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CAPITULO DOIS OLEGADO DE DESCARTES O que é, exactamente, a mente? Esta é uma daquelas questées com que os fildsofos e os no-filésofos se tém debatido ao longo da histéria documentada. De acordo com alguns, as mentes sao entidades espirituais que residem temporariamente nos corpos, neles entrando durante a concepcdo ou nascimento e partindo na hora da morte. De facto, a morte é simplesmente o abandono do corpo pelo espirito. Outros imaginam que a relagdo entre mentes e corpos é mais intima. As mentes, afirmam eles, nao séo entidades. As mentes parecem-se com punhos ou bainhas: uma mente est presente quando 0 corpo esté organizado de um modo particular, e esta ausente no caso contrario. Ha quem pense ainda que as mentes sao de facto entidades, entidades fisicas: as mentes sao apenas os cérebros. O propésito deste capitulo é comegar com a classificagdo de algumas destas afirmagées rivais e assim esclarecer exactamente o que esta em jogo, quando perguntamos o que é a mente. Veremos que as questdes raramente se encontram claramente divididas. Isto nao constitui nenhuma surpresa. Os enigmas postos pela investigagéio da mente sao dos mais profundos da filosofia. No fim, poderemos verificar que nenhuma das solugées oferecidas ¢ inteiramente satisfa- toria. Mesmo que assim seja, pelo menos teremos uma melhor com- Ppreensao dos atractivos e dos riscos inerentes aos diversos modos de considerar a mente. 29 Dito isto, pretendo obstar a uma linha de resposta natural. Uma atitude muito comum em relagao 4 filosofia é a de que os filésofos nunca respondem as perguntas, mas simplesmente se limitam a po-las. Os cientistas, pelo contrario, estaéo no negécio de dar respostas. Perguntas cujas respostas escapam 4 ciéncia, perguntas que parecem cientificamente irrespondiveis, sao muitas vezes desconsideradas como sendo «meramente filos6ficas». Basta um pequeno passo para que esta fragil descrigao de filosofia descambe para a nogao de que tudo o que diga respeito a filosofia nao tem verdades estabelecidas: cada opiniao é tao boa como qualquer outra. Esta concep¢ao da filosofia e das suas relagGes com a ciéncia é inadequada e ingénua. O que escapa 4 ciéncia nao tem necessaria- mente de deixar de ser estabelecido. O estado do universo imediata- mente antes e imediatamente depois do Big Bang, por exemplo, pode permanecer indefinidamente no desconhecido. E evidente que estamos separados desse estado. Seria absurdo concluir, contudo, que esse estado nunca existiu, ou que qualquer assercao sobre o seu caracter é tao boa como qualquer outra. De forma semelhante, pelo facto de nao existir acordo entre os fildsofos sobre o estatuto da mente, nao se segue dai que a mente nao tem um estatuto definitivo. Como veremos nos capitulos seguintes, as questes emergentes na filosofia da mente raramente sao susceptiveis de investigacao empirica directa. Uma questaéo empirica pode ser decidida, pelo menos em principio, pela experimentagao. Embora os resultados experimentais contrariem algumas concepgées da mente, as descrigdes tradicionais da mente mais competentes sao consistentes com todas as provas empiricas que possuimos actualmente ou possamos vir a possuir no futuro. A questao filosofica é¢ saber 0 que podemos fazer com estas provas. E, aqui, o nosso guia nao pode ser a ciéncia. A ciéncia fornece um fragil enquadramento para a representagao das descobertas empiricas, mas nenhum principio estritamente cientifico nos diz como interpretar ou dar sentido a essas descobertas. Para tal, temos de nos virar para 0 «senso comum» e para a filosofia. Isto nao significa que tenhamos de avangar com teorias especificamente filosdficas, ao classificar as provas empiricas. Em vez disso, a actividade de classificar as descobertas cientificas e de as reconciliar com a experiéncia comum, e com a constelagao de crengas que adoptamos com base noutras descobertas, é uma espécie de filosofar: os filésofos nao sao os tinicos fildsofos. Os fil6sofos reconhecidos sao apenas as pessoas que tornam o seu filosofar autoconsciente. 30 DUALISMO CARTESIANO Comecemos com a concep¢ao da mente avangada por René Des- cartes (1596-1650). Descartes sustentou que mentes e corpos séo «substancias» de espécies diferentes que, no caso dos seres humanos vivos, se encontram em intima relagdo. Este dualismo de substancias (subsequentemente rotulado de dualismo cartesiano) é actualmente considerado pela maior parte dos filésofos e cientistas interessados pela mente como sendo inapelavelmente confuso. Até muito recen- temente, supunha-se que a origem do conhecido problema mente-corpo decorria da aceitagao da imagem cartesiana: uma solucdo do problema podia passar pela rejeigao do dualismo. Como veremos, este diagnds- tico nao deu o resultado esperado. Nao obstante, podemos comegar a avaliagéo do problema mente-corpo pela indagacao da abordagem cartesiana da mente. Como preliminar, salientemos algumas diferengas de prima facie entre objectos e estados mentais e materiais. Em primeiro lugar, os objectos materiais sao espaciais; ocupam um lugar no espago e apre- sentam dimensées espaciais. Os objectos mentais - pensamentos e sensag6es, por exemplo - aparentemente sao nao-espaciais. Qual ¢ 0 tamanho e a forma do seu desejo por um hamburguer? Esta a pensar na triangular de Viena? Estas questdes parecem nao fazer sentido. Pode pensar nas sensagdes — pelo menos, em algumas delas — como tendo localizagdes espaciais. Uma dor no seu dedo grande do pé esquerdo esta, no fim de contas, no seu dedo grande do pé esquerdo. (Significa isto que é formada-pelo-dedo-grande-do-pé?) Mas sera isto correcto? Atente no fenémeno da «dor fantasma», um fendmeno conhecido de Descartes e dos seus contemporaneos. Os amputados muitas vezes parecem experimentar dores nos seus membros ampu- tados. Mesmo que o seu dedo grande do pé tivesse sido amputado, poderia continuar a experimentar exactamente 0 mesmo género de dor palpitante que experimentou antes da amputacao, e esta dor parecer- -Ihe-ia localizar-se no extremo do seu pé anteriormente ocupado pelo dedo grande. Isto sugere que, embora experimentemos dores e outras sensagdes como ocorrendo em varias localizagdes do corpo, nao se segue que experiéncias de dor ocorram nessas localizagées. De acordo com Descartes, podemos dizer que uma experiéncia de dor-no-dedo- -do-pé-esquerdo é um tipo de experiéncia, diferindo em qualidade da experiéncia de dor-no-dedo-do-pé-direito. Nao ha qualquer razao para 31 pensar - e, de facto, nenhuma razao para nao pensar — que essas experiéncias tém de se localizar onde sao sentidas. Os estados mentais, portanto, ao contrario dos estados materiais, parecem ser distintamente nao-espaciais. Esta é a conclusdo de Descartes a todos os niveis. Uma segunda e importante diferenca entre © mental e o material é qualitativa. Pense nas qualidades da sua experiéncia de uma dor no dedo grande do pé. Pode achar que é dificil falar dessas qualidades, mas isso nao impede que esteja ciente delas. Agora, pergunte-se a si mesmo se poderia alguma vez encontrar essas qualidades num objecto material. Um neurocientista que faga uma observacao do seu sistema nervoso enquanto experimenta a dor nao observara nada qualitativamente parecido com a sua dor. De facto, esta possibilidade parece nao fazer qualquer sentido. O ponto pode ser resumido como se segue. As qualidades das nossas experiéncias conscientes parecem nao ter nada a ver com as qualidades dos objectos materiais - de facto, parecem ser diferentes das qualidades de qualquer objecto material concebivel. A conclusdo natural parece ser que as qualidades mentais nao sao qualidades dos objectos materiais; as qualidades mentais diferem em espécie das qualidades materiais. Uma terceira distingéo entre o mental e 0 material é em parte epistemoldgica — isto é, diz respeito ao caracter do nosso conhecimento de tais coisas. O conhecimento que o leitor tem dos seus proprios estados mentais é directo e indiscutivel de um modo que o seu conhecimento dos objectos materiais nao é. Os fildsofos, por vezes, dizem que temos um «acesso privilegiado» aos nossos proprios estados mentais. O proprio Descartes acreditava que o seu conhecimento era incorrigivel: os pensamentos acerca dos seus actuais estados mentais nao podiam ser falsos. Ele acreditava, também, que os contetidos das nossas proprias mentes nos eram transparentes. Por conseguinte, se © leitor estiver num estado mental particular, entao sabe que esta nesse estado; e se acredita que esta num estado mental particular, entdo esta nesse estado. A nogao cartesiana de que a mente é, deste modo, transparente perturba-nos, actualmente, por ser excessiva. Freud ha muito que nos convenceu de que muita coisa na mente pode ser escondida. Mais recentemente, cientistas cognitivos afirmaram que a maior parte dos estados mentais e suas operagées sao inacessiveis A consciéncia. Podemos aceitar tudo isto sem, contudo, descartar a visao central de Descartes. O acesso que temos aos nossos préprios estados mentais é az, distintivo, senado mesmo infalivel. O leitor alimenta pensamentos e experimenta dores autoconscientemente. Eu s6 posso inferir a ocor- réncia em si desses acontecimentos. O seu acesso aos seus proprios estados mentais é directo e nao mediatizado, 0 meu acesso aos seus estados mentais é invariavelmente indirecto. Podemos dizer que os estados mentais séo «privados». $6 sdo «directamente observaveis» pela pessoa (ou criatura) que os tem; os estranhos sé podem ‘inferi-los dos seus efeitos materiais. O leitor pode dizer-me que esta a pensar, ou eu posso depreendé-lo devido a expressdo do seu rosto. Os neurocientistas podem eventualmente ser capazes de inferir 0 que esta a pensar, ao observarem padrées de actividades neurolégicas. As nossas observacGes da sua vida mental, contudo, nunca sao directas do modo como ela lhe aparece a si. A situacgao é muito diferente no que respeita a objectos materiais e seus estados. Se os itens mentais sao necessariamente privados, as coisas materiais séo necessariamente publicas. Quanto a um objecto material, ou ao estado de um objecto material, se o leitor estiver em posicdo de o observar, entdéo mais ninguém adequadamente situado podera observa-lo assumindo a sua posigado de observacao. A assi- metria do acesso que encontramos no caso da mente esta inteiramente ausente. Mais uma vez, isto sugere que as mentes e os corpos materiais sdo objectos de espécie muito diferente. E Descartes oferece uma explicagao para esta diferenga: mentes e corpos materiais sao diferentes pécies de substancia. Uma substancia mental possui propriedades ido possuidas por qualquer substancia material, e uma substancia material possui propriedades que nenhuma substancia mental possui. De facto, de acordo com Descartes, nao existe qualquer sobreposicao nas propriedades possuidas pelas substancias mental e material. Antes de atender a perspectiva de Descartes com mais pormenor, fagamos um esquema das trés diferencas entre o mental e o material que acabamos de isolar (ver figura 2.1). Em capitulos posteriores, voltaremos a debater estas distincdes. De momento, contudo, vamos aceita-las tal como estéo e anotar o que se segue. Corpos Materiais Mentes Espacial N&o-espacial Qualidades materiais Qualidades mentais distintivas Pubblico Privado FIGURA 2.1 SUBSTANCIAS, ATRIBUTOS E MODOS Descartes supde que o mundo é feito de substancias. Uma substancia nao é, como o termo pode sugerir, um tipo de coisa como a gua, ou o carvao ou a tinta. Descartes, seguindo a tradicao, considera as substancias como coisas ou entidades individuais. A secretaria sobre a qual escrevo agora é, neste sentido tradicional, uma substancia, tal como a caneta que agarro com a mio, a arvore na parte de fora da minha janela, e os ninhos dos passaros nos seus ramos. Estas substancias sao complexas: sAo compostas de outras substancias, os seus componentes. A minha secretaria é feita de pecas de madeira, organizadas de um modo particular. Cada uma destas pecas de madeira (e os parafusos que as mantém juntas) é uma substancia por direito préprio. Da mesma forma, a caneta, a arvore e 0 passaro sao todos feitos de componentes que sao em si mesmos substancias. E naturalmente que estas substancias sao elas mesmas feitas de substancias distintas. (Uma questao natural a pér é se cada substancia é feita de componentes e cada um destes é uma substancia distinta. Isto parece improvavel. Voltaremos a esta questao no capitulo seis.) As substancias, note-se, sao individuais - «particulares», na giria dos fildsofos -, sendo distintas de classes ou géneros de coisa. Este passaro e esta arvore sdo substancias, mas a classe dos passaros é uma classe, nao uma substancia; faia e carvalho sao espécies de substancia, nao substancias. As substancias contrastam, por um lado, com individuos nao substanciais e, por outro, com propriedades. Individuos nao substan- ciais incluem itens «concretos», como eventos, e entidades «abstractas», como conjuntos e ntimeros. Um evento (uma galinha a atravessar a estrada, por exemplo) pode ser considerado como um particular datado, nao recorrente. A este respeito, os eventos parecem-se com substancias. Tal como duas ervilhas exactamente semelhantes numa vagem sao, nao obstante, ervilhas diferentes, a sua leitura desta frase agora é um evento, e a sua leitura da mesma frase amanha é outro evento diferente. Conquanto os eventos nao sejam substancias, decorrem mudangas substanciais. Além disso, os eventos sao parti- culares concretos tao diferentes de entidades abstractas como 0 conjunto de vacas ou o numero dois. As propriedades sao tidas pelas substancias. Pense numa subs- tancia comum, uma bola de bilhar vermelha em particular. Distin- guimos a vermelhidao da bola da sua esfericidade e massa. Ao fazer 34 isto, estamos a considerar trés propriedades da bola. Mas também podemos distinguir a bola, como possuidora destas propriedades, das suas propriedades. Na concep¢o que associo a Descartes, esta bola é uma substancia que possui um certo nttmero de propriedades, incluindo a vermelhidao, a esfericidade e uma massa particular. Propriedades e substancias sao inseparaveis. Nao podemos desemba- racar-nos das propriedades de um objecto e deixar a mera substancia. Nem as propriedades podem flutuar livres de substncias. Alguns filésofos argumentaram que as substancias nao passam de coleccdes ou pacotes de propriedades. Contudo, nao é esta a perspectiva de Descartes e nao ¢ uma concepgao que eu gostaria de defender. Falei de substancias e propriedades. Descartes, de facto, fala nao de propriedades, mas de «atributos» e «modos». Um atributo é 0 que forna uma substancia o género de substancia que ela é. Uma substan- cia material (ou fisica: farei uso de ambos os termos) é uma substancia que possui 0 atributo da extensao. A extensdo 6, grosso modo, a espacialidade. De modo que uma substancia material é aquela que ocupa uma posigao no espago e possui uma forma e tamanho Particulares. A forma e tamanho possuido pelas substancias materiais sao modos, formas de ser extenso. O que comummente consideramos como sendo propriedades nos objectos materiais da vida quotidiana sao, para Descartes, modos da extensao. De acordo com esta concepgao, a esfericidade da bola de bilhar é um modo de extensao; a sua esfericidade é a maneira como possui forma. E quanto a cor da bola? Aqui, Descartes afirma que a expe- riéncia visual distintiva que temos quando olhamos para uma bola de bilhar vermelha nao se parece com a caracteristica da bola que produz esta experiéncia em nds. Essa caracteristica pode ser a textura da superficie da bola, uma textura que reflecte a luz de uma maneira particular. A textura — a disposicdo das microparticulas compondo a superficie de um objecto - é um modo de extensao. A METAFISICA DO DUALISMO Descartes pée a funcionar a distingao atributo-modo supondo que cada género de substancia possui um atributo distintivo. Uma subs- tancia material é uma substancia que possui o atributo da extensao. Uma substancia mental, em contraste, é uma substancia possuindo um atributo muito diferente, o atributo «pensamento». Descartes da ao 35 termo «pensamento» um sentido mais amplo do que actualmente. Qualquer coisa que na vida didria considerariamos um estado mental —uma sensacao, uma imagem, uma emogao, uma crenga, um. desejo — Descartes vé como um modo de pensamento, um modo de pensar". Agora ja podemos comegar a compreender o dualismo cartesiano. Os corpos sao substancias materiais possuindo 0 atributo da extensao. As mentes também sio substancias, mas nao substancias materiais. As mentes possuem 0 atributo do pensamento. E preciso mais um passo para admitir o dualismo. Cada substancia possui exactamente um atributo. Se uma substancia possui o atributo da extensao (e, assim, é extenso de maneiras particulares), no pode possuir o atributo do pensamento. Se uma substancia possui 0 atributo do pensamento (e, assim, possui varios modos de pensamento: sentimentos, imagens, crengas), nao pode possuir o atributo da extensao. O pensamento e a extensao excluem-se mutuamente um ao outro. Segue-se que nenhuma substAncia extensa pensa, nem nenhuma substancia pensante é extensa. As mentes séo substancias pensantes e os corpos sao substancias extensas, de modo que as mentes sao diferentes dos corpos. Descartes adopta esta conclusao, mas nao nega que mentes e corpos esto, como parecem estar de modo evidente, intimamente relacio- nados. Pense num momento, como faz Descartes, na mente como Eu ou Si mesmo. O leitor esté em relagéo de um modo especialmente intimo com um corpo particular, 0 seu corpo. Quando o seu dedo se aproxima demasiado perto da chama de uma vela, sente dor. Quando o meu dedo se aproxima da chama, em comparagao, 0 leitor nao sente dor. Quando decide levantar-se e andar pelo quarto, é 0 seu corpo que se move, nao o meu. E certo que 0 leitor pode controlar o meu corpo. Pode pedir-me para me levantar e andar pelo quarto, ou ordenar-me que faca isso apontando-me uma pistola, ou amarrar uma corda 4 volta de mim e puxar-me pelo quarto. Ao fazer tudo isto, contudo, as suas decisées afectam o meu corpo apenas indirectamente, apenas através de um movimento do seu corpo. Os movimentos do seu proprio corpo (da sua lingua e cordas vocais, ou dos seus membros) parecem, em comparagao, estar amplamente sob o seu controlo directo e volun- tario. 1 Noutro aspecto, a concepgao de pensamento de Descartes é mais limitada que nossa. Descartes parece nao contar com a possibilidade de pensamentos incons- cientes. 36 Facamos uma breve pausa para uma revisao. Descartes considera que o mundo consiste em dois tipos de substancias: substancias materiais e substancias mentais. As substancias materiais sdo extensas e nao pensantes; as substancias mentais pensam, mas nao tém extensdo. Cada substancia mental sustenta uma relacao especialmente intima com uma substancia material particular. (Ou, de qualquer do, ¢ esta a disposi¢éo com que estamos mais familiarizados. acordo com Descartes, é possivel que uma substancia mental persista depois do desvanecimento da substancia material a que estava intimamente relacionada: o Eu pode sobreviver a morte do corpo.) As substancias mentais e materiais, embora completamente dife- tentes, interagem causalmente. O seu corpo responde aos seus planos e decisdes. A sua mente recebe sinais do corpo na forma de expe- tiéncias sensoriais que lhe fornecem informacao sobre o estado do seu corpo e, indirectamente, sobre 0 estado do mundo exterior ao corpo. O mundo causalmente afecta a sua mente por meio dos seus sentidos: os seus olhos, ouvidos, nariz e 0 seu sentido do tacto. A imagem cartesiana tem uma apresentacao simples. Imagine que se senta sobre uma tacha colocada na sua cadeira por um brincalhao malicioso. O facto de se sentar numa tacha (um evento material envolvendo um par de objectos materiais, a tacha e o seu corpo) origina uma distinta sensagaéo de dor (um evento mental). Esta sensagdo ou sentimento, por seu lado, gera outro evento mental, um desejo de dar um salto para cima, e este desejo causa um apropriado movimento corporal de salto. (Ver figura 2.2.) ABE Eventos (_Deselo de saltar) mentais _para HB aR Eventos { [ Sentar sobre Saltar para materiais a tacha cima FIGURA 2.2 O dualismo cartesiano ajusta-se perfeitamente ao senso comum. ‘Vemo-nos a nés mesmos como possuindo corpos, mas sentimo-nos muito diferentes dos nossos corpos, pelo menos no seguinte sentido: podemos evidentemente conceber que os nossos corpos mudam 37 dramaticamente, ou deixam mesmo de existir, enquanto nds conti- nuamos a existir. E verdade que falamos de nds mesmos como tendo mentes - e, nessa questo, falamos em mudar as nossas mentes. Mas embora possa imaginar 0 seu corpo a ser destruido enquanto o leitor permanece, é menos claro que possa de maneira coerente imaginar a sua sobrevivéncia apés o desaparecimento da sua mente ou do O leitor pode imaginar-se a si ou 4 sua mente deixarem de enquanto 0 corpo continua a existir (talvez numa forma vegetat mas isso é outra questao. Além disso, pode ser capaz de imaginar em que troca de corpo. Esta ocorréncia é bastante comum em. cientifica. Mas parece que nao faz sentido pressupor que se pode trocar de mentes ou de Eu. Mudar de mente nao é uma questao de substituir uma mente por outra, mas uma questdo de mudanga das suas crengas. Quando um Scrooge” purificado se torna «uma nova pessoa», ele nao troca de Eu, mas altera as suas atitudes. Além de se ajustar bem a concepgao do senso comum de nds mesmos, 0 dualismo cartesiano também promete reconciliar a nossa imagem cientifica do mundo e a experiéncia comum. A ciéncia diz- -nos — ou, de qualquer modo, a fisica diz-nos — que 0 mundo consiste em particulas descoloridas e emaranhadas que formam objectos de tamanho médio. A nossa experiéncia do mundo é muito diferente. Asua experiéncia visual da bola de bilhar vermelha nao é a experiéncia de um emaranhado esférico descolorido. Os sons sao vibragSes num meio (ar ou Agua, por exemplo). Contudo, a sua experiéncia de uma representacdo de uma abertura de Offenbach difere qualitativamente de tudo o que a ciéncia possa divisar nas suas investigages do mundo fisico. O dualismo da sentido a esta evidente bifurcacao. Os corpos materiais néo passam de objectos descoloridos interagindo no espaco. Essas interacc6es, contudo, produzem na mente experiéncias com qualidades que diferem das qualidades de qualquer objecto material. As qualidades das nossas experiéncias (no fundo, modos de pensamento) parecem diferir dramaticamente das qualidades dos corpos materiais (modos de extensao). Todavia, apesar destas diferencas evidentes, Descartes sustenta que as qualidades experien- ciais correspondem a qualidades materiais. O resultado é uma corre- lag&o ou isomorfismo entre as nossas experiéncias do mundo e o mundo. A presenca deste isomorfismo possibilita que as qualidades das experiéncias sirvam de sinais das qualidades do mundo material. * Scrooge é a personagem avarenta atormentada por um fantasma em Conto de Natal, de Charles Dickens. (N. T:) 38 INTERACCAO MENTE-CORPO Parece, pois, de acordo com Descartes, que estamos em posigao de explicar as notérias diferengas qualitativas entre as nossas experiéncias © os objectos experimentados, e a nossa capacidade em «interpretar» qualidades do mundo a partir das qualidades das nossas experiéncias. Além disso, podemos adoptar a visdo quotidiana de nés mesmos como estando albergada nos nossos corpos, mas sendo de certo modo diferente deles. Tudo isto est4 muito bem. Infelizmente, 0 dualismo cartesiano exige um prego que poucos fildsofos estéo dispostos a pagar. A dificuldade tornou-se imediatamente dbvia para os contempo- raneos de Descartes, e ele mesmo compreendeu-a energicamente. Eum ponto central na concepcao de Descartes a ideia de que as mentes e0s BOEpOS interagem causalmente. Mas, se as mentes e os corpos sao espécies diferentes de substancias, é dificil ver como pode essa interacc4o causal ocorrer. Mentes ou Eus, decerto se recordar o leitor, sao substancias imateriais possuindo o atributo do pensamento, mas a que falta 0 atributo da extensao. Os corpos materiais, em comparacio, sao extensos, mas falta-Ihes o pensamento. Como podiam entidades _ de espécies tao diferentes afectar-se uma a outra causalmente? Como podia um evento numa mente imaterial alterar um objecto material? Como podia um evento fisico engendrar uma mudanga numa mente material? A distancia metafisica que Descartes pée entre as mentes e corpos materiais parece impedir a sua interac¢ao causal. Um cartesiano poderia justificar-se aqui e afirmar que as relagdes ais entre uma substancia mental e outra material sao sui generis — é,a causalidade mental-material nao é uma espécie de causalidade 0 as outras que encontramos no mundo material, mas é Unica. estratégia atira-nos directamente da frigideira para a fogueira. ciéncia moderna baseia-se na assunc4o de que o mundo material um sistema causalmente fechado. Isto significa, grosso modo, que juer evento no mundo material é causado por algum outro evento rial (se for causado por um evento) e os seus efeitos séo apenas itos materiais. (O parentético cavaleiro permite-nos deixar espaco para a possibilidade de eventos nao causados.) Podemos reformular esta ideia em termos de explanagao: uma explanagao que mencione todas as causas materiais de um evento material é uma epenaee) causal completa do evento. Upiversidade Fed et “at QO raw 39 Riplioteca Central A nogéo de que o mundo material é causalmente fechado rela- ciona-se com a nossa concepgao de leis naturais. As leis naturais governam as relacSes entre os eventos materiais. Essas leis diferem das leis estabelecidas pelos corpos legislativos. Uma lei natural nao tem excepgées: nao pode ser violada da mesma maneira que uma lei de transito pode ser violada. Um objecto que se comporta de forma estranha ou inesperada, apesar de tudo, conforma-se perfeitamente com a lei natural. A prova de que o comportamento de um objecto viola uma dada lei natural é prova de que aquilo que pensavamos ser uma lei nao é. Regressemos agora a suposigao de Descartes de que as mentes sdo substancias néo-materiais que podem iniciar eventos no mundo material. A suposi¢ao obriga-nos a abandonar a ideia de que o mundo material é causalmente autocontido. Para se constatar esta questao, imagine-se como podera funcionar a interaccdo entre as substancias mental e material. Suponha que a sua mente actua sobre 0 seu corpo por instigagao de mudangas numa certa regio do cérebro. O proprio Descartes acreditava que as mentes estavam ligadas aos corpos através da glandula pineal, uma pequena estrutura perto do centro do cérebro. Alteragdes minimas nos movimentos das particulas na glandula pineal irradiavam através do corpo por meio do sistema nervoso, produzindo contracgdes musculares e, finalmente, movimentos corporais. Supo- nhamos que Descartes tinha razao. A glandula pineal é feita de micro- particulas que operam de acordo com as leis fisicas. Se a sua mente vai iniciar uma sequéncia causal na glandula pineal, entao, tera de afectar de algum modo o comportamento desses microconstituintes. A sua interferéncia com o comportamento dos microconstituintes, contudo, parece exigir a violacaéo das leis que os governam, uma impossibilidade se considerarmos que 0 mundo material é causal- mente autocontido e as leis da natureza sao inviolaveis. Pode imaginar que a mente poderia agir sobre 0 corpo sem violar as leis que governam os seus constituintes materiais. Talvez, como 0 sugere a teoria quantica, as leis que governam estes constituintes sejam, em ultima instancia, de caracter probabilistico ou estatistico. Imagine que um certo estado, S,, de um microssistema é a causa de o sistema mudar subsequentemente para o estado S,, mas s6 com uma certa probabilidade: ha 35 por cento de probabilidades de um micros- sistema particular no estado S, passar para o estado S,. Agora, imagine que o leitor — uma substancia mental — decide acenar a um amigo. Inicia uma mudanga particular no seu corpo ao fazer, no caso vertente, 40 com que um microssistema particular S, na sua glandula pineal mude para o estado S,. (Podemos imaginar que, quando os constituintes desses estados «alinham» desta maneira, 0 resultado é um sinal enviado para o braco direito que causa uma série de contracgées musculares e em ultima instancia um movimento de aceno com o seu braco.) Desta forma, o leitor, uma substancia mental, parece ser capaz de se sentir no mundo material sem qualquer sentimento de violacao das leis que governain os corpos materiais. Considere agora uma sequéncia de langamentos ao ar de uma moeda equilibrada, que caia com a cara para cima cerca de metade das vezes. Quando atira a moeda numa ocasiao particular, 0 leitor estala o polegar de uma forma caracteristica ao mandar a moeda rodopiar pelo ar numa trajectéria que a leva eventualmente a cair no chao, com a cara para cima. Podemos supor que ha uma base inteiramente determinista para que a moeda tenha caido como aconteceu nesta ocasiao: dadas as caracteristicas da moeda, o caracter do movimento do seu polegar, a localizagao e a composicao da super- ficie em que a moeda cai, e assim por diante, a moeda esta condi- cionada a cair de cara para cima. E claro que ignoramos todos estes factores. S6 podemos adivinhar como caira a moeda em cada langa- mento. Exprimimos a nossa ignorancia dizendo que, em cada ocasido dada, a probabilidade de que a moeda caia com a cara para cima é de 50 por cento. Imagine agora que um estranho intervém no sistema por acaso, focando uma forte radiagao electromagnética sobre a moeda, assegurando que ela caia de cara para cima. O estranho tem de fazer isto de modo pouco frequente e de maneira que seja estatisticamente indetectavel: quando avaliamos a frequéncia relativa com que a moeda cai com a cara para cima numa longa série de langamentos, essa frequéncia aproxima-se dos 50 por cento. O estranho, entao, intervém, mas de modo a nao alterar a verosimilhanga estatistica com que a moeda cairé com a cara para cima sempre que é lancada, e a nao revelar-se a si mesmo quando nés examinamos o comportamento da moeda. Talvez seja assim que a mente afecta o corpo. Este exemplo falha o alvo. Interpreta mal a natureza da causalidade estatistica ou probabilistica, na medida em que se podera pensar que ela se aplica aos constituintes basicos do mundo material. Se as pro- babilidades estado inscritas nas leis fundamentais da natureza, estas probabilidades nao sao o resultado da nossa ignorancia em face da complexidade dos sistemas fisicos nem exprimem elas apenas 41 frequéncias estatisticas. As probabilidades estéo, como sempre esti- veram, instituidas nas entidades fundamentais. No caso imaginario que estamos a considerar, é uma caracteristica intrinseca, ou seja, instituida internamente, de um microssistema S, que é provavel em 35 por cento de vezes passar para S,. E consistente com a nossa lei imaginaria de que a frequéncia relativa de transicGes de S, para S, é muito menor ou muito maior do que 35 por cento. De facto, é possivel, embora seja altamente improvavel, que nenhum sistema S, passe para 0 estado S,. Se imaginarmos uma forca de natureza externa intervindo numa transaccao governada por uma lei estatistica, entéo devemos imaginar que a forca altera um pouco as probabilidades que valem para o sistema fisico em questao: se as probabilidades nao forem afectadas, entao, é dificil compreender qual a importancia da alegada interven- ¢ao. Mas se estas probabilidades forem instituidas no interior do sistema, entdo a sua alteracio teria a importancia de uma «violagao» da lei fisica. Para apreender este ponto, é importante ver que os tipos de leis estatisticas que se julga governarem os constituintes elementares do mundo excluem as chamadas «varidveis ocultas». Isto 6, o cardcter probabilistico destas leis nao se deve a «interferéncia» de qualquer factor cuja natureza possamos ignorar. Mais propriamente, é irredutivel, inapagavel e fundado na natureza das préprias entidades elementares. Se a mente intervém na operagio do mundo material de uma forma que seja estatisticamente indetectavel, nao se segue dai que nao tenha ocorrido qualquer «violagao» da lei fisica. Uma intervengao genuina exigiria que as mentes afectassem de algum modo a propensao dos sistemas S, particulares em passarem para o estado on E isso exigiria alterages no cardcter dos sistemas S,, alteragdes cuja ocorréncia constituiriam «violagdes» da lei natural. Outra possibilidade seria a seguinte: embora os eventos mentais nao alterem S,, podem, em certas ocasides, impedir que S, se manifeste ao passar para S, - do modo como se pode impedir que um jarrao fragil seja estilhagado quando ¢ atingido por um martelo, embrulhando o jarrao num involucro de bolhas*. «Bloqueios» selectivos deste género, se forem adequadamente refinados e estrategicamente colocados, podem explicar os efeitos dos pensamentos em acontecimentos * O «invélucro de bolhas» refere-se, por exemplo, as folhas plastificadas constitufdas por pequenas bolhas de ar que amortecem os impactos e usadas para envolver produtos delicados, como garrafas, pecas informaticas, etc. (N. T)) 42 corporais. Mas dificilmente vemos como poderia isto funcionar sem violar a nossa concepgao do mundo material como sendo causalmente autocontido. (Consideraremos as propensGes — ou, como prefiro, disposigdes ~ e as manifestagdes com mais pormenor nos capitulos subsequentes.) Naturalmente que é possivel que as mentes imateriais intervenham no mundo material. E possivel que o mundo material nao seja, de facto, causalmente fechado e que a lei natural esteja sujeita a contravencao. O argumento contra 0 dualismo cartesiano nao 6 que as mentes nao intervém, e portanto 0 dualismo tem de ser falso. Esse argumento enfraqueceria a causa contra Descartes. O argumento, preferencial- mente, funda-se em consideragGes de plausibilidade. Se aceitamos o dualismo cartesiano, entao temos de supor que as mentes imateriais, por vezes, intervém na operacionalidade do mundo material. Isto entra em conflito com uma conjectura fundamental da ciéncia moderna, uma conjectura que temos todos os motivos para aceitar. Na medida em que consideramos implausivel a intervencado de mentes nao materiais no mundo material, deveremos considerar o dualismo cartesiano como implausivel. Um argumento deste género raramente é conclusivo. Os argu- mentos metafisicos raramente 0 so. Podemos perguntar, contudo, quem 6 que aqui suporta o énus da prova. O dualista cartesiano oferece-nos uma explicagéo da mente que se adequa, de forma maravilhosa, ao que acreditamos do nosso mundo e da nossa experiéncia quotidiana. A explicagaéo tem a desvantagem de implicar algumas coisas que temos poucas razées para acreditar e muitas raz6es para duvidar. Cabe aos cartesianos, portanto, mostrar que as expli- cagées rivais da mente sofrem igualmente de defeitos muito sérios. Estaremos em melhor posigao para avaliar as perspectivas cartesianas quando examinarmos as alternativas. MODIFICANDO O DUALISMO CARTESIANO A dificuldade central de Descartes anda em torno da interacgao mente-corpo. Mentes e corpos, evidentemente, interagem causalmente. As decisées do leitor conduzem-no a agir e, portanto, a mover 0 corpo de determinadas formas. Acontecimentos no seu corpo resultam em experiéncias sensoriais conscientes. Como tivemos ocasiao de verificar, 43 contudo, é dificil ver como essas interacgdes podem ocorrer se as mentes sao substancias nao materiais e os corpos materiais. Talvez possamos modificar 0 dualismo cartesiano de modo a preservar o que nele parece estar correcto. Se o problema diz respeito a interaccdo entre substancias materiais e nao materiais, o que aconteceria se simplesmente deixassemos cair a exigéncia de interaccdo causal? Ao fazer isso, passamos para uma doutrina chamada «paralelismo psicofisico» ou, para abreviar, «paralelismo». Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) talvez seja 0 proponente mais conhecido do paralelismo, embora néo me va concentrar nesta perspectiva de Leibniz, mas numa perspectiva alternativa mais simples. PARALELISMO Um proponente do paralelismo aceita a divisao cartesiana do mundo em substancias materiais extensas e substAncias mentais nao extensas. Contudo, os paralelistas negam que as substancias mentais e materiais interajam causalmente. Parece que esta consideracao contraria totalmente a experiéncia comum. Decerto que os aconteci- mentos da sua mente parecem afectar o seu corpo, e através dele, o mundo material para além do corpo. Também parece claro que os eventos e objectos do mundo tém impacto na sua mente por via dos seus efeitos no corpo. Voltemos a considerar outra vez a imagem referida, de se sentar sobre uma tacha posta por um brincalhao. Senta-se sobre a tacha, experimenta uma sensacao aguda e dolorosa, reconhece a fonte do seu desconforto e salta da cadeira. Esta sequéncia de eventos inclui eventos tanto mentais como materiais que sao, segundo todas as aparéncias, causalmente relacionados. Um defensor do paralelismo deve dizer que tudo isto nao passa de uma ilusdo. A imagem é capturada pela figura 2.3 (comparar com a figura 2.2). var ae Sentir ™, __, /Desejo dé dar um, dor ~/ \, salto para cima_* Sentar sobre Saltar a tacha para cima FIGURA 2.3 44 As mentes, afirmam os paralelistas, parecem interagir com 0 mundo material, mas a aparéncia no passa disso: uma aparéncia. As sequéncias de eventos que envolvem mentes, eventos mentais e sequéncias de eventos materiais ocorrem paralelamente. O facto de se sentar sobre a tacha (um evento material) precede a sua sensagaéo de dor (um evento mental). Sem dtivida que 0 leitor tem a clara impressao de que a primeira trouxe consigo a ultima. Neste ponto, contudo, esta enganado. De modo Semelhante, quando decide saltar para cima e subsequentemente salta, parece-Ihe que a sua decisao causou 0 salto, mas isso nao aconteceu. Os eventos na mente sistematicamente co- -variam com os eventos do mundo material, mas nao ha conexées causais entre os eventos mentais e materiais. Sabemos que A’s podem co-variar com B’s sem que seja verdade que A’s causem B's, Contudo, se a co-variagdo for extensiva e sistematica, procuramos uma explicagao causal: talvez A’s e B’s sejam eles préprios causados por C’s. O meu carro Yugo vai-se abaixo inevitavelmente a seguir a um ruido estridente sob a capota do motor. A paragem do motor co-varia com 0 ruido, mas nao é causado por ele. Pode acontecer que seja alguma anomalia mecanica que produz tanto 9 ruido como a paragem do motor. Qual é a explicacdo que um paralelista oferece para o facto de as sequéncias de eventos mentais co-variarem sistematica e universal- mente com sequéncias de eventos materiais? Uma possibilidade é que isto nao passa de um facto bruto do nosso mundo, algo que nao contém qualquer explicagao adicional. Contudo, esta resposta é pouco satisfatoria. No contexto, parece ter sido arranjada ad hoc de forma suspeita. Qualquer explicagaéo acaba por ter um desfecho qualquer, como é natural. Mas a nogao de que o padrao delicado da co-variagéo do mental e do material é incapaz de fornecer uma explicagao adicional parece ser motivada, neste caso, apenas pelo desejo de preservar a teoria. Parece ser 0 caso aqui, na medida em que se afigura disponivel uma explicagéo adequada: os eventos mentais co-variam com os eventos materiais porque as substancias mentais e as subst&ncias materiais interagem causalmente. Para que nao haja dividas, esta explicagao exige que abandonemos o paralelismo, mas este problema é do paralelista e nao nosso. Outra defesa do paralelismo é a invocagao de Deus. Deus intervém. para assegurar que as sequéncias mentais e materiais ocorram parale- lamente. Pode estar a pensar que a invocacao de Deus para explicar a co-variagao dos eventos mentais e materiais tem, obviamente, poucas “S——piversidae* 27a 00 Pate Riblioteca Central perspectivas. Deus nao é uma substancia material. Contudo, de acordo com Descartes, Deus também nao é uma substancia mental: Deus é uma substancia de uma terceira espécie. Mas se assim é, porque seria mais facil compreender o modo como Deus pode afectar o curso dos eventos materiais do que compreender 0 modo como as substancias finitas 0 podem fazer? Todas as dificuldades associadas a interac¢’o cartesiana parecem ressurgir aqui mais uma vez. Nao é€ preciso ser-se simpatizante do paralelismo para ver que esta querela é enganadora. Os paralelistas nao precisam de reconhecer que Deus ajusta continuamente o curso dos eventos mentais e materiais. Deus pode criar, preferencialmente, de uma vez por todas, um mundo contendo substancias tanto materiais, sujeitas a lei natural inalterAvel, como substancias mentais, sujeitas, provavelmente, as leis psicolégicas. O mundo esta delineado de tal forma, que os eventos no dominio mental co-variam com os eventos no dominio material. O modelo é 0 do relojoeiro que fabrica um par de relégios perfeitamente sincroni- zados, cujos movimentos co-variam, nao porque estejam causalmente ligados, mas porque os ajustamentos internos num dos relégios reflectem perfeitamente os ajustamentos internos no outro. Mesmo assim, a invocagio de Deus dos paralelistas nao parece ser uma grande melhoria quanto ao facto bruto referido. Na verdade, a invocagao de Deus parece ser apenas uma forma de dizer que a co- -variagaéo mental-material é um facto bruto. Se tivéssemos bases independentes para acreditar que Deus actua da forma exigida pelo paralelismo, entdo a questao seria diferente. Na auséncia dessa base independente, a invocagao de Deus é uma invocacao a um deus ex machina, uma solugao imaginada para um problema de outro modo intratavel. OCASIONALISMO Uma variante do paralelismo, o «ocasionalismo», atribui a Deus um papel mais activo no mundo. O ocasionalismo aparece muitas vezes associado aos escritos de Nicholas Malebranche (1638-1715). A minha anilise vai centrar-se no ocasionalismo enquanto doutrina filoséfica, e omitira subtilezas historicas. O paralelismo sugere que os sistemas operam independentemente, mas lado a lado, da mesma forma que um automével na auto-estrada pode lancar a sua sombra contra um comboio. O ocasionalismo torna Deus activamente responsdvel pela 46 existéncia e cardcter das sequéncias de eventos. Quando o leitor se senta sobre uma tacha, Deus deseja a ocorréncia de uma sensacao de dor na sua mente (ver figura 2.4). A actuagao de Deus neste exemplo parece-se com a causalidade, mas é considerada diferente dela. DEUS Neos PBN / -Desejode { pees para cima ees Sentar-se Saltar na tacha para cima FIGURA 2.4 E dificil considerar 0 ocasionalismo como um avanco em relacao ao paralelismo, e também é dificil considerd-lo como uma melhoria da versao original do dualismo de Descartes. O ponto central para Descartes era a dificuldade de compreender como substancias mentais nao extensas podiam interagir causalmente com substancias materiais extensas. O paralelismo e 0 ocasionalismo aceitam a dificuldade e tentam resolvé-la concedendo que as substancias mentais e materiais nao podem interagir causalmente. A estratégia parece no ter futuro. Afigura-se que se limita a andar as voltas com 0 problema original sem nunca o resolver. CAUSALIDADE E provavel que esta acusacio seja injusta. O ocasionalismo é motivado, em parte, por uma tese geral sobre a causalidade. Vamos supor, como faz a maior parte dos filésofos, que a causalidade é uma relacao existente entre dois eventos: um evento, a causa, poe em accdo outro evento, o efeito. Quando o leitor bate na bola de bilhar com um taco, um evento, pée em acco o rolar da bolha de bilhar numa direcgao particular, um segundo evento. A dificuldade ¢ compreender qual a importancia exacta deste «p6r em accdo». Comummente, distinguimos casos em que um evento simplesmente segue-se a, ou 47 acompanha, outro, daqueles em que um evento causalmente precisa de outro. Mas qual é a base para esta distingao? Este é 0 problema do nexo causal: quando os eventos estado causalmente ligados, qual é 0 caracter da ligacao? Uma possibilidade é que nao ha ligacdes genuinas entre eventos, apenas meras sequéncias de eventos. Consideramos que dois eventos estabelecem uma relacao causal, ndo porque observemos que 0 primeiro ponha em ac¢ao ou necessite do segundo, mas porque a sequéncia de eventos parece-se com sequéncias que ja observamos anteriormente. Uma perspectiva deste género esta associada a David Hume (1711-1776). Observe que, embora seja tentador, seria incorrecto descrever esta perspectiva como negando o relacionamento causal dos eventos. Preferencialmente, a ideia sublinha que as relagées causais particulares nao passam disto: uma sequéncia causal é simplesmente uma instancia com alguma regularidade. Ao bater na bola de bilhar, agora (um evento particular e datado), causa o seu rolamento através da mesa (outro evento particular); sé por acaso é verdade que, sempre que um evento de um género semelhante ao primeiro ocorre, um evento de um género semelhante ao segundo também ocorre. Dificilmente se pode considerar Hume um ocasionalista, mas as suas importantes observacées sobre a causalidade suportam a hipdtese ocasionalista. (De facto, Malebranche, 0 ocasionalista mais conhecido, ja tinha avangado com argumentos «humeanos» muito antes do proprio Hume o ter feito.) Se as relagdes causais apenas se reduzem a simples regularidades, a co-variagao de eventos particulares, entdo é um erro considerar a auséncia de um mecanismo ou ligagao causal entre eventos mentais e eventos materiais como um problema especial. Pelo contrario, essas ligagSes nao existem, nem sequer entre os eventos do mundo material. Muitas vezes, encontramo-nos sob a impressaio de que observamos conexées entre eventos. Mas, de acordo com Hume, isto nao passa de uma «projeccao» da nossa conviccao de que, quando um evento de uma dada espécie ocorre (a pancada numa bola de bilhar com um taco), segue-se um evento de outra espécie (a movimentagao da bola de uma forma particular). E esta conviccdo aparece em nds depois de termos sido condicionados por observacées anteriores de sequéncias de eventos semelhantes. Se as relacGes causais nado passam de regularidades entre tipos de eventos, entdo nao existe nada de especialmente problematico ou misterioso quanto a eventos mentais causando eventos materiais. 48 O aparecimento de um problema decorre da assungao tacita de que as relagdes causais exigem a intervengao de um mecanismo ou de uma ligagao. Nao nos podemos surpreender se essas ligacdes nao forem descobertas. Elas também estao ausentes das sequéncias comuns de eventos materiais. As imagens cartesiana e paralelista da causalidade mental sao, desta perspectiva, inextrincaveis. E 0 que acontece ao ocasionalismo? Os ocasionalistas podem argumentar que, na auséncia de um nexo causal, um mecanismo de conexao ou ligagao entre causas e efeitos, precisamos de uma explicacao para o padrao de regularidades entre as espécies de eventos que encontramos no mundo. Estas regularidades abrangem sequéncias de eventos puramente materiais, como também sequéncias que envolvem componentes tanto mentais como materiais. Quando um evento de uma espécie é invariavelmente seguido por um evento de outra espécie, isto ndo acontece porque os eventos da primeira espécie necessitem de algum modo ou ponham em acgao os eventos da segunda espécie. Os eventos sao ocorréncias discretas; nenhum evento _ tem poder de induzir outro evento. Como podemos, entao, explicar 0 facto dbvio de que as sequéncias de eventos estejam estreitamente estruturadas, reguladas e ordenadas? A sua ordenacio é capturada pelas teorias cientificas, que postulam as leis naturais, e esta assimilada nas generalizac6es causais quotidianas. Neste ponto, 0 ocasionalista invoca Deus. Se os eventos sao discretos, episddios integralmente autocontidos, a ocorréncia de um evento nao pode, por si, explicar a ocorréncia de qualquer evento subsequente. A ocorréncia de qualquer evento é, num sentido notavel, milagroso. Deus, por assim dizer, cria todos os eventos ex nihilo — do nada. Uma forma de se pensar numa perspectiva deste género consiste em imaginar que 0 mundo esta dividido em estadios ou segmentos temporarios momentaneos (ver figura 2.5). Mundo Mundo Mundo Mundo em t, em t, em t, em t, FIGURA 2.5 Em alternativa, poderiamos pensar 0 mundo ao longo do tempo como compreendendo uma sequéncia de mundos, cada mundo dife- tindo ligeiramente do seu predecessor um pouco a maneira como cada 49 —— imagem de um filme difere da imagem que a precede. No nosso exemplo da bola de bilhar, a pancada do taco na bola pertence a um segmento temporal (um mundo), e o subsequente rolamento da bola pertence a um segmento temporal subsequente (um mundo diferente). Cada segmento na sequéncia que configura 0 que nds comummente consideramos ser 0 nosso mundo tem de ser criado ex nihilo. E amplamente aceite que nenhum evento no mundo pode explicar a existéncia do mundo (um mundo que inclua esse evento como uma parte de si). E se aquilo a que chamamos mundo é mais adequada- mente pensado como sendo uma sequéncia de mundos metafisica- mente independentes, entao segue-se que nenhum evento em qualquer mundo na sequéncia pode explicar qualquer evento num mundo subsequente. Parece que temos de fazer uma escolha. Podiamos aceitar a existéncia de cada mundo na sequéncia como um facto bruto e inexplicavel; ou podiamos explicar a existéncia da sequéncia ao postular um Deus benevolente. A vontade de Deus renova cada mundo na sequéncia de mundos de acordo com um plano divino. Podemos ficar satisfeitos, dado que a sequéncia preservara a espécie de ordem complexa que encontramos quando nos empenhamos na pesquisa cientifica, porque acreditamos que é proprio da natureza de Deus agir assim (figura 2.6). Mundo Mundo Mundo Mundo em t, em t, em t, em t, FIGURA 2.6 Um ocasionalista pode sublinhar que uma coisa é um cientista admitir que a existéncia de um mundo tnico é simplesmente um facto bruto, um facto para o qual nao ha explicagdo. Mas uma questo completamente diferente é considerar que cada membro de uma sequéncia padronizada de mundos ou estadios de mundos metafisi- camente independentes é um facto bruto. Se nenhum evento em qual- quer estadio explica a ocorréncia desse estadio ou a ocorréncia de qualquer evento em qualquer outro estadio, entéo, parece que qual- quer facto nao passa de um simples facto bruto. 50 Suponha que considera esta concluséo sem apelo nem agravo, e suponha que aceita a concepgao do mundo do ocasionalista como uma sequéncia de estadios momentaneos. Parece entao estar perante uma escolha. Ou todos os factos sao factos brutos, inexplicados e inexpli- caveis (figura 2.5), ou Deus existe e da uma explicagaéo para que as coisas sejam o que sao (figura 2.6). Neste caso, ao contrario do caso do paralelismo, Deus é oferecido como uma explicagao plausivel de uma situacao que seria de outro modo desconcertante. Naturalmente que o leitor pode questionar a abordagem que o ocasionalista faz da causalidade, e questionar ainda a nogao de que o mundo é uma sequéncia metafisicamente independente de segméntos momentaneos. Mas, entao, cabe-lhe a si fornecer uma alternativa plausivel. Se mais nao fosse, estas reflexdes tornam claro que nao podemos ter a esperanga de avaliar afirmagées sobre as mentes e o mundo mate- tial sem primeiro resolver uma multidao de temas metafisicos funda- mentais. Qualquer que seja a plausibilidade do ocasionalismo, este repousa numa concep¢ao metafisica particular da causalidade. Se os ocasionalistas tiverem razao quanto a causalidade (e também quanto as substancias mental e material), entéo encontram-se numa posicado relativamente forte. Mas, antes de avaliar 0 ramo ocasionalista do dualismo, precisaremos de constituir a nossa propria maneira de apreender as opgGes metafisicas. IDEALISMO O paralelismo e 0 ocasionalismo sustentam que a nossa impressao de que as mentes e os corpos estao causalmente ligados é uma ilusao. O leitor decide-se a acenar e subsequentemente acena. Parece-Ihe que a sua decisao ocasionou 0 aceno. Mas nao é isso 0 que se passa — ou, se assim for, tal s6 acontece porque Deus assegura que, no segmento de mundo subsequente ao segmento de mundo em que 0 leitor decide acenar, acena. Suponha, contudo, que vamos ainda mais longe, suponha que aceitamos nao sé que a impressao da interacgao causal mente-corpo seja uma ilusdo, como o proprio mundo material seja uma ilusdo! Temos experiéncias que deveriamos descrever como experiéncias de objectos e eventos materiais existindo fora das nossas mentes, mas tudo isto nao passa, no fundo, de sonhos congeminados e prolongados ou de alucinacées. Naturalmente que as actividades quotidianas nao 51 possuem o caracter ilusério peculiar dos sonhos, mas isto acontece precisamente porque as experiéncias quotidianas sdo mais ordenadas, regulares e implacaveis. Numa perspectiva deste género, 0 «idealismo», 0 mundo consiste exclusivamente em mentes e seus contetidos. (Numa variante do idealismo, 0 «solipsismo», o mundo é apenas uma tinica mente —a sua mente — e os respectivos contetdos.) Nao ha objectos ou eventos materiais nao mentais, por conseguinte, néo ha importunas interacgdes causais entre mentes e objectos materiais independentes da mente, nem qualquer paralelismo misterioso entre os dominios independentes mental e material. Explicamos a regularidade e a ordem que encon- tramos nas nossas experiéncias nao por referéncia a um mundo material regular e ordenado, mas por referéncia 4 natureza intrinseca das mentes (figura 2.7) ou pressupondo que a ordem é assegurada por um Deus benevolente que assegura que as nossas ideias ocorram em padrées ordenados, por conseguinte, previsiveis (figura 2.8). [O filésofo irlandés e bispo anglicano George Berkeley (1685-1753) é © mais famoso Cee desta ultima perspectiva.] Be EN Wi ES (/Experiencia de, Sentmento ) / Desejo’de . _/ Experiaticia \ [ ~sentarse dedor_J{ saltar _). | de sattar ) “numa tacha _/ * para cima_) ‘para cima_) 4 Re oe FIGURA 2.7 DEUS oe sa = Experiéncia de», Sentimento’) 1 Wesse aE Experigncia »\ sentar-se de dor, 5 | salar) (_ de sattar p) numa tacha _/ 4" para cima_) para cima_/ AY oe, AT FIGURA 2.8 Oidealismo tem a vantagem de salvar as aparéncias. Se 0 idealismo é verdadeiro, entdo as nossas experiéncias do mundo nao seriam de modo nenhum diferentes do que seriam, caso o mundo fosse povoado por objectos materiais. O idealismo nao implica que aquilo que nos parece ser sdlido, objectos materiais extensos, assumiria uma forma 52 aérea fantasmagorica. Pelo contrario, teriamos experiéncias «como se» fossem objectos extensos sdlidos e extensdes espaciais, tal como por vezes acontece nos sonhos. Suponha que faz preparativos para refutar o idealismo conduzindo experiéncias projectadas para estabelecer a existéncia de corpos mate- tiais independentes da mente. Estas experiéncias podem ser toscas — como a do Dr. Johnson que deu um pontapé numa pedra e anunciou «deste modo, refuto Berkeley» — ou sofisticadas — incluindo, por exem- plo, o desdobramento de detectores para identificar as particulas mate- riais que a ciéncia considera serem os tijolos de uma realidade inde- pendente da mente. Um idealista sublinhara que a experimentagao é uma questao de dispor os materiais de modo a produzir certas observagées. Dar um pontapé na pedra providencia uma prova observacional de um género especialmente vivo de que a pedra existe. A observagao por um cientista de um género particular de rastro numa camara de vapor for- nece uma prova bastante indirecta de que uma particula-o passou pela camara. Contudo, as observagGes sao experiéncias conscientes e desse modo nao nos levam para fora da mente. Além disso, 0 nosso equipa- mento experimental — pedras, cmaras de vapor e coisas semelhantes — nao é, se 0 idealista tiver razéo, menos mental. O que é uma pedra ou uma camara de vapor sendo qualquer coisa que se parece de um modo particular, tacteia-se de um modo particular, soa de um modo particular, e assim por diante? Mas o olhar, o tocar e o ouvir nao passam de estados sensoriais. A experimentacAo, conclui 0 idealista, nao nos pode proporcionar as bases para inferir a existéncia de qual- quer coisa nao mental. A verdade é que o idealismo preserva as suas bases. Exclui os problemas associados com a interac¢ao causal entre as mentes e 0 mundo material, e fé-lo de maneira a ultrapassar os constrangimentos associados ao paralelismo e ao ocasionalismo. Compreendido de forma adequada, o idealismo 6 consistente com todas as provas que pode- riamos obter. Além disso, 0 idealismo tem uma espécie de simplicidade elegante do género da que é valorizada pelas ciéncias. O idealismo sé postula as mentes e os seus contetidos e explica todos os fenémenos apenas com recurso a estes sem necessidade de recorrer a questdes desordenadas sobre objectos e eventos materiais extramentais. Mesmo assim, a maior parte de nds considera 0 idealismo dificil de digerir. Talvez isto se fique a dever em parte porque 0 idealismo parece escolher 0 caminho mais facil. O idealismo explica as aparéncias 53 ao identificar as aparéncias com a realidade. A maior parte de nos, contudo, mantém a esperanga de que pode haver algum modo de manter a distingdo e de reconciliar as nossas mentes e os seus contetidos com um mundo material nado mental. No fim, podemos ser forgados a aceitar 0 idealismo. Mas, até sermos forgados a aceita-lo, podemos continuar a procurar alternativas menos dramaticas. MENTE E SIGNIFICACAO Depois de dito isto, gostaria de sublinhar que os idealistas, por tradicado, nao apresentaram o idealismo simplesmente como um substituto do dualismo cartesiano. No nucleo da maior parte dos tipos de idealismo esta uma perspectiva sobre a significacdo e os contetidos dos nossos pensamentos. Os idealistas argumentam que as perspec- tivas que se lhes opdem, perspectivas que distinguem de modo contundente as mentes e os seus contetdos de um mundo indepen- dente da mente, sao literalmente incoerentes. Naturalmente que a sua incoer€ncia nao nos afecta imediatamente, mas, ao compreender 0 que esta envolvido quando temos um pensamento em particular, podemos constatar que essas perspectivas nao tém sentido; sao, em ultima instancia, impensdveis. A conclusao é que nao ha realmente qualquer opsao, qualquer alternativa ao idealismo. A tese é sdlida. Se for verdadeira, 0 idealismo sera inatacavel. Contudo, nao cabe aqui examinar os argumentos idealistas em pormenor. E preferivel averiguar uma versao corrente do tipo de argumento a que os idealistas podem recorrer. A linha do argumento que tenho em mente foi avancgada por Berkeley. Berkeley nao esta interessado em mostrar que nao existe, como matéria de facto, um mundo material mas apenas as mentes e seus contetidos, ou que o idealismo goza de certas vantagens metafisicas sobre os seus rivais dualistas. O seu objectivo consiste em mostrar que, no fim da analise, néo ha concorrentes sérios. Berkeley sustenta que, quando os filésofos pretendem falar sobre o mundo material, estao empenhados em falar sobre qualquer coisa literalmente inconcebivel. Falando sem rodeios: os discursos filosdficos sobre um mundo material independente da mente nao falam de nada. As hipdteses dualistas sao, portanto, simplesmente falsas ou implausiveis. Nenhuma delas tem qualquer significagao. 54 Considerem, diz Berkeley, do que estamos a falar (ou a pensar) quando falamos (ou pensamos) sobre objectos familiares: mesas, pedras, gatos. Estamos a falar (ou a pensar) sobre coisas que parecem, soam, sabem, cheiram e se sentem de uma determinada forma. Mas as visGes das coisas, os sons que ouvimos, os seus sabores e 0 tacto nao nos sao exteriores, nao estao fora das nossas mentes. S40 meras experiéncias de certos tipos de caracteristicas. Comummente, distin- guimos as nossas experiéncias das coisas das préprias coisas, mas Berkeley mostra-nos que esta distingdo nao existe. Suponha que esta neste momento a percepcionar um tomate maduro a luz do sol. Tem uma experiéncia visual particular de um tipo arredondado e avermelhado. Se agarrar no tomate e o morder, tera experiéncias tacteis, olfactivas, gustativas e auditivas adicionais: o tomate sente-se, cheira e, quando 0 morde, sabe e soa de um modo particular. Berkeley argumenta que os seus pensamentos sobre o tomate estao esgotados por estas caracteristicas sensoriais. Quando pensa no tomate, 0 seu pensamento interessa-se por qualquer coisa que parece, apalpa-se, cheira, sabe e soa de uma forma particular. Mas a visdo, o apalpar e coisas semelhantes nada mais sao, devidamente compreendidas, do que qualidades das experiéncias conscientes, e estas sao fendmenos mentais. De modo que os nossos pensamentos sobre o tomate nao passam, no fim de contas, de pensamentos sobre certos episédios mentais caracteristicos. Seja como for, nao faz sentido supor que os episédios mentais ~ Berkeley chama-lhes «ideias» — possam existir fora da mente. Portanto, os nossos pensamentos sobre 0 tomate so, de facto, pensa- mentos sobre acontecimentos mentais: experiéncias conscientes de um tipo particular que tivemos, ou teremos sob as condigées correctas. Os filsofos dizem-nos que estas experiéncias correspondem a, e sao causadas por, um tomate independente da mente que esta «la fora». Mas, quando examinamos a nossa ideia de tomate, sé encontramos experiéncias. Nao encontramos nada que corresponda a expressao «tomate independente da mente». A expressdo «tomate independente da mente» é, portanto, vazia de significagao. Desse ponto de vista, parece-se com «ideias verdes descoloridas». O leitor pode dizer estas palavras, mas elas nao significam nada. Também pode ter um pensa- mento que pode descrever como um pensamento de ideias verdes descoloridas. Mas, ao fazer isso, tem um pensamento vazio, um pensamento sem contetido. VWanyare) Universi 55 Riblioteca Cone! : O leitor ae pensar que ha uma resposta ébvia para esta linha de raciocinio. E claro que se pode pensar num tomate independente da mente. E, muito facil. O tomate independente da mente parece-se com as nossas experiéncias do tomate: é vermelho, esférico e acido. Podemos pensar num tomate independente da mente ao pensar nos tipos de experiéncia consciente que normalmente temos na presenga de tomate, e acrescentando a estes pensamentos o pensamento de que ele é qualquer coisa fora da mente, qualquer coisa fora das nossas experiéncias. Berkeley rejeita este lance. As experiéncias, retorque ele, s6 podem parecer-se com experiéncias. Ao preparar-me para imaginar um tomate independente da mente, em primeiro lugar, convoco 4 mente certas experiéncias, depois subtraio destas que elas sao experiéncias. Isto, afirma Berkeley, ¢ absurdo. Parece que convocamos 4 mente a ideia de um triangulo e depois subtraimos dessa ideia que ele tem trés lados. Nao nos sobra nada, excepto um pensamento vazio. E claro que ainda temos as palavras: «tomate nao experimentado»; «triangulo sem trés lados». As palavras nao tém significagdo. Mas, pelo menos no caso anterior, 0s fildsofos nao o constataram. Andaram a tagarelar sobre um mundo independente da mente como uma crianga pode tagarelar sobre um tridngulo que nao tem trés lados. A conclusao — um mundo de objectos materiais que se manifestam fora da mente é literalmente impensavel — parece ultrajante. Berkeley, contudo, insiste num ponto mencionado anteriormente, que suaviza 0 golpe. Suponha que o idealismo é verdadeiro: sé existem as mentes e os seus contetidos. Como poderiam as nossas experiéncias quoti- dianas ser diferentes do que sao se 0 idealismo fosse falso? A resposta, de acordo com Berkeley e outros idealistas, é que nada seria detectado de forma diferente. Se assim 6, porém, torna-se dificil acusar os idea- listas de impugnarem as expectativas comuns. O que os idealistas negam é simplesmente uma certa interpretagdo filosdfica dessas expectativas. Ao rejeitarem os objectos materiais, os idealistas insistem que nao estado a rejeitar as mesas, arvores, galaxias e coisas seme- Ihantes. Em vez disso, estao a rejeitar a nogdo de que «mesa», «arvore» e «galaxia» designam objectos materiais independentes da mente. Os termos, de facto, designam colecgées de experiéncias actuais e possiveis. O idealismo, apesar da sua aparente improbabilidade, é muito dificil de contestar frontalmente. Em vez de tentar apresentar aqui argumentos pormenorizados contra o idealismo, proponho que avancemos para discutir cenarios alternativos. Pode acontecer que haja 56 fundamento para se preferir um ou mais destes cenarios ao idealismo, mesmo que nao existam lacunas obvias na arquitectura idealista. Aminha propria perspectiva é que o idealismo representa uma espécie de fraqueza de temperamento: incapaz de reconciliar as mentes e o mundo material, 0 idealista desiste do jogo e poe o mundo material dentro da mente. EPIFENOMENISMO Descartes representa as mentes interagindo causalmente com o mundo material: os eventos no mundo material produzem experién- cias nas mentes e os eventos materiais produzem movimentos cores . Vimos que este género de interacc&o causal nos dois sentidos é icil de reconciliar com a conviccao de que o mundo material causalmente autocontido: as causas de cada evento material sao clusivamente materiais. Mas suponha que concedemos que o mundo aterial ¢ «causalmente fechado», mas permite que os eventos teriais podem ter produtos mentais. Os eventos mentais existem. io os efeitos de certas causas materiais. Mas nenhum evento mental um efeito material; nenhum evento mental pode interromper as uéncias causais do mundo material. Os eventos mentais sao pifendmenos», derivados ou «efeitos colaterais» dos fendmenos ateriais, que por si mesmos nao produzem efeitos de qualquer spécie (ver figura 2.9). ( Sentir a Desejo” 25) dor de saltar para cima aoe ee Lame t f Sentar-se Evento Saltar sobre a tacha > cerebral E para cima FIGURA 2.9 Os epifenomenistas, portanto, sustentam que os fendmenos _mentais (experiéncias conscientes, por exemplo) sao residuos ou efeitos colaterais de sistemas fisicos complexos. Nesta perspectiva, parecem-se 57 com o fumo produzido por uma locomotiva, ou com a sombra formada por uma bola de bilhar rolando através de uma mesa de bilhar, ou com o ruido agudo produzido por um par de sapatos novos. O fumo, a sombra e 0 ruido agudo nao desempenham qualquer papel causal na operacao dos sistemas que os produzem. O fumo, a sombra e 0 ruido agudo so fendmenos materiais, de modo que tém alguns efeitos fisicos; o fumo provoca ardor nos olhos, a sombra altera a distribuigao da radiacgao luminosa na regiao onde cai, e o ruido agudo produz dimi- nutas vibrac6es nos timpanos das pessoas que passam. Os fenémenos mentais, pelo contrario, nao tém quaisquer efeitos — materiais ou mentais. O epifenomenismo parece precipitar-se ao encontro da expe- riéncia comum. Decerto que a experiéncia de dor do leitor, sentida quando aproxima a mao do fogo, é que esta na origem do seu rapido afastamento. E é certamente a sua deliberagao e subsequente decisao de obter um hamburguer que o leva a entrar num Burguer King. Contudo, de acordo com os epifenomenistas, todo o trabalho causal nestes casos é feito por eventos do seu sistema nervoso. Esses eventos talvez produzam, como produto residual, certas experiéncias cons- cientes. As experiéncias conscientes, todavia, sao causalmente inertes. Parecem ter uma ligacao causal, porque sdo causadas, e por conseguinte invariavelmente acompanhadas, por eventos materiais que por si mesmos ocasionam varios efeitos. Suponha que uma correia da ventoinha lassa causa tanto 0 aquecimento do meu Yugo como um evi- dente ruido agudo. O ruido acompanha, mas nao causa, 0 aqueci- mento. De acordo com os epifenomenistas, é 0 que se passa em geral com os fendmenos mentais. O facto, portanto, se é um facto, de sentir que os seus estados mentais estabelecem uma diferenca causal é inteiramente consistente com a verdade do epifenomenismo. Ao decidir pegar num ham- burguer e subsequentemente pegar nele efectivamente, da-lhe a impress4o nitida de que a sua decisdo causou 0 pegar (ou que ela contribuiu de qualquer modo para a ocorréncia desse evento material). E evidente que pode confiar na movimentagaio do seu corpo de um modo que reflecte as suas decisdes. E também é verdade que, se 0 leitor nao tivesse decidido pegar no hamburguer, nao o teria feito. Contudo, nao se segue daqui que as decisGes — tipos de eventos mentais — movam o que quer que seja. Se o epifenomenismo tiver razao, entao a causa da movimentagao do seu corpo serd um evento neuroldgico. Este evento neurolégico tem, como efeito auxiliar 58 inevitavel, uma decisao ~ tal como, na figura 2.9, um evento neuroldgico, E, tanto causa um desejo de saltar como um salto sub- sequente. Os neurocientistas consideraram por vezes o epifenomenismo atractivo. Ao estudar a fungao cerebral, caso aceitemos 0 epifeno- menismo, podemos ignorar totalmente as qualidades dos fendmenos mentais, e concentrar-nos exclusivamente nos mecanismos e processos fisicos que se dao no cérebro. Se os fenémenos mentais sao epife- némenos, entdo sao indetectaveis (excepto, presume-se, por aqueles que os tém) e seriam indiferentes a tudo 0 que acontece no dominio material. Isto deixaria os neurocientistas de maos livres para explo- rarem os mistérios do cérebro sem terem de se preocupar com os ‘confusos pormenores da experiéncia consciente. No entanto, o epifenomenismo enfrenta um certo numero de dificuldades. Em primeiro lugar, a natureza das relagdes causais material-para-mental nao é nada dbvia. A maior parte dos filésofos aceita a ideia de que as relages causais se realizam entre os eventos. Oepifenomenista afirma que algum eventos materiais causam eventos mentais, mas os eventos mentais nado causam coisa nenhuma. Pode pensar-se que nao haveria mal nenhum em admitir que os eventos mentais sejam a causa de outros eventos mentais. Afinal, os eventos mentais (de acordo com 0 epifenomenista) nao tém efeitos materiais, de modo que as relagGes causais entre os eventos mentais nao amea- ¢ariam a integridade causal do mundo material. Mas esta possibilidade nao esta de harmonia com a representagao mais alargada do epifeno- menista. Se os eventos mentais pudessem por si mesmos causar eventos mentais, entao alguns eventos mentais teriam uma vida propria. No entanto, é da esséncia do epifenomenismo que os eventos mentais sejam produtos residuais dos eventos materiais. Assim sendo, devemos supor que os eventos mentais, embora sejam causalmente inertes, sao causados por eventos materiais. Mas relag6es causais «sem saida» deste tipo diferem das relacées causais comuns. No caso da causalidade material comum, os eventos sao ambos efeitos (de eventos anteriores) e causas (de eventos sub- sequentes). De modo que transacgdes causais que incluem eventos mentais parecem ser muito diferentes daquelas que encontramos no universo em geral. Isto, por si mesmo, nao é objecgao ao epifeno- menismo. E simplesmente uma consequéncia da concepgao epife- nomenista dos eventos mentais. Nao obstante, é claro que, se estivesse disponivel uma perspectiva alternativa que explicasse tudo 0 que o jersidade Ferteral d0 Pate Riblioteca Central | epifenomenismo explicou, mas que o fizesse sem recorrer a qualquer tipo especial de relagao causal, essa perspectiva seria preferivel. Esta forma de pensar evoca 0 principio da parcimonia da Navalha de Ockham (denominada segundo William de Ockham, 1285-1347). A Navalha de Ockham preceitua que nao devemos «multiplicar entidades para além do que é necessario». A ideia é que as explicagdes mais simples e sdbrias dos fenémenos, explicagdes que refreiem a introducao de novas espécies de entidades ou processos, sao prefe- riveis a explicagGes rivais menos simples. A nogao de simplicidade em jogo nesta situacao é extremamente dificil de enunciar. E é claro que nao hd qualquer garantia de que o mundo seja um lugar simples. Essas questées, contudo, nao nos devem deter. Estamos confinados a julgar teorias rivais pelos seus méritos. Podemos pensar na Navalha de Ockham nao como um principio que nos diz como o mundo esta organizado, mas que nos encoraja a atribuir o 6nus da prova aos proponentes de teorias «menos simples». Se uma alternativa do epifenomenismo evita relag6es causais «sem saida», entéo o 6nus recai sobre o proponente do epifenomenismo, a fim de nos convencer que, apesar de tudo, o epifenomenismo fornece uma explicagéo superior dos fenémenos. DUALISMO NAO CARTESIANO O dualismo cartesiano, tal como o caracterizei, inclui um certo numero de componentes. Em primeiro lugar, as mentes e os corpos sao considerados como substancias diferentes. Em segundo lugar, assume-se que as mentes e os corpos interagem causalmente. Esta interaccao vai nas duas direcgdes: os eventos mentais causam e sao causados por eventos materiais. Vimos que é possivel comegar com 0 dualismo cartesiano e modificar elementos particulares para produzir novas concepgGes da mente e sua relagéo com o mundo material. Os paralelistas e os ocasionalistas negam que as mentes interajam com os corpos materiais. Os idealistas rejeitam a substancia material e, juntamente com esta recusa, a nogao de interacgéo mente-corpo. Os epifenomenistas repudiam as substancias mentais, mas admitem que os eventos mentais sao produtos residuais causais de eventos envol- vendo substancias materiais. Ha, contudo, um terceiro componente da perspectiva cartesiana. As substancias mentais e materiais sao distinguidas por atributos 60

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