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Douglas Attila Marcelino Doutor em Histria pela Universidade Fedral do Rio de Janet yo (ER) Frofesiof do Dapariamento de Titra e do Pro. rama de Pés-graduardo ent Historia da Universidae Federal Ee'Minas Gerais (UFSIG), Pesquisador do CNP E autor, entre izes Mere lsat morte g anegidrah este sabes faconalslades ¢ sensotades pollicar Ste Paulo: Alamos, oie douglactslagyprall com O historiador como fotdgrafo da morte: uma leitura de Histérias que s6 existem quando lembradas ‘The historian as a photographer of death: a reading of Histérias que <6 existem quando lembradas Douglas Attila Marcelino RESUMO Tomando como objeto de andlise 0 filme Histérias que s6 existem quando lembradas, langado em 2012 e dirigido por Jiilia Murat, este artigo propos tuma reflex2o sobre o fotégrafo como metéfora do papel do historiador. Tal como a fotégrafa recém-chegada na cidade imaginaria de Jotuomba, na qual um conjunto pequeno de mora. dores desenvolve suas atividades dis- las apagando completamente a pas- sagem do tempo, é possivel compre ender o historiador como aquele que se utiliza de rastsos e vestigios para a construgo de imagens por meio das quais 0s sujeitos podem entrar em chogue com o seu pasado, de modo semethante & concepgao benjaminiana sobre a nosdo de rastros e sobre a pro- dlugao de imagens dialéticas. Esse cho- que, como instantaneo que se configu- sana tensio entre 0 recalcado e os de- sejos que tomam qualquer relacao com imagens do passado anacrénica, pode ser libertador do peso de um passado que se acumula, de forma anédina & previsivel, nas repeticdes do cotidiano, or intermédio de gestos, stos, obje- tos, frases clichés, enfim, de uma vi- vvencia que se esqueceu (ou recalcox) da propria passagem do tempo. PALAVRAS-CHAVE: Histrias que 56 exis tem quando lembratas; otogralia; escrita da histéria, aBsTRacT Taking as object of analysis the flr His- térias que 36 existem quando lembra- ddas (Found memories), launched in 2012 cand directed by Jilia Murat, this article proposes a reflection about the photogra- pher as metaphor of the role of th histori- sa, Like the newly arrived photographer in the imaginary city of Jotuomba, in which a small group of residents carry out their daily activities completely erasing the pas- sage of time, the historian can be wnder- stood as someone who uses traces and remnants to construct images through which subjects can enter into conflict with their past, in a similar manner to the Ben- jaminian conception ofthe notion of traces ‘and also about the production of dialectic images. This clash, as an instantaneous Picture configured in the tension between what is repressed and the desires which ‘make any relationship with images of the past anachronistic, can be liberating of the weight of the past which accumuiates in a anodyne and predictable manner in the repetitions of daily routine through ges- tures, rites, objects, and clichés, in short fan experience which is forgotten (or re- pressed) from the actual passage of time. KEYWORDS: Found memories; photog raphy: woritng of history 9 AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 192 Attigos Em set belo livro sobre a meméria, Douwe Draaisma indicou a rique- za da metfora por sua fungao mediadora entre o pensamento sensério e per- ceptivo e o verbal e semantico, pela combinagio de imagem e linguagem, de pictérico e abstrato, tomando-se um recurso fundamental tanto para explicar quanto para ensinar teorias, Esse processo de “codificagao dupla”, verbal e visual, definiria o potencial da metafora como ferramenta heuristica: seja do ponto de vista de uma “heuristica tedrica”, atuando na formulagao de noves conceitos, seja de uma “heuristica empisica”, j4 que a fango comunicadora da metafora permitiria a elaborac historia da meméria, a metafora toma-se central, inclusive por meio da com- binacao de varias delas, pois, como Freud jé havia percebido, tal combinacio fancionaria como contrapartida a inexoravel selegio que o filtro da metafora realiza na producao de sentidos para a realidade. Seria mais pertinente, entao, mencionar “temas metaféricos", os quais permitiriam o estabelecimento de uma histéria da memoria conduzida a partir de toda a riqueza tedrica e empi- 10 de novos t6picas para a pesquisa. Em sua rica advinda do uso das metaforas, desde a sempre relembrada placa de cera de Platao até os computadores da época atual. Afinal, “a histéria da meméria assemelha-se um pouco a um passeio pelos depésitos de um muse da teno- logia” # Nessa histéria da meméria sob a perspectiva da metafora, a camera fo- tografica eo cinema tém, certamente, papéis muito relevantes. Na verdade, “até a invengdo da cinematografia, em 1895, a fotografia era a metafora pre- dominante na para-éptica mental”? Adotando um recorte mais limitado, 0 filme e a fotografia podem servir a reflexo sobre o trabalho do historiador, 0 que néo restringe o potencial heuristico do emprego da metafora. O uso da camera fotografica, tal como interpretado no filme aqui analisado, sera toma- do como metafora do sentido mais profimdo da “operagao historiografica”, sobretudo se considerarmos seu poder de revelagao de uma das dimensoes centrais da atividade historiadora: 0 historiador poderia ser compreendido como uma espécie de fotdgrafo da morte? Essa, sem chivida, é nossa interro- gacdo central e, a partir dela, poderemos explorar as complexas (¢, em certos casos, potencialmente aporéticas) relacdes entre memoria e temporalidade, esforgo deliberado de recordagao e meméria involuntaria, incorporagao do passado, liberacao do reprimido e praticas e ritos cotidianos, O filme que servira de ponto de partida a essas interrogagoes serd His- trias que 56 existem quando lembradas, lnga-metragem lancado em meados de 2012 e dirigido por filia Murat.’ Com a intengao de explorar os pontos indica- dos, negligenciaremos qualquer analise acerca dos propésitos manifestos pela diretora, inclusive porque 0 nosso objetivo é, de fato, “pensar com o filme”, tomando-o como “meio” para a elaboracao de problemas muito especificos, diretamente vinculados ao campo historiografico. Justamente por isso, tam- bém nio pretendemwos elaborar uma anilise mais atenta aos aspectos caracte- risticos das técnicas, da linguagem e da historia cinematografica (por exemplo, UDRAAISMA, Dawe, Metifres de menéri: uma hiskiia das ideas sobre a mente, Bauru: Eds, 2005, p 2 Tan ido, e158 Veg MURAT, Jia. Hstvias gue 58 este quando entradas. Beai/Acgentina/Franga, Taiga Flaes, 2011, 1 DVD (05a) AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 193 Artigos sobre 05 1isos da cdmera ott sobre a relagio entre o filme e realizagées do rea- lismo fantastico latino-americano). Cabe adiantar, em favor de nosso argu- mento, uma das imagens do historiador-fotégrafo que analisaremos em didlo- ‘go com Georges Didi-Huberman: a do historiador como aquele que, por meio do “discurso interpretativo” das producées artisticas, inventa “novas formas” Tal perspectiva, para nossos propdsitos, nos exime do aprisionamento na bus- ca do verdadeiro sentido do filme. Tratando-se de imagens, objeto central de trabalho de Didi-Huberman, poderiamos acrescentar com Draaisma: no pro- cesso de criagdo dessas “novas formas”, a metafora pode ser muito itil, pavi- mentando 0 caminho em diregdo as reflexdes tedricas, Meméria do corpo e apagamento da passagem do tempo Rite: Antnio,. aque pine ats da igre. por que zocts nto anctam mais quem marta? Antonio: Agu a gente esque de morrer. (Creche de Histria lambradas) 6 existem quando Fotégrafa recém-chegada a cidade, Rita acabava de recolocar o disco na vitrola, permitindo que a festa continuasse, quando fez a pergunta sobre a falta de novos registros no painel dos mortos a Anténio. Durante o almoco do dia anterior, ela havia feito um pedido ao padre que, todos os dias, realizava a missa na pardquia da comunidade: “Padre, eu queria tirar umas fotos dentro do cemitério... nao é o senhor que tem a chave?”. “O cemitério esta fechado”, ouviu do Hider religioso, em tonalidade pouco aberta a questionamentos. Mo- mentos antes, quando propunha um brinde, Rita havia escutado que, as mu- Iheres, nao cabia 0 vicio da bebida: “e que vicios a mulher pode ter, padre?” “A mulher pode chorar, parir, costurar, rezar...” A sés com outros moradores, Rita insistia em saber: “mas, quem foi que fechou?”. “Fechou o qué?” “O cemi- {ério”, “Foi Deus... Deus falou para o padre e ele falow para a gente... Deus na0 precisa de explicacdo... $6 Deus tem esse poder...” O padre era o representante religioso da cidade de Jotuomba, localida- de imaginaria do filme de Jiilia Murat. Ali, Rita havia chegado dois dias antes, hospedando-se na casa de Madalena, outra personagem central de Histérias que $6 existem quando lembradas. E justamente pelo rosto de Madalena, ilu- minado pela vela que acende o candeeiro, que comeamws a ter acesso a essa historia. Apés deslocar-se até a cozinha, Madalena inicia uma rotina que se repetira todos os dias. Como em um ponto de luz em meio a escuriddo que permeia a madrugada de uma zona rural, seu rosto se revela em destaque. ‘Movimentos ritmados das maos limpam o baleao e iniciam a feitura do pao. Os toques na massa, os sons da farinha caindo na panela ou da quebra de ovos em contraposicao aos ruidos do vento, dos passaros e de outros animais que rompent o siléncio absoluto das primeiras horas do dia: so cenas que, sob Angulos diferentes, se repetirao ao longo do filme. Interrompendo a rotina de Madalena, cujas tinicas alteragdes prova- velmente se deviam as intempéries do tempo, Rita surgiu de forma repentina. Esperava na varanda, com sua maquina fotografica e mochila, quando, final- AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 194 Artigos mente, a dona da casa apareceu, retomando da rotina de mais tm dia. Depois de trabalhar 0 pao, Madalena seguia a pé por um caminho com trilhos desati- vados até o armazém de Anténio, Homem jé idoso, Anténio abria a porta me- todicamente no momento de sua chegada e, em seguida, comecava a fazer 0 café. Eram os primeiros momentos de uma jomada indiferenciada: aps 0 ca- 48, Madalena Anténio sentavam-se em tm banco do lado de fora, conversa- vam sobre as mesmas coisas, escutavam o toque do sino da igreja, acompa- nhavam outros moradores & missa na paréquia, almogavam juntamente com 0 padre e os demais para, ainda antes de escurecer, Madalena retomar pelos mesmos trilhos até a sua casa. As repetigdes dos gestos, agdes e falas configuram aquilo que mais chama a atencio no filme de Murat. A preparagéo do café compunha cena exemplarmente irénica: “pode deixar os paes ai na cesta que depois eu arru- mo", repetia Antonio todos os dias, ao passo que Madalena prosseguia colo- cando os pies no armario. “Custa fazer do jeito que estou mandando?”, per- guntava ele, antes de postar-se na frente de Madalena, exclamando lentamen- te: “velha teimosal”, Segutiamr-se criticas ao café de Anténio ¢, logo depois, no ‘banco do lado de fora, ele recebia 0 pao e repassava o copo de café a Madale- na. Os sermoes na igreja eam igualmente repetitivos, terminando inevitavel- mente com a afirmacao do padre de que “os dons e a vocagio de Deus so irrevogaveis”, assim como 0 almoco, sempre precedido por uma oragio, tam- bém solicitada pelo lider religioso, enquanto Carlos, um velho negro, ao fun- do, ja se alimentava (provavelmente, por nao ver sentido em certos ritos caté- licos de uma comunidade que mantinha espago fechado para outras religiosi- dades) O mais importante, entretanto, é se questionar sobre o quanto de pas- sado, como meméria, como temporalidade, havia escondido nessas repetigoes cotidianas, Em uma das nmitas cenas da preparacao do pao por Madalena, ela ensinava: “vocé tem que sentir o tempo da massa com a sua mao”. Meméria das maos, meméria do corpo: estamos aqui, integralmente, no dominio daqui- Jo que Henri Bergson chamou de “meméria-habito” e que toda uma tradicao de estudos reconfigurou adicionando novas formulagées e precisdes conceitu- ais (seja em tomo de nogdes como habitus, “protomemria” out outras seme- Thantes). Conforme indicou Patil Connerton, esse tipo de meméria, com sett teor performativo, compoe boa parte de nossas atividades didias, constituin- do-se em um dos principais modos de persisténcia do passado e impondo grande inércia a vida coletiva? O problema é que a meméria corporal parecia to avassaladora em Jotuomba, ocupando todos os espagos da vida cotidiana, que acarretava (ou respondia a) o apagamento daquilo que Marcel Proust, & também Bergson, entenderam como a verdadeira memoria, ou seja, a memi6- ria involuntéria, tmnica guardia de um uma relagdo mais auténtica com 0 pas- sado Ha um descompasso evidente entre o ritmo lento da vida no campo, Propicio a interrupcao do movimento do tempo e ao encontro do presente {Ver BERGEON, Hens Matis © memérs: enasio sobre a reasia de corpo com o expo. Sio Paul: [Martine Fontes, 2006, Joal Candau sumarizou diversosconceitas com conotagies similares a0s de Bergson fem CANDAU, Jost, Mere eesiade, Ro Paulos Content 2011 Ver CONNERTON, Pau. Coo as socedates recordin, Lisboa: Calta, 1999. © Ver PROUSL, Mascel. Em busca do tempo pedi. Rio de Janizo: Nova Fronteisa 2016, 3 AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 195 Artigos com 0 passado na atemporalidade do devaneio, e a inexisténcia de brechas pelas quais poderia entrar uma meméria mais introspectiva: uma vida com- pletamente dominada pela “meméria-habito” seria ainda uma vida ou apenas uma morte vivida, como talvez pensasse Proust?” Uma explicag Tuntaria talvez esteja no actimulo de trauimas dos personagens: as lembrangas que lampejam quando instadas pelos didlogos estabelecidos entre os morado- res so, na maioria das vezes, de eventos que causaram enorme sofrimento, sugerindo o encobrimento de um pasado doloroso porque vinculado a mor- tes tragicas. Na verdade, era Rita, sobretudo, que impulsionava a ruminagao do pasado, pois sua propria presenca, com sua juventude, sua maquina foto- grafica, abalava os alicerces de eventos recalcados e fortemente cristalizados, Assim, apés Madalena perguntar a Anténio sobre o que achava dos jovens, ouviu uma rude resposta: “o mais velho, morreu debaixo de um trator... 0 outro morreu no Paraiba, afogado... e 0 outro, em Volta Redonda, matado” Depois de Rita gentilmente dizer a Madalena que “as fotos se apagam se rece- bem carinho”, igualmente descobriu tm passado doloroso por tras das cari- Gas que fazia no retrato do marido: “meu filho tinha um ano quando cheguei em casa e vi ele fazendo vémito... 56 depois de um ano da morte dele ¢ que descobri que ele levou um tombo... a mulher que cuidava dele o colocou em uma cristaleira para tirar retrato e ele tomou um tombo’. A inversdo da logica da vida, quando os filhos morrem antes dos pais, parece incongruente com os valores de uma sociedade tradicional, compreen- dida por meio do tempo lento dos ciclos que, a cada dia, repetiam e reprodu- ziam valores arraigadamente catlicos. Por outro lado, sao conhecidas as teo- tias de Freud acerca das repet protetora, substitnem recordagdes de eventos traumaticos, impossiveis de se- rem suportados na forma de lembrancas pela cisao criada nos anseios de tota- lidade que perpassam a constituicao identitiria do sujeito.? Nesse caso, a pre- senga de Rita poderia ser entendida como parte de um “trabalho de meméria” ou “trabalho de luto”, por meio do qual um passado mais profundo comecava a ser libertado pela verbalizacao do que ficou retido na lembranca? Essa leitu- 1a, entretanto, parece limitada, sobretudo, se considerarmos outra tematica que atravessa o filme, fornecendo sentidos mais apropriados & compreensio das repetigdes dos personagens. Na realidade, o que se percebe é a tentativa, nao deliberada, de apagamento das marcas da passagem do tempo e, portan= to, da propria morte io possivel para o efetivo recalcamento da meméria invo- -s involuntarias (acting out) que, como forma * Condoeme indicou David Lapesjade, em Bergson, a memésia halite “aul ¢ uma mend semetende para ateidades que "Bhiteam mama eepécia de presente constants”. LAPOUJADE, David. Potncis 40 fenpo. Sao rule: 1 Edigbe, 2010, p. 35,0 proprio Bergeon, 20 trstardoora dimers de noosa rolagio| com 0 passado, a destacaria como “antes hibto do que memoria", ressaltando que um sujeito voltado Spenas para s memériasnsite se toraria um “autimnato conscient”, incapaz de elaboras “seas gerne” BERGSON, Henti op. ts p. 176 @ 182. Note-se que Paul Connerton 20 foumular a novae de “pratcas de secorporacie” para caactenzar essa Gimensio da mene corporal ago denos de resale que cla eavolvera tambéat o desea. Para o autor, o "habito” seria mas do que uma “tecnica” © do que uma “isposigto", tomando mais oportuna a wtli2asi0 da nosto de "pritica™. CONNERTON, Paul. op. ct 107. £ Ver entre outros FREUD, Sigmund. Recordar repetir e elaborar (Novas recomencagtes sobre a técnica da psicaniise I) (1914), bu: O caso Sivebr artigo sabre tence e vrs trsblies (1911-1913). Rio de Janse: Imago, 1996 (Edict standacd basieira das obras pscolopicas completas de Sigmund Freud, 12), Ver RICOEUR Paul Le lecture del tempo passed: nemona yclvide, Madsid: UAM /Actese, 1999 AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 196 Attigos Caberia se perguntar mais sobre 0 desconforto que a presenga de Rita significava. O rosto paralisado de Madalena, quando a encontrou pela primei- ra vez e recebeu a indicagao de que permaneceria por dois ou trés dias na di- dade, parece representativo. Mas, sdo os olhos arregalados dos moradores, apés ela ser apresentada por Madalena e se prontificar a ajudar no trabalho, que s40 mais expressivos: o que viam na juventude de Rita? O retoro ao pas- sado? Um reencontro com a temporalidade? “Quando era jovem, eu tinha uma namorada que morren com dezoito anos... gracas a Deus eu ndo vi ela ficar velha porque, quando eu lembro dela, eu também tenho dezoito anos’, dizia Anténio a Madalena em certo momento, Pouco antes, ela havia pergun- tado se tinha aparéncia de velha e afirmado que “o men marido me dizia as- sim: Madalena, quando olho para vocé nao vejo como vooé €, Vejo como voce eta quando tinha vinte anos”. “Quando a gente tem boas lembrangas da ju- ventude, nao tem que ficar visitando depois de velho”, ressaltava Anténio, interditando o convite ao retomo no tempo em busca de antigas lembrancas, Em outra cena, algums moradores, ao posarem para as fotografias de Rita em ‘um banco coletivo, acusam «ns aos outros de velhos em tom de pilhéria e um deles revela: “na minha infancia, eu tinha uma namorada igualzinha a vo- <@...", “O que acontecew?...”, “Ela se casou com o meu irmao” Apagamento da experiéncia temporal, nos gestos, nos ritos, nos rostos que nao sio colocados diante dos espelhos, ou mesmo olhados por uma mira- da direta do préximo, Era por meio do medo da morte, entretanto, que o re- calcamento da passagem do tempo se mostrava mais enfaticamente, Apés certo conflito por Madalena entrar novamente sem bater no quarto em que estava hospedada, Rita oferecen seu fone de ouvido: “quando eu morrer, nao quero choro nem vela/ Quero uma fita amarela gravada com 0 nome dela/ Se existe alma, se ha outra encamagao/ Eu queria que a mulata sapateasse no meu caixao”, Os versos da composicao de Noel Rosa foram repelides pelo gesto rude com que Madalena retirou os fones: “gosto mais de serenata!”. Em uma das reunides de almogo apés a missa, Anténio amanciou sua proposicao: “am brinde! © sujeito s6 morre quando chegar a hora! Ninguém morre de vésperal”. Em outra ocasido, Madalena revelava a Anténio: “estou com medo de morrer”. “Entdo, ndo morre. Voot pode viver o quanto quiser”, respondia Anténio, dando prossegttimento ao velamento da morte por meio de falas e Priticas que, sob a roupagem da afirmacao assertiva, escondiam um temor mais profundo. Certamente ha em Proust, como alguns de seus intérpretes ja destaca- ram, uma associagéo entre a meméria involuntaria e a morte. O apagamento da morte, seu esquecimento, manifesto no fechamento do cemitério, guarda vinculos estreitos com o pequeno espago concedido & memiéria mais auténtica, ao devaneio, ao sonho e, consequentemente, a arte em seu sentido mais pro- fnndo: aquele de nos aproximar do perigo.”” Dessa forma, a fotografia, com sett poder de transformar os objetos em “reliquias”, que existem simultanea- mente no passado e no presente,!! ou como suporte que consegue evocar toda ¥ Ver DIDI-HUBERMAN, Georges: De semethanga a semethansa. Ale: Estudos Neclatnos, 13,1, Rio de Janeit, jan un. 2011, p30. Ver LOWENTHAL, David, Como canhecemos © passade. Projo Hi 1X TT, Sto Paso, set 2012, AitCuttra, v.22, 0.40, Uberlndla, jan-jun. 2020, p. 191-212 197 a intensidade afetiva da memoria involuntaria podia gerar 0 temor que acom- panha certo fascinio. A maneira das madeleines de Proust, as fotografias de Rita funcionavam como gatilhos que podiam transportar Madalena para um reencontro com o passado, ao passo que, curiosamente, eram também instru- mentos usados pela propria Rita em busca de experiéncias antigas vividas coma intensidade da memsria involuntaria.® “Essa vila... me lemibra umas historias que meu pai me contava...”, des- tacava Rita a Madalena. “Voeé gosta daqui?”. “Eu gosto”. “Entdo, vou deixar tudo isso para vocé". Em outra cena, quando anuncia que vai embora naquele dia, Rita estabelece 0 seguinte didlogo com Madalena: “Madalena, eu vou em- bora hoje... Queria te agradecer por tudo”. “Voce nao pode ir embora...”. “Nao posso € ficar fingindo que pertenso a outro lugar”. “A que lugar vocé perten- ce?”, A pergunta, que ficott sem a tesposta de Rita, indica justamente essa busca pela possibilidade de reviver experiéncias passadas. E, embora o filme deixe abertas as possibilidades imaginativas em tomo de seu desenraizamen- to, serve de amparo as teses que associam a intensidade da meméria, no sen- tido bergsoniano de experiéncia mais auténtica de transporte para um outro tempo (0 passado como outro plano ontolégico),# ao seu carater evocative, ou seja, sua natureza involuntaria, ‘A busca de Rita (no sentido forte da palavra, relativo & anamnese) ja~ mais poderia corresponder ao carater radical da experiéncia que Madalena eve diante de suas fotografias. Proust, que associava a memoria involuntaria a verdadeira vida, a tomava como uma fuga para fora do tempo, em que pas- sado e presente se reencontram a partir do estimulo aos sentidos, configuran- do um processo que se realiza de forma absolutamente nao deliberada (o som do tilintar dos garfos em um prato, a sensagao ao rocar um guardanapo nos labios, a busca do equilibrio apés tropecar nas pedras irregulares de um cal- camento ou, no exemplo mais conhecido, o sabor da madeleine). Nessa pers- pectiva, 0 adeus de Rita poderia representar certa desisténcia da busca por experiéndias inacessiveis por meio de gestos voluntarios, ou (se adotassemos uma leitura mais lacaniana) um sentido conferido & pratica fotografica como forma de lidar com 0 desejo cujo objetivo mais profundo ¢, justamente, a pr- pria procura, tal como no sinuoso caminho enfrentado pela carta roubada no conhecido conto de Edgar Allan Poe. = Sobce a forma como “a lenbranga sempce exige um gatlho” ou fz parte de um processe que “oe dispara por choquas", ver ASSMANN, Aletda.Fopags ds reordugio: formas etansformacoes da meméesa calsal Caapinae: Uscamp, 201, p. 22, 1 Ver DELEUZE, Gilles. Bergson. Sto Paulo: Editors 34 2012, p48. E nasse sentda tumble que Dasleuze ertabeloces ciferensa ente um “inconecienle prisligica’ e um “inconeciente onfologics” presentes na obra de Bergson. vinculando o primeiro 30 presente © @ segundo, ao passado (er p. 61 do liv). Retomando as ideias de Deleuze, Lapowade destcaria que, como um “mundo paraielo 20 do presente" em Bergson, o passado "ado esta ats de ns, mas ao nes Indo", LAPOUJADE, Davi oP typ 2. "Valera ceplicar aqui Marshall Sahlins quando, tratando de outro contexto de contionto de padsbes sulturis, obeervou que aquilo que pode se aprecentar pars alguns como tum acontecimento Banal para cutzos, pode ser uma experséncs radial. SAHLINS, Marshall hs de ast. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, pit 5 Vero conhecide conto “A carta roubada’, de Edgar Allan Poo, eas interrogagées levantadas por Jacques Lacan 2 pattic dele, LACAN, Jacques. Seminisio sobse "A carta soubada". Ini Eset Sdo. Paulo Perapectiva, AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 198 Attigos Essa tiltima leitura parece frutifera, sobretuido, quando confrontada com a forma de agir de Rita, ainda que pudesse ter maior enraizamento nos tragos e comportamentos instintives que davam certa configuracdo intimista & personagem do que em uma elaboracao racionalizada. Desde a primeira ma- nha em que acordara na casa de Madalena, Rita se mostrou sensivel a tempo- ralidade dos objetos © dos lugares, & historia inscrita neles: 0 candeeito, as flores, os recantos da igreja, os objetos do armazém de Anténio, como a antiga muiquina de calcular, as imagens religiosas, os retratos. Ao fotografar os obje- tos, Rita os punha novamente no tempo, os retirava da atemporalidade do Sbvio, daquilo que jé parece to evidente que ndo se vé: “tem ninguém aqui. 86 coisa velha”, resmungava Madalena apés ser apresentada as fotografias. Certa recusa ou impossibilidade de ver sentido no mundo tangivel acompa- nhava Madalena e se mostrava no juizo que fazia dos objetos, das coisas coti- dianas, da prépria localidade: “o que veio fazer aqui? Tirar foto de cidade va- zia?”. “Vai ver que nasci na época errada”, respondia Rita, que também se fixava, com sua maquina que parecia repor a vida, ou a verdadeira vida na sua auténtica temporalidade, nos tragos do rosto ou nas maos de Madalena. Como se sabe, nossos desejos se configuram por relagao aos desejos do outro’ e, justamente por isso, a recomposicao da temporalidade dos objetos, dos ritos, dos gestos, levada a cabo pelos registros de Rita, nao poderia deixar de sensibilizar Madalena. Aos poucos, podemos perceber no olhar, nas falas, nas drividas da personagem indicagdes de um reencontro com a passagem do tempo, que relembrava a ela mesma sua perecibilidade e, talvez, alguma pos- sibilidade de reconciliag4o com a morte que se aproximava. Cabe destacar que, apesar da rotina de ages repetitivas, Madalena nao havia se fechado completamente a memséria involuntéria, talvez, inclusive, porque ndo pudes- se. Todos os dias, ao escurecer, ela acendia seu candeeiro e escrevia uma carta a Guilherme, seu ex-marido, Ao colocé-la na cesta, Madalena nos deixava en- trever a existéncia de muitas outras, por meio das quiais se mantinha atrelada ao seu passado de forma difria, buscando no conforto conferido pela pratica ritual o apaziguamento da dor advinda de uma perda ainda nao plenamente enlutada Trata-se, de fato, do peso do pasado, ainda que o gesto de escrever cartas pudesse parecer algo deliberado.” Guilherme estava morto, mas sett gesto escamoteava essa perda: “meu amor, quero manter sempre viva a nossa meméria”, era 0 inicio da primeira correspondéncia que aparece no filme, as- sinada como “a tua Madalena’. Em outra carta, podemos perceber 0 nao con- trole de Madalena sobre a memeéria do ex-marido, inclusive no que diz respei- to a sua persisténcia na casa por meio de objetos pessoais: “hoje me deparei com uma das suas camisas. Nao ¢ estranho que, depois de tanto tempo, eu ainda ache coisas suas pela casa? Talvez esteja ficando velha e minha meméria me pregando truques...”. Ao ser questionada por Rita sobre o motive de nao Posar para fotografias, Madalena respondew: “ett gostava mesmo é de ver a X Algm dos extudas diversos de Jacques Lacan sobre @ toma, ver JULIEN, Philippe. O extranko gozo do révia tcae psicanlis. Rio de Jancire: Zahar, 1996 Score a complena relagto entre 0 peso ea escciha do passade, wer LAVABRE, Marie Case, Du poids et dda choix du pase: lecture catique du ‘Syndrome de Vichy. Dui PESCHANSKL, Denis, POLAK, Michael € ROUSSO, Heney. Hise politique et sconces sociale, Bewelles: Complexes 1991. AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 199 Artigos minha alma junto com a alma de Guilherme”. Em seguida, perguntava, como se questionasse essa relagao de pouca reveréncia que Rita parecia manter com © passado: “voo8 vai A missa?” (na verdade, Madalena parecia perguntar: vocé nao tem religiao?). Aquela jovem, tinica, além de Carlos, a nao orar durante as reunides do almoso, parecia estabelecer uma relagio de afetividade com 0 passado, como se pode perceber pelo registo dos objetos que fixava a partir das lentes de sua cimera. Mas, tratava-se de uma proximidade que encabula- va Madalena, para quem o pasado era sagrado, distante, objeto de reveréncia silenciosa ¢ religiosa Fotografar a alma: a frase de Madalena sobre o gosto de ver sua alma junto a de Guilherme, por meio das fotografias, parece sugestiva. Seria 0 fot6- grafo aquele que registra a alma das pessoas, que as faz se reconciliarem com ela, promovendo certa redengao de seu pasado? O que podemos perceber, de fato, é uma crescente ruptura da barreira que separava Madalena das lentes da cAmera. Objeto distante, a maquina fotografica estava inscrita em sua historia como algo que rompia a banalidade da vida cotidiana, ja que o momento do retrato era tido como excepcional, demandando ceria preparagio: “quando ett era moga, tinha sempre o fotdgrafo que vinha aqui... todo mundo punha a melhor roupa, arrumava o cabelo... até os mais rantpeiros pareciam filhos de barao”. Ressoava descabido, portanto, aquele fascinio de Rita por fotografar as coisas em seu estado habitual, sem a solenidade requerida, registrando tam- bém Madalena sem os trajes adequados: “quando eu me vi la em cima com Iencinho na cabega e camisola velha, eu fui até o Antonio sem parar de rir.” Apesar dessas atitudes em relacdo as fotografias, na realidade, o que se pode verificar ¢ justamente uma cada vez maior abertura de Madalena, que acabou deixando-se capturar pela camera em determinadas ocasiGes, mesmo demons- trando desconforto diante do olhar curioso e insistente de Rita. A impossibilidade de monrer e 0 historiador-fotégrafo A morte que se anwncia me eausa horror, porque a vejo tal como &: no mais morte, ‘mas 2inspossiildade de morrer. Masarce Blanchot!® (Os questionamentos e afirmagdes de Madalena sobre a velhice e a jus ventude (“o que vocé acha da juventude, Anténio?”; “vocé acha que estou parecendo velha?”; “estou ficando velha...”) eram acompanhados de certo pressentimento de uma maior proximidade da morte (“estou com medo de morrer”) e conjugavant-se, ainda, com outras praticas igualmente indicativas das transformacées causadas pela presenca de Rita e de suas fotografias. O uso de roupas mais requintadas para escrever a Guilherme ou a preparagio de um belo vestido e a colocagao de wm anel que serao utilizados pouco antes de seus momentos finais sao alguns dos sinais presentes no filme. Mas, ¢ a atitu- de de postar-se diante do espelho quando estava sozinha, logo apds ser regis- “BLANCHOT, Mausice A literatura @ 0 dteite & most, fh parte do ogo. Rio de Janis: Rocco, 1997, 9. a3eR4 AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 200 Artigos trada pelas cameras de Rita, que parece mais sugestiva: antes coberto de poei- 1a, o espelho estava completamente inutilizado na casa, inviabilizando a visu- alizagao, em seu préprio rosto, das marcas da passagem do tempo. Conforme ressaltado por Foucault, 0 espelho, assim como o cadaver, so instrumentos fandamentais na indicagio dos limites do corpo: “o cadaver e 0 espelho que nos ensinam [...] que temos um corpo, que este corpo tem uma forma, que esta forma tem um contomo, que no contomo ha uma espessura, um peso; em suma, que 0 corpo ocupa um Ingar’.# Embora a preocapacdo do autor com a percepeao de nossa limitacao espacial estivesse mais centrada nos constran- gimentos impostos ao que chamou de “utopia do corpo”, com sua tendéncia a romper fronteiras em favor de uma atitude desejante que colocaria o corpo em uum nao lugar, sem dtivida, ela pode servir para pensar o papel do espelho como aquele que reflete o5 registros da perecibilidade humana, os tragos de uma experiéncia de vida, a inexorabilidade da morte que, a cada dia, se apro- Dois momentos do filme, entretanto, so mais fundamentais do que a cena em que Madalena se olhava no espelho. O primeiro é quando ela, sem que Rita o soubesse, aparece entrando em sen quarto de héspede e obtendo o primeiro contato mais direto com as fotografias. Penduradas em um pequeno ¢ improvisado varal para a secagem apés serem reveladas, as belas imagens capturadas pela fotégrafa reproduziam, em preto e branco, lugares da cidade, Angulos do rosto de Madalena e dos demais moradores, objetos e coisas de um mundo que esta xiltima parecia j4 nao mais ver realmente. Trata-se de um en- contro com o valor das coisas, um momento de choque no qual, em fragbes de segundos, todo o sentido da existéncia de Madalena parece ter sido colocado em jogo por meio de imagens que figuram vivéncias, experiéncias, de modo semelhante ao que Walter Benjamin, com toda riqueza conceitual, definiu co- mo “imagens dialéticas’ E nesse sentido que a personagem de Rita pode ser tomada como me- tafora do papel do historiador, figurado como wma espécie de vigjante- fotdgrafo que libera o pasado de seu peso no cotidiano, permitindo lidar com © que foi entendido por Maurice Blanchot como a principal ameaca relativa & morte: 0 risco da impossibilidade de morrer. Rita como viajante-fotdgrafa, Rita como historiadora. Enxergando de modo diferente as coisas do mundo, ela parecia as perceber como rastros ou vestigios no sentido benjaminiano, ou seja, como objetos que relacionam o pretérito com o agora, estabelecendo nao uma continuidade com o passado, mas fazendo de seus restos vetores da pro- dugao de um instante de espanto, assim como no olhar de Madalena ao vista- lizar suas fotografias ali expostas, De modo semelhante a fotografia, a escrita da histéria, segundo Raphael Samuel, “traz 0 meio-esquecido de volta a vida, de uma forma muito parecida a dos pensamentos oniricos’. Assim, ela “cria uma narrativa consecutiva a partir dos fragmentos, impondo ordem no caos e produzindo imagens muito mais claras do que qualquer realidade poderia FOUCAULT, Miche. O corpo utipico, s heterotopia, Sao Par 1-1 Eaiges, 2013p. 15, A categoria card retomada mis adiant, por meio de um diilogo com a interpretacio de Georges Didi Huberman, SBLANCHOT, Maurice op st 9.323022 AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 201 Artigos ser”. A comparacéo parece pertinente, inchisive, se essa clareza puder ser associada a certo espanto pela mortificagao do dia a dia, como aquele de Rilke quando, nas palavras de Maurice Blanchot, “descobre também o terrivel sob a forma da auséncia de angustia, da insignificacao cotidiana”* Madalena via aquelas imagens, que reproduziam os tragos de sua face eo mundo ao sett redor, pelo olhar que faz retomnar o recalcado: nesse caso, de forma extrema, o recalque de toda uma grande parte de sua vida, durante a qual o tempo como movimento, como energia de vida que configura experi- éncias, foi escamoteado, Madalena sentia abrir-se, portanto, todo um novo horizonte do presente, um espago de experiéncia ainda nao habitado, um re- florescer de uma parte do mundo nao mais capturada pelos seus sentidos, por demais acostmados com os sons do siléncio da cidade, com o cheiro da fari- nha que encorpa 0 pao, com a textura das flores da frente do cemitério, as «quais todos os dias ela regava. O passado, inscrito nas coisas e nos gestos, vol- tava a ser sentido por meio de uma intimidade ha muito tempo esquecida, pois havia sido substituida por uma relacao que sacralizava seus vestigios a0 mesmo tempo em que os distanciava. Se partirmios da concepgao de que as fotografias de Rita recompunham a temporalidade dos objetos, pessoas e paisagens registradas, podemos nos questionar se, naquele instante, Madalena nao era afetada por aquilo que Bergson chamou de “emosao”, ou seja, “uum afeto que se emociona com a pas- sagem do tempo ou com o movimento dos seres como tais”.** Segundo Lapou- jade, “esse afeto é emogao da prépria passagem do tempo e nao o fato de se emocionar com seres (ou com 0s nadas) que o povoam (ou despovoamy Assim, “pensar a passagem do tempo, simpatizar com essa passagem, é jus- tamente livrar-se daquilo que é, daquilo que nos prende aos seres ou aos na- das’ ® Entrar em contato com o “devir qe é a vida das coisas’, aspecto fum- damental na reflexao de Bergson sobre a “duragao” e suas vinculagoes com a existéncia de um outro sentido da vida era também, conforme sett texto “A evolucao criadora”, uma forma de “pulverizar todas as resisténcias e franque- ar muitos obstéculos, talvez mesmo a morte” ® Aspecto que nos remete a se- gunda cena mais importante do filme. Trata-se de um momento verdadeiramente central, relativo aos instan- tes que antecedem a morte de Madalena. Pouco depois do didlogo com Anté- nio, no qual ele afirmava que, em Jotuomba, as pessoas esqueciam de morrer, visualizamos Rita, com gestos suaves, guardando no armério o vestido de Madalena. Em seguida, a imagem mais impactante do filme, de Madalena, com uum dos bragos cobrindo os seios ¢ tendo ao fundo a parede azul do quar- to com marcas evidentes da passagem do tempo. A retirada do brago, deixan- do totalmente desmida aquela que todas as reservas havia demonstrado as SAMUEL, Raphael Teatros da memésia. Projo Histiia n. 14, Sto Paulo, fev. 1997, p-. SBLANCHOT, Maurice. A obna #0 sspago da morte. in: O expig terri, Rio de Janet: Rocca, 2011, p. 130 SLAPOUIADE, David op it. 9.28 Siem Siem F Tom, Sobre os dois sents a vida om Bergson, ver WORMS, Fé, Be ‘So Paulo: Esitoca Unitesp, 2010 |S BERGSON, Hens evolugtecrisera, So Paulo: Masta Fontes, 200, p. 293 AitCuttra, v.22, 0.40, Uberlndla, jan-jun. 2020, p. 191-212 202 lentes da camera, sob a intensidade da miisica de fundo e de seu olhar carre- gado do teor sublime e da plenitude de quem parece mirar a etermidade, per- mite a figuracdo de instantes de enorme densidade dramatica. Instantes du- rante os quais nao apenas o olhar de Madalena sugere o espanto de ser tam- bém olhada, talvez por algo externo, um ponto zero ou um plano de neutrali- dade que ultrapassava a simples objetiva da camera de Rita, mas também os expectadores se confrontam com uma “imagem que nos olha”, aproximando- se daquilo que Georges Didi-Huberman indicou em suas apropriagdes das “imagens dialéticas” benjaminianas.* E muito sugestivo que, para o registro da tltima imagem de Madalena, Rita tenha utilizado o método da camara escura, pois, para além das lendas sobre o registro fotografico como captura da alma, 0 proprio equipamento ja {oi apresentado como metafora da alma: “as sombras e os fantasmas do refle- xo, da meméria e da imaginago caem dentro da alma como numa camera escura, e alguns to notaveis e agradaveis que nos sentimos inclinados a co pidelos, e retocé-los de alguma maneira, colorindo-os e agrupando-os para fransforma-los em pequenos quadros’.» A metafora se alimentava do carter de esbogo das imagens, sem precisao, tal como funcionaria a meméria: “tudo que cai na tela da alma via abertura dos sentidos esta fora de foco, vago, sao, esbocos e contornos que permitem que a meméria troque suas cores e classifi- cacao”. O mais importante, por outro lado, é que as elaboracées sobre a alma permitiam pensar os “solenes momentos da morte”, quando as imagens exis- tentes nas paredes da “galeria silenciosa” da alma “recobram sua vitalidade”’ “a mente volta-se para dentro e ‘folheia os ambrétipos que colecionou — am- brotipos, pois sto verdadeiras impressées impereciveis — e, combinando-as, conforme forem ocorrendo ao acaso, constréi com elas o panorama do so- nho” * Trata-se, portanto, do acesso a um “colossal arquivo de imagens” que, presentes em nossa alma, setiam despertadas também em outros momentos ‘excepcionais, como no periodo em que estamos dormindo, durante 0 delirio de uma febre ou em situacdes de medo intenso. Para o ptiblico que assiste ao filme, talvez pudéssemos pensar na ca- pacidade efetiva de transmissao de uma experiéncia que a fotografia, ao cap- turar o olhar do moribundo, podia trazer. Afinal, segundo Walter Benjamin, “é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existéncia vivida [...] assumem pela primeira vez uma forma transmissi- vel» A preocupacao de Benjamin era com a autoridade que conferia origem A narrativa, mas pode ser interessante a reflexdo em pauta: “assim como no interior do agonizante desfilam intimeras imagens — visdes de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso —, assim 0 inesque- civel aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao mor- rer, para os vives em seu redor”.* O olhar que antecede o ultimo suspiro é > Cl. DIDLHUBERMAN, Georges. O que vemos 0 gue nos als Sto Paulo: Eaitora 4, 2014. =DRAAISMA, Douvwe op. at, 178 2B Hers dedor, p73 0174 2 [a sidor,p. 176 = BENIAMIN, Walter. O narrador:consderagbes sebre obra de Nikolai Leskov. Ins Mapa toni arte politics: enssios sobre teratura ehistéria da cultua, Sto Paulo Brasiliense, 199, p. 207, dem side, p. 207 «208 AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 203 Artigos t6pica recorrente no campo literario, que assume também coloragSes como- ventes no testemunho de Jorge Semprin, um dos sobreviventes dos campos de concentragao, sobre os instantes finais de Maurice Halbwachs no bloco dos agonizantes de Buchenwald, em 1944: “[em seus olhos, via-se] uma chama de dignidade, de humanidade vencida mas incipiente. O brilho imor- tal de um olhar que constata a aproximacao da morte, que sabe 0 que est por Vir, que o pondera, que avalia face a face seus riscos e o que pée em jogo, livzemente, soberanamente” E interessante notar que as teses de Benjamin, ao tratarem da capaci- dade do moribundo de transmisséo da “experiéncia”, na verdade, diagnosti- cavam sua impossibilidade na época modema, caracterizada pelo isolamento do individuo que acompanhow o estabelecimento do espago industrial urbano © 0 avango dos meios técnicos. No filme, por outro lado, a perda da “experién- Ga” no estava relacionada ao vazio das cidades capitalistas, lugares chave de expressio de toda a fantasmagoria da subjetividade modema e suas comse- quéncias, como a desaparigao de vestigios da vida privada no espaco puiblico, sinalizada pela abundancia de “marcas” nos lares ¢ objetos pessoais burgue- ses Ainda que certas priticas, como a fabricagio do pio por Madalena, pu- dessem lembrar os modos artesanais de produgio que Benjamin vinculava as formas narrativas de transmissio da “experiéndia”, era em uma vila rural que © filme situava a perda nao apenas da experiéncia no sentido da meméria co- muunitaria (Exfahrung), mas também das tinicas formas de experiéneia ainda possiveis na moderidade, relacionadas ao individuo e a sua vivéncia (Exleb- nis)” Se modos nazrativos como os de Proust, que tratou do complexo traba- Iho da reminiscéncia, permitem conceber outros tipos de experiéncia possiveis, a época modema, cabe destacar que, em Jotuoniba, o apagamento do passado era igualmente 0 obscurecmento da memsria involuntaria devido 4 onipre- senga dos comportamentos habituais, impedindo qualquer relagdo com a infi- nitude desse tipo inesperado de lembranca, tinica capaz de permitir o entre- cruzamento do envelhecimento e da zeminiscéncia* Por outro lado, vale ressaltar que, apesar de os usos da fotografia & moda dos dlbuns de retrato burgueses terem sido criticados por Benjamin, aquele meio de registro ce imagens, como dispositive de acesso aos “rastros” de experiéncias passadas, vinculava-se também & temporalidade, funcionando como uma “cifra, capaz de produzir signific fugacidade” 2 Fonte de “fixacio do que ¢ efémero e secreto” a fotografia nao estava condenada a ser apenas uma nova maquina da época de reprodutibili- ‘ao em um universo de etema © Reproduzido em RICOFUR, Paul. Vio af a mote seuido de fagrentos. S80 Paulo: WME Mastns Fonts, 2012,p.17 618. = Ver BENIAMIN, Walter. Paris do Segundo Impésio, In: Charles Baudelsve: um lisiso ne auge do capitalsmo, Sao Paulo: Beastiense, 1989, p 43244. > Sobre a diferenga ene oconceito de expesincia como Eyfilrung e como Erlenis, ves GAGNEBIN, Jeane Mane. Peeficio~ Walter Benjamin ou 2 histéea abesta, es BENJAMIN, Walter Magi e tori are epoltaa, pect, p15 Sobre a formu como a noo de expeciéncia, para Benamin tava duetamente vincdada com 4 possitildade de sua tranemissio pea narrtiva ver SARLO, Bestiz Tepo pasado: cltura da memdria © _gnada subjetiva.Sio Paulo Belo Horizont: Companhia das Letra/Edtors UFMG, 2007 p. 4 eseguinte. Ver BENJAMIN, Walter. A imagem ce Proust ns Mags e toca. arte ps, © GINZBURG, Jrioe. A interpretgio do castro em Walter Benin. fe SEDLMAYER, Sabrina © GINZBURG Jam, Walter Benjamins rate, auca ehistia, Belo Horizonte: Edtora UFMG 2012p. 114 Liem AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 204 Attigos dade técnica, podendo ser relacionada ao inconsciente, ao surrealismo, a ma- gia, a0 misticismo. Compreendida em sua vineulagao com um saber de teor melancélico, concentrado nas perdas que caracterizam a existénda, a fotogra- fia, mais do que outras ruinas, fragmentos, residuos de experiéncias passadas, poderia ser entendida como “um caso extremo de concretizagio do rastro”, cruzando 0 tempo cronolégico com 0 dissociativo, indicando a historicidade de um objeto que, ao mesmo tempo, estd presente e ausente diante de nés.? Partindo desse ponto de vista, a historiografia, em suas complexas infungdes com a memeéria, também deveria assumir sua dimensao de redescobridora dos restos do passado que nao se deixam ontologizar, facilitando 0 luto dos cada- veres insepultos que, como fantasmas, ainda assolam o presente, ja que essa tarefa nao deveria ser compreendida como apenas da literatura. Ainda sobre o historiador e os mortos Ver, doce morte. Quando queiras Ao repiacule, no inatanteem gue as nce {sam plo enloe so snapira da mores — caret — nfo sento premincio deus delond acontecirento Henziqueta Lisboa! Olhar soberano daquele que constata a aproximagio da morte: esta poderia ser uma boa caracterizagao da imagem que captura os tiltimos mo- mentos de Madalena. Cabe ressaltar que, nas reflexdes de Geoges Didi- Huberman sobre as “imagens dialéticas”, um ponto importante diz respeito as condigdes de sua “legibilidade”. Buscando ultrapassar os infrutiferos debates sobre a primazia do escrito ou do pictérico, 0 autor utilizou a noggo justamen- te para apontar que a tensio causada pelas “imagens dialéticas” depende também das condigées histéricas daquele que as visualiza, j4 que as imagens podem perder seu potencial expressivo, como parece ter ocorrido com a bana- lizagao das representagdes do Holocaust. Tamibém nesse caso, o filme per- mite refletir sobre o problema de modo particular, relacionando-o com as formas especificas de constituicao do desejo por meio da relagdo com 0 outro: 05 objetos ¢ tudo aquilo que foi capturado pelas lentes da maquina de Rita ganharam real significado para Madalena a partir, justamente, do valor que pareciam conter para a fotdgrafa. Aos poucos, Rita tendeu a deixar o lugar do “outro” (0 “forasteiro”) para ocupar aquele de “um préximo”, tal como a ca- tegoria mobilizada por Paul Ricoeur para indicar a presenca subjetiva daque- “9 Ver BENJAMIN, Walter. Pequena hstéia da fotograa ie Maga ehetea. rte pic. pit © Ver GINZBURG aime opt, p05, © Ver VECCHI, Roberto e RIBEIRO, Margarida Calafate, A meméria poeta da guerra colonial de Portugal ins Afric: os vestgion come material de uma constrisio posrvel Ie: SEDLMAYER, Sabrina e GINZBURG, Jaime, op. it LISBOA, Hensiqueta.Veoy doce mote, Ins Fords mors, Bale Horizonte: Esitoria UPMG, p28, ‘© Ver DIDEHUBERMAN, Georges. Abr of campos, char os olhos. Inagear histéria,leibidade, by Remontagens do torap sofa o elo da hati, I. Belo Horizonte: Edtoria UFMG, 2015, p19 eseguites. AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 205 Attigos les que, no entremeio do “si” e do “outro”, nos fornecem os enquadramentos através dos quais imaginamos o mundo e damos sentido as coisas. A reflexao sobre as “imagens dialéticas” é também fundamental para pensar o trabalho do historiador em um segundo sentido, ja que, para Didi- ‘Huberman, a formulacao romperia justamente a fronteira entre o historiador © artista: em Benjamin, sobretudo, pela aproximagao de sua atividade com a obra poética de Baudelaire; no filme, poderiamos acrescentar, pelo modo co- mo a atuagdo de uma fotdgrafa metaforizava elementos centrais da “operacao historiografica”. Assim como o artista, 0 historiador-fotégrafo, por meio de seu “discurso interpretativo”, também inventa “novas formas”, modificando a tradicao e estabelecendo um dialogo critico entre historia e memoria por meio do qual 0 choque catisado pela inquietagdo da imagem que produz do passa- do funciona como “motor dialético da criacgao como conhecimento e do conhe- ‘cimento como criagdo’.” Nessa perspectiva, & relacdo complexa entre a histo- ricidade e o anacronismo da imagem corresponderia a tensao caracteristica do trabalho do historiador como aquele que, por um lado, recupera 0 passado, fazendo justica a dimenséo da historiografia como vetor de memeéria ¢ como discurso demarcado por seu dever com os mortos, e, por outro, o faz em pers- pectiva critica, produzindo ele também uma “imagem dialética” causadora de um descentramento em relagao a tradigao, introduzindo nela um vazio, uma inquietacdo, um questionamento acompanhado do sentimento de perda. E interessante perceber que, em suas classicas reflexdes sobre a foto- grafia, Roland Barthes tenha utilizado a palavra “espectro” para assinalar que © sujeito retratado vive “uma microexperiénda da morte”. Nessa perspecti- va, “o érgao do fotégrafo nao € o olho (ele me terrifica), é o dedo: o que esta ligado ao disparador da objetiva, ao deslizar metalico das placas (quando a camera ainda as tem)”.* Essa metafora de Barthes, sem duvida, serve para indicar a vocacao mortifera da fotografia, espécie de maquina assassina que, também no filme de Murat, terminava em instantes (como no disparo de uma arma de fogo) com a fronteira que separava Madalena da morte. Na perspec- tiva de Barthes, entretanto, os fotdgrafos, esses que “nao sabem que s4o agen- tes da morte”, fazem parte da configuracao de uma nova relagao com o passa- do, que acompanhou a “crise da morte” iniciada na segunda metade do século XIX E nesse sentido que 0 autor estabeleceu sua reflexao sobre “o vinculo antropolégico da morte e da nova imagem”, relacionando o surgimento da fotografia com uma forma “cha” de lidar com o fim da vida, pela qual restaria a platitude no enfrentamento da perda: “nada a dizer da morte de quem eu mais amo, nada a dizer de sua foto, que contemplo sem jamais poder apro- funda, transformé-la” Ora, essa forma de interpretacdo, ao relacionar fotografia e escamote- amento da morte, contradita com o tratamento que conferimos ao papel de Rita e sua cdmera, tornando-se mais importante porque, em sua reflexdo, © Ver RICOEUR. Paul. O simzomo como or. S40 Palo: Martine Fonte © DIDEHUBERMAN, Georges O gue som, 0 que nos bis p.at p. 178 © BARTHES, Roland, A cimara clare: netas sobre a fotografia. Rio de Janeire: Nova Fronteira 2015p, 20 © Li iden, 9.21 = Hem siden, 9.78673, 5 dm iden, 9.73, 1. AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 206 Artigos Barthes estabelecia também interrogagses sobre a historiografia. A critica de Barthes a ética da nova imagem, que “desrealiza completamente o mundo humano dos conflitos e dos desejos, sob o pretexto de ilustré-lo”, apontava sua raiz no Oitocentos, pois “o mesmo século inventou a Historia e a Fotogra- fia” Diferentemente dos monumentos das sociedades antigas, que pretendi- am etemizar uma lembranga, a fotografia, com sua natureza mortal, documen- talista, de mero testemunho, corresponderia uma historiografia tida como uma “meméria fabricada segundo receitas positivas, um puro discurso inte- lectual que abole o tempo mitico’.® Em iiltima instancia, tude prepararia “nossa espécie para essa impoténcia: ndo poder mais, em breve, conceber, afe- tiva e simbolicamente, a duracao- a era da Fotografia ¢ também a das revolu- es, das contestagdes, dos atentados, das explosdes, em stima, das impacién- dias, de tudo o que denega o amadurecimento”, Sem dhivida, nesse plano da relacdo entre histéria e meméria, somente a visio de Maurice Halbwachs pareceria igualmente empobrecedora da histo- riografia, comparada ao “epitafio dos fatos de outrora, tao curto, geral e pobre de sentido como a maioria das inscrigdes que lemos sobre os tiimutlos. A histé- ria parece um cemitério em que 0 espago ¢ medido e onde a cada instante & preciso encontrar lugar para novas sepulturas”.* Curiosamente, a pressuposi- o de que © pasado deveria estar “mortificado”, de que a historia deveria “primeiro estar morta nas mentes” para, somente depois, se tomar objeto da historiografia como conhecimento cientifico, apareceria também em textos de Reinhart Koselleck, sofrendo veemente critica de Aleida Assmann.s Caberia, esse caso, contrapor as reflexdes de Paul Ricoeur, para quem “o historiador nao se defronta apenas com mortos, para os quais constréi um tiimulo escritue ririo; ele nao se empentha apenas em ressuscitar viventes de antigamente, que j4 nao existem, mas que existiram; ele se dedica a reapresentar agdes € pair x0es”.*” Seria pertinente interrogar também se, por trés das criticas de Barthes ou Halbwachs, nao encontrarfamos apenas um temor & morte que fundamen- taria a desvalorizagao dos signos fimeririos, tormando necessario recordar, com Fernando Catroga, que eles remetem também & vida: “o simbolo fumera- rio é metafora de vida e convite a uma periddica ritualizacao unificadora; ele & para ser vivido e para ajudar a viver, oferecendo-se assim como um texto, cuja compreensao mais afetiva (a dos entes queridos) mobiliza, antes de mais, toda a subjetividade do sobrevivente”.* Parece curioso que, em contraposicao a essa historiografia “impacien- te” e “documentalista”, Barthes tenha mencionado justamente a figura de Mi- chelet, supostamente 0 tinico em seu sécuilo a conceber “a Histéria como uma dedaragao de amor: perpetuar, nao somente a vida, mas também o que ele 5 amide, p. 98079 80. = fan tide. 9.0, sem = HALEWACHS, Maurice, A mondits ction Sto Palo: Wérice, 1550p. 74 = ASSMAN, Alea. op cit, p. 18 «19. Solve as celagbes entre hustniee meméria em Reuhast Koselleck conferr também MARCELINO, Douglas Attila, Experiéncias primarias e descontinuidades da recerdap30: potas a partic de um tecto de Reinhart Koclleck Tempe & Argument, 8, 19, Fleriandpol, oet-des 2016 © RICOEUR, Paul Le mina. Viste. Poul: Parts Seu 200, p. 50 tends ie = CATROGA, Fernando, O cis de meri: cenitério roméntcoe clt civico dos mortes em Postugal 756. 1811). Coumbea: Menarva, 1999, p.22. AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 207 Attigos chamava, em sett vocabulatio, hoje fora de moda, de o Bem, a Justiga, a Uni- dade etc.”® Nesse caso, seria importante perguntar, tal como fez Jacques Ran- Giare, se 0s anseios necréfilos de Michelet, com sua paixdo pelos timulos, no correspondiam, na verdade, & configuracio poética de uma historiografia que, tomando 0 lugar do morto do qual falava (o povo francés, figurado em uma entidade abstrata, sacralizada), acabava por apagar tudo aquilo que sua escrita poderia conter de verdadeiramente ameacador: seus vinculos com a literatura, a politica e, igualmente, com o acontecimento.«? Nessa perspectiva, 0 recalea- mento do regicidio, que caracterizou o tratamento dado por Michelet ao even- to revolucionario, poderia corresponder ao mesmo dispositive teérico que colocou as “massas anénimas”, ou as estruturas da long durée braudeliana, no centro da atividade historiadora, Segundo Ranciere, nenhum trago de incerte- za, morte e inessencialidade como “aparéncias do pasado” poderiam fignrar nesse tipo de narrativa, totalmente incapaz de lidar com a imprevisibilidade: nao seria essa também a raiz da insatisfacao de Barthes com as “impaciéncias” da época da “nova imagem’? Vale ressaltar que uma leitura critica, quase condenatoria, da fotogra- fia também caracterizou a importante obra de Susan Sontag, publicada pou- co depois e visivelmente inspirada no ensaio de Roland Barthes. Os vinculos entre a morte e a fotografia também aparecem no texto de Sontag, para quem “as fotos declaram a inocéncia, a vulnerabilidade de vidas que rumam para a propria destruicdo, e esse vinculo entre a fotografia e a morte assombra to- das as pessoas”, Como uma espécie de “inventario da mortalidade”, a foto- grafia seria uma forma de “violar as pessoas”, transforma-las em “objetos que podem ser simbolicamente possuidos’ @ Também nesse caso, certa visio da morte, nao explicitada, ampara a sugestdo de que a fotografia produziria uma mortificagio no sentido do apagamento do carater de experiéncia das ages passadas, inclusive porque, ao invés de ressaltar singularidades, a ca- mera nivelaria igualmente o significado de todas as ocorréncias registradas. A leitura, de fato, parece préxima a de Roland Barthes, para quem a fotogra- fia “nao fala (forcosamente) daguilo que nao é mais, mas apenas e com certeza daquilo que foi” # Trata-se, portanto, de uma espécie de passado encerrado, mortificado, do qual somente podemos atestar sua veracidade, 0 que discrepa de nossa sugestao sobre a relacao metaférica entre o papel do fotdgrafo e do historiador por meio do filme de Murat. Em contraposigéo & ideia de um passado que P BARTHES, Roland. op. at. p. $0, Roland Barthes analicou a obra de Michelet em oxtto rlovante kevo: BARTHES, Reland.icalet. Sto Paulo: Compania das Leto 1981 © Ver RANCIERE Jacques. Let noms de Tistoie ext de postigue du savoi, Pare: Set, 199. 2 Her sade, p. 138. Segunda Rance 2 Intra de Barthes sabre o “slats de rel” de fre dos ance 1960, cembora pressupuseste uma ruptura, compreendia a estrturapio da narrative por meio de uma mesma sacionalidade de modelo de veressimilhanga anstotsica, Assim, dasvalonizanda os efits politicos daguilo que aparecia como mero eicesso ou res4uo, Barthes enguadou o “romance realsta” a "histoxousaia federnicta” dentro de wan “etichiseno do veal” que se expressria também em visios outos planios da cultura. Em contrapavtda, Ranciere tomaia justamente esses chamados excessos para pensar as selapbes entre democraca iteriia e democracia politica. Ver BARTHES, Roland. Life de réel. rz BARTHES Roland al (orga). Liténture et at, Pare: Seal, 1982, ¢ RANCIERE, Jacques. O efto de reaidade © 2 politica de igo. Nows Estudos Cbrap v.29, 1, Sao Paulo, mar, 2010. SSONTAG, Susan Sores fotografia, Ste Paulo: Compania das Letra, 2008p. $5, © Hen side, p.85€25, BARTHES, Roland, A cimora clive op cit p.72 AitCuttra, v.22, 0.40, Uberlndla, jan-jun. 2020, p. 191-212 208 apenas “foi”, caberia retomar a perspectiva de Paul Ricoeur sobre a “operagao historiografica”, sobretudo 0 que chamou de “efeito retroativo da intenciona- lidade do futuro sobre o passado no corhecimento histérico” Procurando conjugar reflexes no campo da epistemologia da histéria e de uma herme- néutica da condigao histérica, Ricoeur pensou a historiografia por meio de uma articulacao entre a visada de um passado “que ja nao é mais” com sua dimensao do “ter sido”, estabelecendo um didlogo critico com a leitura heide- ggeriana da “historiddade”. Nessa chave de leitura, que contém um forte sa- bor benjaminiano (embora menos mencionado por Ricoeur), a escrita da histé- ria, ao invés do tratamento de fatos mortos (ou mortificados por ela), estuda- ria os projetos utdpicos perdidos no pasado, abrindo, assim, um novo campo de possibilidades para o agir no presente. A exigéncia de verdade, fundamen- tada no pressuposto epistemolégico da comprovacao de que algo ocorrett (dimensao de relacao com o passado qual Barthes reduz o papel da fotogra- fia), deveria ser complementada, portanto, pelo efeito retroativo do futuro sobre a meméria e a historia, que resultaria de um olhar para as promessas nao cumpridas no passado. Nessa perspectiva, a historiografia, recuperando e examiinando criticamente os desejos e expectativas dos agentes, poderia ser compreendida justamente como um contraponto a tendénca de nao mais con- ceber a “duracao” por meios simbélicos e afetivos. Vises como as de Barthes e Sontag parecem confirmar a suspeita de Didi-Huberman de que nem sempre o olhar filoséfico se mostra devidamente atento a imprevisibilidade da imagem. Analisando as miscaras mortudrias de pensadores como Hegel e Nietzsche, Didi-Huberman criticava, na verdade, 0 tratamento da unificacao da imagem por meio da visio, conforme a perspecti- va kantiana, e a compreensio da semelhanga na leitura heideggeriana: “a wni- ficagio entra em choque, na existéncia efetiva e imprevisivel das imagens — a qual os filésofos sao ainda com demasiada frequéncia, como por oficio, desa- tentos —, com esta disseminagto perpétua, interminavel, que as toma tao fra- geis, to lacunares e tao necessirias ao mesmo tempo” * A afirmacao poderia servir para colocar em questdo 0 cardter normative que, por vezes, parecem assumir 05 textos de Barthes e Sontag, deixando de lado a historicidade da imagem, stia constituigéo como “ato” € no como “coisa”, enfim, aquilo que Didi-Huberman, em outros momentos, denominaria “imagem em contexto”, ou ainda “legibilidade” da imagem. Seria preciso, portanto, pensar nas condi- Ges histéricas de “legibilidade” das fotografias por Madalena, cujos significa: dos conferidos as imagens no quarto de Rita nao indicam um mero nivela- mento das ocorréncias ali capturadas. Diferentemente do Michelet de Barthes, que parece mais préximo do “homem da crenga” de Didi-Huberman (pela relagao sacralizadora e nao devidamente critica mantida com 0 pasado, como em seu amor pelo “povo" e pela “Franga”), ou da historiografia cientificista RICOEUR, Paul Le actus dl topo pasado op. at. p. 7 (wad hee). = Confers, scboetudo, a parte sobre uma hetmendutica da condigdo histcica em RICOEUR, Paul. Le rncve, hist, Toubl ep. ct No caso de Ricoeur, o problema ce toma mais complexo se considerarmes 2 bse aristotlica de seu uso de nogio de narrative, © qual poderia ser confroniada com a2 questoce anteriormente levantadas a partir de Jacques Rancire © DIDEHUBERMAN, Georges. De semethanga a semethanga, op. city p48. | Cabe ressaliag, por outro lado, que Claude Lefort a0 anaisar a interpretagdo de Michaet sobse © Falgamento de Laic XVI resallow sun capacdade de desaaturalzaclo do fundamento sambeico da AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 209 Artigos (mortificadora do passado pela busca documentalista de fatos mortos e sua autenticidade), talvez a metéfora do historiador como fotdgrafo da morte pemmita reforcar essa valorizacdo da imprevisibilidade: 0 medo da morte co- mo ameasa nao poderia corresponder & atitude conservadora que condena 0 acontecimento (a “impaciéncia’, a “explosio”, a “contestacio” etc.) e, portan- to, proprio potencial transformador da historiografia? De fato, a comparacao entre 0 historiador e o fotégrafo, retomada por meio desse didlogo com Benjamin, Didi-Huberman, Ricoeur, Catroga, Rande- ree tendo como elemento de fundo a presenga da morte no filme de Murat, constitui 0 ponto central da reflexio aqui realizada. Assim como a persona- gem Rita, 0 historiador pode ser compreendido como aquele que se utiliza de rastros e vestigios para a construcao de imagens por meio das quais os sujeitos podem entrar em chogue com o seu passado, tal como na concepgao benjami- niana sobre a nogdo de “rastros” e sobre a producdo de “imagens dialéticas’. Esse choque, como instantaneo que se configura na tensao entre o recalcado os desejos que tornam qualquer relacao com imagens do passado anacronica, pode ser libertador do peso de um passado que se acumula, de forma anédina e previsivel, nas repetigoes do cotidiano, por meio de gestos, ritos, objetos, frases clichés, enfim, de uma vivéncia que se esqueceu (ou recalcou) da pré- pria passagem do tempo. O fechamento do cemitério ¢ o recaleamento da morte O simbolo maximo do recalcamento da passagem do tempo no filme é de fato o fechamento do cemitério, lugar por excelénda de meditacao sobre as aporias da condigéo humana, caracterizada pelo tensionamento entre os dese- jos de imortalidade e a inexoravel perecibilidade dos corpos. O impedimento do contato com os tiumulos, advindo do fechamento de seus portoes, interdi- tava qualquer possibilidade de assumir a “angtistia” que permite melhor lidar com as aflicoes da condicdo de finitude, admitindo a propria mortalidade e enfrentando o vazio criado pela cisio que o contato com as sepulturas encerra’ “o tiimulo, quando 0 vejo, me olha até o amago — e nesse ponto, alias, ele vem perturbar minha capacidade de vé-lo simplesmente, serenamente — na medida mesmo em que me mostra que perdi esse corpo que ele recolhe em seu fndo”.” Ainda segundo Didi-Huberman, ao olhar para o timulo, “ele me olha também, é claro, porque impée a mim « imagem impossivel de ver daquilo que me fara o igual e o semelhante desse corpo em men préprio destino futu- 10 de compo que em breve se esvaziara, jazera e desaparecera num volume mais ou menos parecido” 7 Seguindo as sugestdes abertas por Michel Foucault, poderiamos dizer que, ao fechar 0 cemitério, o padre acabou por inviabiliza-lo como “heteroto- polisca © sdentiicando como “sm das rar0s pensadores de seu tempo a reconhecer a fungie simbelica do poder na mise en forme das selagees socais”.LEFORT, Claude, Essis ut I politipue (XIN 20 sees), Pass Seul, 1986, p. 284 (radusao ivr) © Solze a relagio entze podtica da histénia © as formas de confers sentido aoe acantecimentos, vor -MARCELINO, Douglas Attila, Tempo do evento, postica da historia: maio de 1968 segundo Michel de (Certenu¢ Coenets Castriadis, Histiria de Histoiografia, 12, 30, Outo Prete age, 2019. = DIDI HUBERMAN, Georges. O gue tem. e que nos oa, ct p38. 1 der ide, p. 38, AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 210 Artigos pia”, ou seja, como um desses lugares utépicos, que sio reais, mas situam-se fora de todos os espagos, configurando-se como verdadeiros “contraespacos”, sem os quais nenluma sociedade poderia existir.” Sua atitude ultrapassava a tendéncia caracteristica da modemidade de substituir os antigos espagos sa- grados por “heterotopias de desvio", difundindo instituigées de controle, co- mo as casas de repouso, as instituigdes psiquidtricas e as prisoes.”* Segundo Aleida Assmann, do ponto de vista simbélico, nenhum lugar € capaz de subs- tituir a sepultura: “enquanto as ruinas e objetos apontam para algo ausente, a sepultura mantém-se como lugar de descanso do morto, um local de presenga numinosa (tal como os locais que guardam em si objetos remanescentes)” *O que importa, nesse caso, é a “presenca” € nao o “monumento”: “para abragar uum ente querido que se foi prefiro bem mais estar junto a seu timulo que a uum monumento”, teria dito Goethe. Também nesse ponto o filme rompe com © esperado, ja que nao se trata de uma modemizagao que substitui a “mem6- tia dos locais” pela “meméria dos monumentos”, mas do arraigado tradicio- nalismo catélico do padre, que torna possivel extrapolar completamente qual- quer distancia ja prevista na dimensdo auratica dos lugares: 0 cemitério nao é apenas um lugar de contentplagao, mas sim um lugar proibido.” Tradiciona- lismo catélico que, em sua faceta mais conflituosa, nao era apenas do padre, se manifestando, por exemplo, na afirmacao de Anténio de que nao havia sofri- do o bastante para poder morrer ou na impossibilidade de Madalena de per- doar a mulher que deixou seu filho cair da cristaleira (“pega para Deus te per- doar”, disse ela a Rita, ironizando as stiplicas da responsivel pela morte de seu ente querido) Lugar por exceléncia da percepeao do destino dos corpos semelhantes aos nossos, do apagamento de sua vida, 0 cemitério, entretanto, talvez funcio- nasse como um modo de linguagem cuja postica tivesse la seus simulacros: a atividade do historiador, o papel do fotégrafo da morte. Nao surpreende, in- clusive, que Catroga tena sugerido que “a necrépole é um livro escrito em Tinguagem metaforica’,” Ou, ainda, que Jean-Didier Urbain tenha caracteri- zado 0 monumento funerdrio, acima de tudo, como “a simbolizagao material da interface gracas 4 qual a perda inicial se converte, pouco a pouco, em uma histéria’.” Talvez tenha sido esse tipo de histéria que tivesse faltado a Jo- tuomba, Curiosamente, o filme de Jtilia Murat termina com a stirpresa de Rita diante da pequena nultidao dos moradores que a aguardam do outro lado da porta e que pedem para que permaneca na localidade. Aqueles mesmos, que tanto pareceram desconfortaveis com a sua presenca, agora liderados por An- t6nio, respondem a abertura da porta mencionando que, com a morte de Ma- FOUCAULT, Michal op. at, p18 ezoguinte. 2 Har ide, p22 /ASSMANN, Aleida op at p38 Cito ex idem, p38, % Amnda Segundo Assmara, 0 "local de recordacio” ¢ uma "tesitura sncemum de espaco © tempo" tencionando essa etranheza da aura cou a demanda de imediatismo da peesenga sensorial, Justamente pot isso, a concepsio de Pierre Nora sobre os “lugares de memeéria” seria refuters para lidar com a meméria dos ocais. ASEMANN, Aleida opt, 360 FCATROGA, Fernanda, p. cit p27. Usiain, Jear-Disier. Deu trace et mémoire, Les Czhiors 4x Misioagie 7, Pass 202, 1999/1 tradi ve). Disponivel em . Aceso em 15 jul 208, AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 au Attigos dalena, nao contavam com mais ninguém para fazer o pao. Certamente, a cena final conduz a necessidade da pergunta: 0 que demandavam néo era, no fun- do, que Rita contimuasse esse estraniho trabalho de “parteira da morte”, mobi- lizando sua maquina fotografica que, & maneira dos ttimulos e de seu simula- zo discursive (a historiografia), poderia também preparar-lhes para aquele que se configurava como sett caminho tao adiado e inelutavel? Arrigo recebido em 7 de setembro de 2019, Aprovado em 3 de novembra de 2019. AtCuttra, v.22, 0.40, Uber, jan-jun. 2020, p. 191-212 212 Attigos

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