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seooane Ose snsnsc ' Martha Medeiros ‘martha.medeiros@oglobo.com.br Trés dias sem celular Consta que o escritor francés Honoré de Balzac nao tinha pela fotografia muita considera¢ao. Dizia ele: “Todos os cor- os fisicos so compostos, na sua totalidade, por infinitas camadas fantasmagé- ricas, uma em cima da outra. A fotografia tem. opoderde retirar cada camada espectral e de ‘transferi-la para o re- ‘trato” Ou seja, a cada clique, morremos um pouco. Li também em al- gum lugar (minhas desculpas ao autor desconhecido que fi- card sem crédito) que fotografar é tiraro tem- po do proprio tempo, engaiolar 0 momento, eternizar 0 homem mortal em arquivo. Isso explica, em par- te, ofato de tantas pes. soas, tribos € povos nao gostarem de ser fotografados. Quando nao conseguem evitar, fecham o rosto: é a re- sisténcia possivel, so- negar 0 sorriso. Por respeitar aqueles que acreditam em roubo de alma, costumo pe- dirpermissio antes de fotografar desconheci- dos, mas s6 pensei se- riamente neste assunto quando fiquel trés dias sem celular. No inicio, achei que me sentiria amputada, mas aconte- eu 0 contrério: reintegracao de posse. Posse do meu olhar, dda minha presenca integra. De repente, eu estava nos luga- res com este tinico fim: estar e ponto — nao a fim de gerar contetido para abastecer redes sociais, Assisti a uma pales- tra e nao fotografei o palestrante, estive num bairro desco- “No inicio, achei que me sentiria amputada, mas aconteceu o contrario: reintegracao de posse. Posse do meu olhar, da minha presenga integra” nhecido e nao fotografei seus prédios, almocei com uma amiga e nao bati uma selfie nossa, e isso nao causou nenhu- ma sensacao de incompletude ou solidao, a0 contratio, lem- brei como as citcunstincias¢ experiéneias do dia se tomam, ‘mais perceptiveis quando nao temos um dispositivo eletr nico ao alcance da mao. Fa mesma regra que o teatro impoe: apreenda o que est vendo eescu- tando, absorva o en- cantamento, porque logo tudo ira desapa- recer € s6 0 seu senti- mento ird ficar. © que eterniza — qualquer coisa — 6 a impressio causada. Obvio que € muito bom ter fotos das pes ssoas que amamos, das comemoracées, das vviagens, da infancia, de nossos ritos de pas. sagem. E igualmente importante é a foto- srafla como expressio artista e/ou jornalis- tica, o registro de um segundo que trans- cende o banal, que desperta reflexdes, es panto, deslumbra- mento, releituras. Mas fotografar tudo € todos, a toda hora, sofregamente, 6 “tirar © tempo do proprio tempo’, é nao estar mais ali como prota- gonista da Historia, ¢ sim como um free lan- cer com um contrato tempordrio a cumprir. De certa forma, estamos todos a servigo do celular, nosso patrao. ‘Afanaram meu patrao e nao fiquei desempregada, con- tinuel usando a vida. E nem deu tempo de comentar aqui sobre esses trés dias em que passei, também, sem escutar ‘8 apitos do WhatsApp. Ainda que pareca inacreditavel, sobrevive-se. - plo —

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