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i O CONHECIMENTO DO PASSADO: | DILEMAS E INSTRUMENTOS DA HISTORIOGRAFIA No dia dezessete de setembro de dois mil e sete, no salio nobre lade de Grossi, Pietro Costa e Paolo Cappelfini, cated: reito da Universita degli Studi di Firence, Wt luma das mais expressivas escolas do pensamento europeu. Attifices de um centro de pesquisas avangado e cosmopolita (0 Centro di Studi per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno), euja irradiagao cultural ¢ feita, sobretudo, por um dos periédicos mais im- portantes da reflexdo juridica européia (os Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensie lico Moderno, fundados ¢ conduzidos por trinta anos por Grossi, hoje tendo Costa a frente ¢ Cappellini em seu Conselho de Redagio), os professores florentinos gravam nesta ocasitio, uma das suas marcas culturais mais notavei samente o estabelecimento de didlogo com juristas de distintas tradigdes culturais. E suas presencas em Curitiba, junto a estudantes e professores da Faculdade de Direito da UFPR, sela um vinculo firme e permanente, cujo convénio institucional jé existente entre UFPR e a Universidade € represent Florentina é, apesar de muito importante, somente 0 registro formal. Hoje, ao mesmo tempo em que os juristas brasileiros olham para a {uropa ~ matriz, de u e sobre a tradigo juridico-c qual o ji nua ~ a Italia tambi al fundante para a Amé- sileiro deve fazer uma reflexto olha para o Brasil, com disponibilida- remiss cultural sem fronteiras, a reflexdo florentina irmana-se e compromete-se conosco, F Que nossos ee : O CONHECIMENTO DO PASSADO: 5 DILEMAS E INSTRUMENTOS DA _HISTORIOGRAFIA! Ricardo Marcelo Fi Professor d ’t como pintar um | funda propriedade con 10 Pietro Costa Existem, portanto, tantas pesquisas hi quantos so os aspectos da exper objeto, o aspecto da expe momento do passado. O el idor da historiografia é jus- € determinante relaggo com o passado. Sbvio, vores dito, que o historiador ocupa-se do passado. Convém porém tomar a sério esta obviedade. Claro, o tempo, e portanto bém © passado, entra em jogo em todo tipo de saber. Para mpo € portanto ina medida o passado. Mas o jurista e o soci se pelo passado se ¢ enqu € absorvido no presente. Para o historiador vige a regra coi se do direito objeto & colocado lista do passado, Refletir sobre a historiogratia significa entiio refletir sobre a rela- ‘eo entre presente e passado. Aqui se faz necessiirio, p recimento: nao pretendo su problema de “filosofia da historia’, Nao pretendo colocar a famosa pergunta sobre “quem somos e para onde vamos’. A minha questio € puramente empirica, interior aquele saber ido que chamamos sta empreitada — conhecer o passado (conhecer algum as- pecto da realidade humana em algum momento do passado) ~ aparenta-se @ um paradoxo: parece, a rigor, uma empresa impossivel; parece com a tentativa de conhecer alguma coisa que nao é, nao existe; alguma coisa que foi, mas no é mais. Nao inventamos ainda a maquina do tempo ima- ginada por Wells. Somos prisioneitos do nosso presente. De que modo entiio podemos pretender conhecer 0 passado? De fato, no podemos nos aproximar do passado diretamente; no podemos ter dele um conhecimento imediato; nao podemos nos relacio- har com o passado como nos relacionamos com uma experiéncia que estamos vivendo em primeita pessoa. Podemos conhecer 0 passado so- ‘mente por meio daquilo que o passado deixou nas nossas méos, O mar do tempo retirou-se e abandonow seus detritos e suas sedimentagdes sobre a Praia: no vemos o mar e podemos somente recolher aquilo que ele depo- 0 Conhecimento do Passado:Oilemas lnsiumentos da una margem. Recebemos do passado as mensagens na ga afortunadamente nos chegaram. Ou seja: nao po cer dade tr ida diretamente, mas s6 indiretamente, através das gens, os testemu vos que nos chegaram: desapareceu 0 fogo, mas restam maga, Por meio dos sinais, buscamos repre- sentar para nés ‘aquilo que nao existe’. O histotiador trabalha sobre sinais, testemunhos. Estes sinais po- lem ser os mais variados: strumento de trabalho, 6 ‘0 de uma imagem, o fragmento de um vaso, um escrito (e esta iltima categ iador dos saberes et para o historiador do dire ficado para represei ia e desaparecida, pecifica que toma o nome de inte) histéria dos textos (nar nentos da historiografia so, com as necess instrumentos de toda ati Se isso é verdadeiro, abre-se para o historiador que quei icamente sobre o préprio trabalho um grande espago de investigagao: ‘ado por aquela tradigao hermenéutica cujo marco inicial macher e vemos desenvolver- se impetuosamente até os nossos dias, Obvi imito-me a sor terreno de caga, sem poder atravessé-lo. Vor tar a trazer as principais historiografia a hermenéut © historiador interpreta textos. © que significa interpretar? Para uma longa tradigao, vital até tempo: © sentido préprio de um texto. O significado de um texto & concebido 88a perspectiva como um niicleo objetivo encerrado no texto; um signi ficado, sempre igual a si mesmo, que o texto toma disponivel a qualqu tum que saiba tar frente as mais sofisticadas investigagdes da hermen jcado é produzido, mais do que descoberto, pelo ficado ja dado do texto fe 05 tantos possiveis). Conseqilente- fio ‘verdadeira’ (a dado um texto; itor, O leitor menos regi atribui um sentido (en tespretagio verdadeira) podem existir diferentes (e igualmente pla sociais como nas ciéncias assivel dos fendmenos, capaz de Grprete, € portanto 0 na quadro negro sobre o qual imprimem.-se os textos, Os textos dizem alguma coisa na medida em que sto decifrados e esti- rete que intervém no proceso interpretative com 1a operaeo que envolve o inté idade. O sujeito de uma operagéio hermené a m individuo de iduo, ligado a um contexto preciso, marcado por de onde vem, a classe social, a cultura, a lingua, a formagio profissional). Na interpretagdo de um texto sprete, o historiador, coloca em jogo todos os aspectos de sua per- todas juntas, a condigao de possibilidade da a, Em sintese: & a partir do mundo e do tempo a0 qual cada um de nés pertence que interpretamos textos e narramos hist6- ras. © historiador pertence inteiramente ao seu tempo, ao seu presen te, © é a partir do seu presente que ele ollia 0 passado tentando reconstruir por meio de testemunhos disponiveis o mundo que perdemos. Radicado toriador faz de tudo, porém, fa podemos atingir uma realidade a ele irredutivel? Estamos diante de um dos mais dificeis dilemas da hermenéutica. De um lado, o intérprete nfo compreende o passado sendo a partir do seu presente, da , da linguagem, dos conceitos que ele divide com a sociedade ¢ com a comunidade profissional de que faz, parte. De outro (© Conhecimenta do Passado:Dilemas¢ Instumentos da Histxogral 3 lado, porém, o intérprete é tal enquanto esta disposto a abrir-se As cages de textos distantes e diferentes, que ele tenta tomé-los na sua ridade com Uma ma solugao radicalmente subj {érprete no decifra um texto, no atribui a ele um sentido interno 20 proprio texto; o intérprete reescreve livremente 0 texto, adapla-o as suas necessidades e suas expectativas. O protagonismo do s sivel o conhecimento do objeto. © texto interpretado toma-se temo do discurso comp expretante e conse qualque idade de confrontar-e com uma realidade diferente nossa, de entender um texto na sua auténoma capacidade de produ: ado} € cai portanto a propria possibilidade de uma interpr fica, a possibilidade de conhecer o passado na om relagiio ao presente. sua alteridade e especificidade E possivel escapar do radical niilismo historiogréfico da perspec tiva desconstrucionista? Segundo esta perspectiva, a historiografia seria mente 0 espelho de um presente do qual o historiador & mediavelmente prisioneiro. Porém, 0 presente € realmente sem janelas e portas? Ou é muito mais um precioso observatorio? Claro, & tum Observatorio colocado num certo tempo © num certo esparo, pie ao historiador um determinado e setorial ‘ponto de vista’ (0 olhar do historiador nao é 0 olhar de Deus), mas ao mesmo tempo the fomtece os instrumentos dticos com os quais & possivel focar objetos distantes no npo. t ‘Trata-se de cumprir uma aposta, de sabor quase pascaliana: nfo dispomos de instrumentos que nos déem certezas. Nada nos garante que nfo estamos projetando no pasado o nosso presente, ao invés de efeti- vamente entramos em contato com uma realidade ai nossa, diferente e distante, A aposta do histotiador é justamente a tentat va de dizer alguma coisa sobre mundos distantes e perdidos; de tecer uma cas que dim hos. Pensamos em uma pratica que pode nos en alé interpretagiio: a tradugfo, Traduzimos continuamente de um texto a outro, O tradutor reescreve na sua lingua o texto traduzido, Nada nos garante que 0 tradutor nfo seja um traidor; e, todavia, no por isto ro Costa re esta pritica herm necessarios, porém, expedientes refinados. E necesséria, ar, uma peculiar atitude mental do tradutor: ele deve vigo do texto e fazer todos os esforgos para reconstruir seu sentido colo- cando-o no seu contexto (no contexto do autor e na época a qual pertence © autor), Traduzir é colocar-se a servigo de um texto: o tradutor é tal en- quanto renuneia a0 mondlogo em favor do didilogo. Também para o histo- riador vale a mesma regra: o historiador acumula os testemunhos para do qual provém. A légica do é © outto a si mes- um didlogo, usar todos os em relagao com um mundo diverso em p segundo lugar, a tradugao é um confronto entre linguagens: & a reescritura do texto traduzido em uma lingua diversa. Para que isso seja possivel, € necessitio que o tradutor dedique a mesma atengdo a duas iguagens: a Tinguagem da qual ele traduz e a linguagem na qual ele traduz. E exatamente essa a situagao hermenéutica do historiador. O his- totiador se movimenta a partir do seu presente: trabalha ativando as cate- gorias lingtiisticas e conceituais que Ihe sao ofertadas pela cultura. E esta a linguagem de que dispde para compreender a linguagem do passado, para decifrar seus testemunhos, para narré-los a nés. A linguagem do seu presente, porém, nao € 6 objeto da sua pesquisa, mas é somente o seu (indispensavel) instrumento: 0 objeto de sua pesquisa é a linguagein do passado. A operagao historiogeafica é 0 confronto entre duas linguagens: ‘a metalinguagem do historiador (a linguagem con a qual ele trabalha) ea Jinguagem-objeto (a linguagem sobre a qual ele trabalha), Convém estar ciente desse mecanismo. Esta ciéncia é 0 principal instrumento de que dispomos para evitar o jogo de espelhos, para evitar que nossa narragao, fingindo representar 0 passado, fale na realidade somente do noss nente queremos dialogar com o pas- sado, devemos verificar de modo acurado as categorias conceituais que empregamos para compreendé-lo e pa fazer um uso € nao final, operacional e no essencialistico os que usamos (€ os que no pode- narrar o passado, pata interpretar os textos. Devemos fazer uso, com fungio hermenéutica, nao de uma teoria forte, mas de uma teo- aca, nao de uma teoria fechada, mas de uma teoria aberta, Em outras palavras: devemos empregar a linguagem do nosso presente nao para afirmar verdad (a nossa verdade), mas para formular perguntas. O histo- riador ndo tem necessidade de assergdes, mas de perguntas: ele toma do 0 Conhecinento do Passaco:Dlomas¢ Instumentos da Historiograta 15 seu presente os estimulos © os materiais que servem para trazer proble- mas, pata colocar perguntas: so estas per pelo sen presente, que the permitem seleci textos do pasado, os textos pertinentes; e serdo estes textos a oferecer respostas as perguntas previamente formuladas. Com estes expedientes, & possivel aceitar a aposta: € po: ites do nosso presente e mover-se em diregko a pes- iversos € distantes no tempo, ainda que se saiba pode! oferecer nao uma representagdo total e indiscutivel da rei a (0s mundos desaparecidos sao irrecuperdveis), mas si trugaio parcial e hipotética, E necessario insistir da exploragio Isso depende nao apenas da discrepancia entre a do io disponivel ¢ a realidade desaparecida, mas sobretudo do fato mente sobre a real 8, dos si mas pa Engu: ificado, do visivel ao invisivel, fixo, de nenhuma , sem poder dispor de nenhum ponto \eoragem segura, Cai por terra entio a possi iva, a verdade da invengio, os aconteci nagens, @ lade da possibilidade? Creio que nao. Creio que para diferenciar claramente a narrativa da t , fazendo com que estes dois géne- iterétios sejam inconfundiveis, intervenha a ‘decisio’ que orienta e a estratégia heuristica do historiador ¢ impoe regras especificas a0 jento: a decisig de buscar a‘verdade” portato a necessi- \do, para am- jo entre a verdade ¢ a retérica da pro- va. E vale, enfim, para ambos, conseqtientemente, o carater conjectural e 1991 (N. do T) 6 Pietro Costa jortamento do cagador que pelos rastros chega ao nal, portanto, uma dupla ¢ dificil aposta que 0 em primeiro lugar, a aposta de conseguir difatar o horizonte do presente éstendendo-se em diregio a mundos distantes e desaparecidos para buscar isticas originais, a tentativa de estabelecer uma relagao, de as carac edificar uma ponte entre realidades diversas e distantes (entre a cultura do @ aposta de escre- assado); em segundo Ver uma narrativa sustentada pelo pathos da verdade ‘consciéncia do cariter fragmentério do resultado ¢ do conjectural das argumentagoes. E necessirio, px se nessa di \dagagao conclusiva, Por que ica reconsirugio de mundos perdidos? mos, afinal, colocar uma para que serve 0 co- mento histérico? A luz. do paradiga nda dominante, 0 menos na Italia até o fim dos anos setenta, a resposta a esta pergunta & por ditada pelo proprio paradigma: para 0 histo- ticista, o presente depende inteiramente do passado ¢ s6 é compreensivel a partir dele, A realidade é uma cadeira ininterrupta de eventos, onde 36 0 fantecedente pode explicar o subseqtlente. Mas nfo estou seguro que hoje tum jovem europed, ou califo ua o mesmo grau de indiseutivel evidéncia a tese respeito, para dar uma resposta, a minha resposta, a pergunta sobre o sentido da historiogra- inais do que apoiar-me na continua e intima conexao entre passado & presente, apresentaria a historiografia como uma ocasio para entrar em contato com 0 distante e com o diferente, Tento explicar-me com a metéfora da viagem. A historiografia é uma viagem no tempo: uma frégil e arriseada p ario em mundos distantes e estranhos. Para que serve uma viagem historiografica no tem- po? Sfo possiveis diversas respostas. Para o historicista, viajar no tempo Signifiea tragar uma linha reta e segura entre 0 passado © o presente, imergir o presente no passado para entender as raizes do primeiro € divegio de sentido do segundo. Para o historicista, a historia ¢ dil para entender o presente. Viajar € til. Porém, é possivel também uma atitude diferente: a atitude do viajante distraido ¢ curioso. Para esse viajante, nfio 9, pgs. MBIT (N. dO to do Pastado: Dlemas elasrumentos da Historogal 7 segura e reta que cada e confusa: nio se pode reconstrut-la em sua ta somente por conjecturas e aproximagdes; no pare- ivoca e segura; niio mostra o sinal de um: emaranhado de segmentos que se entrecruzam, perdem-se, recomepa interrompem-se; nao é uma linha e nem um circulo, muito mais um labi rinto. Para este viajante o sentido da viagem nao esté na ligag&io com 0 presente, mas sim na experiéncia do estranhamento, O sentido da viagem io é a pesquisa do familiar, mas sim 0 confronto com o diferente. no tempo & lage livel 4 viagem no espago (que ‘no tempo) feita pelo antropélogo. Tam- de um séeulo, deixou para trés os precon- céntricos para valorizar 0 con wal das mais variad: sociedades e tomar delas o sentido aulntico. Apresentam-se ao antropé- fogo os mesmos desafios que o historiador enfrenta: a impossibilidade de sair de fora de si mesmo, 0 seu radicar-se na sociedade do seu presente e ao mesmo tempo a aposta de entender normas, usos, formas de ia profundamente diferentes e distantes. Também o antropdlogo é um especiatista do alhures: um viajante desinteressado, um profissional da curiosidade. © niicleo da sua experiéneia (o sentido de sua aposta almente ~ impossivel) € o alargamento dos confins do mundo, de tornar menos peremptéria ¢ exclusiva a forma de vida que nos é fami- ar: 0 idolon abatido pela moderna antropologia cultural é 0 eurocentris- imo. A identificago com um lugar no é, porém, 0 tinico vinculo que nos aprisiona. Tgualmente tirfinico é um outto idolow: 0 eronocentr assungao do presente como nosso horizonte fechado e excl aposta da historiografia, como a da antropologia cultural, & justamente evocar a existéncia ou a possibilidade de outros tempos e outras formas de vida, tendenci- ietro Costa ia do diteito da itico de rersitts degli Studi di Fi

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