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CHARLES TAYLOR K, ANTHONY APPIAH JORGEN HABERMAS STEVEN C. ROCKEFELLER MICHAEL WaizeR Susan Wour MULTICULTURALISMO EXAMINANDO A POLITICA DE RECONHECIMENTO wsrtuTo PIAGET A POLITICA DE RECONHECIMENTO CHARLES TAYLOR Alguns aspectos da politica actual estimulam a necessidade, ou, por vezes, a exigéncia, de reconhecimento. Pode-se dizer que a necessidade 6, no 4mbito da politica, uma das forcas motrizes dos movimentos nacionalistas. E a exigéncia faz-se sentir, na politica de hoje, de determinadas formas, em nome dos grupos minoritarios ou «subalternos», em algumas mani- festagdes de feminismo e naquilo que agora, na politica, se designa por «multiculturalismon. A exigéncia de reconhecimento nestes tiltimos casos adquire uma certa preméncia devido 4 suposta relagao entre reconheci- mento ¢ identidade, significando este tiltimo termo qualquer coisa como a maneira como uma pessoa se define, como é que as suas caracteristicas fundamentais fazem dela um ser hamano. A tese consiste no facto de‘a nossa identidade ser for- mada, em parte, pela existéncia ou inexisténcia de reconheci- mento e, muitas vezes, pelo reconhecimento incorrecto dos outros, podendo uma pessoa ou grupo de pessoas serem real- mente prejudicadas, serem alvo de uma verdadeira distorcéo, se aqueles que os rodeiam reflectirem uma imagem limitativa, de inferioridade ou de desprezo por eles mesmos. O nao reco. -nhecimento ou o reconhecimento incorrecto podem afectar negativamente, podem ser uma forma de agressao, reduzindo a pessoa a uma maneira de ser falsa, distorcida, que a restringe. ‘Assim, algumas feministas afirmaram que, nas sociedades patriarcais, as mulheres eram induzidas a adoptar uma opiniao depreciativa delas prdprias. Interiorizavam uma imagem da sua inferioridade, de tal maneira que, quando determinados obstaculos reais A sua prosperidade desapareciam, elas chega- vam a demonstrar uma incapacidade de aproveitarem as novas oportunidades. E, além disso, estavam condenadas a sofrer pela sua debilitada auto-estima, Também surgiram argumentos semelhantes em relacdo aos negros: que a sociedade branca projectou durante geragdes uma imagem de inferioridade da raca negra, imagem essa que alguns dos seus membros acaba- ram por adoptar. Nesta perspectiva, a sua auto-depreciacao torna-se um dos instrumentos mais poderosos da sua prépria opressao. A primeira coisa que deveriam fazer era expiarem essa identidade imposta e destrutiva. Recentemente, afirmou-se 9 mesmo sobre os indigenas e os povos colonizados, em geral. Pensa-se que desde 1492 os europeus tém vindo a projectar desses povos uma imagem de seres um tanto inferiores, «incivi- lizados», e que, através da conquista e da forca, conseguiram impé-la aos povos colonizados. E, para ilustrar o desprezo des- truidor em relacdo aos indigenas do Novo Mundo, elegeu-se a personagem de Caliban. Perante estas consideracdes, 0 reconhecimento incorrecto nao implica s6 uma falta do respeito devido. Pode também marcar as suas vitimas de forma cruel, subjugando-as através de um sentimento incapacitante de dio contra elas mesmas. Por isso, 0 respeito devido nao é um acto de gentileza para com os outros. E uma necessidade humana vital. Para analisar algumas questes que foram aqui levantadas, gostaria de recuar um pouco, de criar uma certa distanciagao, e debrucar-me, em primeiro lugar, sobre como é que o discurso do reconhecimento e da identidade passou a fazer parte das nossas vidas ou, pelo menos, a ser facilmente inteligivel. Isto, porque a realidade no foi sempre assim e, ha alguns séculos, os nossos antepassados encarar-nos-iam com espanto, sem compreenderem se 0 significado que estas palavras tém hoje seria 0 mesmo que no tempo deles. Como é que tudo isto comesou? 46 A primeira coisa que vem a lembranca é Hegel ¢ a sua famosa dialéctica do senhor e do escravo. Trata-se de uma etapa importante, mas temos de recuar um pouco mais para compreendermos essa importancia. Quais as mudangas ocorr’ das que contribuiram para o significado que este tipo de dis curso tem hoje para nés? Podemos distinguir entre duas mudangas que, conjugadas, tornaram inevitdvel esta preocupacao moderna pela identidade e pelo reconhecimento. A primeira 6 0 desaparecimento das hierarquias sociais, que constituiam o fundamento da nogéio de honra, Refiro-me a honra com o mesmo sentido que existia no tempo do antigo regime, e que estava intrinsecamente telacio- nado com desigualdades. Para que alguns disfrutem da honra neste sentido, é essencial que nem todos o facam. B esta acep- $40 que Montesquieu aplica ao descrever a monarquia. A honta € uma questéo intrinseca de «préférences»!, E também nesta acep¢&o que usamos 0 termo quando nos referimos ao facto de alguém ser oficialmente galardoado com, por exemplo, a Ordem do Canada. E ébvio que, se, amanhé, este galardao for concedido a todos os canadianos adultos, ele deixa de ter qual- quer valor. Contra esta nocao de honra temos a nogao moderna de dig- nidade, que hoje possui um sentido universalista e igualitdrio. _ Dai falarmos em «dignidade dos seres humanos» ou dignidade de cidadao. Baseia-se na premissa de que é comum a todas as Pessoas?, Naturalmente, este conceito de dignidade é 0 tnico que é compativel com a sociedade democritica, ¢ era inevitdvel que pusesse de lado o velho conceito de honra. Um exemplo disso € 0 tratamento generalizado de «Mr», «Mrs.» ou «Miss», em vez de «Lord» ou «Lady», ou, entéo, pelos apelidos - ou, ainda mais baixo, pelos nomes crist&os -, considerado essencial _ 7 La nature de ’honneur est de demander des préférences et des distinctions... Montesquieu, De esprit des lois, Bk. 3, chap. 7. 2A importancia desta mudanga de «honra» para «dignidade» é discutida de uma forma interessante por Peter Berger em «On the Obsolescence of the ‘Concept of Honour, in Revisions: Changing Perspectives in Moral Philosophy, ed. Stanley Hauerwas and Alasdair Macintyre (Notre Dame, Ind.: University ‘of Notre Dame Press, 1983), pp. 172-181. para algumas sociedades democraticas, como é 0 caso dos Estados Unidos. Recentemente, e por razdes semelhantes, «Mrs.» e «Miss» deram lugar a «Ms.» A democracia introduziu a polftica de reconhecimento igualitario, que tem. assumido varias formas ao longo dos anos, e que regressou agora sob a forma de exigéncias de um estatuto igual para as diversas cul- turas € para os sexos. Mas a importancia do reconhecimento foi-se modificando € aurmentando com a nova compreensao da identidade individual {que surgiu no final do século xvi. Podemos falar de uma identi- dade individualizada, ou seja, aquela que 6 especificamente minha, aquela que eu descubro em mim. Esta nogao surge junta- mente com um ideal: o de ser verdadeiro para comigo mesmo e para com a minha maneira propria de ser. Com base na lingua- gem que Lionel Trilling usa no seu brilhante estudo, designarei este ideal como o da «autenticidade»?, Ajudaré na descricao daquilo em que consiste e como surgiu. Uma maneira de descrever o seu desenvolvimento é consi- derar 0 seu ponto de partida de acordo com a nocao vigente no século xvii de que os seres humanos sao dotados de um sen- tido moral, de um sentido intuitivo sobre o bem e o mal. © objectivo inicial desta doutrina era combater um ponto de vista rival, segundo 0 qual conhecer o bem e o mal era uma questo de consequéncias calculadas, sobretudo das que diziam respeito & recompensa e ao castigo divinos. A ideia era a de que compreender o bem e 0 mal no era uma questdo de raciocinio frio, mas um acto enraizado nos nossos sentimentos!, ‘A moralidade tem, em certo sentido, a sua importancia na questao. A nogio de autenticidade desenvolveu-se a partir de uma mudanca da énfase moral para esta ideia. Na perspectiva origi- 3 Lionel Trilling, Sincerity and Authenticity (Nova Torque: Norton, 1969) 4 Jé antes havia analisado, com mais profundidade, o desenvolvimento desta doutrina, primeiro na obra de Francis Hutcheson, tendo como fonte os escritos do Conde de Shaftesbury, e a sua relagio adverséria com a teoria de Locke em Sources of the Self (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1989), chap. 15. nal, a voz interior era importante porque nos dizia o que devia- mos fazer. Dar atencdio aos nossos sentimentos morais tem a sua importancia aqui, como um meio que visa o comporta- mento correcto. O que eu chamo de mudanga da énfase moral surge quando a atencdo que damos aos nossos sentimentos assume uma importancia moral independente e essencial. Acaba por ser aquilo a que temos de nos agarrar se quisermos assumir-nos como seres humanos verdadeiros e de direito. Para perceber 0 que ha aqui de novo, temos de fazer a com- paragdo com as perspectivas morais do passado, segundo as quais estabelecer contacto com uma espécie de fonte ~ Deus ou a Ideia do bem, por exemplo — era considerado essencial para se atingir a plenitude do ser. Mas, agora, a fonte encontra-se bem no fundo do nosso ser. Este facto faz parte da viragem subjectiva macica que teve lugar na cultura moderna e que se traduziu numa nova forma de introspeccdo, através da qual passamos a ver-nos como sujeitos dotados de uma profundi- dade interior. Trata-se de uma ideia que nao exclui a nossa relac&o com Deus ou com as Ideias. Pelo contrario, pode ser mesmo considerada a maneira certa de estabelecer essa relacao. De certo modo, pode ser vista como apenas uma continuagdo e intensificacdo do desenvolvimento iniciado por Santo Agostinho, que considerava a nossa autoconsciéncia como a via para che- gar a Deus. As primeiras variantes desta nova perspectiva eram teistas e panteistas. © filésofo mais importante que contribuiu para esta mudanca foi Jean-Jacques Rousseau. Penso que a sua importancia nao se ao facto de ter dado inicio & mudanca. Eu diria, antes, que a grande popularidade se deve, em parte, & articulacao que sobre algo que, de certa forma, j4 estava a acontecer no inio cultural. Rousseau: apresenta frequentemente a ques- da moralidade como tratando-se de uma voz da natureza iro de nés e por nés seguida. Essa voz é, muitas vezes, aba- pelas nossas paixdes suscitadas pela nossa dependéncia outros, das quais se destaca o amour propre, ou orgulho. ‘nossa salvaco moral esta na recuperacao do contacto moral éntico connosco mesmos. Rousseau até dé um nome a este de contacto intimo, mais fundamental do que qualquer 49 outro conceito moral, e que é fonte de tanta alegria e satisfacao: «de sentiment de I’existence»®. O ideal de autenticidade torna-se decisivo com 0 desenvolvi- mento que ocorre depois de Rousseau, e que eu associo a0 nome de Herder — mais uma vez, como o seu primeiro grande articu- Jador, e nao como seu autor. Herder afirma que cada um de nés tem a sua maneira original de ser humano: cada pessoa possui a sua propria «medidar®, Trata-se de uma ideia que ganhou raizes profundas na consciéncia moderna. E uma ideia nova. Antes do final do século xvi, ninguém havia pensado que as diferencas entre seres humanos pudessem assumir este tipo de importan- cia moral. Existe uma determinada maneira de ser humano que &a minha maneira. Sou obrigado a viver a minha vida de acordo com essa maneira, e nio imitando a vida de outra pessoa. Se nao o fizer, deixo de compreender o significado da minha vida; ser humano deixa de ter significado para mim. Este é 0 ideal de uma enorme forca moral que chegou até nés. Faz a conciliac&o entre importancia moral e um tipo de~ contacto comigo mesmo, com a minha propria natureza inte- rior, que é vista como estando em perigo de se perder, em parte, devido as presses que obrigam uma pessoa a virar-se para 0 exterior, mas também devido a uma posstvel perda da capaci- dade de ouvir essa voz interior quando assumo uma atitude instrumental em relagdo a mim mesmo. 5 «Le sentiment de Vexistence dépouillé de toute autre affection est par lui- -méme un sentiment précieux de contentement et de paix qui suffiroit seul pour rendre cette existence chére et douce a qui sauroit écarter de soi toutes les impressions sensuelles et terrestres qui viennent sans cesse nous en dis- traire et en troubler ici bas la douceur. Mais la pluspart des hommes agités de passions continuelles connoissent peu cet état et ne ayant gouté qu’imparfaitement durant peu d’instans n’en conservent qu’une idée obs- cure et confuse qui ne leur en fait pas sentir le charme>. Jen-Jacques Rousseau, Les Réveries du promeneur solitaire, «Cinquiéme Promenade», in Oeuvres completes (Paris: Gallimard, 1959), 1:1047. 6 «Jeder Mensch hat ein eigenes Mass, gleichsam eine eigne Stimmung aller seiner sinnlichen Gefuehle zu einander». Johann Goitlob Herder, Ideen, cap. 7, sec. 1, in Herders Saemtliche Werke, ed. Bernard Suphan (Berlim: Weidman, 1877-1913), 13291. 50 um ideal que aumenta consideravelmente a importancia desse autocontacto, ao introduzir o princfpio da originalidade: cada uma das nossas vozes tem algo de tnico para nos dizer. Nao s6 ndo deveria moldar a minha vida as exigéncias da realidade exterior, como nem sequer posso encontrar o modelo que me per- mite viver fora de mim. $6 posso encontré-lo dentro de mim”. Ser verdadeiro para comigo mesmo significa ser verdadeiro para com a minha originalidade, que é algo que s6 eu posso descobrir e articular. Ao articulé-la, estou também a definir-me a mim mesmo. Estou a actualizar uma potencialidade que é propria de mim. E assim que se deve entender 0 ideal moderno de autenticidade e os objectivos de auto-realizagao e de auto- -satisfagdo que normalmente acolhem este ideal. E preciso que se note que Herder aplicou esta concepcaio de originalidade em. dois niveis: o individuo rodeado de outros individuos e os povos detentores de cultura rodeados de outros povos. Tal como os individuos, um Volk deve ser verdadeiro para consigo mesmo, isto é, para com a sua prépria cultura. Os alemées nao deve- riam relegar-se ao estatuto de franceses de (inevitavelmente) segunda categoria, tal como a atitude paternalista de Frederico, 0 Grande, parece té-los incentivado a fazer. Os povos eslavos tiveram que descobrir 0 seu proprio rumo. E 0 colonialismo europeu deveria ser abolido para proporcionar aos povos do que agora chamamos Terceiro Mundo a sua oportunidade de progredirem sem entraves. Podemos reconhecer, aqui, a semente do nacionalismo moderno, tanto na sua forma benigna, como maligna. 7 John Stuart Mill revela ter sido influenciado por esta corrente do pensa- mento romantico, ao fazer de algo como 0 ideal de autenticidade o funda- mento para uma das suas argumentagdes mais impressionantes em Oit Liberty. Veja-se, sobretudo, o capitulo 3, onde ele afirma que precisamos mais do que de uma capacidade para a «imitacao mecdnica: «Aquele que possui desejos e impulsos préprios — que sao a expresso da sua prdpria natureza, tal como se desenvolveu e se modificou na sua propria cultura — possui cardcter». «Se uma pessoa possuir uma dose tolerdvel de bom-senso e de experiéncia, a sua propria maneira de encarar a sua vida sera melhor, nao por ser melhor em si, mas por ser a sua propria maneira». John Stuart Mill, Three Essays (Oxford: Oxford University Press, 1975), pp. 73, 74, 83. 51 Este novo ideal de autenticidade também era, 4 semelhanga da nogio de dignidade, fruto do declinio da sociedade hierdrquica. Nessas sociedades, aquilo que hoje designamos por identidade era, em grande parte, determinado pela posicio social. Quer isto dizer que a proveniéncia social, que explica aquilo que as pessoas consideravam ser importante para elas, era, em boa parte, deter- minado pelo lugar que ocupavam na sociedade e pelos papéis ou actividades inerentes. O nascimento de uma sociedade democré- tica no pée, por si, cobro a este fendmeno, jé que as pessoas ainda podem definir-se pelos papéis sociais que desempenham. Mas 0 que fragiliza decisivamente esta identificacao de cariz social é 0 préprio ideal de autenticidade. Dotado do sentido que Herder lhe da, é um ideal que me leva a descobrir a minha forma original de ser. Por definicao, esta nao pode ser fruto da influén- cia social. Deve, isso sim, gerar-se no interior do ser. Mas, tal como o caracter, gestacao interior é coisa que no existe, entendido monologicamente. Para se compreender a estreita relagdo entre identidade e reconhecimento, temos de tomar em consideracéio um aspecto definitivo da condicgo humana, pra- ticamente invisivel por culpa da tendéncia esmagadoramente monolégica que tem caracterizado a filosofia moderna dominante. Refiro-me ao seu cardcter fundamentalmente dialdgico. ‘Tornamo-tios em verdadeiros agentes humanos, capazes de nos entendermos e, assim, de definirmos as nossas identidades, quando adquirimos linguagens humanas de expressao, ricas de significado. Tendo em atenco os objectivos a que me propus com este trabalho, defino linguagem no sentido lato, abarcando nao s6 as palavras que proferimos, mas também outros modos de expres- so, através dos quais nos definimos, incluindo as «linguagens» da arte, do gesto, do amor, e outras do género. As pessoas nao aprendem sozinhas as linguagens necessérias a autodefinicao. Pelo contrario, elas s4o-nos dadas a conhecer através da inter- acco com aqueles que sao importantes para nés — os «outros- -importantes», como George Herbert Mead lhes chamou’. 8 George Herbert Mead, Mind, Self, and Society (Chicago: University of Chicago Press, 1934). 52 A formacdo da mente humana é, neste sentido, nao monold- gica, no algo que se consiga sozinho, mas dialégica. Além disso, nao se trata apenas de um facto sobre formagiio, que pode ser ignorado mais tarde. Nao nos limitamos a aprender as linguagens em didlogo para, depois, continuarmos a us4-las. Para os nossos préprios fins. E claro que temos de desenvolver as nossas préprias opinides, atitudes, posicdes em relacdo As coi- sas, 0 que implica uma boa dose de reflexao solitaria. Mas nao é assim que se passa com as quest6es importantes, como a defini- sao da nossa identidade. Definimo-la sempre em diélogo sobre, ©, Por vezes, contra, as coisas que os nossos outros-importantes querem ver assumidas em nés. Mesmo depois de deixarmos para trés alguns desses outros-importantes ~ os nossos pais, por exemplo ~ ¢ de eles desaparecerem das nossas vidas, 0 didlogo com eles continua para o resto das nossas vidas. Deste modo, a contribuigéio dos outros-importantes, mesmo que comece quando nascemos, prolonga-se durante anos. Algumas pessoas podem querer continuar apegadas a qualquer forma de ideal monolégico. E verdade que jamais nos libertare- mos completamente daqueles cujo amor e atencio contribui- ram para a nossa formacSo desde os primeiros momentos das nossas vidas, mas deveriamos esforcar-nos por nos definirmos, sozinhos e o mais possivel, para compreendermos o melhor que pudermos e, assim, controlarmos a influéncia recebida dos nossos pais, e para nos impedir de cairmos de novo em depen- déncias semelhantes. Precisamos das relacdes para nos realizar- mos, mas nao para nos definirmos. O ideal monolégico subestima gravemente o lugar do ideal dialégico na vida. Visa limité-lo, tanto quanto possivel, A for- macao. Nao tem em conta o modo como a nossa nogao das coi- sas boas da vida pode ser transformada pelo usufruto em comum com aqueles que amamos; como alguns bens se tornam 9 Esta dialogicalidade interior foi explorada por M. M. Bakhtin e por aqueles que se inspiraram na sua obra. Deste autor veja-se, em especial, Problems of Dostoyeusky’s Poetics, trad. Caryl Emerson (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984). Veja-se também Michael Holquist e Katerina Clark, Mikhail Bakhtin (Cambridge, Mass.; Harvard University Press, 1991). 53 acessiveis somente através desse usufruto em comum. Por esse motivo, seria necessério um grande esforco e, provavelmente, muitos rompimentos violentos, para impedir que aqueles que amamos formem a nossa identidade. Consideremos 0 signifi- cado de identidade: 6 aquilo que nés somos, «de onde nés provi- mos». Assim definido, é 0 ambiente no qual os nossos gostos, desejos, opinides e aspiracdes fazem sentido. Se algumas das coisas a que eu dou mais valor esto ao meu alcance apenas por causa da pessoa que eu amo, ent&o ela passa a fazer parte da minha identidade. Para alguns, esta definicéo pode parecer limitativa, levando uma pessoa a desejar libertar-se. Esta 6 uma maneira de enten- der o que levou o eremita a escolher esse tipo de vida ou, para mencionar um exemplo mais préximo da nossa cultura, 0 artista a ser solitario. Mas, noutra perspectiva, até podemos considerar estes modos de vida como aspiragdes a um certo tipo de dialogicalidade. No caso do eremita, 0 interlocutor sera Deus. No caso do artista solitdrio, a prépria obra destina-se a um ptblico posterior, ptiblico esse que a obra iré talvez ainda criar. E precisamente a forma que uma obra de arte assume que revela o seu carcter de «objecto visado»10. Mas, independente- mente do que uma pessoa possa sentir sobre 0 assunto, a for- mag&o e a manutengao da nossa identidade, na falta de um esforgo herdico de romper com a existéncia normal, continua a ser dialégica pelas nossas vidas fora. Assim, a descoberta da minha identidade nao significa que eu me dedique a ela sozinho, mas, sim, que eu a negoceie, em parte, abertamente, em parte, interiormente, com os outros. E por isso que o desenvolvimento de um ideal de identidade gerada interiormente atribui uma nova importancia ao reco- nhecimento. A minha prépria identidade depende, decisiva- mente, das minhas reaccGes dialégicas com os outros. 10 Sobre este conceito de um «super-visado», para lé dos nossos interlocuto- res presentes, veja-se Bakhtin, «The Problem of the Text in Linguistics, Philology and the Human Sciences», in Speech, Genres and Other Late Essays, ed. Caryl Emerson e Michael Holquist (Austin: University of Texas Press, 1986), p. 126 54 E obvio que a questao nao reside no facto de essa dependéncia dos outros ter surgido na era da autenticidade. Existiu sempre uma forma de dependéncia. A identidade de origem social dependia, pela sua propria natureza, da sociedade. Mas, antiga- mente, o reconhecimento nunca havia constituido um problema. O reconhecimento geral era associado a identidade de origem social precisamente pelo facto de se basear em categorias sociais que ninguém punha em causa. Se bem que resulte de um pro- cesso interior, a identidade original, pessoal, nao é alvo deste reco- nhecimento a priori. Tera de se conseguir através da troca, 0 que é uma tentativa passivel de falhar. O que a idade moderna tem de novo n&o é a necessidade de reconhecimento, mas sim as condi- Ges que podem levar uma tentativa de reconhecimento ao fra- casso. No periodo pré-moderno, nao se falava em «identidade», nem em «reconhecimento» — nao porque as pessoas fossem desti- tuidas de (aquilo a que chamamos) identidades, ou porque estas nao dependiam do reconhecimento, mas, sim, porque nao eram suficientemente problematicas para serem discutidas como tal. Néo nos surpreende encontrar algumas das ideias pioneiras sobre a dignidade de cidadao e sobre o reconhecimento univer- sal, ainda que nao nestes termos concretos, em Rousseau, que eu pretendi identificar como um dos marcos na origem do dis- curso moderno de autenticidade. Este autor 6 um critico acér- timo da honra hierdrquica, das «préférences». Num importante excerto do Discurso sobre a Desigualdade, ele destaca o momento fatidico em que a sociedade se vira para a corrupcao e para a injustiga, em que as pessoas comecam a desejar um tratamento preferencial!!. Em contraposicao, a sociedade republicana, na qual todos merecem a mesma atengio publica, é por ele vista como uma fonte de satide social!2, Mas é com Hegel que a 11 Neste excerto, Rousseau descreve os primeiros ajuntamentos: «Chacun commenca & regarder les autres et vouloir étre regardé soi-méme, et Yestime publique eut un prix. Celui qui chantait ou dansait le mieux; le plus beau, le plus fort, le plus adroit ou le plus éloquent devint le plus con- sidéré, et ce fut 1a le premier pas vers l'inégalité, et vers le vice en méme temps». Discours sur Vorigine et les fondements de Iinégalité parmi les hommes (Paris: Granier-Flammarion, 1971), p. 120, 12 Veja-se, por exemplo, o excerto de Considerations sur le gouvernement de Pologne, onde © autor descreve o antigo festival piblico, em que todas as 55 do reconhecimento comega a ser tratada de maneira juentel3, portancia do reconhecimento 6, agora, universalmente admitida, de uma forma ou de outra: no plano intimo, estamos todos conscientes de como a identidade pode ser formada ou deformada no decurso da nossa relacéo com os outros-impor- tantes; no plano social, temos uma politica permanente de reco- nhecimento igualitario. Ambos os planos sofreram a influéncia do ideal de autenticidade, 4 medida que este foi amadure- cendo, ¢ o reconhecimento joga um papel essencial na cultura que surgiu a volta desse ideal. No nivel intimo, é facil verificar até que ponto uma identi- dade original necessita e 6 vulnerdvel ao reconhecimento con- cedido, ou nao, pelos outros-importantes. Nao é de admirar que, na cultura de autenticidade, as relag6es sejam entendidas como pontos centrais da autodescoberta e da auto-afirmagao. As relagdes de amor nao sao s6 importantes devido 4 énfase geral que a cultura moderna atribui A realizagao das necessida- des normais. Sao também decisivas por constituirem o cadinho da identidade formada interiormente. No plano social, a nogao de que as identidades se formam através do didlogo aberto, que elas sao imperfeitas quando ava- liadas a luz de um guido social predefinido, tem contribuido para tornar a politica do reconhecimento mais central e mar- cante. Na verdade, aumentou consideravelmente a jogada. reconhecimento igualitério nao apenas a situacdo adequada para uma sociedade democratica saudavel. A sua recusa pode prejudicar as pessoas visadas, segundo uma perspectiva moderna generalizada, como eu jé referi no inicio. A projeccao pessoas participavam, em Du contrat social (Paris: Garnier, 1962), p. 345; veja- -se também o excerto paralelo em Lettre a D'Alembert sur les spectacles, em Dut contrat social, pp. 224-225. Decisivo é o prinefpio de que nao deveria existir qualquer distingao entre actores e espectadores, mas sim uma fusio, «Mais quels seront enfin les objets de ces spectacles? Qu’y montrera-t-on? Rien, si Yon veut.... Donnez les spectateurs en spectacles; rendez-les acteurs eux- mémes; faites que chacun se voie et s’aime dans les autres, que tous en soi- ent mieux unis». 13 Veja-se Hegel, The Phenomenology of Spirit, trad. A. V. Miller (Oxford: Oxford University Press, 1977), cap. 4. de uma imagem do outro como ser inferior e desprezivel pode, realmente, ter um efeito de distorgao e de opressao, ao ponto de essa imagem ser interiorizada. Nao é s6 0 feminismo contem- poraneo, mas também as relag6es raciais e as discussées sobre 0 multiculturalismo, que se fundamentam na premissa de que a recusa de reconhecimento pode ser uma forma de opressao. Poderiamos discutir se este factor 6, ou nao, objecto de exagero, mas nao deixa de ser claro que a nocao de identidade e de autenticidade introduziu uma nova dimensdo na politica de reconhecimento igualitario, que agora funciona com algo pare- cido a um conceito préprio de autenticidade, pelo menos no que respeita A demtincia de distorcdes provocadas pelos outros. IL E é desta forma que o discurso do reconhecimento chega até nds, a dois niveis: primeiro, na esfera intima, onde a formacio da identidade e do ser é entendida como fazendo parte de um didlogo e luta permanentes com os outros-importantes; e, depois, na esfera ptiblica, onde a politica de reconhecimento igualitario passou a desempenhar um papel cada vez maior. Algumas teorias feministas tentaram demonstrar a relacio entre estas duas esferas!4_ Nesta segunda parte, tenciono concentrar-me sobre a esfera ptiblica e tentar explorar o significado passado e possivel de uma politica de reconhecimento igualitario. Na realidade, esta politica passou a significar duas coisas bastante diferentes, relacionadas, respectivamente, com as duas grandes mudangas que descrevi atrés. Da mudanga da honra 14 Existe um niimero de componentes que estabelecem a relacio entre estes dois niveis, mas 0 feminismo de orientagio psico-analitica, que atribui as causas das desigualdades sociais ao tipo de educagio que antigamente se dava aos homens e as mulheres, tem sido objecto de especial destaque nos ltimos anos. Veja-se, por exemplo, Nancy Chodorow, Feminism and Psychoanalytic Theory (New Haven: Yale University Press, 1989); e Jessica Benjamin, Bonds of Love: Psychoanalysis, Feminism and the Problem of Domination (Nova Iorque: Pantheon, 1988).

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