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Sefra vermetha — Dashiell ‘0 somo.eterno — Raymond Chandler 0 desaparccide — Fran Katha 4 irmatinha ~ Raymond Ch — Bob Dylan Tard Satyricon do latim e posfacio: Paulo Leminski PETRONIO| mos na entrada do quarto, Quartila espiando com olhar sacana pela porta entreaberta os folguedos libidinosos das duas criancas. Quartila me puxou pela mao para seu lado, e ficamos 0s dois, de rosto colado, assistindo a cena, ¢ trocando uns beijos furtivos. Mas eu estava tdo exausto da gula sexual da insaciavel Quartila que tudo 0 que eu queria era dar o fora daquela casa o mais rapido possivel, nem outra era a intengao de Ascilto, ansioso por se livrar das investidas de Psyche. E era 0 que teriamos feito sem demora, se Giton nao estivesse 14 no quarto, objeto da per- versidade daquelas duas taradas. Estévamos pensando como, quando Pannychis cai do leito, arrastando Giton na queda, que nao se machucou. Mas a garota bateu a cabeca ao cair ¢, ferida, comecou a gritar. Quartila, apavorada, vai em seu socorro, nds trés aproveitamos a oportunidade ¢ demos no pé em diregdo a nosso albergue. Ai, nos atira- mos em nossas camas, ¢ dormimos como trés anjinhos 0 resto daquela noite. Na manha seguinte, ao sairmos, cruzamos com dois de ossos raptores. Ascilto caiu de pau em cima de um deles, que ficou no chao, todo arrebentado. Mas 0 outro se defendeu tao bem de nosso ataque que além de ter nos feri- do de leve, ainda conseguiu escapar. Aproximava-se o dia que esperavamos, o dia do mag- nifico banquete durante o qual Trimalciao ia libertar ini ‘meros dos seus escravos. Mas estévamos to machucados da luta que voltamos para nosso quarto ¢ medicamos nossas chagas leves com vinho e azeite. E lé na calcada jazia estendido o raptor que tinhamos arrebentado de porrada, ¢ a gente morrendo de medo de que nos reconhecessem como os agressores. Enquanto, tristes, deliberdvamos que partido tomar para evitar a tempestade que pairava sobre nés, um escravo de Agamenon veio perguntar aos dois apavorados: — Mas entiio vocés ndo sabem onde é a festa hoje? Vai ser na mansdo de Trimaleiao, o mais rico dos homens. 2 SATYRICON aquele que tem em seu saldo de festas um relégio com um. escravo ao lado, que toca uma trombeta a cada hora que passa, para que o magnata saiba, de hora em hora, quanto de vida esta perdendo. Assim, nos vestimos as pressas, esquecidos de nossas dlesgracas, ¢ demos ordem a Giton, que nos servia de cria- do, para nos acompanhar até as termas, onde nos banha- famos. XXVIL Vestidos com nossas melhores roupas, comecamos a ambular pela cidade, meio sem destino, até que chega- nos numa roda de gente que estava brincando algum jogo. ‘Ai, de repente, vimos um velho careca, vestido com um nanto vermelho, jogando bola com uns garotos de cabelos ongos como de mulher.'* Mas ndo foram eles, e sim o res- vel senhor quem nos convidou a entrar na brincadeira, inde ele rebatia com uma raquete as bolas que um escravo (© lado Ihe atirava de dentro de um cesto cheio delas. Outras coisas singulares chamaram nossa atengio. Num canto da roda, dois eunucos acompanhavam a cena, um com um urinol de prata na mo, 0 outro contando as bolas que 0s jogadores deixavam cair no chao. Enquanto admiravamos estas coisas to faustosas, vem Menelau e diz: — Alesta o dono da festa de hoje. E se voces ainda hao sabem, a festa j4 comegou. Menelau ainda falava, quando Trimalcido estalou os dedos. A este sinal, um dos eunucos se aproximou com 0 (18) “Inter pueros capillatos ludentem pila.” Entre os romanos, 1s eabelos compridos eram préprios dos jovens escravos destinados aos prazeres sexuais dos seus senhores. (N. T.) PETRONIO urinol de prata, onde o respeitavel senhor esvaziou a bexi- ga. A seguir, despejaram Agua para ele lavar as mAos, que enxugou nos longos cabelos de um dos garotos que com ele jogavam bola. XXVIII Longo seria relatar cada coisa que nos aconteceu. E assim entramos no banho quente até que, cobertos de suor, passamos, de repente, para a gua fria. J4 esfregavam 6leos perfumados em Trimalcido, ndo com panos de linho, mas com flanelas feitas com as las mais macias. Enquanto isso, trés dos seus médicos massagistas bebiam diante dele seu melhor vinho Falemno. E como, brigando, derramas- sem tagas de Falerno pelo chao, derramam a minha satide, ‘Trimalciao dizia. Nisso, envolvem-no numa capa escarlate © 0 carregam numa liteira, precedida por quatro escravos vestidos com trajes esplén« no qual condu: enyelhecido precocemente, os olhos remelentos, mais hor- rendo que o préprio. Enquanto era conduzido, aproxima- se um flautista, encosta-Ihe a flauta no ouvido, como se lhe contasse um segredo, e assim prosseguiu ao longo de todo © caminho. Acompanhamos séquito, jé exaustos de tanta admiragdo, e com Agamenon chegamos a porta do palé- cio, onde a inscricao di QUALQUER. ESCRAVO. QUE. SAIR. SEM. ORDEM. SUPERIOR. RECEBERA, CEM. CHIBATADAS. Chiramaxio. Esta palavra, de origem grega, s6 se encontra em Petrénio. (N. T.) 44 SATYRICON Na entrada, estava 0 porteiro vestido de verde, cin- gindo uma faixa cor de cereja, amassando ervilhas numa vasilha de prata. No alto, uma gaiola de ouro onde um passaro falante saudava cada pessoa que entrava. Quanto a mim, pasmo de tudo, senti minhas pernas fraquejar. A esquerda de quem entrava, ndo longe do alo- jamento do porteiro, um cachorro enorme, preso na cor- rente, estava pintado na parede, com o letreiro em cima, cm letras maidisculas: CUIDADO. CACHORRO BRAVO. Meus acompanhantes morreram de rir do meu susto prio Trimalciao, num mercado de escravos, cetro na mao, belos ao vento, entrando em Roma, conduzido Minerva. Mais além, a pintura representava T1 ndo aulas de célculo, depois sendo feito tesourei jas que o pintor tinha tido o cuidado de esclarecer com levantava Trimalciao pelo queixo até um alto tribunal. Ao . a deusa Fortuna, cornucopiosamente abundante, eas Parcas tecendo com fios de ouro. Notei também no inando corrida sob a ‘ego de um mestre. Além disso, um grande armario com nichos onde luziam as efigies n prata dos deuses Lares, uma estatueta de Vénus em ‘more, ¢ um estojo grande de ouro onde, diziam, estava primeira barba de Trimalciao. Comecei a perguntar ao porteiro qual era aquela pin- —A Ilfada e a Odisséia — ele respondeu —, ¢ a esquerda é uma luta de gladiadores. 4s PETRONIO nes até 0 gabinete do tesoureiro, que contava dinheiro, e Ihe pedimos que ndo punisse com rigor 0 servo faltoso. Nao havia tempo para contemplar mais pinturas. Jé chegavamos na sala do festim, na entrada da qual o chefe dos escravos tomava nota do nome dos convidados, ¢ 0 que mais me admirou foi ver, no alto da porta da entrada a imagem de feixes de varas coroados por machados, sim. bolos dos cOnsules, e na parte de baixo uma espécie de espordo de navio feito de bronze, onde se A. CAIO. POMPEU. TRIMALCIAO. PLENI. POTENCIARIO. DE. CINAMO. SEU. TESOUREIRO. Sob esta inscric4o, pendia uma lémpada dupla sus- Pensa do alto da sala, e duas tabuletas afixadas em cada asa da porta, das quais uma, se bem me lembro, trazia isto: NA. PRIMEIRA. QUINZENA. DE. JANEIRO. CAIO. NOSSO. SENHOR. CEIA. NA. CIDADE. Uma outra trazia pintadas as imagens dos cursos da {ua ¢ os sete planetas, além de um registro dos dias prop. Cios ¢ dos dias nefastos em cores diferentes. Repletos de tantas maravilhas, famos entrar na sala do banquete quan. do um escravo nos gritou: — Com o pé direito! Nem precisa dizer que caprichamos para que nenhum. de nés entrasse desconforme ao preceito. Por fim, avanga. mos todos com o pé direito, quando um escravo, comple. famente nu, se atira a nossos pés, nos implorando que 'vrassemos do castigo que o esperava. Nem sua falta era Wo grave assim, Enquanto o tesoureiro se banhava, guar. da de suas roupas, ele se distraiu e deixou que fossem rou. badas. Mas elas valiam apenas dez sestércios, protestava, Demos um passo atras, recolhendo 0 pé direito, e fomos 46 Soberbo, ele levantou 0 rosto: — Nao é a importar cia desse imbecil. A veste que me roubaram era um traje de muito cara, pér- banquete que me foi dado por uma pessoa m a fenicia, sem diivida. Mas j tinha sido lavada uma vez. Enfim, nao importa. Eu 0 perd6o do castigo. XXXI ‘Comovidos com tanta cleméncia, quando entravamos sala do banquete, Ia vem aquele mesmo servo, e, para agradecer 0 favor, nos cobre de beijos intensissimos. — Em suma — disse ele — agora verdo que nao fize- m favor a um ingrato, Eu sou o encarregado dos vinhos » nosso senhor. Entdo, nos deitamos nos triclinios, quando escravos pando as unhas com todas ass sures. Ao realizar esse oficio molest mas cantavam. Perguntei se, ni la casa, todos os escravos s6 trabalhavam cantando, € idei que enchessem minha taga, coisa que um escravo simo fez num instante, cantando um acido cénti- im como faziam todos, quando the pediam alguma Vocé imaginaria estar no meio de um coral de panto- nao na casa de um grande senhor. E la vieram os introdut6rios daquele banquete magnifico. Todos J estavam reclinados em seus lugares, menos 0 préprio lo, a quem, contra 0 hébito, estava reservado 0 le honra. Na baixela destinada as entradas, havia um hho de bronze, com uma bandeja contendo azeito- parte pretas, em parte brancas. Nas costas do ani- 47 PETRONIO mal, havia dois pratos de prata em cujas margens lia-se 0 nome de Trimalciéo eo prego do metal da pega. Arcos em forma de ponte sustentavam arganazes assados, tempera- dos com mel e papoula. Sal las frigiam sobre uma pe- quena grelha de prata, e sob ela, cerejas do Oriente com grtios de granada, XXXII ias estavamos, quando o proprio Trimal- ciao, ao som de um coral magnifico, chegou transportado numa liteira e foi depositado num leito guarnecido de pe- quenas almofadas, coisa que foi motivo de riso aos menos prudentes. ‘Sua cabega estava coberta por um manto purpura, e sobre as pesadas vestes trazia um vasto guardanapo, cujas fimbrias Ihe caiam de um lado e de outro. Trazia ainda no dedo mindinho da mao esquerda um grande anel de ouro Puro, onde faiscavam pequenas estrelas de ago. E, para nao deixar diividas sobre o imenso das suas riquezas, des- nudou o brago direito, onde brilhava uma pulseira de ouro, sages de um resplandecente marfim. XXXII Com uma agulha de prata, comegou a palitar os den- tes, € disse: — Amigos, ainda nao era a hora que eu queria para vir sentar-me & mesa convosco, mas para no vos deixar esperando, abdiquei dos meus proprios prazeres. Sera que tenho permisséo para terminar 0 jogo que cu estava jogando? Nisso, aproximou-se um jovem escravo com um tabu- 48 SATYRICON leiro da mais fina madeira de terebinto, e dados de cristal. Observei o detalhe sofisticadissimo: em lugar de pedras brancas e pretas, pecas de ouro e prata. Enquanto jogava, comendo as pedras do adversario, anés, convivas, foi servida uma cesta, sobre uma bandeja, onde se via uma galinha esculpida em madeira, de asas abertas, como fazem as galinhas quando vo botar ovos. Aproximaram-se dois escravos e, ao som da musica stridente, comecaram a escarafunchar na palha atrés da tha, apanhando os ovos de pavao, que comegaram a ribuir entre os presentes. Trimalciao voltou 0 rosto para a cena: — Amigos — ele disse —, mandei colocarem ovos de pavao debaixo dessa galinha. Mas ndo sei se ja esto chocos ou nao. Vamos experimentar se ainda estdo comestiveis. Apanhamos colheres que ndo pesavam menos que ‘ia libra, e quebramos os ovos, recobertos com uma fari- ‘ava perfeitamente uma casca. Quase joguei longe a parte que me cabia, pois julguei ver ld dentro um pinto se mexendo, A seguir, ao escutar um velho conviva dizer “acho que aqui deve ter coisa boa!”, remexi dentro da casca e um raro péssaro, uma toutinegra bem gorda, cercada de gema de ovo com bastante pimenta. XXXIV Tendo interrompido seu jogo, Trimalciao ja se servia todos os pratos que rodavam na sala, e demonstrava seu poder, anunciando, em voz alta, que podiamos tomar ssemos. O conjunto musical deu um stibito, e inimeros escravos, cantando em coro, reco- m Os restos que tinhamos deixado. A seguir, em meio multo do festim, cai uma travessa de prata eum escra- 49 PETRONIO| vo correu para levanté-la. Trimalcio ordena que o rap: seja esbofeteado no ato, ¢ manda que a rica travessa seja de novo jogada no cho. A seguir, determina que venha um servente para varrer a rica travessa junto com toda a sujeira que j4 se acumulava no chao. Nisso, entram dois negros etiopes, com vasta cabelei ra, trazendo pequenos vasos com que se derrama gua na areia do anfiteatro, e nos despejam vinho nas maos. Agua, nesta festa, nem pensar. Louvado por tamanho requinte, Trimalciao: — O deus Marte ama a justica — disse, e mandou cada um dos convivas pegar uma me: i. — Assim ficaremos — disse — desses escravos fedorentos. A seguir, trazem anforas de cri sesso, ¢ uma etiqueta: , com tampas de VINHO. FALERNO. CEM. ANOS. Enquanto lfamos as etiquetas, Trimalciéo bateu pal mas, e se lamentou: — Ai, ai, ai, como o vinho vive mais do que o pobre hominculo! Vamos encher a caveira. O vinho é vida. E esseai € 0 verdadeiro Falerno. Ontem, ndo servi um to ‘bom, ¢ os convivas eram gente bem mais fina que voces. Bebiamos, pois, admirando as magnificéncias que nos eram servidas, quando um escravo trouxe um esque. leto de prata, to bem articulado nas juntas que se mexia como se estivesse vi O escravo fez 0 movimentos, quando Trimalciéo comegou a declamar: Ai, ai, pobres de nds, mortais! ‘Como o fio da nossa vida ¢ ténue! Assim seremos nds depois dos funerais. ‘Vivamos pois, enquanto ¢ tempo. 50 SATYRICON XXXV A essa versalhada, seguiu-se um prato que néo nos pareceu digno daquele banquete, Uma novidade atraiu todos os olhares, um dispo: edondo representando os doze signos do zodiaco, sobre 0 | estavam acomodadas inuimeras iguarias, relacionadas 0 signo, Sobre Aries, ervilhas. Sobre Touro, carne de gado, wre Gémeos, testiculos e rins. Sobre Cancer, uma coroa. re Ledo, figos da Africa. Sobre Virgem, ovas de truta. re Libra, uma balanga que, num dos pratos, trazia um €, no outro, uma torta. Sobre o Escorpiao, um peixi- do mar. Sobre Sagitério, uma lebre. Sobre Capricér- io, uma lagosta, Sobre Aquario, um pato assado. Sobre ixes, um salmao.” No meio deste globo, um suporte exibia um favo de Um escravo egipcio nos servia po de um pequeno (0 de prata, e com uma voz horrorosa cantava os louvo- s de no sei que infuséo de vinho com uma planta miste- Tristes, iamos nos servir dessa comida miseravel, ando Trimalcido disse: — Por favor, vamos comer. £ para isso que estamos XXXVI Isto disse, e, ao som da orquestra, quatro escravos tantes acorreram, e tiraram a parte de cima do globo. 20) Esta um ensaio ilogias. (N. T.) traordindria fantasia zodi no, sozinha, para deslindar seu labirinto de alusdes, prodigio 51 PETRONIO Feito isso, vimos abaixo, isto é, no outr i abaixo, ‘0 compartimento, aves recheadas, peitinhos de leitoa e, no meio, uma lebre Prada de asas figurando o cavalo Pégaso. Notamos tam, bém nos cantos do globo quatro satires, portande Peque- = Corta! — ele gritou, Na hora, avanca um criado com uma faca e, sempre Zo som da orquestra, comegou a cortar as carnes, com a Precisao com que um condutor de carros no estadio cor duz sua biga ao som do érgao hidraulico, Enquanto isso, Trimalcido dizia com lentissima vor = Corta, corta! Desconfiando que haveria talvez alguma sutileza nes- St expresso tantas vezes repetida, nfo tive vergonha de Ble ntay 20 meu vizinho de mesa sobre o sentido daqu Ele, que ja tinha presenciado muitas vezes brincadeires como aquela, me respondeu: J, Fat vendo esse escravo que corta as carnes? Seu home € "Corta’””. Assim, cada vez que Trimaleifo diz \Cortal”’, ao mesmo tempo, com a mesma palavra, ele chama 0 escravo © mancda-o fazer 0 que tem que fazer, XXXVII Nao consegui degustar mais nada, E me voltando para aquele meu vizinho mais proximo comecei a puxar Sanversa, e disse querer saber quem era aquela mulher que no parava de ir pra la e pra ca. 52 SATYRICON — Ea mulher de Trimalcido, dona Monetéria, bom nome, pois é ela que cuida de todo o dinheiro dele. — Eo que era antes de ser mulher dele? — Era um tipo do qual vocé no quereria nem rece- ber um pao da mao dela. Nao sei como nem por qué, mas depois que se casaram, ela é tudo" para ele. Em suma, se cla disser a ele que esta escuro ao meio-dia, ele acredita. Ele nem sabe quanta riqueza possui, de tao zilionério, mas essa governanta est4 por dentro de tudo e est por dentro dle coisas que vocé nem imagina: Seca, s6bria, mulher dos bons conselhos, mas tem lingua de cobra, uma vibora do- , quem ela ama, ama, quem nao, nao ama, e pron- . Trimaleiéo tem tantas propriedades que um v6o de corvo nao cobre num dia, e dinheiro que os juros sé fazem icar, mais dinheiro em scus cofres que qualquer pessoa que eu conheca, Voc® nunca viu tanto ouro. E. » Nunca, pelos deuses!, imagino ue 86 um décimo deles todos jamais viram seu senhor. Em suma, com ele, todo mundo danga conforme a miisica.” XXXVIII © desgragado nao precisa comprar coisa alguma, ido Ihe nasce em casa, la, cera, pimenta e, se vocé quiser, ite de pato. Em suma, se a 14 que sua casa produzia estava de baixa qualidade, ele comprava carneiros de raga cm Tarento para melhorar a la. Para ter me! de primeira, indou buscar abelhas na Grécia e as cruzou com os seus ames domésticos: Um dia desses, mandou buscar na ia sementes de cogumelos. E todas as suas mulas so PETRONIO filhas de cavalos de sangue azul. Esta vendo esses leitos to- dos? Nao tem um s6 que ndo seja forrado de pirpura ou veludo escarlate. Isso & que é um sujeito feliz! Quanto a esses escravos libertos que o cercam, seus antigos companheiros de serviddo, nao tenha pena Vivem como principes. Esta vendo aquele que ocupa oil mo dos tiltimos lugares nesta sala? Possui oitenta milhdes de sestércios. Saiu do nada. Carregava lenha para viver Mas como dizem (sei de ouvi dizer) roubou 0 chapéu de tum incubo ¢ achou um tesouro. Nao invejo nada’ nine guém, se foi um deus que Ihe deu. Esse ai, por exemplo, ainda traz as marcas das bofetadas do seu senhor, mas ne tem do que se queixar. Ainda ha pouco mandou afixar sobre sua porta a inscrigao: CAIO. POMPEU. DIOGENES, ESTA. ALUGANDO. SEU. CUBICULO. ACABA. DE. COMPRAR, UMA. CASA. Que dizer daquele 14, que ocupa um lugar entre os libertos? Leva um vidao! Nao lhe reprovo haver mul cado seus bens por dez, mas seus negécios sairam mal, Acho que ele nao tem um cabelo na cabega que Ihe pertenga realmente, no, claro, pelos deuses!, que seja sua culpa, nao ha pessoa melhor neste mundo, acontece que outros libertos limparam tudo o que ele tinha e no tinha, Voce sabe, quando a panela fica vazia e as coisas vao mal, os amigos caem fora, — E que honestos negécios praticava para se encon- trar assim como 0 vemos? — Otha, ele era agente funerdrio, Jantava como um rei, javalis inteiros, massas ¢ pasttis, aves, cervos, peines ¢ lebres. Corria mais vinho debaixo da mesa dele do que vocé tem na adega. — Isso & uma ilusdo, no é coisa humana, 54 SATYRICON — Quando viu que seus negécios iam de mal a pior, para que seus credores nao imaginassem que ele estava 4 beira da faléncia, mandou afixar o seguinte aniincio: JULIO. PROCULO. VENDE. SEUS. BENS. SUPERFLUOS. XXXIX Tao doces fabulas interrompeu Trimalciao, comecava, a ser servida a segunda parte do jantar e, animados pelo vinho, 0s convivas ja comegavam todos a conversar entre .. Nosso anfitriao, apoiado nos cotovelos: — Vamos tomar todo o vinho que pudermos — ele lisse. — E preciso fazer nadar os peixes que comemos. Yoeés nao acham que eu estou satisfeito com essa comida ue acaba de nos ser servida, acham? N&o conhecem as tiicias de Ulisses? Qual é a de voc8s? Durante um jantar como este, € necessério discutir assuntos intelectuais. Descanse em paz a cinza do meu benfeitor!, aquele que que eu fosse um ser humano entre os seres humanos. Nenhuma novidade pode mais me espantar, assim, queri- «los, vou explicar os mistérios deste globo que vocés aca- vam de ver. Este céu, no qual doze deuses habitam, todo ia, muda de figura, ¢ assim surge Aries. Assim, 0 carn Assim, quem nasce sob este signo, possui sempre mt s rebanhos, muita la, uma cabega dura, testa despudora- da, chifres agudos. Neste signo, nascem muitos intelectuais, os. i Ap dlnion a agudez do nosso astrélogo, que acres- centou: A estupidez de Trimalcito produz lrocadithos intraduziveis. (N.T.) 58 PETRONIO| — A seguir, o céu pertence ao Touro. Ento, nascem as pessoas escoiceantes, os boiadeiros ¢ os que pastam em geral. Sob Gémeos, nascem os que se juntam aos pares, bois no arado, testiculos do homem, gente que extrai seu prazer de ambos os lados, Sob Cancer, eu nasci, assim, me firmo sobre muitos pés, e mi coisa possuo no mar e na terra. Assim, sobre este signo, s6 mandei colocar uma coroa para nao desfigurar meu hordscopo. Sob o signo de Leo, nascem os gulosos e manddes. Sob Virgem, as mu- Iheres, os fugitivos e cativos. Sab Libra, os agougueiros, os perfumistas ¢ todos os que vendem alguma coisa pesada na balanca. Sob Escorpido, os envenenadores e os assassinos. Sob Sagitario, os estrabicos, que parecem estar olhando para a salada, quando esto de olho. no toicinho, Sob Capricérnio, aqueles que trabalham tanto que ficam com calos tao duros quanto chifres. Sob Aquario, os donos de taberna e os paus-d’Agua. Sob o signo de Peixes, os cozi- nheiros e os professores de literatura. Assim gira o mundo, como uma pedra de moinho, sempre trazendo alguma des- graga nova, nascam os homens ou falegam. Nem é sem razBo que no meio esteja esse favo de mel, ja que a Terra, nossa mae, redonda como um ovo, ocupa o meio de todas as coisas, ¢ tudo em si contém, como um favo. XL — Génio!™ esclamamos em unissono, levantando as mAos para o céu e jurando que em todo o passado da Grécia nunca houve homem mais culto. Nisso, chegaram criados ¢ estenderam sobre nossos leitos tapetes onde estavam bordadas a agulha redes e todas as outras armas de caga. (24) Sophos, em grego, no original. (N. T.) 56 SATYRICON Mal sabiamos onde colocar nossa admirag&o, quando um grande barulho se fez ouvir do lado de fora, e eis que cites da LacOnia entram e comegam a correr em volta das \esas. A seguir, trazem uma enorme travessa onde estava avali enorme, com chapéu de liberto, de cujas presas iam dois cestinhos de folha de palmeira, um com wras da Africa, outro com tamaras da Siria, Leitoezi- s feitos de massa cercavam o animal para indicar que era um javali fémea, Os leitdezinhos foram dados como \des aos convivas, para levarem para casa. Desta vez, mesmo Corta que se apresentou para destrinchar javali, mas um gigante barbudo, vestido de cagador, que, com um enorme facdo, abriu no flanco do javali uma fen- da donde saiu uma revoada de passaros. Em vao, as aves voam pelo teto da sala tentando escapar. Aproximam-se servos com redes que as apanham uma a uma ¢ as oferecem cada um dos convivas, quando Trimalciao diz: — Vejam s6, esse monstro deve ter devorado todas as ralzes da floresta. : ‘A seguir, os criados vieram e distribuiram entre os ‘esentes as tmaras dos cestinhos que pendiam das presas XLI Enquanto isso tudo rolava, eu, que estava num lugar pouco afastado do centro, me entreguci a diversas co- ces sobre esse javali, em cuja cabega tinham colocado chapéu dos libertos.* Depois que consumi todas as bobagens™ de que mi- (25) O ritual de alforria de um eseravo, em Roma, incluia a impo: sigto de um chapéu, o pilews. (N. T.) (26) Bucolesias, palavra ratissima. (N. T.) 87 PETRONIO nha cabega era capaz, me virei para o lado e, mais uma vez, consultei aquele vizinho de mesa, que tinha me servido de intérprete em tantos enigmas. — Teu escravo poderia te explicar isso — ele falo — Nao ha mistério, tudo esté clarissimo. Este javali servido ontem no final do banquete, os convivas, replet. nem © tocaram. Assim, devolveram-lhe a liberdade. assim, hoje, ele retorna como liberto. Fiquei puto com a minha estupidez, e ndo perguntei mais nada, nao fosse o cara jantei er race nto fe Pensar que eu nunca jantei em Enquanto isso, um jovem escravo, belissimo, coroa. do com folhas de parreira, se atribuindo os nomes de — Isso é que é ser um pai liberal! Aplaudimos © belo trocadilho do nosso anfitriao ¢ cada um da roda cobriu 0 belo escravo de beijos. Nese momento, Trimalcio levantou para i 4 latrina, Sua par, da, nos livrando de sua tirania, liberou o papo eral Grita 0 primeiro, pedindo um cach D veto Si acho de uvas para 0 — Um dia ¢ nada éa mesma coisa. Voce se vira, ej . F a, ej é noite. Nada methor, portanto, do que passar direto da ‘Mesa para a cama. N&o tomamos banhos frios nem quen- 58 SATYRICON tes, mas para que melhores cobertas do que o calor do ‘alerno? Engoli varias tagas, e logo estava louco de dar gosto, © cérebro encharcado de vinho. XLIL Um tal Seleuco o interrompeu: — Quanto a mim, nao me lavo todo dia. Lavar é coisa de lavadeiras. A agua tem dentes, e consome nosso corpo todo dia. Basta eu tomar um gole de vinho tinto com mel, ¢ hamo o frio de verao. Alias, nem podia me banhar hoje, m de um funeral. Bela pessoa, o falecido Chrysanthus icaba de esticar as canelas. Ainda hé pouco me chamav: }e chamava. Parece que ainda estou falando com ele. somos uns odres cheios, valemos menos que moscas, pelo menos, tém algumas qualidades. Nos, nés n&o samos de bolhas d’agua. E veja, se ele no fosse absté- € severo na alimenta¢4o? Cinco dias, ndo tomou uma "agua, uma migalha de pao, e se foi, assim mesmo, m © matou foram os muitos médicos, ou é porque nha chegado sua hora. © médico é apenas um consolo a a alma, Mas morreu bem, caixo de primeira, flores estagdo, roupas de gala, e as carpideiras choraram que cra uma beleza. Libertou, no leito de morte, alguns escra- . Mas sua mulher, todo mundo viu, chorou apenas igrimas de crocodilo. Por que isso? Ele sempre deu a ela bom ¢ do melhor. Mas sabe o que sao as mulheres? Que m gaviéo. £ preciso nao fazer nada para agradé-las. ria como atiré-las dentro de um pogo. Para elas, um nor antigo & um cércere, 59 PETRONIO| XLII Jé Phileros proclamou: — Lembraremos dos Viveu bem, melhor morreu. ceu na merda, morreu nadani como cresce um favo de mel, xado um milhao de sestérci Ihes dizer a verdade, porque nao tenho Papas na lingua, falecido era um desbocado sem-educacao, maledicent @ propria discordia encarnada, Seu irmao era gente fin sono dos amigos, mdo-aberta, mesa cheia para todos, No Cameco de sua vida, deu um mau passo, Mas, na primeira Vindima, comegou a se aprumar. Vendeu seu vinhe ao pre- fp tue bem quis. Andava de queixo erguido, tinha Tece- bido uma heranga modesta, e deixaria mais do que tinha bene Wo. E, contra seu irmAo, o miserdvel ndo deixou seus bens a ndo sei qual desconhecido miserdvel? Realmente, Para muito longe foge, quem dos seus foge. Imagine, tinha seenivOs como confidentes ¢ conselheiros, eles 0 leveram a E quantos anos juand desta para melhor? Setenta, © da pra cna Mag oot Gomo um chifte, carregava muito bem a idade que cafes cabelos todos pretos, como um corvo. Quande ¢ conheci, anos atrds, ra chegado numa sacanagem e, até velhe, cog, "wou sacana. Nao, por Hércules, noha muitos comp cour (28) “Qui linguam caninam coms ‘gua do cachorr 7.) 0 SATYRICON Je. Homem mulherengo, sabido como um filho da deusa Minerva, Nao 0 reprovo. Foi tudo que ele levou para a cova. XLIV Isso disse Phileros, isto, Ganimedes: — O que voeés estao falando nao tem pé nem cabega. fome ronda em nossa volta. Nao, por Hércules!, hoje, 0 ia inteiro, nao consegui um pedago de pao para comer. bem por qué? A seca prossegue. Faz um ano que eu pas- me. Malditos os vereadores que fazem I4 seus pactos 0s padeiros. Vocé livra a minha, que cu livro a sua, € ovo mitido que se foda, enquanto as mandibulas desses uessugas mastigam banquetes. Ah, se tivéssemos ainda re nds aqueles homens fortes como ledes, que encontrei quando vim da Asia! Aquilo é que era viver. A Si ava seca, Os campos sem uma gota d’dgua, como se er a tivesse amaldigoado. Me lembro de Safinium, ava perto do aqueduto velho, eu, crianga, el verdadeira fera.” Por onde ele passava, a cra gente fina, limpo, amigo do amigo, o tipo de gente com "m voc pode tranqililamente jogar par ou impar no iro. Eno tribunal? Precisava vé-lo! sirios. E nao falava por esqucmas, ‘ntava, lembrava do nome de todo mundo, como se psse um de nds, Naquele tempo, nao havia fome. Enquan- dois homens esfomeados nao conseguiam ler um p&o que custava um centavo. Agora, por esse ‘nfo homem”, TY PETRONIO reo, voce ssa um pao do tamanho de um olho de . Ai, ai, ai, cada dia, pior! Esse cauda de vaca, para baixol E ot Tens oa de meia pataca que dé mais valor a um centavo do que a nossa vida. Em casa, vive na maior abundancia, Ganha , ndo acontecia. Mas aj ora o € assim, em casa, uns ledes, na rua, boone ws Core? como as raposas. Quanto a mim, jé vendi todas as minhay Ls oad Para poder comer €, Se a seca perdurar, vou ter que fender a roupa do corpo. Que futuro nos aguarda, se nuns (s deuses nem os homens fizerem alguma coisa por nossa {erra? Os deuses que me perdoem, mas acho que é a vonta, dle dos céus. Hoje em cia, ninguém mais acedita em nada inguém observa os dias de jejum, ninguém esté dando ‘minima se existe um Jépiter ou ndo. Todos, olhos bem aber, os, ficam contando seu dinheiro. Antigamente, as mulheres jam, descaleas, eabelos soltos, um véu no rosto, a alma pu, Gy Pats ovr a Jopiter que mandasse chuva, Logo, chova a Ginitos,¢ todo mundo fcava com um soriso de orelha a rset it era entao, hoje, Jamais. Como os ratos, os caminham com os pés calcados em Ia. E porque néo temos mais f€ nos céus que nfo chove mais nos campos.” XLV — Por favor, vamos levantar o niv : . el do papo — di Bzhion, um esfarrapado. — Devagar, devagar — dias wrador que tinha perdido um porco. — © que nao for 62 SATYRICON ser amanh, assim vai a vida. Nao, por Hércules!, ia melhor, se fosse habitado por homens melho- res. Agora, ele sofre. Nao sé ele. Nao vamos ter papas na gua. O céu nasce para todos. Se voc® morasse em outro voc’ diria que aqui os leitdes passeiam cozidos. Nao jamos ter, em trés dias, um espetaculo magnifico, um mbate, no de simples gladiadores, mas com intimeros ‘tos? Titus, meu senhor, tem a alma grande, uma cabe- esquentada, para ele, ou é isso, ou aquilo. Conhego ele afinal, é meu senhor. Nao é de brincadeira.” Com & ferro puro, sem direito a fuga. No anfiteatro, vai ser carnificina linda de se ver. E ele tem recursos para Ao morrer, seu pai lhe deixou trés milhOes de sestér- Que gaste quatrocentos mil. Nem arranha sua fortu- E deixa uma fama para sempre. Ele tem uns cavalos ses ¢ uma mulher condutora de bigas para abrilhantar spetaculo, Contratou a seu servico 0 administrador de lycon, que foi despedido, quando o patrao 0 encontrou mendo a mulher do préprio. Todos vao rit, uns toman- © partido dos amantes, outros, do marido traido. lycon mandou atirar o administrador ds feras, ele, que (0 vale um niquel. Isso é se entregar ao ridiculo piblico. que pecou 0 escravo, que teve que fazer o que fez? A gabunda € que merecia ser atirada as feras, nao acha? Mas quem nfo pode bater no burro, bate na canga. E, ial, © que € que Glycon esperava de bom da filha de ermégenes? Aquilo nunca foi flor que se cheire. Ele que asse o cavalo da chuva.” A cobra no da luz minhocas. lycon expés a cara, enquanto viver vai ficar a marca, em sabe se 0 inferno vai conseguir apagé-la.. Mas cada n peca seu proprio pecado. E jé sinto até o cheirinho do ppalayra que s6 se encontra inuscritos que nos chegaram, Petrénio, a nfo ser que seja erro ppoterat ungues resecare”’, literalment ‘era melhor que tentasse cortar as unhas de um gavito no vo”. (N.T.| 63 PETRONIO festim que vai nos dar Maméia, duas moedas de ouro, para mim e para os meus. Se ele fizer isso, vai fazer muito mais do que fez Norbano. E desse lado que sopra o vento, E, pensando bem, que nos deu esse tal Norbano? Um miseré. vel de um jogo de gladiadores tao decrépitos que qualquer um derrubava com um sopro. J4 vi melhores gladiadores lutando a noite, a luz de tochas. Onde voc8 esperava galos, galinhas. Um gordo, que mal conseguia se arrastar. Um manco, que fazia dé. O que subs guerra. O iinico que ainda mostrou algum servico era um trécio, que, no final, mostrou que estava numa jogada ensaiada. Em suma, um bando de covardes mentirosos, que estavam ali sé para enganar a platéia. Com tudo isso, Norbano ainda disse: — Ofereci um espetdculo e tanto. Faca os céleulos, Dei mais do que recebi. Uma mao lava'a outra.” XLVI Parece que estou vendo voce, Agamenon, dizendo: — O que é que esse chato esta dizendo? Por que vocé, que fala t4o bem, nao diz nada? Voce, J sei, no € da nossa faixa, e vocé ri dessas palavras de Pobre. Todo mundo sabe que vocé é muito vaidoso da sua ira. E dai? Qualquer dia desses, vou te convencer a vir nossa aldeia ¢ ver nossas casinhas. Vai ter alguma coisa pra comer, um frango, uns ovos. Vamos passar bem, embora o tempo este ano no tenha estado dos melhores, A gente vai achar um jeito de encher a barriga, Vou te apresentar meu pequeno Cicaro, teu futuro G3) A fala de Echion ¢ toda feita de provérbios, adégios ¢ ane- ‘ins, a modos da portuguesa Comédia Eufrosina, de Jorge de Vascon, celos. (N. T.) 64 SATYRICON jj sabe dizer quais so as quatro partes da oragio. Se se criar, vocé vai ter ao seu lado um pequeno escravo do teu saber. B s6 ele ter um momento de lazer, e nfo tira os ihos do livro. Garoto esperto, bom filho, ele, embora tenha essa mania de ficar cagando passarinho, para botar aiola. J4 matei uns trés dos passarinhos dele, e disse foi o gato. Mas ele continua montando suas arapucas. faz até versinhos, 0 bandido, Nao acha mais graca em dar grego, ¢ estuda a lingua latina com muito gosto, ora seu professor nessa matéria deixe muito a desejar. 'm homem culto, mas nfo gosta de trabalhar. Tem tam- bém um outro professor, no to preparado, mas mais lento, tanto que ensina mais do que sabe. Vem normal- mente I em casa em dias feriados e fica contente com iquer pagamento que eu the dou. Comprei, hd pouco, 70s de Direito para 0 garoto, que eu quero que ele istre, um nossa casa. Ai, sim, esta um ganha- De literatura, ele ja esté com a cabega mais que chei que eu quero, é que ele encare alguma profissio séria, beiro, escrivao publico, ou pelo menos, advogado, uma isa, enfim, que so a morte possa lhe tirar. Assim lhe digo, todo dia: — Meu filho, escuta 0 que eu te digo, o que voce nder, € pra voc® mesmo que voc8 aprendeu. Olha 0 Ivogado Phileros, se no tivesse estudado, hoje, estava iorrendo de fome. Anteontem, ontem, carregava lenha \s costas. Hoje, é quase to rico quanto Norbano. As s silo um tesouro. E uma profissio nunca morre. XLVI As fabulas ainda vibravam no ar, quando eis que ita Trimalcido ¢, enxugando a testa, Ungilentos, ¢ disse, depois de um siléncio: PETRONIO SATYRICON — Nao levem a mal, meus amigos, ha dias que nao consigo cagar direito, e os médicos nao sabem © que dizer. Mas acabo de tomar uma infusdo de casca de granada no vinagre. Espero que assim minha barriga tome vergonha. Se nao der certo, vocés me ouvirao peidar, como se um touro mugisse. Alids, se algum de voc8s tiver 0 mesmo pro- blema, nada de acanhamentos. Ninguém é perfeito. Acre- dito que nao ha tormento igual ao de nao poder cagar. Nem 0 préprio Jupiter poderia nos impedir disso. Vocé esta rindo, minha cara Monetaria, vocé que ndo me deixa dormir de noite de tanto que peida! Jamais impedi meus XLVI convidados de lar, de cagar ou de mijar. Os médicos dizem que se deve fazer o que se tem vontade. Se alguém tiver alguma necessidade urgente, ali fora tem agua, priva- da, panos, e tudo 0 que € preciso. Quando os vapores do corpo chegam no cérebro, o corpo todo se ressente, Javi gente morrer, por ndo querer cagar. Agradecemos a gentileza e a indulgéncia do nosso anfitriao, e, a seguir, quase morremos de rit , de tanto re- termos 0 riso. Nem imaginévamos que mal estévamos no meio daquele festim inacreditavel. Logo, tiradas as mesas, a0 som da orquestra, trs porcos brancos foram trazidos diante de nds, com uma argola no focinho ¢ sinetas no pes- ogo. O escravo que os conduzia nos disse que um deles tinha dois anos, 0 outro trés, e 0 outro j4 era velho. Imagi nei que eram esses porcos treinados de circo e que, logo, iam fazer, diante de nés, algumas acrobacias. Trimalcido dissipou as diividas: — Qual deles vocés querem comer? Camponeses ma- tam, na hora, galinhas, fais6es e outros bichos, ¢ os cozi- nham. Meus cozinheiros matam e cozinham bois, na hora, Chamou 0 cozinheiro e, sem esperar nossa escolha, mandou_matar 0 porco mais velho, E com a voz mais aguda: "OU a expor os termos da controvérsia que tinha con- — Cozinheiro, a qual grupo voce pertence? do aquele dia. — Grupo quarenta, meu senhor, Na hora, Trimalciao: — Comprado ou nascido na casa? — Nenhum dos dois, senhor. Pansa me deixou em testamento, — Entao, capricha, sendo te mando para a turma que pa privadas, O cozinheiro, ouvindo a voz da autoridade, mais que depressa, levou 0 porco para a cozinha. Entdo, Trimalcigo langou até nbs um olhar benigno: — Esse vinho, se voces ndo gostam, mando servir ‘0. Mas mostrem que vocés esto a altura dele. Gracas fis deuses, tudo isso que vocés esto saboreando, eu nado pro, mas se produz em minhas propriedades, algumas cu nem cheguei a conhecer ainda, umas terras nos arre- es de Tarracina e Tarento. Gostaria muito de comprar s terras que me faltam entre esta parte e a Sicilia para, indo eu quiser ir a Africa, eu possa viajar sem sair das 's propriedades. Mas, diga ai, meu caro Agamenon, foi o discurso que proferiste hoje? Eu, se nfo faco ursos no tribunal, tenho c& comigo minhas letras. E, os, saiba que jotecas, uma s6 de obras em grego, e duas se Voc me tem amor, um resumo da sua — O pobre ¢ o rico eram inimigos... — quando Tri- Malcido o interrompeu: — O que é um pobre? — Brilhante pergunta — lisonjeou Agamenon, e PETRONIO| — Se é um fato real, nao é assunto para controvérsia. E, se ndo é um fato real, no é coisa alguma. Todos aplaudimos entusiasmados a genialidade da observacdo, ¢ Trimalcido prosseguiu: — Meu caro Agamenon, lembra dos doze trabalhos de Hércules? E a historia de Ulisses, aquele trecho em que © ciclope lhe arrancou o polegar com uma varinha? Ah, quando eu era crianca, eu lia essas coisas todas em Home- ro. E vi com meus proprios olhos a sibila de Cumas sus- pensa dentro de uma ampola, e quando as criangas pergun- tavam a ela: — Sibila, que queres? Ela respondia: — Eu quero morrer.* XLIX Trimalcido mal acabava de falar seu bando de asnei- ras, quando foi servida uma travessa com um enorme oreo. Ficamos admirados da velocidade dos cozinheiros Que assaram um porco mais rapidamente do que a gente cozinha uma galinha. E nos espantamos de que 0 porco fosse ainda maior do que o javali que nos tinham servido ‘ha pouco, Mas Trimalciao, de repente, olhando bem o porco: — Mas o que é isso? Nao tiraram as entranhas do ani- mal? Me chamem, chamem ja o cozinheiro! cozinheiro, angustiado, foi trazido e confessou z theiro, , ue tinha esquecido de destripar 0 porco. a (09 No ong, pers das rags ea rpona dS ‘estilo em grego. (N. T.) a ie 68 SATYRICON _— Esqueceu? — gritou Trimalciao. — Quem ouve, a impressao de que vocé esta dizendo que esqueceu de year pimenta e cominho. Abaixa a roupa! Nao demorou, e o pobre cozinheiro estava nu ¢ entre escravos torturadores. Comegamos todos a implorar cleméncia para com 0 oe — Isso acontece — diziamos. — Por favor, perdoa. errar de novo, nao pediremos mais cleméncia. Eu fiquei possuido de uma crudelissima severidade, € inei no ouvido de Agamenon: — Com franqueza, esse deve ser 0 mais imbecil dos escravos. Onde € que ja se viu esquecer de tirar as tripas de um poreo? Nao, por Hercules! Nao o perdoaria, nem se esquecesse de limpar as tripas de um peixe. Mas Trimalciao, abrindo 0 rosto num sorriso, con- — Vamos, vamos, cozinheiro, jé que tens to mé me- ria, abre e destrincha o porco diante de nés. © cozinheiro recebeu sua tinica de volta, pegou 0 do e comegou a abrir, aqui ¢ ali, com mao t abar- iga do porco. Nao demorou, puxadas por seu proprio pe- comegaram a cair, de dentro da barriga do porco, uurigos ¢ linguigas em profustio. L Automaticamente, depois desta divertida brincadeira, 0s escravos na sala comecaram a aplaudir e a gritar, ‘Viva Caio!”*. O cozinheiro teve a honra de beber em nossa pre- senga, ganhou uma coroa de prata ¢ bebeu numa taga de bronze de Corinto. ‘Agamenon examinou cuidadosamente a taga, € Tri- maleido disse: rc) PETRONIO — Sou a iinica pessoa que possui tagas com 0 verda- deiro bronze de Corinto. Esperei que dissesse que, em C¢ bronze s6 para ele. Mas ele disse mais: — Quem sabe, talvez, perguntem por que s6 eu pos- suo tasas de Corinto. E que o ourives que me fornece esas tacas se chiama Corinto. E que de mais corintio que uma taca feita por alguém chamado Corinto?* Mas ndo pensem — prosseguiu Trimalciao — que sou um ignorante, sei muito bem quando surgiram os primei- os vasilhames corintios. Apés a queda de Trdia, Anibal, general esperto, ladréo como ele s6, capturou todas as estatuas de ouro, de prata ¢ de bronze que péde achar, amontoou-as numa fogueira, e mandou tocar fogo. Dessa miscelnea, nasceu o metal que chamamos corintio. Desa massa, os artesdos fizeram pratos, bacias e estatuctas, Assim nasceu 0 corintio, nem ouro, nem prata, nem bron ze, tudo junto. Mas ougam o que eu digo: preferia sé ter objetos de vidro, alguns nao gostam. Se ndo quebrasse tio facil, eu o preferiria ao proprio ouro. Fragil do jeito que é, € uma porcaria, ‘0, faziam tagas de ui ‘Uma vez, um artesdo fez um vaso de vidro que néo quebrava. Foi admitido na presenga de César com seu pre- sente. A seguir, apanhando-o das maos do imperador, atirou-o no chao. César néo podia ficar mais perplexo. Mas ele apanhou 0 vaso do chao. Tinha s6 uma pequena marca, como se fosse feito de bronze. Entdo, o artista tirou um martelinho da sacola e, com toda a calma, corrigiu a mar- G5) Jogo de palavras entre o nome da cidade grega de Corinto ¢ lum escravo chamado Corinto. (N. T.) 70 ty 5 ter, j& que o imperador Ihe perguntava: SATYRICON Feito isso, 0 artesdo julgou ter herdado o céu de Jupi — Além de voc, quem mais'sabe 0 segredo de fazer vidro inquebravel? — S6 eu, majestade. — Guardas! Cortem-Ihe a cabega. Se esse segredo se espalhar, ouro e merda vao ser a mesma coisa. LIL — Meu negécio sto objetos de prata. De prata, tenho vasos do tamanho de uma urna, mais ou menos. Neles, 0 cinzel gravou Cassandra degolando seus filhos, os cadave- res das criangas td bem cinzelados que vocés diriam estar do a cena. Tenho um jarro de prata que o célebre Mys deixou para o meu senhor, nele, se vé Dédalo aprisionando fiobe dentro do cavalo de Tréia.* : ortenno. ainda, tagas representando a luta entre Her- meros e Petractis, tudo coisa de muito valor, alids, coisas que me so caras, nao vendo por dinheiro algum. Enquanto dizia essas coisas, um criado deixou cair um calice. ‘ — Vocé! Agoite-se vocé mesmo, para deixar de ser imbecil. O pobre coitado abriu a boca, balbuciando, para implorar cleméncia. Mas Trimalcio: i : — O que € que vocé esta me pedindo? Fago isso s6 jue vocé tenha mais cuidado no servigo. avs Mas, dobrando-ee a nossas stplicas, Trimaligo per- doou o rapaz. (36) A cultura nouveau riche de Trimalciéo & um verdadeiro “samba do crioulo doido”’. (N. T.) n PETRONIO Assim que 0 coitado saiu, Trimalcigo comesou a cor- Ter em volta das mesas, gritando: ~ Chega de agua! Chega de agua! Mais vinhot 6 vinho! Aplaudimos com alegria essa tirada de humor de Rosso anfitrido, sobretudo Agamenon, que sabia como fazer para ser convidado a mesa de Trimalcio, Coberto de elogios, Trimalciao voltou a beber, E ja meio bébado: ___ Nenhum de vocés convida minha cara Monetéria a dancar? Olha que pouca gente danca como ela! E silo, bragos levantados, imitando os gestos do bufao Syros, enquanto toda a escravaria gritava: = Meu Deus, é lindo, meu Deus, que maravilha!”” E teria saido dancando pela sala, se dona Monetaria ndo Ihe tivesse sussurrado no ouvido, certamente, que tal comportamento era indigno de um personagem de tama- nha importancia. Nada mais instavel que seu humor. Ora, fazia o que a mulher Ihe dizia. Ora, retornava a sua verda- deira natureza. LU © impulso dangarino de Trimalciao fot interrompido Pela entrada de um escrivao que, como se lesse os altos feitos de Roma, comegou: — No dia 7 das calendas de julho, nasceram nos do- minios de Cumas, pertencentes a Trimalcido, trinta ment, os € quarenta meninas. Das granjas aos celeiros, foram transportados quinhentos mil médios de trigo. Nasceram uinhentos bois. Nesse dia, o escravo Mitridates foi cruel, ficado por ter amaldigoado a alma do nosso senhor, Nese (37) Em grego, no original, (N.T,) n SATYRICON , ainda, foram recolhidos a caixa, sem aplicagao, dez Ihdes de sestércios. Nesse dia, aconteceu um incéndio jardins de Pompéia, saido da’ fazenda Nasta: — Como?! — exclamou Trimalcitio. — Desde quan- sou dono dos jardins de Pompéia? — Desde 0 ano passado, senhor. Mas ainda nao tinham entrado na contabilidade geral. ‘Trimalcido ficou uma fera: ; — Proibo terminantemente que me adquiram iedades sem me avisar com seis meses de antece- rio. A seguir, a lista dos nomes dos adi las fazendas ¢ granjas. E a histéria de uma liberta, repu- jiada pelo administrador geral, por ter sido surpreendida bracos de um rapaz encarregado dos banhos. Expli- ‘irias intrigas entre a escravaria mitida. Nesse ponto, entraram os malabaristas. Um deles, um muito sem graga, levantou uma escada e mandou um. to subir nela e, na parte mais alta, dangar e cantar, de- , atravessar rodas de fogo e sustentar &nforas nos den- S6 Trimalciéo se divertia com isso, lamentando que arte tAo dificil fosse tao mal recompensada. A seguir, larou que s6 havia dois tipos de espetaculos que ele imirava, malabaristas e acrobatas, Quanto a todos os outros animais ¢ palhagos, isso tudo era bobagem. — Uma vez — disse — comprei um grupo de atores para me representar apenas comédias romanas, nada de rego. E dei ordens a meu chefe de orquestra de s6 tocar cang0es latinas. B

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