era orientada pela utilizagio de materiais (apostilas ¢ videos), ou pela disponibilidade de equipamentos (ar condicionado, televisio, video, aparelhagem de som para utilizacto de fita cassete e CD), ou pelo emprego de procedimentos (leituras de textos e anslises de partituras), mas sim por um conjunto de valores ¢ principios. Aconcepgio de ediucacio nas minhas oficinas do PHC teve como prinefpios 0 cuidado com a pluralidade cultural, a definicio de cultura como “o nutriente com o qual cada um de nés constréi a subjetividade” (Sacristén, 2002, p. 27), os saberes que, segundo Lopes (1999, p. 96), “devem seraceitos dentro de um contexto de heterogeneidade” eo dislogo que, para Freire (1979), seria quanda os dois polos se ligam e “se fizem, eriticos na busca de algo” (p.107). Nesse sentido, trés pontos so considerados cruciais: a miisica como discurso; o discurso musical dos alunos; ¢a fluéncia musical do infcio 2o fim — prinefpios propostos por Swanwick (2003, p. 57-68). Prevalece 0 discurso musicale o fazer musical nutrindo o ambiente educacional. Estio sempre presentes 0 confronto de saberes ¢ o lidar com saberes que nio sio familiares ou “dominados”. No caso desta oficina do PHC, as hist6rias de vida sao distintas, desde a aluna que na sua inffincia assistia 20s ensaios da escola de samba da Mangueira e se preparava pata ser passista, até a do outro que passava sua infincia num apartamento de Ipanema vendo televisio. Tomo as palavras de Lopes (1999) [..] por vezes, a producto simbélica das classes trabalhadoras € considerada parte da cultura, na qualidade de folclore, religiio ou creneas; contudo dificilmente a clas conferimos a denominacio de saber ou conhecimento (p. 93-94). No debate atual sobre eduucacio de adultos, formagio de professores ¢ educagio musical, refletir sobre 0 caso da oficina de mtisica no PHC pode contribuir para a discussio sobre: 1) a relagio dos sujeitos adultos ‘com os espagos culturais da sua cidade; 2) a producio de um ambiente escolar dialogal, que vise a emancipacio (a construgio de uma outra subjetividade) dos sujeitos; 3) os esquemas cognitivos, afetivos, de acio de pensamento referentes & mtisica, inscritos nas hist6rias de vida do sujcito adulto, 102 oria de 2.1 Musica e formagao musical na ja dos adultos-professores No caso PHC, detectei virias representagdes sobre as situacoes rusicais vividas por esses adultos-professores. Muitos deles se achavam “distantes” da miisicac eu, professora da oficina de miisica, era para cles arepresentante de um saber musical legitimado. Oui c i depoimentos em que eles negavam seus saberes. Muitos relataram sua dificuldade de entrar na oficina de miisica —tinham medo ‘de se exporem, de se sentirem inferiorizados e ridicularizados. Logo nos primeiros encontros vérios professores me procuravam com perguntas, sempre ao “pé do ouvido”, ¢ traziam seus depoimentos, espontanea- mente: [.-] eu nao tenho nada a ver com miisica,ficarlendo partitura, aquelas coisas. Deve ser um trogo chato, vai ficar botando aquelas miisicas de outros tempos (Depoimento de uma professora, PHC, 2002). ‘Um dos pontos fundamentais no proceso de formagio do adulto é ‘oque se constitui como saber legitimado pela instituigio escolar. Separam- se saber cotidiano e saber escolar, saber conceitual e saber pritico, saber das historias de vida e saber do currfculo escolar. Desta forma, “falam de sicomoos quenio sabem edo ‘doutor’ como o que sabe ea quem deve escutar. Os critérios de saber que Ihes slo impostos so os convencionais” (Ficite, 1978, p. 54). Saber escolar esté fortemente representado nas apostilas, a0 invés de manifesto nas priticas musicais de execucio, apreciagio ¢ criagio. Constituem-se, assim, os diversos “mundos musicais”. Conde e Neves revelam em sua pesquisa 0 contraste dos processos de aprendizagem nas diferentes manifestag6es da cultura rurale urbana, com os processos formais aplicados pelas escola: |... aescola, onde deveria processar-se de maneira mais intensa o processo educacional, ¢ que se considera, erroncamente, local tinico da prética educativa, ignora a vivéncia cultural comunitiria, Ou, se no a ignora, trata com desprezo estas manifestacdes culturais da comunidade (Conde; Neves, 1985, p.56). 103 ‘Que outras relagdes, novas conexdes € possfveis identificagées eu poderia estabelecer com esse adulto, no seu proceso de formacio permanente? A reversio deste quadro precisava se dar naquclas oficinas de miisica. [.-] confesso um certo desconhecimento. [..] eu nunca entendi miisica cléssica, mas sempre gostei de ouvir. Ainda nfo entendo, mas agora, além de gostar, estou aprendendo a ouvir. [...] nfo sou um caso perdido para a miisica [...] achei muito proveitoso, porque nio se fica s6 na teoria, € importante ver-se a pritica. [--] 4 oficina promove autoconhecimento; base cultural; forma pensamento critico e reflexivo; alarga os horizontes culturais; vivencia. [...]aprofessora troca experiéncias. [...] outra coisa interessante que aconteceu € que durante o concerto pude perfeitamente reconhecer, destacar, a vor da professora das demais vozes. Acho ue isso foi possivel, pois ela também cantou trechos do concerto nas nossas aulas. [J adorei saber que meu ouvido percebeu o som a vor da professora no meio do grupo (Depoi- mentos de professores, PHC, ano 2000).. ‘Eu estava diante do professor da rede municipal de ensino que foi alunno de uma escola de formacio de professores (antigo Curso Normal) hi vinte, trinta anos, no inicio da sua formacio, e parece ter softido alguns desvalores, algumnas desqualificagGes. Hoje ele pode estar repetindoo mesmo processo pelo qual cle foi se constituindo sujeito-aluno, sujeito-professor, Suas dificuldades como aluno podem ser passadas da mesma forma para 0 seus prdprios alunos. No caso des professores do PH, suponho que seus professores, ou quaisquer outros sujeitos que fizeram sua mediagio coma iisica na escola, talvez tenham contribuido para que se sentissem sempre aquém, de fora, estrangeires, espectadores. Como se permanecessem em volta, em tomo da misica, sem penetrar, como uma crianga que fica Girculando em torno de um ambiente que nio the € permitido entrar: “proibido para criangas”, “proibido para nfo entendidos em miisica”. ‘A meméria de vida que uazenn dos auos escolares pode no ter permitido que esses adultos-professores alterassem seus esquemas 104 cognitivos, afetivos, de agio e de pensamento, acabando por passar a ‘mesma experiéncia para seus alunos. Perrenoud (1995) aponta para isso quando fala dos professores adultos, recorrendo as experiéncias de vida deles no inicio da sua formacio. Revela que a bagagem do aluno que passow a inflincia € adolescéncia numa escola é carregada A sua vida como adulto: [..]ora, uma vez adulto, o que acontecers a crianga ‘ou a0 adolescente, nestas organizagSes, dependera no s6 das suas competéncias escolares e das qualificagSes profissionais que the foi permitido adquirir [..], mas também das suas competéncias enquanto ator social e membro de uma organizacio. ‘Mas tudo leva a crer que diversos anos de pritica num tipo definido de organizagfo arrastam consigo a formacio de um conjunto de esquemas de acées, de pensamentos, de avaliacio, de antecipacio, daquilo a que se chama, em sociologia, um habitus (Perrenoud, 1995, p-33). ‘No processo de formacio musical na sua vida escolar, a experincia que esses adultos-professores desenvolveram lembrou-me o que Paulo Freire fala sobre uma educagio que nega os saberes do outro, esse outro que entio passa a vida “falando de si como os que nio sabem” (Freire, 1978, p.54); “homens espectadores e nio recriadores do mundo” (p. 71) ~ espectadores ¢ armazenadores de receitas, 20 inves de recriadores que se integram, transformam, optam e criticam: ..] insistimos, em todo 0 corpo de nosso estudo, na integracio € ndo na acomodacio, como atividade da 6rbita puramente humana. A integragio resulta da capacidade de ajustar-se 3 realidade acrescida da de transformé-la a que se junta a de optar, cuja nota fundamental 6 2 criticidade (Freire, 1979, p. 42). Rosa Fuks, mestre em Educagio Musical, pesquisadora e professora de Historia da Educagio Musical no Brasil, detectou evidencias disso no scu trabalho sobre v eusinv da intisica nas Escolas Normais pablicas do Rio de Janeiro no ano de 1987, ocasiio em que muitos do PHC eram 105 alunos da Escola Normal. Repetia-se com os sujeitos adultos-professores no PHC a mesma cena, Rosa Fuks coments: ] 0 professor de miisica que reforga 0 comando musical das sus alunas, que, provavelmente, foram, assim dirigidas quando criangas, ensinando-as a comandar cantando. Estas alunas, quando professoras, fario 0 mesmo com seus alunos, constituindo-se este processo numa circularidade musical (Fuks, 1991, p.84). Devo respeito as hist6rias de vida dos professores do PHC. Entendo, contudo, que nfo sio indissoltiveis, que nfo sio transpostas para a vida toda. Elas so passiveis de serem instabilizadas e remontadas (Perrenoud, 1995, p. 33). Nao sustentamos nosso discurso na concep¢io de um sujeito liquidado, Resta sempre alguma possibilidade de emancipacio ¢ autonomia a ser exercitada. Perrenoud diz.que cada ator social conserva alguma capacidade de aprendizagem e adaptacio e nfo transpée mecanicamente os comportamentos adquiridos durante a escolaridade: [.-]a formagio dos professores poderia ajudé-los a reencontrar a infiincia e talvez a “reconhecer” que so, enquanto adultos, também cheios de ambi- valéncias; que passam igualmente por momentos de excitagio e de cansago |...]. Como os protessores pareceriam mais préximos~e mais erediveis! - se, com mais frequéncia, confessassem que, por vezes, também estio fitigados, que seaborrecem, que nem sempre tém vontade de completara tarefa comegada ou de iniciar outra! (Perrenoud, 1995, p. 215) 2.2 As oficinas de musica no Programa Horizontes Culturais (PHC) ‘Tiés casos exemplificam o ambiente ¢ funcionamento da Oficina de Apreciagio Musical do ptiblico adulto, no seu processo de formagio permanente 106 do Barroco ao Contemporaneo. Sala relles © espaco cultural é a Sala Cecilia Meirelles. Conhecida como espaco da chamada “miisica de concerto” ou “mtisica erudita”, tem sido palco também de apresentacées de mitisica popular e contemporanea brasileira. A Sala Cecilia Meirelles esté localizada no baitro da Lapa, que atualmente volta a ser 0 centro de boemiae de diversidades culeurais do Rio de Janeiro, abrigando espagos que se tornaram referencias em samba erock. (© Conjunto Caltope’ tinha agendado na Sala Cecilia Meirelles, para dezembro de 2000, 0 concerto “Do Colonial ao Contemporineo” ‘Como fazia parte desse grupo, resolv incluir essa apresentagio no PHC. Estivamos em marco, ¢ planejei desvendar todo o caminho tragado por esse conjunto vocal, da preparagio dos miisicos ida dos professores a0 concerto. Por que ¢ necessfrio tanto tempo para preparar um espeticulo? ‘Mostrei o planejamento do maestro, asatitudes esperadas por ele de cada integrante do grupo. Todasas etapas deste processo foram acompanhadas pelos professores. Gravacies e partituras, tudo foi ouvido € exibido. reparei a biografia dos compositores que seriam executados no concerto. Livros, CDs, fotos, videos, fitas cassete de ensaios, recortes de jornais, tudo foi utilizado nesse processo. Cada partitura folheada cra cantada por mim e por eles, pelo menos em uum trecho. Conversamos sobre as ‘tapas desenvolvidas pelo grupo vocal e das quais eles foram participando. Foram sentindo como é lento, trabalhoso, cansativo, mas também prazeroso desenvolver essa etapa de preparacio de um concerto. Qual 0 critério utilizado para a escolha do repertério, para a montagem do programa? O que irfamos cantar? Qual o porqué desta escolha? Farfamos um programa intitulado “Misica Brasileira, Do Barroco a0 Contemporaneo” porque jf haviamos gravado um CD com insicas barrocas brasileiras e porque existe uma caréncia de concertos deste repertério. O repertério foi organizado por ordem cronol6gica dos compositores. Para cada integrante do conjunto, 0 maestro levou uma encademagio com as c6pias de todas as partituras. Os ensaios eram realizados duas vezes por semana, a noite, quando liamos algumas isicas, ou nos concentrévamos em apenas um trecho de uma delas.. Foi muito importante a audigdo das gravagées dos ensaios realizados no decorrer do ano, Assim como terem visto a minha partitura com viirios rabiscos, anotagées, sinais de alerta que serviam para conduzir 0 107 meu estudo das pegas. Muitos jamais tinham visto uma partitura. famos mostrando cada voz, as pausas, os solos, 0 conjunto, duos, trios, a grade toda, Desde 0 Padre José Mauricio até Ricardo Tacuchian e Cliudia Alvarenga (estes tiltimos, modernos, vivos), fomos juntando informagées sobre cada compositor. O fato de haver contemporaneos foi muito importante para os professores perceberem que é mésica atual, feita por pessoas as vezes mais novas do que eles. Pessoas que estudam, ‘rabalham, acumulam fungGes sociais diversas, ¢ sio professores também. Entenderam as questées envolvidas na preparagio dos cantores para 0 concerto: qual © vestudrio mais adequado para o palco? Que cores? O que fica bonito em conjunto? Que ealgado usar que Ihe garanta contorto? As fotos para divulgacio, o que levar para comer durante 0 ensaio da tarde, o café para os mtisicos nio sentirem sono, 0 uso ou nao das estantes de mtisica na hora do concerto (alguns no chegama decorar as miisicas), fazer ou nao uso de gestos na interpretagdo da mtisica contemporiinea — conversamos sobre tudo isso. Eles se identificaram com alguns desses problemas (roupa, sono, fome), que eram diividas deles também, até entio escamoteadas. Aliés, muitas dtividas existiam, conforme registros realizados durante os encontros: Quanto tempo dura? Acordo muito cedo. E se eu roncar? Nioseio que se usa numa ocasido dessas, as pessoas ficam olhando? Posso levar um lanche? E se meder vontade de tossir? Posso levantar € ir embora quando nao estiver sgostando? Posso levantar para ir ao banheiro ou beber gua? Quem é esse compositor, esse cantor ou esse instrumentista? Sera que vou entender 0 que vai ser tocado ou cantado? Quando ¢ para bater palma? ‘Gosto de comentar com as pessoas do lado, durante © concerto, seri que as pessoas fazem SCHSCHSCH? ‘Gosto de gritar. 6 feio pedir bis? Quero sempre encontrar com 0 artista depois do 108 cespeticulo. Posso chegar perto, tocar nele, pedir autdgrafo, dizer que tive vontade de chorar, dizer que ele é lindo, pedir para que ele cante de novo sé aquele pedacinho? Posso subir no palco depois do espeticulo, ver o papel {que eles ficam olhando, botar a mao nos instru- mentos que eu nunca vi, ter a sensagio de olhar para plateia? (Depoimentos de professores, PHC, 2001). Conseguimos ingressos para todos. E eles ficaram tio entusias- mados com o evento que compraram ingressos para a familia. Muitas eram as curiosidades sobre a sala de concertos, © que é uma sala de concertos? Por que tem uns quadrados brancos na parede da Sala Cecilia Meirelles? Por onde se entra para cumprimentaros miisicos depois do concerto? O que quer dizer bonbonniére? Por que se usa a palavra em francés? Por que as balas vém em caixinhas ¢ ndo na ‘embalagem de plistico? Tanto para cles como para mim, o dia do concerto foi muito especial, Seus depoimentos revelam que nunca haviam se sentido tio intimos e seguros numa sala de concerto—com o préprio concerto, com © programa, com os miisicos. Mostraram aos seus familiares a sua professora-cantora, gritaram “bis” no final do espeticulo, mostraram-se conhecedores da vida de cada compositor, viram os compositores que foram prestigiar aquela apresentacio. Foram aos bastidores com a familia, a méquina fotogrifica c a caneta para os autégrafos. Orgulharam-se de serem abracados e reconhecidos perante a familia por sua professora- cantora, e de cumprimentarem o maestro ¢ os integrantes do grupo, que cles facilmente identificam. Bles se permitiram fazer esse programa diferente, novo em suas vidas, mudando algumas das suas atitudes, esquemas cognitivos, afetivos, de agao e de pensamento construfdos em sua hist6ria de vida. Mostraram conservar alguma capacidade de aprendizagem e adaptacio. 109 Opera La Traviata. Theatro Municipal Oespaco cultural é o Theatro Municipal. Conhecido como espaco da chamada “mésica de concerto” ou “miisica erudita”, ele tem sido palco também de entrega de prémios de miisica popular brasileira. Localizado no bairro da Cinelandia, lugar de manifestacoes e protestos politicos, mas também de cinemas e bares tradicionais no Rio de Janeiro, ‘0 Theatro é um dos “templos sagrados” da miisica ocidental. A ida a0 Theatro Municipal para assistir & pera La Traviata de Verdi envolveu muitas experincias, Seria a primeira vez que muitos professores entrariam ali. Preparei vérias atividades, inclusive debates sobre aestreia naquele ambiente, Bruno Nettl, antropélogo, etnomusicdlogo, se refere aos conservat6rios € salas de concertos como templos sagradas/pantedes onde, como deuses, os mestres da mtisica cravados na arquitetura externa hall de entrada parecem nos levar a um culto religioso (Nett, 1995), Seria bastante importante que se sentissem seguros em relacio’ 6pera, todo osct contexto. Para isso, lemosem sala de aula o resumo de “Adama das camélias”, de Alexandre Dumas, esugerimos que lessem abracompleta Fizemos um estudo da vida do compositor Giuseppe Verdi, Realizamos ‘uma audigio comentada da peca, em CD e video. Estudamos todas as etapas {que acompanham a montagem de uma dpera, com comentirios dos integrantes do coro do'Theatro Municipal. Analisamos cada una das Funngoes dos especialistas (diretor, maestro, maestro ensaiador, cendgrafo, figurinista). ‘Comentamos sobre os aderecos, perucas,alimentacao, ensaios; arquitetura ‘externa e interior do Theatro, os banheiros, os camarotes; pintura do teto, © tcidy das cortinas © das cadeiras etc. Conversamos sobre a ida ¢ a participacio no evento: o vestuério que usariam para se sentirem 3 vontade, aalimentacio durante o espeticulo etc. Osingressos, deados pelo Governo do Estado, eram localizados na plateia ¢ balcio nobre, o que foi uma surpresa para todos os 60 professores, que se imaginavam sentados na galeria, Durante 0 espeticulo, foi oferecido por uma recepcionista um camarote que, apesar da sua localizacao dificil (pois s6 se enxergava um lado do palco), ficava muito perto do palco e do fosso da orquestra, nos dando proximidade com os miisicos ¢ cantores. Como a épera € longa e tem vérios intervalos, aproveitamos para fazer um rodizio de lugares entre a platcia, balcio nobre ¢ 0 camarote. Assim, todos passaram pela experiéncia de verem espeticulo de diferentes locais. ‘Agrandiosidade, com a riqueza dos cendrios e figurinos, reforcon nos professores a sensacio de se tratar de um espaco magico, sendo que, m0 desta vez, eles faziam parte. Foram. todos os ambientes, andares, varandas, banheiros, fotografaram tudo, levaram dinheiro para o servigo de bar, compraram pequenas lembrangas do Theatro na lojinha, levaram binéculos, trocaram de lugar a cada intervalo. Hé um misto de ‘sentimentos no ar: [..] foi sublime. Pela primeira vez adentrei o ‘Theatro Municipal. | assistir a La Traviata foi um momento muito importante em minha vida, pois sempre que via filmes sobre pera imaginava como seria estar, et ‘mesma, fazendo parte de um desses eventos. Toda a realizagio do sonho jé comeca 3s portas do Teatro Municipal, 0 qual nunca tive a oportunidade de conhecer e que o vivenciei em cada passo pelos seus corredores; o sentar naquela poltrona que também {jd abrigou, ha tanto tempo atrés, outras pessoas e, que talvez tenham assistido a uma outra versio do que eu iria assistr. Apaixonei-me tanto que no trabalho, no dia seguinte, avontade era de falar cantando com todos. ‘Nunca tinha entrado no Municipal, embora seja carioca da gema. Fiquei maravilhada com tudo desde aarquitetura do teatro até a tiltima palavra da Gpera. [.] achei excelente a oportunidade de assistir “La ‘Traviata’, foi emocionante. ‘Aapresentacio foi linda em todos os detalhes, desde ‘ocenirio até 0 desempenho dos cantores. Fico muito feliz e grata por terem se lembrado de nés (Depoi- mentos de professores, PHC, 2001). Alguns comentirios sobre o trabalho realizado nas oficinasapontam ppara.os esquemas de antecipacZo quando se referem 3 6pera ser cansativa, quando perdem o interesse: [.-] ainda nfo havia ido a0 Theatro Municipal € nem tio pouco assistido uma 6pera. Sempre owvi falar que pera cansativo e acabamos nos perdendo ¢ se desinteressando por nio entender Gracas a0 Horizontes Culturais entrei no Theatto Municipal an com o estudo prévio pude entendera 6pera eachar um espeticulo maravilhoso, com a riqueza do cenirio, dos figurinos e o proprio texto. [--] depois de termos visto 0 video e conversado sobre a Traviata, a culminancia de nosso estudo foi a ida a0 Theatro Municipal assistir a 6pera. A cexperincia foi das melhores j4 que conseguimos observar detalhes que haviam sido estudados durante nossos encontros. -] 0 espeticulo foi belissimo, surpreendente, foi além das minhas expectativas. A variedade de censios, que por sinal de excelente categoria me surpreendeu, bem como a quantidade de pessoas em cena ricamente vestidas. Portanto foi um cespetéculo super marcante. Agora entendo porque as pessoas que assistem Spera isto & tem este habito, sio fi¢is a este estilo. Diante disto, gracas a esta oportunidade, propiciada pelos Horizontes ‘Culturais nao perderei as proximas (Depoimentos de professores, PHC, 2001). O.culto a0 “templo sagrado”, a desvalia ea sensagio de assumir um. espaco “que por direito também me pertence” ficam fortemente marcados: L.-] agora imagine vocé, eu Lucia Maria, com um hist6rico de vida sacrificadissimo, muita luta para chegar aonde cheguei, pretendendo ir mais além (Ge Deusassim o permitir), de repente numa quarta- feira (dia de trabalho) me vejo dentro desta empresa linda © maravilhosa (que por direito também me “pertence”), assistindo e participando desta obra ‘magnifica, a 6pera La Traviata, me emocionando diante de tio lindo espeticulo, todo ele do comeco 20 fim um verdadeiro Show Fantistico. [.-] para nés, professores, uma oportunidade gratificante! Precisamos muito de arte, pois € vida, laborat6rio interno e crescimento cultural. Este emprecudimcuty de beleza, cultura e lazer, sem diévida, € um canal aberto para maior desenvol- 2 vimento do meu trabalho em sala de aul. [..] lamento nao estender esta oportunidade aos meus alunos (Depoimentos de professores, PHC, ano 2001), Candide, opereta cémica. Theatro Municipal (Oespaco cultural €outra vez 0 Theatro Municipal. Candide ocorreu logo apés a Traviata, em dezembro de 2001. Recebemos ingressos do estado para assistirmos a essa opereta cémica de Leonard Bernstein, baseada na sitira de Voltaire. A maioria dos professores jé tinha ido aquele teatro, mas conversamos sobre todas as diferencas que encontrariam: os compositores, o texto, a lingua, 0 estilo, a época, os figurinos, a diferenca da 6pera para opereta cOmica, a montagem. A encenacio da 6pera La Traviata de Verdi mereceu cendrios e figurinos luxuosos, legendas em portugués, dirctores ¢ cantores estrangeiros. A da opereta de Bernstein, cantada em portugués, de compositor moderno, foi sem cendi figurinos simples, diregio e cantores nacionais. A magia do Theatro na noite da Traviata ¢ a simplicidade irénica de Candide.. ‘Antes da ida 20 Theatro Municipal, lemos, assistimos ¢ ouvimos algumas gravagGes dessa opereta da diltima apresentagio de Bernstein em Londres, regendo a versio para concerto, ¢ trazendo um depoimento do préprio compositor ¢ maestro ao piiblico sobre stua motivacio para compor o texto de Voltaire. Exibimos musicais de Bernstein em esti trazendo a c6pia da partitura para o coroem portugués, depoimentos dos cantores sobre sta obra, sobre o andamento da montagem, os ensaios, a preparacio dos figurinos e a escolha dos solistas. Fizemos a leitura e distribuigao de exemplares do livro de Voltaire. Durante todo o processo, fomos nos preparando para uma 6pera diferente da anterior. Ler Voltaire nfo foi algo confortivel. Assistir 20 video de Bernstein, com o personagem de Pangloss, um velho, feito por cantor com fisionomia sériae vestindo “smoking”, deixou os professores arredios. No dia do concerto, as comparag6es com a outra épera foram, inevitaveis. A criticidade, a emancipacio a autonomia surgiram — autonomia em relacio 3 opiniao da professora, f% incondicional de Bernstein. ‘Nas outras apresentacdes que aconteceram no Theatro Municipal* ena Sala Cecilia Meirelles? ja estava claro que o local ainda era e sempre serd de encantamento, mas surgiram depoimentos ¢ avaliayGes agora ‘mais voltados para o discurso musical: 3 [.-] quanto & belissima apresentacio que assisti, gostaria de comparé-laa um grande quebra-cabeca, aonde as pecas (instrumentos ¢ vozes) vio se encaixando até formarem com impressionante perfeicio a obra final (Depoimento de uma professora, PHC, 2001), A oficina do PHC pode estar contribuindo na formagio de uma outra subjetividade, instabilizando representagoes: [...] estou aprendendo coisas novas; estou aprendendo “miisica”, estou aprendendo a pisar num terreno intenso de mais de uma forma de expressar cultura (Depoimento de um professor, PHC, 2001). 3 A educacéo musical do professor e suas represen- tacdes das situacoes vividas Para poder entender estes professores, suas dificuldades e anggtstias em relacao as salas de concertos, recorri aos relatos sobre suas histérias de vida, buscando compreender como se referem as stias experiéncias ‘com miisica. Onde estio suas experiéncias musicais vividas em familia? ‘Onde estio suas vozes que cantavam em reunides sociais? Onde estio suas experiéncias com brinquedos cantados, parlendas, brincadeiras de roda? O que acontece quando entram para a escola? O que acontece com a miisica na escola? Como o discurso musical da escola vem se somar dexperiéncia de vida? Epis6dios relacionados 3 miisica no primérdio da educacio escolar pareciam repercutir na sua vida adulta e na sua atuacio como professor. ‘Ameméria musical daquela época de inffincia parecia nao ser levada em conta pela escola, surgindo af um outro discurso musical 3.1 Masica no convivio social A partir dos relatos dos professores, depoimentos prestados em ccntrevistas ¢ registrados em fichasde avaliagio, ¢ também das observagées € registros que fiz durante os cinco anos de trabalho no PHC, fui 114 identificando que a mtsica fez parte da infincia ¢ juventude daqueles professores, como uma experiéncia prazerosa. Falam da experiéncia de ouvir o adulto (pai ou outro responsivel) cantando, tocando, assobiando, compondo miisica, ou de vé-lo ouvindo mésica num ambiente descontraido e como uma pritica espontinea. Era uma convivéncia em festas familiares, da rua, do bairro, da igreja, dos encontros entre os amigos: [.-J afo-vové sentava na poltrona dele, ¢ eu sentava a0 piano, ele tinha um ouvido musical incrivel,, ficava 0 vovd no cavaquinho e eu no piano. [.] minha av6 era muito de fazer brincadeiras, de encarnar, de assoviar. [.] 0 meu av6 ele tocava violio, ai tinha aqueles bailes na roca ¢ ele era o violonista, era 0 tocador oficial dos bailes [...] (Depoimentos de professoras, PHC, 2001). E com orgulho que narram estas histérias que ndo foram antes valorizadas no processo de educagio escolar: [...] minha mie cantava umas miisicas engracadas, eu até me lembro, ela cantava uma que eu nunca mais me esqueci. [...] meu pai foi nascido e criado na Mangueira. As ‘vezesa gente ta assim falando sobre algum assunto, de uma época histérica, ai ele vem com um samba que conta aquilo, eu passava minhas férias If, eu ‘queria logo ficar de férias que era para cair no samba, [-] papai gostava de ouvir musics, tinha vitrola li em casa. Mamie gostava muito de cantar, enquanto fazia o servico ela tava cantando. Ea minha mie cantava muito em casa. Gostava ‘muito de cantar. Meu pai, ele que organizava tudo, festa junina, danca, concurso de caipira, bailes. [.-] minha tia era chegada nessas coisas gostava de cantar, as vezes fugia para ir para radio poder cantar quando era mocinha, ela ¢ meu tio mais velho. ‘Minhas tias gostavam de cantar, lavavam a roupa cantando (Depoimentos de professoras, PIIC, 2001). Participar da prética musical na rua ou em rodas de amigos nao ‘eram coisas toleradas figura feminina. A mulher nao deveria ultrapassar a fronteira da casa, lugar de seguranca e abrigo. Participar da experiéncia musical na igreja traz boas e més recordagdes: é séria e obrigatéria, ou é festa c celebracio: [] nds cantivamos coisas religiosas, porque nés fazfamos catecismo. Tinha que ir Ii para a igreja para cantar ea gente queria ir embora. [..] ah, era lindo, a gente cantava a missa todo primeiro domingo de més s sete horas. Af tinha as iisicas: 0 hino de filhas de Maria. Eu adoraval (Depoimentos de professoras, PHC, ano 2001). ‘marcado, nos depoimentos desses adultos-professores, que, junto com oamadurecimento vai embora a brincadeira: “depois de um certo tempo gente foi crescendo e foi perclendo isso” diz uma professora a convivéncia descontraida e prazerosa da pritica musical em grupo. 3.2 Musica na instituicéo escolar Quando se inicia o aprendizado na escola ou com professor particular de miisica, os depoimentos comecam a se modificar: surge ‘uma tensio ligada 3 cobranea, cobranga que nao tem rafzes numa pritica ‘que pattacla indica como discurso, que considere o discurso musical do aluno e que cuide da fluéncia musical do infcio ao fim. [--]entio com 7, 8anos eu fii aprender piano, mas cra aquele negécio chato de escala, aquela coisa muito clissica, e eu no gostava (Depoimento de uma professora, PHC, ano 2001). Na escola, a miisica reduz-se a0 canto cfvico que, se para umas professoras era um momento desagradavel, para outras era a tinica garantia de se fazer tima atividade musical na escola: cantar. Cantar na escola nao € cantar qualquer coisa, mas os hinos cfvicos e escolares, com fang6es de ensino e avaliagio. Era na atividade do canto que aconteciao privilégio dado aos melhores alunos ea desqualificagio dos outros. Cantar € uma pritica desejada (ir “soltando a voz”, “cantar por cantar”, como 116 ddizem os professores aqui referidos),20mesmo tempo em que €altamente ameagadora, porque investida da funcio de testagem e categorizagio do cantante como desafinado ¢, consequentemente, como sujeito excluido, Algumas experiéncias vividas pela crianga na escola sio muitas vezes carregadas para a vida adulta ¢, por serem tio drduas, as vezes ficam dificeis de serem esquecidas: [.-]afcomecow a testar um por um [para participar do coral], ¢ 0 alguém que tava desafinando era eu, oalguém que tava desafinando era eu, af aquilo que marcou muito e me inibiu para caramba carregnel isso para o reste da vida (Depoimento de uma professora, PHC, 2001). (Os“bons” participavam do coral realizado no horério de aula, com todos os alunos assistindo: [..] tinha um coralzinho lk dentro do horsrio da turma, eu fiquei no coral. Era assim, os melhores alunos da escola, quando tinha solenidade, canta- ‘vam, e ett tava Ii. [.-]86sci que ew entrei na parte do coral. Afna horade ‘ensaiar,a gente tava ensaiando tudo, ele [oregente] disse quetinhaalguém desafinando, alguém estava destoado do grupo, ai comecou a testar um por um, € 0 alguém que tavadesafinando eraeu, aiaquilo que marcournuito «€ me inibit para caramba, Na época ett me tranque, ‘mas deu vontade de abrir o berreiro. Eu lembro que ‘meus olhos encheram d'gua, mas eu me segurei, eali eu sai arrasada naquele dia, carreguei isso parao resto da vida. E © nessa época, eu estava no 1° ano normal, eu ‘estava com 14anos. Agora, ssomemarcou, na épocaett tinha uns 14 anos, ¢ eu s6 tive coragem de soltar a voz, em piiblico j4 com 36 anos, olha quanto tempo (Depoimento de professoras, PHC, 2001). Cantar, e cantar mais, pois cantava-se pouco — “no era toda semana”, ¢ era “s6 em solenidade”, condicionado 2 funcio cfvica e as datas comemorativas, ou 4 fungio de comando, com as “musiquinhas de escola” (como se refere uma das professors, PHC). 47 © controle do tempo escolar e a regulagio das suas priticas so estranhas aos sujeitos que, hoje adultos, por elas passaram: [.--]no prézinho nao podia tocar na banda, porque o pré cra muito pequeno, tinha a banda musical da escola, mas para os alunos grandes. [.-]afeu fiz 0 gindsio, aula de musica era sé bindrio cssas coisas (Depoimentos de professoras, PHC, ano 2001). Ao lado de “bindrio” podemos colocar muitos outros construictos, conceitos criados para representar 0 universe musical: clave de sel, pentagrama, seminimas, compasso, solfejos. ‘© compositor ¢ Doutor em Poética Antonio Jardim fala sobre “0 privilégio dado 3escrita como fonte de conhecimento musical 0 modelo conservatorial nio compreende que a escrita no € mtisica”. O saber legitimado nas instituigdes oficiais de ensino de miisica é reconhecido por Jardim (2002) como sendo © conjunto que caracteriza 0 modelo “conservatorial” (Jardim, 2002, p. 108) ¢ que é aprendido de certa forma: averdade do modelo é sempre inquestionavel e indiscutfvel; € sequencial ¢ linear, esquecendo-se de que no aprendemos © que quer que seja sequencial nem linearmente, simplesmente porque nao vivemos dese modo” (p. 108). Fuks analisa os relatos das professoras do Curso Normal ~ Curso de Formacio para 0 magistério do Instituto de Educacio do Rio de Janeiro® — e reconhece esta pritica de mtisica na escola como discipli- ‘nadora, através dos cantos de hinos e com elementos de teoria musical: “chamou-nos atengio, desde o inicio, a maneira comoa mitsica aparecia associada ao civismo” (Fuks, 1991, p. 39). ‘A formacio dessa normalista era marcada pela miisica com fingo disciplinadora, através de cantos civicos ¢ “miisicas de comando” parao cotidiano escolar, junto a um conjunto de informacSes que represen- tavam 0 saber musical no curriculo escolar—um cédigo de colegio que representava o que era conhecimento musical a ser ensinado. Embora a musica estivesse presente, tratava-se de “mtisicas de comando” de repertério para as fests comemorativas marcando 0 calendiério escolar, e nenhuma teoria da mtsica emergia contextualizada, a partir de eventos musicais, de um fato musical gerador de questbes. ‘Uma estratégia de sobrevivéncia no cotidiano do trabalho € essa copia de “receitas” e praticas escolares. E os professores passam a depender delas. 118 No caso comentado por Fuks, a miisica praticada na organizacio escolar nio se relacionava com o fazer do grupo. Prevalecia um fazer escolar, uma cultura da escola. Cantar fora da escola é cantar repert6rios {que tém um sentido especial para os que participam dessa prética e nela se reconhecem. 40 fazer docente entre as varias memorias musicais (O professor das séries iniciais, mesmo no sendo um especialista cem mdisica, tem na sua hist6ria de formagio as marcas de uma convivel ‘musical, uma meméria de sonoridades, miisicas, cantos, brincadeiras etc. Na pritica cotidiana, contudo, ele recorre a estratégias defensivas e protetoras ~ como 0 repert6rio festeiro (festas comemorativas) ¢ as *musiquinhas de comando” ~ para servirem de marcos organizadores, reguladores, disciplinadores do tempo escolar e dos corpos infantis. Estes mesmos professores, que durante sua infincia tiveram experiéncias favoriveis em relagio 3 mtisica, sio os mesmos que do depoimentos como se estivessem distantes da miisica e dos sujeitos “muisicos”, aos quais se referem como seus mitos e sobre os quais falam como “imortais”. As frases ouvidas na inffncia ou adolescéncia sio carregadas para o resto da vida: [...] adorei saber que meu ouvido percebeu o som da voz da professora no meio do grupo. Isto quer dizer que nao sou um caso perdido para a musica (Depoimento de uma professora, PHC, ano 2001). ‘A experiéncia ¢ os saberes constitufdos na educacio familiar no slo considerados, ¢ 0 “verdadeiro” conhecimento € aquele estabelecido no curriculo escolar. Algumas estratégias foram construidas ¢ estio presentes na historia da educagio musical desses adultos-professores, ‘Alguns esquemas de pensamento sio formados nos anos escolares, ‘comandam a construcio de uma imagem da realidade ¢ as condutas no trabalho na vida adulta. No caso, os dados colhidos revelam esquemas de pensamento, de antecipacio e acio, ais como: “eu no vou entender nada”, “quem somos nés diante daqueles imortais?”, “eu nao ia porque eu sempre achei que nfo ia entender nada”; “sempre ouvi falar que Opera € cansativo”. A auséncia do humano esti marcada na concepcio desses sujeitos 119 “imortais”. Assim como parecem nao ter um passado, parecem nio ter sentimentos comuns aos mortais (cansaco, softimento, alegria, vontade repentina de gargalhar etc.). Hi separagao entre artistas/mtisicos (Cimortais”) ¢ no artistaynio miisicos, nos quais se situam estes docentes (es *mortais”).. O imito esti na expressfo *imortais da UNIRIO”, ou na referéncia a Beethoven que € a de um génio que se sentava ao piano, sentia rapidamente “baixar” uma inspiragio ¢ pronto. Como seria se mostrissemos que Beethoven, Calfope e 0 grupo de altinos da UNIRIO trabalharam, crraram, voltaram, criaram, gostaram, nio gostaram, acertaram, no acertatam? Em que momento € apresentado ao aluno 0 trabalho, alapidacio, a exaustio até chegar no ponto desejado? Seri que caluno pensa que o planejamento de um professor ven de repente e que ele nio tem dificuldades coma turmae nunca diz que nao sabe e que ele também tem deividas? Quando 0 aluno vé seu professor criar, ertar e brincar coma miisica, percebe 0 lado humano, admite 0 erro, a incerteza, a errancia, a imperfeiglo, o sujo, 0 “feio”, o choro, onervoso. Algumas estratégias foram condicionadas no exercicio desses adultos-professores do PHC: a camuflagem da identidade cultural, a negaio do espontineo e 0 emprego de “miisicas de comando” ‘Acamnuflagem da identidade cultural do professor se di por diversas raz6es, Ele aprendew a esconder a sua propria identidade, a sua heranca cultural, suas rafzes, justamente por ela nio ter sido valorizada quando cle craaluno. Suas hist6rias, seus jogos, suas brincadeiras estas miéisicas no sfo compartilhados ¢ nio era supusto que fosse diferente, ante todo ‘um proceso de desvalorizagio do seu saber na sua hist6ria de vida A negagZo do espontineo se dé porque se supse que cle nao tem lugar em nenhum curriculo. © espontinco € sufocado e disfargado Porque nio é programado. Assim, resta aos adultos alunos ¢ professores cescamotear tudo que € espontineo~suas impresses, suas emogbes, seus pensamentos, suas idcias, seus questionamentos. Perrenoud (1995) fala em estratégias defensivas ¢ protetoras, que vio garantir sobrevivencia no cotidiano profissional do ensino. No caso, € 0 uso das “musiquinhas de comando”. Garante miisicas para acalmar € para disciplinar todos os momentos da rotina escolar: miisicas para formar rodas efilas, msicas para a entrada e a safda, misicas para lavar as mios etc. Fuks (1991) pesquisou c analisou cssas “musiquinhas de comando”, mostrando 0 uso e abuso desse tipo de misica: 129 [J] eu usava a méisica como artificio para acalmar as criangas; quando a miisica terminava, j4 estava todo mundo dominado. [..] fica bem mais agradavel vocé dar uma ordem através de uma musiquinha do que dizer: faz isso, faz aquilo... mas elas nio vio fazer uma grosseria & “tia”, porque ela nio esti “brigando”, ela esti cantando. Entio cles cantam gritando (para desabafar). E uma forma bem mais agradavel do que dizer “nao” para a “tia”, E uma coisa bem disfarcada. |... paraa hora da “merendinha”, a gente canta para lavar as “maozinhas”. E melhor do que dizer: vamos lavar as mos (Fuks, 1991, p. 68-9, grifos do original). Nos tiltimos anos, acompanhando varios projetos da prefeitura, percebo 0 quanto ainda sio utilizadas as misicas de comando: [...] amntisica que lembra que estd na hora de “acabar © reereio” ¢ que se deve “parar de brincar” ou “conversar”, situagoes essas em que a crianga esti feliz e a misica surge para interromper esse momento. Além disso, muitas vezes quando o (a) professor (a) “canta” essas mtisicas, 0 faz gritando para que as criancas 0 (a) ougam, ¢ no demonstra qualquer prazer com cantar (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; Conservatério Brasileiro de Maisica, 2000, p. 13-14). Através desse repertério musical, 0 professor exerce a mesma domesticagdo nos seus alunos dos primeiros ciclos do ensino fundamental 5 As representacées dos espacos culturais para o professor Durante minha experiéncia nas oficinas, percebi uma inquictagao. dos adultos-professores que se viam entre dois universos diferentes, dois, 121 “mundos musica : 0 da “elite” (classe social elevada, muitas vezes chamada de privilegiada, “culta”) e 0 da classe popular (nivel socioecondmico mais baixo, nfo privilegiado). Em ambos existe 0 enfientamento com o “nao saber”. Sob a ideia de uma falsa generosidade — ou referida como agio assistencialista ~a oferta de pacotes culturais fiilitados (repert6rio “bem ficil" para o consumo) ou de ingressos-brinde (para ida a um espetéculo) no expressa o que foi realizado nas oficinas do PHC aqui descritas. As propostas desenvolvidas nessas trés oficinas encontram em Paulo Freire (1979) elementos para combater o antidiglogo que, impondoao homem mutismo ¢ passividade, no the oferece condicées especiais para 0 desenvolvimento. Por falta de estfmulo, de informagio ou de dinheiro, ou devido & distancia e problemas de locomocio, ou assumindo um certo constrangimento, os adultos-professores (no caso PHC) dizem que néo participam do tipo de programacio cultural proporcionada pelo PHC: A gente nao tinha muita facilidade de dinheiro. [.-] eu juntava cupons do jornal para pagar mais barato. ‘Como eu nasci na baixada, nao tive essas coisas. Ficamos s6 com o dinheiro do trem, ¢ quando chegou na Leopoldina, cadé o trem? Era greve. Sentem que esses eventos nfo foram feitos para eles: “Eu achava que era uma coisa totalmente diferente da minha realidade”, Sentem “vergonha” por achar que mio vio entender nada do que lhes ser apresentado, ou mesmo de que nio estarao adequadamente vestidos. O professor considerado nesta pesquisa vé os espacos que deveriam serde todos (as salas de concerto, os museus, os centros culturais) € no entra, no admite que aquele espaco € dele também: [_-Jew achava que shopping, cinema, teatro era coisa 6 para rico, eu jamais poderia frequentar esses lugares. Eu achava assim, que tinha espacos que ‘eram para mim, t? E outros espagos que eram para ‘os outros, e que eu nao caberia no espago dos outros. [-] (Depoimento de professora, PHC, ano 2001), 122 ‘Aconstatagio de Fuks (1991) se repete nesta pesquisa. O fato das escolas negarem a identidade de seus atores fica claro: “apesar de as seis escolas estarem localizadas em pontos distantes uns dos outros no Rio de Janeiro e de terem sido criadas em épocas diferentes, 0s scus contetidos programiticos sdo semelhantes” (p. 39). Neste processo permaneciam fechadas também suas experiéncias agradiveis vividas em familia, suas vores que cantavam em reunides {familiares e sociais, suas experiéncias com brinquedos cantados, parlendas ¢ brincadciras de roda. Essa desvalorizagao da meméria, da histéria musical de cada crianga que entra na escola, é depois reproduzida na vida adulta, no trato dos docentes com seus alunos. Conforme expressa Freire (1979), este sujeito se acomoda e “se sente forcado a conformar sua conduta a expectativa alheia” (p. 44). Por uma alternativa para projetos de educacao de adultos através da misica Perrenoud (1995) revela que a bagagem do aluno que passou a Infancia e adolescéncia numa escola € carregada a sua vida como adulto. Nesse sentido, afirma que os trabalhos dos antropélogos, socislogos, psicGlogos sociais ¢ psicanalistas poderiam alimentar bastante a reflexio pedagégica. ‘A figura do professor sugere a figura do saber, da verdade ¢ do poder. © poder esté em todos os lugares — na pedagogia, nos Centros ‘Culturais, no PHC. ‘Todas essas instituigdes tém a sua pedagogia, oseu discurso e 0 seu poder. Contudo, no jogo desses poderes ha uma possibilidade do exercicio de emancipacio dos sujeitos. No caso dos educadores musicais, ao invés do uso de uma colegio de técnicas pedagégicas com um enfoque aplicacionista, uma pedagogia prescritiva ou um repertério de estratégias como as “misicas de comando”, uma poténcia de produgio provém da capacidade de ouvir scus alunos, assumir atitude investigadora e criar caminhos proprios, com 0 outro. Singularidade. Foi assim que se pensou a oficina de miisica no PHC, numa proposta de formacio permanente do adulto-professor. “Aprendi com esses professores, lutadores solitirios. Numa profissio to vazia de reconhecimento, malpaga e com limitagGes nas condigdes fisicas de local, material e seguranca, persistem em comparecer aos programas de atualizagao nos seus horérios “livres”, évidos para travar 423 uma conversacio, dialogar, aprender e ensinar. Fui percebendo, no decorrer do meu contato com esses professores, a alegria que sentiam ante o redescobrimento do seu saber musical, da sua percepcao, ante a chance de observar uma partitura e exclamar: “Ah, €sso?”. Para um dito “Ieigo” em muiisica, a partitura co conhecimento te6rico da mtisica exercem um fascinio muito grande. Puro aumento de poténcia, Este professor, que é fruto do antidilogo e da imposigdo de certo critério de saber absolutizado, passa a compreender outras possibilidades de viver no cotidiano. Freire (1979) reforca que a educacio teria de ser, acima de tudo, essa tentativa constante de mudanga de atitude: “de criacio dedisposig&es democriticas através da qual se ubstituissem no brasileiro, antigos ¢ culturolégicos hibitos de passividade, por novos habitos de Participacao e ingeréncia..” (p. 93). Ele também reforca que, quanto menos criticidade em n6s, tanto mais ingenuamente tratamos os problemas ¢ discurimos superficialmente os assuntos, provocando no educando uma “descrenca no seu poder de fazer, de trabalhar, de discutit” (p. 96). As oficinas de musica para o adulto-professor aqui relatadas estimulam esta reflexio, contribuindo na formacio de uma outra subjetividade, instabilizando representagées. Isso fica claro no depoimento a segui | entio, quer dizer, eucresci com aquela coisa de io esquentar muito com aquilo, mas desde 0 ‘momento em que eu passei a ir a ver, quer dizer, vocé jd comeca a tomar uma outra visio. Af eu t6 (sic) agora nesse movimento. A gente comecaa ver coisas diferentes, entdo os nossos horizontes realmente se ampliam, vocé jé comega a ver outras ccoisas fora da sua rotina, eai te incentiva a querer ir mais, eu adorei, fale: “Agora nio quicro mais sair, vou continuar” (Elofsa, 37 anos) No contato desse professor com a cducacio oferecida na escola, sua vivéncia musical softe alteragGes algumas vezes irreversiveis. Os problemas sociais, a discriminagio entre as classes sociais contribuem bastante para o reforco dessa situacio. Os critérios de saber que Ihe sio impostos sfo os “convencionais” (Freire, 1978, p. 54), que ajudaram a construir suas representagdes dos espacos culturais e da mifsica. Ea atividade musical escolar acaba por se caracterizar como nao sendo integradora do sujeito, contribuindo para a sua exclusio e liquidacio. 124 Podemos contribuir para reverter esse proceso de desvalia. As oficinas do PHC constituem uma das instincias da rede de formagio dessa outra subjetividade. As oficinas aqui relatadas instalam turbuléncia numa histéria de vida que parecia estar tranquila e acabada. Apesar do contexto em que cada professor viveu stn experiéncia musical as marcas deixadas por essas vivéncias — familiares, no contexto social mais amplo na instituigio escolar ~ sofvem alteracées, interrupgdes, tomando um ‘outro rumo por varios fatores, onde também se incluia proposta trazida nas oficinas de Apreciagio Musical desse Projeto Cultural. Notas acts amnion ental poet cea onanp ne abies eset hea rer erence ann eee ee errr atts ae ee ote nacre eee or tener Se a eet ate Avares Pinto, José Mauricio, Henrique Oswald, Villa-Lobos, Francisco Mignone, Oswaldo Lacerda, dase ee ania eet feats pe ee eee ee Br paca ae nga Bot eee eas a eat a eae Referéncias CONDE, Cecilia © NEVES, José Maria. Misica ¢ educago nao formal. Pesquisa e Miisica, n 1. Rio de Janeiro: Machado Horta Ealtora, 1984/85, p. 41 ~52 FREIRE, Paulo, Lie ome pic dl tera, 9 Rio de Jancis Pa Ter, om, FREIRE, Paul, Peds do prin, 5¥ ed Rio de Jnr: Pa Tera, 1978 FURS, Rosa © dicana do sis. Rio de Janie: Enero, 1991 JARKIM, Antania. Fernie Ofcaie de Misia: um modelo consersaorial sivapasda ¢ sem comprotieo com s residue cultural bests, Plea, Rigtdb Sani, 2 p. 15-11, 2002 135 LOPES, Alice R. C. Conhacinene exclar:ciéwise cian, Rio de Juncro: EAUERY, 1999, NETTL, Bruno, Heartland Escunions Eltmonusclagialrfections on ecole os musi Urbana: University of Minos Press, 1995, PERRENOUD, Philippe. Oftio de alune e seni do aba exolar. Port ivr, 1995. _PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, CONSERVATORIO BRASILEIRO DE MUSICA. Mais ne eal: © wo des. Rio de Janciro: Sceretara Municipal de EducosSo/ Gonseratéio Brasiro de Misia, 200, p. 13-16 SACRISTAN, Gimeno J. Educar ¢conviver ne cultura global. Porto Alegre: Artmed, 2000, SWANWICK, Keith. Ensinando mise musicalmene, S39 Paulo: Mederxa, 2008. 1: Porto 126 Capitulo 5 Criangas cantando em grupo: curriculo rizomatico na rede cultural do coro Neila Ruiz Alfonzo 1 Indicacées sobre coro Como cantorae regente, sempre estive imersa em questoes que ora me impulsionavam, ora me paralisavam. Trazia modelos de coro instituidos e conservados na meméria, que procurava reproduvzir, mas também dos quais desejava escapar. Libertar-me do padro, lidar com a diivida, agir na incerteza; me formar, mas no me “agarrar”, tudo isso para mim, na época, soava novo e desafiador. Como escapar dos modelos de coro institufdos ¢ conservados na meméria? Que identidade de coro (re)definir? Que trinsito produzir centre as méltiplas dimens6es de um curriculo-coro? Que producio musical instituir como objeto do trabalho pedagégico-cultural, de um coro? “Abussca por respostas me apresentou a necessidade de compreender melhor a trajetéria do canto coral como espaco de eduicacio musical. A pritica coral foi afetada pelos princfpios da Modernidade' ¢ projetou seus modelos com contomnos rigidos e papéis definidos no tecido social, politico e cultural. Incorporou 2 nogio de cultura como algo objetivo e externo ao sujeito, representando “o melhor de sua historia” € devendo, por isso, ser reproduzida (Sacristan, 1999, p. 153). Incorporou as énfases de uma pedagogia fortemente marcada pelos escritos de ‘Comenius na Didatica Magna: controle, previsibilidade, ordenagio linear sequencial, seriagio por t6picos de contetidos, forte enquadramento. No Brasil, o Canto Orfe6nico de Villa-Lobos nos anos 1930-40 € ‘expresso dessa pritica coral afinada 8 Modernidade, constituindo-se ‘em uma politica cultural e educacional para as escolas ptiblicas do Distrito Federal nos anos 1930 e, por Decreto de 1931 (que institui a reforma no ‘ensino de miisica), método de ensino de miisica para todo territério nacional. Cumprindo objetivos estético, de disciplina e civismo (Fuks, 127

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