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VA Cerri erycuke Mun or eke MT) DUM rR ER l U ence re Viva o miltiplo, grito de resto dificil de emitir. DUE ee ate ea Ce ULSD rc Re RU ee eRe aNaiaee ic POT ear ar eeu CUO eu CLUE Cee UR LOM Rt} mais simples, com forca de sobriedade, no nivel Otel eu ed (6 somente assim que 0 uno faz parte do miltiplo, cue tele eR mS ecleel lies) CEM aCe eRe Ce HS ies eS rea Cee Imaginemo-nos sem olhos. Ao redor, nem cores, nem formas. Nenhum desenho ou silhueta. 0 mundo nao se apresenta a nds como variedade de corpos e de intensidades de luz. E um corpo Gnico, com diferentes graus de penetrabilidade. Imaginemo-nos sem ouvidos. Nao hd ruidos, nao ha misica, nao ha poesia. Nenhuma linguagem que pos- samos compreender. Tudo nao passa de uma agitagaéo silenciosa de matérias. Imaginemo-nos, também, sem pernas. Nao pode- Mos nos mexer, a menos que algo nos atinja. Ou melhor, nao podemos nos deslocar, mas sem parar Somos tocados e atingidos por outros corpos e elementos. Nao temos pernas, e o mundo a nossa frente nao tem profundidade. Tudo deve existir em nossa superficie. Nossa pele coincide com os limites do mundo. Imaginemo-nos sem bragos e sem mos para pegar e tocar as coisas, destilar e distinguir, na vasta soma de componentes do mundo, objetos, entidades fixas, estaveis, definidas. O mundo é um corpo fluido onde nada pode estar separado de nada mais. Imaginemo-nos sem érgaos de sentidos e de movi- mento, sem poder, entretanto, parar de crescer, mode- lar, remodelar, bricolar nosso préprio corpo, sua forma, seu volume, Seus contornos, sua extensao. Imaginemos tudo isso, e busquemos definir em que consistiria nossa experiéncia de estar no mundo. Imaginemos tudo isso, e teremos uma ideia, por certo imprecisa e aproximativa, do mundo tal como se dé a vere a viver as plantas. 0 mundo 6, para elas, um corpo antes ou depois do espago, um corpo nao visivel, nado percorrivel, um corpo nao espacial. Imaginar tudo isso nao é uma experiéncia de pen- samento ociosa e excéntrica. E a condigéo de possi- bilidade de toda cosmologia especulativa. As plantas, de fato, representam o ponto de vista - ou melhor, 0 ponto de vida — privilegiado para compreender e des- Crever 0 mundo enquanto tal, e de modo mais geral, para apreender a relagao entre vida e mundo. Se esse exercicio 6 necessdrio, se devemos imaginar o mundo do ponto de vida das plantas, 6 porque o mundo é lite- ralmente produzido por elas. Sao as plantas que fazem da matéria e do espago que nos rodeiam um mundo, que reorganizam e rearranjam a realidade tornando-a um lugar habitdvel e vivivel. 0 mundo, deste ponto de vista, 6 antes de tudo uma realidade vegetal: é um jar- dim antes de ser um zooldgico, e é somente porque é um jardim que podemos ali viver. No fundo, nunca saimos do paraiso, nunca abandonamos 0 jardim ori- gindrio. Nunca poderemos deixa-lo. Estar no mundo significa estar condenado a habitar o Eden. Estar a0 mundo significa para nds, humanos, estarmos conde- nados a nos nutrir do que a vida vegetal soube fazer do sole do solo, da agua e do ar que compdem nosso mundo. Mas se o mundo é jardim, nao é porque as plantas constituem seu contetido privilegiado (pois 0 planeta seria habitado principalmente por elas): ao contrario, 6 porque o mundo 6 feito, fabricado pelas plantas. Elas s4o, portanto, os jardineiros: sao elas que fazem este mundo, elas que conservam este mundo em vida. Nés, humanos, assim como todos os outros animais, somos o objeto da jardinagem cés- mica das plantas. Somos apenas um de seus intimeros produtos culturais; um dos incontaveis objetos de suas agriculturas. Traduzido em termos mais familiares: as plantas nao sdo a paisagem, elas sao os primeiros paisagistas. O que chamamos de paisagem é na rea- lidade um povo de paisagistas; o que chamamos de jardim 6 um exército de jardineiros que nao para de mudare cinzelar o rosto do mundo. De fato, as plantas estao entre as forgas cosmog6- nicas mais importantes de nosso planeta, elas produ- zem literalmente o mundo tal como o conhecemos e habitamos. Elas 0 produziram e continuam a produ- zi-lo, a instaurd-lo e a fabricd-lo ao menos em dois sentidos, sob duas formas de cosmogonia, que sao as duas atividades de jardinagem que tornam possivel avida sobre a terra. Primeiramente, ao explorar, numa escala mais vasta, um mecanismo inventado pelas cianobactérias, as plantas permitiram a transformagao da energia solar em matéria viva: a vida organica em nosso planeta nao ésenao a consequéncia dessa capacidade de transfor- mar o sol (a fonte de energia mais importante da terra) em massa animada. As plantas sao centrais nucleares solares: a fotossintese é, de fato, a nica operagado alquimica que permite estocar a energia solar, sob a forma de ligacgdes quimicas de moléculas complexas. E é somente gracas a variante desse processo de cons- trugdo de matéria viva desenvolvida pelas plantas que a vida no planeta deixou de ser um fato marginal, de um ponto de vista quantitativo e qualitativo, e passou a representar sua caracteristica principal, sua essén- cia. As plantas so, assim, as responsdveis imediatas ou indiretas pela produgdo da quase totalidade da biomassa do planeta: elas representam a condicao de possibilidade energética da existéncia e da nutrigéo de todo animal superior. Essa é a razao pela qual elas estado na origem de praticamente todos os objetos e instrumentos que nos rodeiam (alimentos, méveis, ves- timentas, petréleo, medicamentos etc.). Em segundo lugar, ao conquistar a superficie da terra e ao se difundir por todo o globo, as plantas contribuiram para produzir (e continuam a produzir perpetuamente) a atmosfera rica em oxigénio que tor- nou possivel a vida de todos os animais superiores. Os animais superiores s6 podem viver porque respiram o residuo, o subproduto do metabolismo vegetal, que é 0 oxigénio. O universo que habitamos resulta da vida e da ado das plantas, em razéo de sua capacidade de modificar irreversivelmente a natureza dessa parte de nosso mundo a um sé tempo a mais vulnerdvel ea mais importante: a atmosfera. Desse ponto de vista, a instalagao dos viventes sobre a crosta terres- tre coincidiu com a transformagao radical do espago aéreo que engloba e inclui essa crosta: gragas a inva- sao das plantas, a atmosfera pOde mudar de forma duradoura sua composi¢ao interna e se tornar o pri- meiro ambiente de todos os seres vivos., As plantas demonstram assim que nosso mundo nfo é, ou nao é verdadeiramente, a parte externa da massa sdlida do planeta, mas sim a circulagdo de corpos gasosos, flui- dos, sélidos que chamamos de atmosfera. 0 mundo s6 6 um lugar de vida gragas 4 atmosfera, e s6 6 esse lugar de vida no interior do ciclo metafisico de trans- formagao da matéria que a atmosfera encarna e ao Mesmo tempo torna possivel. As plantas sao as jardineiras de nosso mundo eo objeto de sua jardinagem nao é exclusivamente o solo, a crosta terrestre, mas também o céu: a primeira e mais originaria forma de agricultura nao 6 a que se faz na terra, mas a agricultura celeste que as plan- tas fazem em nossa atmosfera. Ou, para dizé-lo de maneira mais direta, a paisagem é sempre uma figura do céu, nao uma configuragao particular da superficie do planeta. A paisagem é um ritmo do sopro. E sempre uma configuragao climatolégica e meteorolégica, nao uma construcao geométrica ou geoldgica. A paisagem origindria 6 o clima: a terra e sua forma superficial so apenas seus acidentes. Pensar o mundo como um jardim cujos jardineiros so as préprias plantas significa, antes de tudo, reivin- dicar seu estatuto de artefato: o préprio mundo nada tem de puramente natural, no sentido de que a natu- reza seria a priori, dada de antemao; ele se acha, ao contrario, sobre o limiar de indistingado entre natureza e cultura. Ele 6 um produto cultural dos seres vivos, e no somente a condigao de possibilidade da vida. Gaia é assim a filha de Flora, ou melhor, a filha bastarda e hibrida de todos os seus habitantes. A cosmologia é um tratado de jardinagem: um manual sobre as inime- Tas maneiras de agenciar os seres mais dispares e de harmonizar seus ritmos e seus sopros. Inversamente, ajardinagem nao é uma atividade, mas 0 ser e a forma das préprias plantas. As plantas nos obrigam, portanto, a reformar a cosmologia tradicional em ao menos trés pontos. Em primeiro lugar, elas nos mostram que 0 principio que engendra o mundo é um elemento intramundano, nao um superobjeto que seria anterior e exterior ao mundo: sé hd mundo porque sua causa e sua conse- quéncia, sua origem e sua expressdo, esto contidas uma na outra. Logo, nao pode haver reflexdo sobre um objeto mundano que jd nao seja reflexao cosmolégica. Em segundo lugar, a origem do mundo nao deve ser buscada num lugar longinquo, separado no espago e 10 no tempo: a origem do mundo esta em todo lugar, e existe em cada instante. Ela nao é um acontecimento singular, um big bang, mas um processo constante- mente em curso (a fotossintese). O mundo comega sempre no meio, e nao para nunca de comegar. Nao ha distincao possivel entre cosmologia e cosmogonia ou, melhor dizendo, néo ha sendo uma cosmogonia multipla e perpétua. Em terceiro lugar, toda forma de vida é também forma do mundo, que ela a um s6 tempo produz e contempla. E por isso que, para observar o mundo, nao precisamos de um ponto de vista, e sim de um ponto de vida: 0 universo vive, ele é, em toda escala, um produto do vivente, e 6 somente a0 vivé-lo que se poderé explica-lo, nao o inverso. A vida tende a devir mundo para si mesma e para os outros: todo vivente é ao mesmo tempo origem de seu mundo e mundo de um outro vivente. Deste ponto de vista, a andlise da vida das plantas deveria levar 4 superacao do conceito de meio. Como jardineiras universais do cosmos, as plan- tas podem também ser vistas como o paradigma do ut vivente enquanto tal. No lugar de uma tradigao mile- nar de especulagao zoocéntrica que sempre fez do animal seu centro e seu modelo canGnico, a filosofia por vir deverd instaurar uma metafisica de inspiragao botdnica que redescubra na vida vegetal o ponto de indiferenca entre microcosmo e macrocosmo, entre individuo e mundo, entre natureza e técnica. E s6 dessa maneira que ela poderd renovar seus proble- mas e seus enigmas. O que significa fazer o mundo a partir de seu interior e nao o colocando a frente ou acima de si? Qual 6 a forma do mundo que se da a ver No corpo do prdprio vivente? Tais sao as questdes que as plantas, enquanto jardineiras cosmicas e cosmo- Onicas, permitem a um s6 tempo colocar e resolver. Acosmogonia nao é 0 que precede a constituigaéo dos viventes, mas 0 ato de vida de cada um deles. Nessa coincidéncia vertiginosa entre estar-no-mundo e fazer-o-mundo, ao menos dois aspectos merecem ser analisados. Em primeiro lugar, ex parte subiecti, tra- ta-se de compreender como se estrutura anat6mica, metabdlica e metafisicamente um vivente que nao 12 pode mais distinguir em seu sopro a cosmogonia e a somatogénese. Em segundo lugar, ex parte objecti, se tratard de compreender qual é a forma de um mundo que nao é mais concebivel como a casa universal onde todas as espécies podem coabitar harmoniosamente (0 oikos da ecologia), mas sim a matéria a partir da qual toda espécie busca produzir seu préprio jardim, seu proprio corpo. Aideia de que o mundo é um fato vegetal é bem mais antiga do que se pensa. Ela coincide com a ideia segundo a qual o nascimento do mundo se confunde com o nascimento de seus habitantes, e que séo antes os seres vivos que engendram o mundo do queo inverso. Essa intuigéo alimentou uma tradigao especu- lativa que vai do estoicismo antigo 4 genética moderna, que pode ser condensada na férmula grega logos spermatikos, a razdo seminal: a razao tem a forma de um grao, e, reciprocamente, os graos, as sementes, 13 so a encarnagao paradigmatica do que chamamos razao. Assim, se queremos compreender o que 6 a razdo, nao devemos considerar 0 cérebro ou o sistema Nervoso, mas 0 6rgao ou o estdgio da reprodugao. Por que essa doutrina é tao importante? Em que sentido podemos considerar a planta ou, melhor dizendo, o grao, como seu suporte epistémico privilegiado? Para compreender essa doutrina, 6 preciso compreender o alvo de sua polémica: a doutrina cosmogénica plat6- nica enunciada no Timeu. Para demonstrar a raciona- lidade do mundo, Platao pressupGe que este foi criado tecnicamente: ele é 0 produto de um técnico, de um artesao, de um demiurgo, para falar grego, capaz de transformar a matéria cadtica em forma. Se, de acordo com a explicagao platénica, racionalidade e técnica coincidem, trés elementos sao entao necessdrios para que se compreenda a tecnologia: a matéria (que muda perpetuamente e representa 0 objeto da tecnologia), as ideias (eternas), mas também um terceiro sujeito (0 intelecto divino ou humano), que retine os dois pri- meiros elementos. A doutrina do logos spermatikos 14 constitui uma resposta polémica 4 doutrina da criagdo platénica. Segundo ela, a razdo é como uma semente, pois todo grado é relagdo intima e imanente entre matéria e forma, sem exigir um técnico, um artesdo que conecte os dois elementos. Contra a criagao como acontecimento Gnico ocupando um lugar particular na linha do tempo, ou, melhor dizendo, anterior ao tempo, os estoicos afirmam a ideia de uma génese continua, de um processo interminavel e insepardvel da propria histéria do mundo. Em vez de pensar em ideias atem- porais e transcendentes, modelos das coisas terres- tres que nao passam de cépias, os estoicos afirmam que a génese se opera sempre através das sementes: forcas existem no mundo, na matéria, e nao sao, por- tanto, exteriores ao processo do devir como pode ser um sujeito, um técnico, um artesdao. A racionalidade nao é transcendente ao devir, ela é seu proprio ser. No gra, de fato, o sujeito, 0 objeto, o meio e o processo do devir (de gerago) coincidem na mesma porgao de matéria. Os graéos sdo a prova de que é impossivel, em qualquer processo de geragao, distinguir, de um 15 ponto de vista ontolégico e material, sujeito, objeto, processo, meio, mas também percepgao. E eis aqui 0 ponto mais importante, por duas razGes. Se, no modelo platénico, o demiurgo primeiro percebe, e em seguida segue, as formas que est4o em seu exterior, No caso do grao a percepcao da forma coincide, nao s6 com a forma, mas também com 0 processo do devir, com o préprio grao: trata-se de um tipo de percepgao imanente a forma, néo de uma percepgao que toma como objetos realidades existentes no exterior. 0 ato de percebere o ato de fazer coincidem, na medida em que a prépria forma do grao conduze é a matéria con- duzida em diregao a forma. Ora, pensar a razdo como fato vegetal e nao mais de acordo com o modelo da vida animal significa, antes de mais nada, fazer coincidir matéria e razdo. A semente exprime uma racionalidade que néo se opée € nao pode se opor a um corpo, que nao é da ordem da consciéncia ou do eu, nem mesmo de uma cons- ciéncia puramente sensivel. Ela 6 antes a forma ima- nente que define e torna possivel seu desenvolvimento. 16 Tornando-se todo érgao fato espiritual e l6gico, a racio- nalidade ndo pode mais ser identificada a um Gnico 6rgao (0 cérebro, o sistema nervoso). Ela se estende a totalidade dos drgaos, a totalidade do corpo: a racio- nalidade do mundo nao pode e nao deve ser pensada em termos de consciéncia, mas como algo que anima de dentro toda poreao da matéria. Dizer, portanto, que a génese do mundo nao se parece com o ato de um técnico (com um gesto téc- nico qualquer de um sujeito sobre uma matéria sepa- rada), mas coma vida de uma planta (pois asemente é precisamente a vida da planta em sua totalidade, sua existéncia concebida como um destino) significa antes de mais nada negar que haja uma distin¢éo material e formal entre a vida de um individuo e a génese do mundo. As plantas permitem pensar essa coincidén- cia: gragas a elas, o mundo se revela como em vias de se engendrar em cada um dos viventes que parece alojar e sustentar. Além disso, esse modelo sugere que para ver o mundo, para vé-lo devir e dirigir seu devir, nao 6 preciso 7 estar numa posigao de exterioridade temporal e espa- cial. E ao se engendrar a si mesma que a semente (logo a planta) pode ver o mundo. A visdo de sie a viséo do mundo coincidem, e toda planta é precisamente a invengdo de um corpo que permite fazer coincidir a contemplacao de si com a contemplacao do mundo. No seio dessa longa tradigéo se produziu, em um certo momento, uma variagado inesperada: a subs- tituigao da semente e do grdo pela flor como para- digma da existéncia vegetal e assim da racionalidade do mundo. Essa mudanga de paradigma, que teve uma origem romantica, conheceu diferentes versées. Entre elas, uma das mais interessantes se encontra em Lorenz Oken, aluno genial de Schelling e Goethe e autor, dentre outros, de um livro magnifico sobre 0 universo como continuagao do sistema sensivel. De fato, Oken defende uma concepgdo bastante proxima da doutrina que acaba de ser resumida, concepgao 18 segundo a qual existe, entre o sistema nervoso interno € 0 mundo, uma continuidade fisica e cdsmica. Em seu monumental Manual de filosofia natural, Lorenz Oken escreve: Se alguém quiser comparar - para além da relagdo sexual - a flor com um 6rgao animal, s6 poderd fazé-lo com 0 6rgao nervoso mais importante. A flor 60 cérebro das plantas, aquilo que corresponde a luz, que perma- nece aqui no plano do sexo. Pode-se dizer que o que 60 sexo para a planta é 0 cérebro para o animal, ou que o cérebro 6 0 sexo do animal. Nao se trata aqui simplesmente de generalizar a antiga tese estoica segundo a qual a razdo (logos) tem a forma da semente; Oken, ao contrdrio, se engaja numa forma de radicalizagaéo que permite compreender um outro aspecto da identificagao entre mundo e existén- cia vegetal. 1, Lorenz Oken, Lehrbuch der Naturphilosophie. Zurique: Schulthe8, 1843, p.218. 19 Em primeiro lugar, enquanto instrumento de repro- dugdo sexual, portanto enquanto espago de elabo- ragdo, de produgdo e de engendramento de novas identidades individuais e especificas, a flor se revela como dispositivo que reverte a ldgica do organismo individual: ela é 0 umbral derradeiro em que 0 indivi- duo ea espécie se abrem aos possiveis da mutacgao, da alteragdo, da morte. No seio da flor, as totalida- des do organismo, bem como as da espécie, sao a um sé tempo decompostas e recompostas através do processo meiético. Nisso, as flores sao um lugar fora da totalidade, além de toda e qualquer compa- tibilidade individualizante. E isso que esta expresso em sua quantidade: se os animais superiores dis- pdem de 6rgaos reprodutivos estaveis e Gnicos, a planta, de sua parte, constrdi em massas inconté- veis seus apéndices de reprodugao, para logo depois se livrar deles. Esse excesso - que, por sua vez, causa um outro, 0 das legides de polinizadores (animados ou inani- mados) - dificulta a redugdo da sexualidade vegetal 20 a uma simples estratégia de duplicagao de si. Neste sentido, pensar a razao como flor (ou a flor como encarnagao da razdo) acaba modificando profunda- mente a ideia de razdo, de racionalidade. Uma flor nao é propriamente um 6rgao: é um agregado de diferentes 6rgdos modificados para tornar possivel @ reprodugao. O que explica também sua natureza efémera e instavel. Imaginemos ter de nossos 6rgaos sexuais uma experiéncia similar aquela que temos de nossos cabelos, de nossas unhas ou, pior ainda, de uma espinha ou um furdnculo. Imaginemos que seu crescimento seja sazonal, ligado 4 atmosfera exte- rior. Imaginemos o que significaria para nds o fato de devermos, para nos reproduzir, construir a cada vez novos 6rgéos sexuais, sem estar seguros de sua perenidade. A flor encarna de modo flagrante o cardater principal da vida vegetal: a impossibilidade de deter o crescimento, a impossibilidade de passar a um estado diferente daquele do work in progress, de estar em construcao. A tradigao goethiana e a da 24 morfologia biolégica atual (penso em James White)? definem esse cardter pela oposigdo entre Gestalt e Bildung, forma e formagao. A ndo-separagao entre reprodugao e crescimento é precisamente a radicali- Zacao desse carater eminentemente poiético, criativo, antipratico da existéncia vegetal. Se é impossivel distinguir reprodugdo e crescimento, entaéo nado se pode mais distinguir artificialidade e naturalidade: 0 corpo nao é jamais puramente natural, 6 também sempre um construto. Inversamente, a construgao, a poiésis, perde seu carater artificial, pois nunca ultra- passa os contornos, as fronteiras do corpo individual. Viver significa sempre se construir e se reconstruir. Impossivel se limitar a habitar 0 mundo: seria pre- ciso ter um corpo j4 completo, acabado, construido. As plantas nao habitam o mundo; imersas nele, no param de transformé-lo. Habitar significa fazer uso de sua propria forma, mas, para uma planta, a dimens€o do uso é estritamente impossivel. Viver 6 2. James White, “The plant as a metapopulation’, Annual Review of Ecol- ogy, Evolution, and Systematics, 10, 1979, p. 109-145. 22 expandir-se, transformar a luz, 0 didxido de carbono € a gua em corpo préprio, fazer do mundo aéreo sua forma prépria, sem nunca “comer”. Pode-se dizer que a vida das plantas é um ato constante e incessante de autodesign. Como nao ha uso possivel, como nao ha forma de vida, a vida 6 sempre formagao de sie da matéria. O ser é design: nao forma, mas produgao de formas. E isso o que, me parece, poderia fornecer a significagaéo metafisica da centralidade dos meris- temas, tecido celular especializado no crescimento, préprio do corpo e da anatomia dos vegetais. Numa vida em que seré design, nenhuma vala pode ser aberta entre praxis e poiésis, produgdo e agao. O corpo esté sempre por construir, nunca é um dado, nunca um esquema. A flor exprime a quintesséncia dessa coincidéncia entre agdo e produgao. Ali onde o homem néo faz senao agir, pois ele néo deve se construir, a flor desdobra 0 espago em que toda agado é a um s6 tempo produgao e reprodugao. O primado do crescimento e da produgao sobre a forma implica também que a existéncia vegetal ndo 6, em sentido 23 estrito, uma existéncia org&nica, mas metaorganica: uma planta nunca é definida por seus érgaos, ela é uma maquina de construir érgdos apropriados a fun- Ges especificas: ela nao 6 um corpo dado, mas um ato de bricolagem somatica. A vida como ato inces- sante de bricolagem somatica, eis ai o que é existir para uma planta. Mas algo ha ainda mais interessante. Se tomamos ao pé da letra a coincidéncia em questao e a levamos até suas Ultimas consequéncias, a flor aparece como 0 contrdrio, o exato oposto da consciéncia. A cons- ciéncia é um instrumento de interiorizagao do mundo: ela miniaturiza, por assim dizer, 0 que se passa no exterior, visando controlar, permitir uma decisao, uma tomada de poder sobre 0 espago, mas sobretudo sobre o futuro. Uma flor é a construgao de um espago enganoso, uma pura aparéncia que nao serve para interiorizar o mundo circundante nem para controla-lo, mas para produzir uma pura superficie de conjungao, de agenciamento. E certo que se pode enxergar ai, a 24 exemplo de Francis Hallé,? um mecanismo de manipu- lagao. Mas numa flor hd uma exposigao suplementar a exterioridade, ao acaso, a decisdo dos outros. Mais do que enxergar af a inteligéncia da manipulacao, eu pro- poria concebé-la como a intelig€ncia (bem superior) do abandono e da confianga no mundo, como uma inteligéncia inclinada a delegar aos outros a deciséo quanto a seu prdprio destino. De fato, na flor, a reprodugao deixa de ser um instru- mento a servigo do narcisismo individual ou especifico para se tornar ecologia da condensag@o e da mistura, pois 0 individuo, se ainda podemos chamé-lo assim, faz mundo, e 0 mundo inteiro da a luz esse novo indi- viduo. A relacdo entre individuos da mesma espécie esta mediada pela relagdo com outros individuos de diferentes reinos, géneros ou espécies. Nao somente nao ha nada de privado ou de oculto no ato sexual, mas esse ato exige precisamente passar pelo mundo: a sexualidade 6 0 que ha de mais mundanoe césmico. 3. Francis Hallé, Eloge de la plante: pour une nouvelle biologie. Paris: Seuil, 1999. 25 O encontro com o outro é sempre necessariamente unio com o mundo em sua diversidade de formas, de estatutos, de substancias. Nao sendo simplesmente possivel se encerrar numa identidade de género, de espécie ou de reino, a sexualidade aparece como pra- tica originaria de descontracao da identidade. Desta perspectiva, a flor apresenta igualmente uma estrutura exatamente oposta a dos instrumen- tos. Segundo a definig&o classica de Ernst Kapp,‘ 0 instrumento é a projegdo para o exterior do corpo de uma estrutura organica. E a teoria classica da Organsprojektion, que vé no martelo uma projegao do punho, nos 6culos, a projegao dos olhos, no compu- tador, a projegao do cérebro. Essa ‘extroflexdo’ serve para prolongar a agao do sujeito no mundo, para que se aproprie deste e decida sobre o destino dos objetos ao redor em fungao de suas metas. A flor, ao contrdrio, nao projeta seu organismo para o exterior, mas constrdi como que um terreno ou um espago de 4. Emst Kapp. Principes d'une philosophie de la technique, trad. do alemao porG. Chamayou. Paris: J. Vrin, 2007. 26 aterrissagem para que o mundo possa nele se estabe- lecer. Acima de tudo, esse nao-6rgao, esse ndo-instru- mento pGe seu destino (sexual e evolutivo) nas maose na vida dos outros. Na obra que se tornou um cldssico, Shumaker, Walkup e Beck propdem a definicao tradicional de instrumentagdo no mundo vivo: Uso externo de um objeto circundante destacado ou manejavel, visando modificar mais eficazmente a forma, a posigdo ou a condigdo de um outro objeto, de um outro organismo ou do préprio usuario, enquanto este segura e manipula diretamente a ferramenta durante ou antes de sua utilizagao, e € responsavel pela orientacao eficaz da ferramenta.° O contraste é contundente. Tudo se passa como sea flor abrisse caminho para uma dimensio anti-instrumental, 5. Robert W. Shumaker, Kristina R. Walkup, Benjamin B. Beck, Animal tool behavior. the use and manufacture of tools by animals. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2011, p. 4. 27 antiorganica. Acima de tudo, a flor orienta de uma maneira bem particular a relagao do individuo com 0 mundo circundante, ou, melhor dizendo, com as espé- cies circundantes. Com ela se desdobra algo como uma agricultura invertida, abertura na qual outras espécies de devir devém agricultoras ou, melhor, geneticistas, decidindo quem se mescla com quem. Donna Haraway, com seus conceitos de becoming with e de companion species, e Natasha Myers, com a nogao de involutory momentum,’ ja franquearam o caminho para pensar essa abertura interespecifica que se manifesta com tanta forga nas plantas e nas flores. Mas resta ainda na flor, parece-me, alguma coisa a pensar. No fundo, a estrutura organica da flor rompe a um s6 tempo com a ideia de selegao sexual No sentido de Darwin, e com a ideia de selegao natural 6. Donna Haraway, The companion species manifesto: dogs, people and significant otherness. Chicago: Prickly Paradigm Press, 2003; When species meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007. 7. Carla Hustak e Natasha Myers, “Involuntionary momentum: Affective ecologies and the sciences of plant/insect encounters’, Differences: a Joumal of Feminist Cultural Studies, 23,2012, . 74-118. 28 em geral. A ideia de selegao sexual, tal como Darwina formulou, é desfeita na medida em que a competigéo se opera entre seres de diferentes espécies. Acima de tudo, a prépria ideia de selegao natural se vé igual- mente desfeita, pois o polinizador (0 inseto) ocupa aqui a mesma posi¢ao que 0 agricultor. Ele opera uma selecao artificial ou, mais exatamente, pde um termo a oposigao entre selegGes artificial e natural.2A agricultura e a histéria natural nao estdo em oposigao. 0 homem nao é 0 Gnico a influenciar e a determinar 0 destino das espécies. Toda espécie, provavelmente, decide, a sua maneira, sobre o destino evolutivo das outras. 0 que chamamos de evolugao nao é nada mais que um tipo de agricultura interespecifica generali- zada, um intercultivo césmico - que nao visa necessa- riamente ao Util. O mundo, em sua totalidade, se torna assim uma realidade puramente relacional em que 8. Sobre as interagdes entre plantas e insetos, ver Nicolas Sauvion, Paul-André Calatayud, Denis Théry, Frédéric Marion-Poll. interactions insectes-plantes. Versailles: Editions QUAE, 2013. 29 cada espécie é 0 territério agroecolégico® da outra ou das outras: todo ser é jardineiro de outras espécies, e jardim para outras mais, e o que chamamos de mundo nao é senao a relagao de cultivo reciproco (jamais definido puramente pela légica da utilidade, mas tam- pouco pela da gratuidade). Nao ha ecologia possivel, pois todo ecossistema resulta de uma pratica e de um engajamento agricolas das outras espécies. Nao ha espago selvagem (nem espécies selvagens), pois tudo est cultivado e estarno mundo significa ser objeto da jardinagem dos outros. Estamos condenados a nunca sair do jardim do mundo. Tradu¢do Felipe Augusto Vicari de Carli Revisdo Fernando Schelbe 9. Sobre a agroecologia, ver Miguel A. Altieri, Agroecology: the scientific basis of alternative agriculture. Boulder: Westview Press, 1987. 30 Emmanuele Coccla foi aluno de um colégio agricola italiano dos 14 aos 19 anos. Passava o tempo lendo livros de botanica, patologia vegetal, quimica agraria CCE CORSE MOC M lessees ele(0) na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em PUM OUR ES CRU (ecm Olde Um ov) vida das plantas e A vida sensivel, ambos publicados PeeWee Clee LTC east] 8toz cunt 310°S900|peT-U

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