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MELVIN H. MARX (Professor de Psicologia da Universidade de Missouri, E.U.A.) WILLIAM A. HILLIX (Professor de Psicologia da Universidade Estadual de San Diego, E.U.A.) SISTEMAS E TEORIAS EM PSICOLOGIA Tradugéo de Atvaro CaBRAL > EDITORA CULTRIX sko PAULO Titulo do original: SYSTEMS AND THEORIES IN PSYCHOLOGY second edition Publicado nos Estados Unidos da América por McGraw-Hill Book Company. Copyright © 1963, 1973 por McGraw-Hill, Inc. 3.3 edigdo MCMLXXVIII Direitos de tradugio para a lingua portuguesa adquiridos com exclusividade pela EDITORA CULTRIX LTDA. Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, Sio Paulo, que se reserva a propriedade literdria desta traducio Impresso no Brasil Printed in Brazil PREFACIO O formato e os fundamentos ldgicos da segunda edigao do presente livro nao foram alterados. A explicagao que se segue descreve as prin- cipais mudangas de conteido que foram introduzidas nas trés partes do livro. A presente edigao procura utilizar as abordagens extraordinaria- mente aperfeigoadas e metodologicamente sofisticadas que estéo sendo hoje aplicadas ao estudo da histéria e sistemas de psicologia. O livro continua sendo um empreendimento de colaboragao, com cada um dos autores realizando aditamentos e revisdes no que o outro escreveu. A nossa finalidade primordial, ao escrever o livro, foi proporcionar uma fonte unica que contenha toda a informagao bésica sobre a psico- logia sistemdtica e tedrica que qualquer estudante de psicologia deve possuir. O livro é dirigido tanto aos estudantes que cursam uma facul- dade ou instituto de psicologia como aos que iniciam a sua pés-gradua- ¢ao. Esperamos que serviré a uma fungio de coordenacao, na medida em que ajude o estudante a integrar os diversos materiais e abordagens @ que esteve exposto em suas varias disciplinas. De acordo com esse objetivo geral, 0 nosso tratamento é mais extenso do que intenso, O livro fornece perspectivas gerais, em vez de relatos exaustivos de qualquer dos tépicos focalizados. Nenhum compéndio deste dmbito pode, praticamente, fazer mais do que isso, visto que cada uma das trés partes do livro se ocupa de um tépico que poderia ser assunto para muitos volumes. O estudante que se de- dicar 2 psicologia cientifica poderé-ampliar os seus conbecimentos sobre os problemas sistemdticos e tedricos fazendo cursos mais especializados de histéria, metodologia experimental e tedrica, e teoria, dentro de determinadas dreas de assuntos. Se no prosseguir nessa linha ou nao pretender aprofundar mais as preocupacoes cientificas da psicologia, o livro proporcionar-the-d uma ampla visdo e uma compreensao geral dos problemas sistemédticos e tedricos fundamentais. A Parte I tem como objetivo dar ao estudante uma base para uma anélise critica dos sistemas e teorias que se seguem. A nossa experiéncia no ensino desse género de matéria indica tratar-se de uma 11 tarefa necesséria, mesmo nos niveis mais adiantados do curso. E ver- dade que boa parte da matéria esté contida em alguns cursos de intro- dugio, em cursos de filosofia da ciéncia ou em alguns outros cursos que o estudante possa ter tido. Também é verdade que os estudantes afirmam, com certa freqiiéncia, que jd travaram conhecimento com tais matérias. Entretanto, o fato é que verificamos que o estudante tipico dos anos mais avangados que travam o seu primeiro contato com a psi- cologia sistemdtica esta seriamente necessitado de uma exposigao mais completa a esses conceitos. Portanto, a Parte I esforca-se por preencher as lacunas na experiéncia do estudante e estabelecer as bases para a sua compreensao das relacdes entre as matérias cientificas e sisteméticas fundamentais e a psicologia. Ao apresentarmos esta filosofia elementan da ciéncia, nao preten- demos dar a impresséo de que o estudo formal de como a ciéncia é feita seja necessério para a construgao da ciéncia. De fato, falamos mais sobre a critica da ciéncia “‘terminada”’, tal como pode existir num mo- mento dado, do que sobre a construgao da ciéncia. Mas acreditamos que um pouco de filosofia da ciéncia ajuda o estudante a evitar alguns dos mais Sbvios erros que podem ser cometidos por quem carece de Sofisticagao cientifica e, além disso, que é essencial para a avaliagao critica de sistemas e teorias. Na Parte I, pudemos tomar em consideragao o trabalho recente de Coan e Watson, assim como o trabalho anterior de Kubn e alguns dos nossos préprios trabalhos. O leitor reconhecerd que a tarefa de critica é continua e que devemos parar sempre um pouco antes de se proferir a sltima palavra. A Parte II trata, em forma abreviada, do material corrente que é usualmente incluido num compéndio de psicologia sistemdtica. Embora seja apresentado material histérico, tentamos enfatizar aquelas partes de cada sistema que se revestem de algum significado atual. A nossa escolha de seis sistemas baseia-se numa estimativa da importancia rela- tiva dos varios sistemas usualmente tratados. O estruturalismo, o fun- cionalismo e o associacionismo foram escolhidos por causa da sua im- portancia no desenvolvimento histérico da psicologia moderna. O behaviorismo, a psicologia da Gestalt ¢ a psicandlise foram escolbidos por causa da sua importancia histérica e porque continuam sendo im- portantes nos desenvolvimentos contempordneos da psicologia. A Parte II foi relativamente pouco alterada, visto que os sistemas classicos e seus princtpios bdsicos estao dormentes. Assinalamos o fale- cimento, entrementes, de alguns homens muito significativos (por exem- plo, Wolfgang Kébler) e adicionamos alguns fatos revelados ou esclare- cidos desde 1962, quando a nossa 1.* edigao foi publicada, O advento 12 do novo Journal of the History of the Behavioral Sciences foi muito util a esse respeito. A Parte III ocupa-se dos desenvolvimentos contempordneos, par- ticularmente em suas relacées com os sistemas bist6ricos da psicologia. A nossa finalidade foi proporcionar uma ampla perspectiva da cena ted- rica contempordnea, a qual nao pode ser facilmente obtida mediante tratamentos mais especializados. Acrescentamos o exame de progressos mais recentes e contemporaneos. A ponte entre o passado e o presente nao é facilmente entendida, a menos que estejamos bem familtarizados com as tendéncias atuais. Tentamos, pois, delinear algumas das ten- déncias gerais mais importantes, especialmente no ambito da psicologia geral e experimental, depois de 1962. Foi incluido um Apéndice que consiste em resumos escritos por especialistas nas vigorosas tendéncias gerais registradas pelos desen- volvimentos sistemdticos nao-americanos. Gostariamos de agradecer e louvar os autores do nosso Apéndice pelo seu admirdvel trabalho de atualizagao e, num caso, de criagio dos seus materiais sobre os pro- gressos sistematicos nao-americanos. Acreditamos que o Apéndice con- tinua sendo uma das mais valiosas caracteristicas do livro, dando-lhe uma cobertura e dmbito que nenhum ganz amerikanisch autor poderia fornecer sozinho. Um tema bésico deste livro é que, na psicologia, o interesse se transferiu dos sistemas gerais ortodoxos de hd vinte ou trinta anos atrds para as teorias mais limitadas que sao descritas na Parte III. O leitor pode considerar a Parte I como uma apresentagao das razoes que tornaram necessdria a ocorréncia da mudanca. Uma parte da nossa motivacao para escrever o livro consistiu, precisamente, no nosso desejo de retratar e explicar essa mudanca. Uma outra razao foi termos sen- tido a necessidade, enquanto leciondvamos nossos cursos de psicologia sistemética, de um tnico texto que fosse adequado a tarefa de apre- sentacao de um pano de fundo e de um primeiro plano para o desen- volvimento de sistemas, assim como dos préprios sistemas. Ao escrever um livro, os autores apresentam as suas proprias incli- nagées e tendéncias a respeito do tema. As nossas sao experimentais e, nessa conformidade, escrevemos um livro de orientacao experimenta- lista, Sé incidentalmente nos ocupamos da psicologia como terapia, como arte ou como ciéncia aplicada. Assim, por exemplo, nao retra- tamos os desenvolvimentos recentes no existencialismo ou humanismo em mais do que uma forma algo esquemética, um simples esboco, por- que nao vemos, simplesmente, como enquadrar esse material na psico- logia sistemética, tal como a entendemos. As nossas inclinagoes, dentro da psicologia experimental, sto as do behaviorismo metodoldgico na variedade E-R (em sua mais ampla concepgao). Contudo, tentamos vB compensar essas preferéncias o suficiente para poder apresentar outros Pontos de vista de um modo justo e condigno. As breves sugestoes de leitura no final de cada capitulo tem a finalidade de proporcionar uma facil referéncia a fontes selecionadas Para ulterior exame das quest6es sistemdticas e tedricas propostas neste livro. Nao se fez tentativa alguma, em qualquer sentido, de ser abran- gente ou exaustivo. Oferece-se, outrossim, uma amostragem limitada de materiais importantes, com maior énfase sobre os livros, tanto mais antigos (classicos) como recentes, do que sobre artigos de revistas, embora estes tiltimos sejam citados sempre que especialmente valiosos. Embora algumas das fontes também sejam citadas no texto (e, em certos casos, discutidas), elas foram suplementadas por numerosas refe- réncias adicionais anotadas. Fontes suplementares de informagao, em forma de livro, estio agora sendo preparadas. O primeiro volume consiste num manual de instrug6es, que os professores acharao certamente util em sua utilizagao do texto. O segundo volume seré um livro de leituras organizadas em ténica com este texto mas que também podera ser independentemente utilizado, Esperamos que o presente volume, que é diretamente rele- vante para as necessidades dos estudantes, prove ser igualmente util aos professores como uma fonte de referéncia para estudos suplemen- tares. Desejamos expressar 0 nosso apreco aos muitos editores que nos permitiram reproduzir excertos de suas obras, como indicamos especi- ficamente nos Agradecimentos. Também queremos expressar, em geral, 4 nossa gratidao para com os nossos colegas da Universidade do Mis. souri e de outras partes, por suas contribuigdes diretas e indiretas para este livro, e a tantos de nossos alunos cujas criticas detalhadas dos varios rascunhos preliminares do presente livro foram extremamente valiosas. Metvin H. Marx Witua A. Hirt 14 PARTE 1 A PSICOLOGIA COMO CIENCIA A psicologia nao é sempre e exclusivamente cien- tifica. Nao obstante, a sua maior parte é cientifica e vai se tornando cada vez mais a medida que se de- senvolve. O status da psicologia e dos sistemas e teorias, dentro da psicologia, nao pode ser avaliado sem uma nitida compreensao do que a ciéncia envolve. Nesta conformidade, 0 nosso primeiro capitulo exami- na a natureza da ciéncia. O segundo capitulo exa- mina a posigao da psicologia no dominio da ciéncia, em parte do ponto de vista da matéria com que os psicdlogos lidam. O terceiro capitulo diz respeito a natureza dos sistemas e teorias psicoldgicos. Os cri- térios adequados para avalié-los sto aqui examinados. Embora seja imapossivel chegar a conclusées finais so- bre a natureza da ciéncia, o status da psicologia ou os desiderata para os sistemas e teorias psicoldgicos, o presente estudo dos problemas envolvidos deverd habilitar o leitor a abordar de um modo mais sofis- ticado o exame dos sistemas e teorias aqui expostos. 1. A NATUREZA DA CIENCIA IDENTIFICACAO DA CIENCIA A ciéncia é um empreendimento social multifacetado que desafia uma descrigfo completa. O produto acabado é um corpo de conheci- mentos que foram adquiridos através do uso de métodos cientificos aplicados com uma afitude cientifica. Cada um desses trés aspectos da ciéncia € complexo e muda com o decorrer do tempo. A medida que a ciéncia ganha em anos, as nossas concepsGes a seu respeito mudam; além disso, assim como as respostas finais sobre a natureza continuam a esquivar-se-nos, também uma concepgao final de ciéncia nos escapa. Nio obstante, é possfvel dizer algumas coisas sobre as caracteristicas positivas da ciéncia, apés 0 que passaremos a um exame de numerosos critérios incompletos para distinguir entre as atividades cientificas e outras atividades. A Ciéncia Como Atividade Lingiiistica Diz-se freqiientemente que a ciéncia procura fatos. Com uma fre- qiiéncia quase idéntica, também ouvimos dizer que a ciéncia implica o desenvolvimento de uma teoria. As conotagdes usuais dessas palavras incluem um elevado grau de certeza para os fatos ¢ um baixo grau para as teorias. Assim, as duas indagagSes bésicas da ciéncia parecem, A primeira vista, contraditérias. O paradoxo ainda mais se acentua, aparentemente, em virtude de uma outra conotacdo de fato versus teoria; para muitos, fato implica mais solidez do que realidade, en- quanto que teoria subentende algo menos substancial, algo meramente verbal. Edwin Guthrie foi um psicélogo que afirmou, clara e vigorosa- mente, que tanto os fatos como as teorias sao verbais. Sabemos que algumas coisas originalmente aceitas como fatos séo mais tarde rejei- tadas; assim, parece que os fatos no podem ser considerados sinéni- mos de eventos concretos. Os eventos nado podem ser ‘“‘verdadeiros” agora ¢ tornar-se logo “‘falsos”, embora os enunciados a seu respeito 17 possam ser aceitos num determinado momento e nao num outro. Eis © que Guthrie teve a dizer-nos sobre o assunto (1946, pag. 1): Os objetos € eventos nio sio fatos; eles so, meramente, objetos e eventos. S6 passam a ser fatos depois de serem descritos por pessoas. E é na natureza dessa descricéo que reside a quintesséncia do fato. S6 quando um evento recebe um género muito especifico de descrigio € que se converte num fato. Quando dizemos, “Passemos agora aos fatos”, 0 que estamos dizendo & muito mais de que devemos observar, ou ouvir, ou cheirar, ou tocar objetos reais, ou de que devemos todos observar um acontecimento. C que realmente estamos propondo € que procuremos todos descobrir certos enunciados sobre os quais possamos concordar unanimemente. Os fatos so a base da cooperagio humana. Esta concepgao dos fatos rouba muito da solidez e imutabilidade que freqiientemente consideramos que eles possuem. Vacas € corpos cadentes nao sio fatos; sé os enunciados ou as descrigdes feitos sobre eles sfo fatos. Como os fatos séo verbais, a maneira como eles sao enunciados ou descritos é arbitrdétia. Aos enunciados a que chamamos fatos também costumamos chamar “verdadeiros”; assim, a verdade, tal como usamos a palavra, terd o mesmo elemento de arbitrariedade e de relatividade que os fatos tém. O que verdadeiro para um grupo de pessoas pode nfo ser verdadeiro para um outro grupo. Além disso, para qualquer grupo de pessoas os fatos mudam e a verdade muda; quando reformulamos os nossos enunciados sobre o universo e a medida que os nossos conhecimentos aumentam. Nao podemos insistir em que arranhar a superficie de uma folha de papel ou os padrdes de Pressfo vocalmente produzida no ar sejam verdadeiros; os arranhdes € os padrdes de presséo constituem estimulos que séo titeis ou no para orientar 0 comportamento de pessoas e que produzem ou nio a res- posta “verdadeira”, sob condig6es apropriadas, nas pessoas que ouvem ou léem o que foi escrito no papel. Se os padrdes de estimulo desem- penham bem suas complexas funcdes nas situagées de aprendizagem em que adquiriram significado e nas situagdes em que orientam o com- portamento, entdo os padres tendem a persistir e podemos considerd- -los verdadeiros. No caso contrério, eles acabaréo sendo substituidos por outras verdades, outros fatos. Mesmo aqueles enunciados que con- tinuam sendo chamados verdadeiros, porque formulam previsGes rigo- rosamente cortetas, séo suscetiveis de eventual substituicdo por ver- dades superiores que fazem as mesmas previsdes de um modo mais simples e, assim, permitem codificar a “verdade” mais economicamente. Portanto, é tarefa da ciéncia formular enunciados, mesmo quando esté lidando com fatos. As declaragdes mais fatuais que os cientistas formulam tendem a ser aquelas cujos enunciados “decorrem direta- 18 mente” de observacdes. Os enunciados mais tedricos nao estao relacio- nados de uma forma tio direta com a observacao, embora o enunciado teérico possa ser tao universalmente aceito que também se Ihe dé o nome de um “fato”. O leitor critico nio deve deixar-se seduzir com demasiada facili- dade pela afirmagao correntia de que, no caso de fatos, o enunciado verbal decorre diretamente da observacio. Examinemos um pouco 0 que est4 envolvido no relacionamento dos eventos empiticos com as formulagées simbélicas desses mesmos eventos. Quase todo o ser humano passa por um longo curso de adestra- mento no uso de sua lingua nativa. Apés esse adestramento, ele con- sidera certas espécies de enunciados como “‘gramaticais” e “significa- tivos”, e est4 apto a “descrever” os eventos mediante esses enunciados gramaticais e uiteis. Sem o adestramento, ele nao poderia fazé-lo, Assim, devemos estipular que estamos tratando com um ser humano devida- mente adestrado, antes de haver qualquer possibilidade de sustentar que qualquer enunciado decorre diretamente de uma observacao; ¢ vinte anos de adestramento, mais ou menos, parecerao suficientes para apresentar uma boa soma de orientacao prépria. O ser humano recebe um curso semelhante de adestramento no que concerne a observagao. Ele passar4 a olhar alguns aspectos dos objetos e eventos como significativos € outros como insignificantes. Diferentes culturas dio a seus membros diferentes cursos de estudo da observaco; exemplos impressionantes, para os cidadaos dos Estados Unidos, por exemplo, sio as numerosas espécies de neve que os esqui- més podem distinguir e a pericia dos pigmeus para seguir o rastro de um animal. Infelizmente, nao é muito provavel que o cientista se impressione com a sua propria e extraordindria sensibilidade para certos aspectos dos eventos ou com a sua igualmente notdvel insensibilidade, em alguns casos. E dificil avaliar as nossas prdprias peculiaridades, a menos que possamos comparar 0 nosso comportamento com o de outros. “Bem”, poder-se-ia concluir, “nesse caso, 0 que ptecisamos fazer € tornarmo-nos sensfveis a todos os aspectos, de um modo acurado e completo”. Nada poderia estar mais longe da verdade. Imagine o leitor, caso queira, um olho onividente que fotografe em cores naturais ¢ registre em som estereofénico tudo o que aconteceu. Imagine também que sao feitas previsdes mediante uma busca nos registros, até que se encontre uma seqiiéncia com o mesmo princfpio da seqiiéncia que estamos agota examinando. Para comegar, jamais encontrarfamos, pro- vavelmente, uma seqiiéncia registrada que se igualasse perfeitamente Aquela em que estamos agora interessados. Em segundo lugar, como gostaria o leitor de procuré-la? Seria obviamente impossivel. A tarefa da ciéncia consiste em evitar esse tipo de abordagem literal. 19 Como deve ser evitado esse procedimento? Primeiro, fazendo uma escolha muito seletiva dos aspectos dos acontecimentos que vio sei tratados pela ciéncia; e, segundo, formulando “‘princfpios” ou “leis que governam os acontecimentos; essa formulacio deve ser em termos tao criativos, simples, claros e econémicos que possamos prever e con- trolar seqiiéncias de eventos singulares sem recorrer 4 abordagem se- gundo a qual “o que aconteceu antes acontecerd de novo”. A ciéncia compete, irrevogavelmente, criar novas relacdes entre o mundo dos s{mbolos e o mundo da realidade. Tal missio exige o maximo em pa- ciéncia e engenho. Abordemos agora algumas das caracteristicas da ciéncia que resultam do “fato” de que a sua finalidade consiste em procurar uma efetiva relacdo operacional entre o s{mbolo e a reali- dade, através da intervengao do homem. Alguns Critérios Para a Definiga&o de Ciéncia Existem muitas maneiras legitimas de tentar conhecer e compreen- der o mundo. A maneira cientifica € apenas uma entre vdrias. O que € que distingue a ciéncia de outros tipos de atividade? A ciéncia tem muitas caracterfsticas e cada uma delas foi selecionada, em algum mo- mento, como nica, isto é, como exclusivamente peculiar da ciéncia. Entretanto, nao podemos esperar distinguir a ciéncia de outras ativi- dades humanas na base de uma propriedade singular, assim como nio podemos esperar estar aptos a distinguir todos os caes de todos os gatos porque possuem um focinho preto ou uma cauda que se agita. Uma caracterfstica da ciéncia, 0 uso do controle na observacao, € a que mais se aproxima de ser unica; contudo, as outras caracteristicas da ciéncia também sao usualmente descritivas e, portanto, merecem uma certa consideragio, antes de passarmos a analisar o princfpio de con- trole. E a combinagao dessas caracteristicas que distingue a ciéncia, nao qualquer caracterfstica isoladamente considerada. Finauipape, A finalidade geral da ciéncia consiste em propor- cionar uma explicagio objetiva, fatual e empirica do mundo. Esté, pois, em contraste com os modos artistic, literério e religioso de pensar. Contudo, muitos leigos tém propésitos semelhantes aos dos cientistas: o detetive policial, por exemplo, pode desejar dar uma expli- cacao igualmente objetiva e fatual dos acontecimentos. Pratt (1939) sublinhou a dificuldade em estabelecer uma distingéo entre objetivo ¢ subjetivo que nos permita separar a ciéncia da njo-ciéncia nessas bases. A generalidade do conhecimento do cientista pode ser sublinhada para contrasté-la com outros empreendimentos mais limitados e espe- cfficos mas, nesse caso, nao sera possivel separd-la, exclusivamente nessas bases, de uma explicacio art{stica ou religiosa. 20 Osyeto pe Estupo. Diz-se correntemente que a ciéncia tem um objeto de estudo que é diferente do que interessa & ndo-ciéncia. Isto s6 € verdade em parte. Os cientistas so propensos a tratar de assuntos que se situam perto da zona de transicado entre o saber e a ignorancia. Além disso, em alguma etapa do desenvolvimento dos conhecimentos numa determinada drea, é possivel que sé os cientistas estejam traba- lhando nessas questdes. Por exemplo, houve um tempo em que sé os psicélogos ou fisiélogos se interessavam nas modificagdes do ritmo respiratério ou da pressao sangiiinea que acompanham a emogao. Hoje, isso interessa também ao funciondrio policial. Inversamente, os cha- mados fenédmenos psi (percep¢4o extra-sensorial) interessaram princi- palmente, numa dada época, aos ndo-cientistas; hoje, esses pretensos fenémenos tém sido 0 objeto de considerdvel investigacéo cientffica. Estes exemplos demonstram o fato de que os cientistas e nao-cientistas estudam, freqiientemente, os mesmos assuntos. Conc.usOgs. Tem sido dito que as conclusGes da ciéncia sio mais finais, mais corretas ou mais exatas do que as conclusées alcan- adas por outras disciplinas. Os poetas, entre outros, podem indignar- -se, por vezes, a tal respeito (Newman, 1957) mas a reivindicagio raramente é feita pelos préprios cientistas. Eles reconhecem a natu- reza conjetural de seus prdprios enunciados e consideram os métodos cientificos como sendo, simplesmente, os métodos que preferem usar na busca de conhecimentos. Um estudo das primeiras teorias sobre 0 calor, a luz, os impulsos nervosos ou a propria matéria é apropriado para fazer os cientistas mais humildes do que dogmiticos. J4 nao se pensa que o calor seja um fluido sutil nem que o impulso nervoso circule A velocidade da luz, embora ambas essas crencas tenham sido outrora teorias cientificas conceituadas e sustentadas por alguns como “fatos”, O cientista sé pode olhar para a frente, num continuo pro- cesso de revisio dos fatos presentes. Um psicélogo com uma inclinagao filoséfica disse isto de uma forma admirdvel (Turner, 1967): “Cada novo avanco emite uma centelha de certeza e, depois, a certeza desa- parece” (pag. 7). Dado que as conclusées do cientista nao sao corretas nem acuradas em qualquer sentido fundamental, nio podemos pretender que as conclusées cientificas sejam necessariamente superiores as alcan- cadas por outros meios. Contudo, qualquer conclusao cientifica baseia- -se numa cuidadosa avaliacdo das provas existentes. Toda e qualquer teoria cientifica bem estabelecida, ainda que sujeita a revisio, condu- ziré tipicamente a previsdes mais ou menos cortetas. PrEvIsAo E CONTROLE. Diz-se, por vezes, que a ciéncia se dis- tingue pela sua preocupacZo com a previsio ¢ controle de acontecimen- tos. Entretanto, muitos grupos compartilham de um interesse pela pre- visdo e controle. O lancador no basebol esté interessado no controle 21 do comportamento de um esferdide de um certo tamanho e densidade caracteristicos e o batedor esté sumamente interessado em prever 0 comportamento dessa mesma bola. Esses interesses sao compartilhados pelo fisico. A mie, tanto quanto o psicélogo, procura prever e con- trolar o comportamento de criancas. Assim, esse género de controle nao distingue a ciéncia da nao-ciéncia. O interesse compartilhado pelo con- trole é, provavelmente, a principal razZo para o alto nivel de apoio po- pular a ciéncia. O leigo percebe a ciéncia como a fonte de controle sobre a doenca, a guerra, a fome e até, talvez, a mortalidade. Grande parte do apoio do psicdlogo promana da fartamente alimentada crenca em que os psicélogos contribuem agora, ou contribuiro em breve, pata o bem-estar do homem. Seriamos insensatos se negdssemos essa possi- bilidade mas desejamos enfatizar que esse interesse no controle do mundo est muito longe de ser especifico ou exclusivo da ciéncia. No presente contexto, controle significa “influéncia”; € preciso estar inteiramente certo de se distinguir esse significado do significado cientifico ou técnico mais comum de controle, como um método para eliminar fontes estranhas de variacdo nas observagGes. TeEorIA versus APLIcAGOES. A ciéncia nao esté necessariamente interessada na teoria, como oposto as aplicacdes. Um cientista pode trabalhar exclusivamente com um ou outro desses aspectos, ou com ambos. Os fisicos estavam entre os destacados para o Projeto Ma- nhattan durante a II Guerra Mundial. A meta deles era eminentemente aplicada: o desenvolvimento da bomba atémica. A visdo dessa meta foi possibilitada por muitos homens cuja curiosidade pelo universo os levara a formular teorias, puramente para sua propria satisfagao. Outras ciéncias, como a fisica, poderiam ser usadas para ilustrar o fato de que os cientistas podem ter interesses puros ou interesses aplicados, sem prejudicar seu status de cientistas. As relagdes entre teoria ¢ aplicagdes, ou entre ciéncia pura e aplicada, constituem um problema muito complexo, varias facetas do qual serao examinadas em outros lugares do presente texto. Terminotocia. A terminologia do cientista nao & necessaria- mente mais exclusiva ou mais rigorosa, em seu significado, do que a linguagem de outras pessoas. Por vezes, os cientistas podem usar novas palavras esotéricas e, outras vezes, dio novos significados a velhas pa- lavras. A linguagem cientffica pode entao parecer mero jatgao para o leigo. Entretanto, a ciéncia pode usar quase exatamente a linguagem do leigo. A linguagem da matemética é paradigmética por sua preciso €, por vezes, por seu cardter tinico; entretanto, a matemética nao é uma ciéncia empirica e, por conseguinte, nao é uma ciéncia, no sentido restrito em que empregaremos a palavra. Os engenheiros também 22 podem usar uma linguagem tao exclusiva e precisa quanto as suas con- trapartes cientificas, os fisicos e 0s quimicos. Nao podemos distinguir a ciéncia da nao-ciéncia na base das palavras que séo usadas, embora vejamos que a ciéncia utiliza métodos especiais para esclarecer os signi- ficados de palavras. Exatrpao. Afirma-se freqiientemente que a exatidao e a precisao, especialmente na medigao, distinguem o cientista. Mas tampouco a exatiddo e a precisdo constituem propriedades exclusivas dos cientistas. Medigdes igualmente precisas e quantificadas podem ser usadas pelo engenheiro ou 0 inventor. Entretanto, devemos distinguir entre o uso de medidas e a cons- trugio de escalas e procedimentos de medicao. A pessoa que estabelece um novo meio de medicao est4 empenhada numa atividade que pertence ao préprio 4mago da ciéncia; ela esté estabelecendo uma nova relagao entre simbolo e realidade, e esté enriquecendo 0 acervo de coisas que podem ser ditas sobre a realidade medida. O homem que mais niti- damente define um fenémeno em linguagem nao-matematica dedica-se ao mesmo tipo geral de atividade. Assim, a terminologia usada e a exatido com que as quantidades podem ser expressas sao resultados de uma parte decisiva do processo cientffico, se bem que nao cons- tituam caracteristicas exclusivas da ciéncia. Reverteremos a este assunto mais adiante, neste capitulo, e de novo perto do final do livro. Embora nenhuma das caracterfsticas que examinamos até aqui distinga, necessariamente, a ciéncia da nio-ciéncia, a nocdo de que o fazem nao ocorre por mero acaso; de um modo geral, essas caracteris- ticas descrevem a ciéncia, se bem que nao a distingams. A ciéncia esfor- ca-se por conseguir rigor terminolégico, capacidade de previsio e con- Eo mais quantificagéo, melhor teoria e uma explicacao objetiva do mundo. Contudo, acreditamos que a distingio essencial mais adequada entre ciéncia e nao-ciéncia é uma caracteristica da metodologia cientifica. E essa caracteristica — o principio de controle — a que estd mais prd- xima, entre todos os empreendimentos humanos, de pertencer exclu- sivamente a ciénci: © CONTROLE DAS OBSERVACGES A Necessidade de Controle , ° controle €é um método usado pelo cientista numa tentativa para identificar as “taz6es”” ou “causas” do que ele observa ou, por outras palavras, para identificar as fontes de variacio em suas observacdes. 23 Um experimento ¢ uma situagdo cuidadosamente controlada em que h4 uma ou mais condigdes cuja influéncia o investigador deseja deter- minar. Essas condigées, ou fatores, tem geralmente o nome de va- ridveis independentes. As condigées que séo diretamente medidas ou de algum outro modo observadas chamam-se varidveis dependentes (em psicologia, estas varidveis so, tipicamente, respostas de uma ou outra espécie), Ora bem, para se obter resultados que nao sejam ambiguos — isto é, mudancas nas variéveis dependentes que podem ser atribufdas com razodvel confianga as varidveis independentes — o cientista neces- sita eliminar — controlar — todas as outras condigdes potencialmente efetivas. A essas outras condigdes dé-se o nome de varidveis controladas. E fécil mostrar que o principio de controle pode ser usado fora da ciéncia. Por exemplo, um fazendeiro que tem cies de caga e galinhas poderd descobrir que um dos seus quatro cies, pelo menos, esté comendo os ovos. Se for invidvel manter os seus cies permanente- mente isolados do galinheito, o dono podera querer descobrir o cul- pado, a fim de vendé-lo a um amigo que nao tenha galinhas ou a um inimigo que as tenha. O experimento pode ser realizado em apenas duas noites, trancando um par de c4es na primeira noite e observando se pela manha apareceram ovos quebrados ¢ esvaziados; se tal acon- tecer, mais um cao serd trancado na segunda noite e os resultados obser- vados. Se nenhum ovo foi quebrado, os dois caes originalmente soltos setao fechados com um dos outros ¢ os resultados observados. Seja qual for o resultado, o cao culpado teria sido desta forma isolado. Um fazendeiro meticuloso verificaria, € claro, os resultados negativos, dando ao animal culpado uma oportunidade positiva para demonstrar a sua presumida habilidade e checaria os resultados positivos assegurando-se de que um tinico céo era o comedor dos ovos. Em ciéncia, os culpados potenciais sio varidveis e nao cies. O controle é, uma vez mais, o método adotado para isolar os seus efeitos. Nagel mostra-se de acotdo com a nossa avaliac¢ao da importancia do controle e fornece um outro exemplo de sua necessidade na seguinte passagem (1967, pég. 11 podemos fazer aqui uma exposicéo detalhada da légica de verificacio de hipéteses mas devemos fazer uma breve mengio da nog de uma inves- tigacao controlada, que talvez seja, por si s6, 0 mais importante elemento nessa légica. Um simples exemplo deve bastar para indicar 0 que caracteriza tais investigages. A crenca, largamente alimentada em certa época, de que os banhos frios de agua salgada eram benéficos para as febres altas parece ter sido baseada em repetidas observagées das melhoras subseqiientes no estado dos pacientes febris que foram submetidos a esse tratamento. Contudo, independentemente dessa crenga ser fundamentada ou ndo — de fato, no € — as provas em que cla se bascou sio insuficientes para esta- belecer a sua validade. Evidentemente, nao ocorreu aqueles que aceitaram a.crenca, em fungio dessas provas, indagar se os pacientes que nao recebiam 24 am melhoras andloges. Em resumo, a crenga nio era o produto de uma investigasao controlada — isto é, 0 curso da doenca em pacientes que recebiam o tratamento nao foi comparado com o seu curso num grupo de controle que nio o recebeu, de modo que nao havia uma base racional para decidir se o tratamento fazia qualquer diferenca. O exemplo de Nagel é especialmente instrutivo para os psicdlogos. Os banhos de agua salgada, tal como as sangrias e outros horriveis exemplos, eram um tratamento aplicado a seres humanos, organismos que possuem uma grande capacidade de cura esponténea. Assim, 0 bem-estar de um ser humano é uma funga0 do tempo ou, mais preci- samente, de influéncias que atuam com o decorrer do tempo, e um controle de tais influéncias ¢ absolutamente necessério, se houver a pretenséo de aduzir algumas conclusdes vdlidas. A analogia com a psicologia é clara: O bem-estar mental, 4 semelhanga do bem-estar fisico, é uma fungao de varidveis que atuam com o tempo e os pacientes, por vezes, recuperam-se, se ficarem entregues aos seus proprios recursos. Também as nossas tendéncias humanistas, tal como na medicina, impe- dem-nos freqiientemente de recusar tratamentos presumivelmente bené- ficos (como os banhos de gua salgada ou as sangrias?) aqueles que os solicitam. O exercicio de controle sobre as observagées ¢, portanto, um pro- cesso essencial na ciéncia; prefere-se o emprego da experimentacao, em vez da obsetvaco naturalista, porque possibilita um melhor controle. Se o controle nao for usado, as fontes de variagdo nao podem ser descobertas com certeza porque as varidveis incontroladas continuarao sempre como potenciais explicagdes alternativas. Isto néo € um argu- mento contra a observacao naturalista. Willems e Raush (1969) apre- sentaram um argumento convincente, completo com exemplos, para o uso da observacao naturalista na pesquisa psicolégica. Argumentamos apenas que o laboratério fornece a melhor situagao controlada e nao se lhe deve negar o seu papel decisivo. Grande parte do complicado equipamento do cientista orienta-se, justamente, para esse objetivo de controle de observacdes. A apare- Ihagem do cientista e o ambiente em que trabalha destinam-se a eliminar variagdes extrinsecas, de modo a aumentar a sua confianca em que os resultados sao atribufveis a varidvel ou conjunto de varidveis especi- ficas que ele est4 estudando. Estatistica e Controle Os procedimentos estat{sticos desempenham um papel afim para aumentar a confianca com que os enunciados podem ser formulados. Neste sentido, os procedimentos estatisticos fornecem um outro meio 25 de controle. As técnicas estat{sticas no podem eliminar a variabilidade nas observagdes; quando o trabalho estatistico (no sentido estrito) comega, o experimento terminou e os dados jé refletem a variagao extrinseca que se intrometeu, apesar do controle proporcionado pelo dispositivo e 0 meio experimentais. Contudo, os procedimentos esta- tisticos permitem ao cientista decidir se € razodvel pressupor que as fontes estranhas de variacao puderam explicar os seus resultados. Se ngo podem, a implicagéo é que as mudancas na varidvel dependente esto relacionadas com a varidvel independente que ele manipulou. Assim, tanto os procedimentos experimentais como os estat{sticos cons- tituem apenas meios para escolher entre explicagdes alternativas dos resultados observados. O fato de que, por vezes, se empregam equipamentos e procedi- mentos experimentais complexos leva muitas pessoas a pensar sobre os controles unicamente em fungao de tais complexidades. O exame que se segue pretende demonstrar que existe uma continuidade funda- mental no principio de controle, através de uma variedade de técnicas de observacao. Métodos e Técnicas Comecemos por distinguir entre método e técnica, no sentido em que estes termos sao usados na metodologia cientifica. Entendemos por fzétodo os processos fundamentais mediante os quais a ciéncia avanga; o aspecto-chave do método cientifico é o controle. Por técnica entendemos a maneira particular segundo a qual o método geral é implementado; existem muitas técnicas, que freqiientemente diferem de um campo de estudo para outro e no raro sao altamente complexas, especializadas e exigentes. Em psicologia, existem algumas excelentes técnicas para controlar varidveis; elas sao, em princfpio, muito simples. As varidveis de here- ditariedade podem ser controladas usando gémeos idénticos e colocando um gémeo de cada par no grupo de controle, o outro no grupo experi- mental. Todas as condigdes ambientes, dentro do experimento, serao idénticas para os dois grupos — exceto no tocante a varidvel indepen- dente. As variagdes fortuitas no resultado sero atribuiveis a variacdes pré-experimentais no ambiente; isto é, um gémeo nao ter estado sujeito exatamente as mesmas condicées ambientais do outro. Os efeitos sisteméticos serao relacionados com as diferencas entre pares de gémeos ou com os efeitos da varidvel independente. Graus menotes de controle podem ser obtidos por meio de outras técnicas; por exemplo, podem ser utilizadas ninhadas ou animais apro- ximadamente da mesma idade, provenientes de um mesmo “pool” 26 genético. E evidente, por estes exemplos, que muitas técnicas de di- verso grau de eficdcia podem ser usadas para implementar 0 “método geral de controle”. Assim, quando se afirma, por vezes, que a psicologia requer dife- rentes métodos em seu progtesso cientifico, as palavras devem ser revistas de modo a dizer que a psicologia requer, sim, diferentes técnicas em sua aplicagao do método cientifico bésico. Seria insensato afirmar- mos que o método cientifico esté atualmente estabelecido, de um modo fixo, para todo o sempre. Entretanto, da nossa perspectiva atual, os métodos bésicos da ciéncia parecem ser surpreendentemente estaveis desde os ultimos 350 anos, aproximadamente. Essa estabilidade no método pode ser contrastada com as répidas mudangas na técnica; por exemplo, as técnicas de observacio visual progrediram, durante o mesmo perfodo, desde a lente de aumentar até aos microscdpios eletrnicos € idnicos de campo. Grande parte do cisma entre o experimental e o clinico, que se observa, por vezes, na psicologia, resulta de nfo se fazer a distingao entre método e técnica. Os psicdlogos clinicos e de aconselhamento sGo propensos a considerar os psicdlogos experimentais como perten- centes a uma raca diferente, na base de que usam um tipo diferente de método; o psicdlogo clinico pode justificar a sua propria técnica insistindo em que a ciéncia permite muitos métodos e em que a psico- Jogia nao necessita imitar as ciéncias mais antigas, especialmente a fisica, em sua metodologia, Os psicélogos experimentais, por seu lado, pre- ferem amitide dissociar-se dos clinicos e conselheiros, apoiando-se no pressuposto de que estes ultimos nao usam uma metodologia cientifica. nucleo central desse preconceito € a crenga de que as observacies controladas nao sao adequadamente utilizadas pelos psicdlogos clinicos ¢ de aconselhamento. Se bem que isso possa ser verdade em muitos casos individuais, esperamos demonstrar que nao tem de ser necessaria- mente assim. Contudo, é fécil perceber que podem surgir mal-enten- didos e equivocos, por causa de uma falha em distinguir entre método e técnica. O Continuo de Atividade O processo de controle de observagdes pode ser melhor entendido se reconhecermos que o controle pode ser obtido através de métodos ativos ou de métodos passivos. Diz-se freqiientemente que o experi- mento € 0 método ideal para realizar o controle. O experimentador pode controlar e manipular varidveis dentro do contexto do experi- mento; por exemplo, ele pode igualar a temperatura na cAmara expe- rimental 0 numero de reforgos entre grupos, enquanto que varia a 27 soma de reforcos. Entretanto, jf vimos que o experimentador poderd ter que ser algo mais passivo, a fim de controlar outras espécies de variagao; por exemplo, poderd ter que esperar até que ocorram gémeos humanos, para controlar os fatores genéticos. Um rigoroso controle do meio pré-experimental dos sujeitos no experimento é usualmente impos- sivel. Permite-se, simplesmente, que ocorra a variacao no meio pré- -experimental e faz-se a sua avaliacao estatistica porque, usualmente, nao existe qualquer alternativa. Muitos dos refinamentos nos aparelhos usados na experimentacao psicoldgica orientam-se para esse objetivo de aumentar o controle. Em certas situag6es, porém, tanto o aparelho ou dispositivo como a expe- rimentag&o so inapropriados. Mesmo nesse extremo relativamente passivo do continuo de atividade, distante da experimentacao, pode ser exercida uma espécie de controle. O conselheiro arguto, por exem- plo, formula hipsteses que ele procura verificar no decorrer de uma entrevista. Essas hipéteses podem ser a respeito de um determinado cliente ou sobre relagdes mais gerais. Neste ultimo caso, ter de ser checada uma série de clientes (ver Hunt, 1951). Interessa-nos mais © caso em que o conselheiro deseja estabelecer reiuy>s gerais, visto que as leis gerais sio de uma importincia cientifica mais direta. Essa legitimidade geral (de caréter “‘nomotético”) esté subentendida, presu- mivelmente, nas relagdes individuais (“‘idiogrdficas”) com que o psi- célogo clinico tipicamente se preocupa. Quando o psicélogo clinico ou de aconselhamento procura checar seletivamente as provas sobre varios fatores ou condigées, ele deve comesar aplicando um certo grau de controle. Suponhamos que ele esté procurando as relagdes entre certos tipos de conseqiiéncias (diga- mos, sintomas) e os fatores antecedentes (como as experiéncias infantis ou as condigées familiares). Ao checar essas possiveis relagdes, ele terd, mais cedo ou mais tarde, que levar em conta outras condicdes em que nio est4 interessado de momento (por exemplo, sexo, idade ou nivel educacional). Neste ponto, os controles fazem-se necessérios. Por exemplo, pode ser forcado a nao tomar em consideragao certos clientes porque nao sao suficientemente semelhantes no nivel educa- cional. Quando assim procede, esté tentando eliminar os efeitos de alguma varidvel, ao mesmo tempo que controla a influéncia de outras. Félo sem a ajuda de um plano experimental formal ou manipulacdo ativa de varidveis; mesmo assim, o que faz é aplicar a esséncia do principio de controle de um modo que talvez seja o tinico possivel na sua situagio. Isto é verdade quer o seu interesse primordial seja cientifico (nomotético) ou clinico (idiogréfico). O cientista que procura utilizar o princfpio de controle dessa forma passiva defronta-se com enormes dificuldades. Ele pode ser ten- 28 tado a considerar as observacdes em que baseia as suas hipéteses como provas das mesmas hipsteses. O experimentador que ativamente con- trola a sua observagio deve achar mais fécil separar as suas hipéteses das fontes destas e, portanto, submeter as hipéteses 4 necessdria compro- vacio independente. A situagio mais passiva também encoraja a con- fianga na recordagao de acontecimentos passados; isto € tanto mais grave na medida em que permite a selecdo subjetiva e a distorgo das observacdes, em vez de um registro mais objetivo de tudo o que se relaciona com um certo tipo de medida, formalmente determinado de antemio. Mas permanece o fato de que € possivel usar a espécie de pensamento que caracteriza o emprego do principio de controle, mesmo naquelas situagdes que impedem a prdtica do controle ativo. Esse con- trole passivo pode aumentar a utilidade cientifica de observagdes que de outro modo nao seriam controladas. Se isto nao fosse verdade, Charles Darwin nao poderia ter demonstrado, pata satisfago de seus colegas cientistas, o principio da evolucao. O PAPEL DA ANALISE Exemplos de Andlise Desenrolou-se uma considerdvel dose de confuséo em torno de uma outra ferramenta bdsica no instrumental da ciéncia: a andlise. Ilustremos o seu papel nas observagGes controladas com um exem- plo extraido da histéria da psicologia. Em 1938, Norman Maier con- quistou o prémio anual conferido pela American Association for the Advancement of Science. A sua contribuicdo consistiu numa comuni- cacao (Maier, 1938) acompanhada de um filme’ impressionante em que ele descteveu as suas pesquisas sobre o comportamento “neurd- tico” no rato. Maier lograra produzir sintomas anormais muito im- ptessionantes em ratos, apresentando-lhes um problema indissolivel de discriminagao. Os seus resultados pareciam ser a culminacao de muitos anos de esforcos estrénuos dos psicdlogos para desenvolver uma téc- nica capaz de produzir neurose em ratos, de modo que a neurose pudesse ser experimentalmente investigada com um sujeito de tio {4cil manejo. Maier interpretou o comportamento anormal observado como sendo uma reacio ao conflito. Quando as caracteristicas do seu proce- dimento experimental foram estudadas e isoladas — analisadas — alguns psicdlogos interessaram-se pelo papel desempenhado por um fator cuja importancia na situagdo Maier nao destacara. Tratava-se do emprego de uma rajada de ar que forgava o animal a saltar de uma plataforma do aparelho de teste. Para Maier, esse fator nao tinha 29 significado algum, além de obrigar o animal a saltar; considerara esse dispositivo eficaz para os seus propésitos e por isso'o empregara, em vez de alguma outra técnica. Entretanto, pouco depois do relatério de Maier ter sido divulgado, C. T. Morgan e Morgan (1939) infor- mavam poder reproduzir os resultados de Maier sem que se manifes- tasse qualquer conflito evidente. Os seus ratos, quando simplesmente expostos ao mesmo tipo de som de alta freqiéncia e intensidade que Maier tinha usado para obrigar os seus sujeitos a saltar para a plata- forma, onde recebiam, por sua vez, a rajada de ar, mostraram o mesmo procedimento convulsivo e comatoso que os ratos de Maier tinham exi- bido! Parecia, pois, que o complicado adestramento de discriminagio 0 suposto conflito resultante de uma situaco insoltivel (ora um som intenso, ora uma lufada de ar) eram inteiramente desnecessdrios. O termo crise audiogénica tornou-se entfo popular como um rétulo para © comportamento convulsivo, tendo em vista a sua base aparentemente auditiva. Segundo parecia, nao fora realizado um controle necessério — tal como no caso dos banhos de 4gua salgada. Sem entrar na controvérsia que se seguiu, sobre se alguma outra espécie de conflito é ou nao um fator essencial, podemos apontar este exemplo como uma interessante e importante ilustracao da necessidade de combinar o pensamento analitico e 0 controle como uma base para interpretacdes. Muitos outros exemplos serao encontrados pelos leitores dacliteratura psicolégica. E impossivel conceber como a ciéncia pode proceder sem alguma andlise. O processo de controle implica que foram analisadas algumas var'dveis que precisavam de controle; diferentes fatores potencialmente importantes sao isolados, controlados e estudados em telacéo com efeitos selecionados. A complexidade da maioria das situagées da vida cotid’ana é t@o grande que relagdes cientificamente uteis s6 podem ser determinadas através de processos gémeos de anélise conceptual e obgervacao controlada. A nossa énfase na andlise nao deve ser inter- ptetada como rejei¢ao da sintese. Uma vez que as varidveis pertinentes tenham sido isoladas através da andlise, terdo de existir leis sintéticas que nos digam como as varidveis se combinam pata produzir o efeito final. O pensamento sintético tem sido mormente preferido pelos psi- célogos de orientagao clinica; a sintese de um certo ntimero de varidveis & necessétia em situacdes multivariveis, se se quiser tentar a inter- pretacio e explicacio. A andlise poderd ser rejeitada porque a sua critica se interessa, primordialmente, com o mundo tal “como é”, em vez de “‘irrealidade” que decorre da andlise, abstragao e controle cientificos. Se bem que a andlise possa nao proporcionar respostas completas e praticas, acreditamos que uma rejeicao da andlise é funda- mentalmente anticientifica. Enquanto um procedimento anal{tico nao 30 tiver isolado as distintas varidveis de uma situago complexa, a sintese nada tem com que trabalhar. As atitudes antianaliticas tenderao, pro- vavelmente, a desaparecer quando a natureza do processo cientifico, em seu todo, for melhor compreendida. A importancia da andlise e controle decorre das espécies de ma- teriais com que a ciéncia trabalha. S6 podemos entender completa- mente a ciéncia se entendermos esses materiais. Assinalamos que a ciéncia terminada, considerada como um corpo de conhecimentos, con- siste em enunciados. Esses enunciados sao considerados de uma ma- neira diferente da de outros itens em nosso mundo experiencial. O controle, a andlise e a sintese desempenham seus papéis no estabeleci- mento das relacdes que o cientista descobre ou inventa — as existentes entre os mundos empfrico e simbélico. A anélise fornece-nos termos que podem ser usados em hipéteses experimentais. O uso de controle ajuda-nos a verificar as nossas hipéteses em experimentos e observacdes idéneos e isentos de ambigiiidade. A sintese € usada -para combinar as varidveis de modo que os nossos conhecimentos possam se aplicar a situagdes complexas que nao foram diretamente observadas antes. A sintese diz-nos, se for corretamente utilizada, como as varidveis se combinam para produzir um determinado efeito. Passamos agota a0 exame de um dos fatores bdsicos que determina a cortegio do proce- dimento cientifico: trata-se do principio do operacionismo, 0 qual diz respeito ao problema da comunicacio efetiva. OPERACIONISMO Histéria A obra do fisico Percy Bridgman (1927) destaca-se como um marco importante ao assinalar claramente e com abundancia de detalhes uma precaugdo que deve ser tomada para reduzir a ambigitidade nos conceitos cientificos. Bridgman analisou os hébitos histéricos de pen- samento e expresso na fisica que precederam Einstein; perguntou-se por que razo as teorias de Einstein. que indicavam a necessidade de uma revisao drdstica dos conceitos de comprimento, espago ¢ tempo, tinham representado tamanho choque pata os fisicos. Ele desejava evitar a repetigo desse choque. Em sua andlise, Bridgman descobriu que os significados newtonianos de tempo, comprimento e espaco con- tinham elementos de definigdo que nao se justificavam pelos resultados da experimentacio ffsica. Para Newton, o tempo era uma espécie de escala absoluta, independente de qualquer processo que pudesse ser requerido para descobrir o que é “tempo”. Disse Bridgman, a respeito da definicdo de Newton (1927): “Nao existe, atualmente, garantia 31 de espécie alguma de que haja na natureza algo dotado de propriedades como as que foram pressupostas na definicéo” (p4g. 4). Quando Einstein examinou alguns dos conceitos de Newton, foi levado a refor- mulé-los completamente. Uma caracteristica essencial da teoria rela- tivista de Einstein € a sua dependéncia fundamental das operagdes requeridas para medir tempo e posigio; por exemplo, como estabe- lecer que dois eventos que ocorrem em lugares muito separados acon- tecem “ao mesmo tempo”? Obviamente, uma mensagem deve ser enviada de um lugar para o outro, Entrementes, os lugares podem ter alterado suas posicdes absolutas ou relativas. A resolucdo desses problemas conduziu Einstein a sua teoria da relatividade. Bridgman propés estabelecer exigéncias mais rigorosas para a defi- nigéo dos conceitos fisicos, de modo que nao houvesse necessidade de ocorrer de novo na fisica uma revolugio como a que foi provocada pela teoria da relatividade (1927, pég. 5): A nova atitude em relagio a um conceito € inteiramente diferente. Po- demos exemplificé-la considerando 0 conceito de comprimento: O que é que entendemos pelo comprimento de um objeto? Sabemos, evidentemente, © que queremos dizer com comprimento se pudermos indicar qual é 0 comprimento de todo e qualquer objeto; e, para o fisico, nada mais é necessdrio. Para apurar o comprimento de um objeto temos de realizar certas operagées fisicas. Portanto, 0 conceito de comprimento € fixado quando se fixam as operagdes pelas quais 0 comprimento € medido; quer dizer, 0 conceito de comprimento implica, nem mais nem menos, um con- junto de operages; 0 conceito & sinénimo do conjunto correspondente de operagoes. A iiltima frase desta citagio deve elucidar por que o ponto de vista de Bridgman foi rotulado de operacionismo e por que o tipo de definicgo por ele proposta se chamou definigao operacional. O seu pro- pésito foi aclarar o significado de todos os conceitos e eliminar todas as conotagées de termos que pudessem nio ser significativas. Por outras palavras, o propésito foi assegurar que os conceitos tivessem uma refe- réncia clara, um significado em termos de operacdes, tanto para o ouvinte ou o leitor como para os que os inventaram ou usam. Hi, no ambito da ciéncia, uma continua investigacio e critica do ponto de vista operacional; Benjamin (1955) examinou detalha- damente o operacionismo do ponto de vista de um filésofo da ciéncia. E razoavel dizer-se, provavelmente, que o operacionismo € incompleto, estd eivado de dificuldades filoséficas e, se tomado literalmente, nao pode fornecer um programa inteiramente coerente e sistemdtico para © progresso cientifico. Nao obstante, o operacionismo, como uma pres- crigao metodolégica vagamente interpretada, ainda é vidvel e ainda necessita, na psicologia, eliminar a especulacao cientificamente vazia 32 de significado que continua fazendo com que a nossa trilha cientffica pareca mais percorrer uma floresta do que um jardim. O operacionismo cedo foi levado para a psicologia e a sua acei- taco deptessa encontrou opositores. Stevens (1939) sublinhou que o operacionismo no devia set encarado como uma religio ou uma pana- céia; é, simplesmente, um enunciado formal dos métodos que sempre tém sido usados na ciéncia, quando € necessério esclarecer os signifi- cados de palavras ou outros simbolos. O inforttinio, por vezes, espreita nos bastidores aqueles que deixam seus conceitos verbais assumir uma exagerada identidade independente. Os conceitos nao tém realidade propria e a adverténcia dos operacionistas ajuda o cientista a manter em mente a origem do conceito. Houve no comego muito desacordo, argumentando-se que nume- rosos conceitos tinham provado ser sumamente tteis, apesar da carén- cia de operacdes ou eventos diretamente observaveis a que aqueles cor- respondessem, Bridgman esclareceu que as operagoes de lépis e papel € os conceitos verbais séo admissfveis, ainda que nao correspondam imediatamente a operacées fisicas, mas insistiu em afirmar que eles devem ser, em ultima instancia, redutiveis a operacdes que podem ser realmente efetuadas, caso contrério, ndo poderao ter qualquer signi- ficado para a ciéncia. Num livro cuja publicagdo teve lugar vinte e cinco anos apés o seu primeiro trabalho (Bridgman, 1952), ele rea- firmou a utilidade de tais conceitos abstratos. A maioria dos cientistas concordar4, provavelmente, em que a ciéncia deve seguir mais ou menos rigorosamente a ptescrigio operacional em alguma etapa do jogo, se quisermos que a ciéncia proporcione conhecimentos comunicéveis. A experiéncia demonstrou que, quando um termo est4 sendo definido, © desacordo cessa, usualmente, quando assinalamos 0 que se fez para definir a palavra € dizemos: “Isto € 0 que eu entendo por (segue-se 0 termo em questéo).” Nés devemos assegurar, de algum modo, que ‘os nossos enunciados sejam suscetfveis de inspirar outros para um tipo previsivel de resposta, pois isso faz parte da tarefa da ciéncia. A defi- nigdo operacional constitui um modo de fazé-lo. Fisicos como Einstein e Bridgman estavam interessados na mu- dancga num conceito que poderia ter de ocorrer em virtude de novos requisitos operacionais de um novo contexto; por exemplo, a técnica de ‘colocar varas de medicgio topo a topo para determinar o compri- mento deve ser abandonada se o comprimento tiver que ser medido numa escala astronémica. E surge a questio: Em que sentido os dois conceitos de comprimento so idénticos? Em psicologia, uma definicao operacional de ansiedade pode envolver as tespostas verbais a per- guntas verbais por sujeitos humanos. Uma outra pode depender das respostas galvanocutaneas. Uma terceira definicao de ansiedade poder4 33 se basear no montante de micgfo e defecacio por ratos, numa situacao de campo aberto. As trés definicdes dizem respeito a ‘‘mesma coisa”? Sendo assim, quais sao as operagGes que nos permitem relacionar as trés definicdes operacionalmente distintas? Este tipo de interrogacao nao ¢ facilmente respondido mas exige uma resposta. Serve a util finalidade de nos manter na proximidade dos nossos dados. © OPERACIONISMO RELACIONADO COM O CONTROLE Podemos agora voltar ao exame do controle de um outro ponto de vista. E claramente necessério especificar 0 contexto em que as ope- ragdes sio executadas, se quisermos que o significado de conceitos ba- seados nas operagées realizadas esteja livre de toda a embigiiidade. Sé entZo as operagdes podem ser repetidas de modo exato. A especifi- cago da situagdo deve ser, em parte, uma descricdo dos valores e relagdes das varidveis na situac30o; isto é, devemos controlar as va- ridveis através do uso do principio de controle, para que possamos usar definigdes operacionais. Sem um controle adequado, nao podemos estar certos de que as nossas operacdes serao idoneamente repetidas. O cientista deseja formular enunciados sobre as relagdes entre eventos. Pode querer formular um enunciado da forma “‘A esté relacio- nado com C”. Para fazé-lo, deve estar certo de que algum outro fator no € responsdvel pela suposta relacéo. Num exemplo previamente citado, Maier desejou afirmar que o conflito era responsdvel pelo com- portamento observado em seus animais experimentais. Contudo, os Morgans demonstraram que um outro fator — um som de alta fre- qiiéncia — estava relacionado com o comportamento, na auséncia do tipo original de conflito. Isto pos em diivida o enunciado original de Maier. Portanto, de um modo geral, os enunciados cientfficos positivos s6 podem ser formulados quando as assergdes alternativas sao elimi- nadas mediante o controle das varidveis. E claro que o controle é a caracterfstica mais generalizada do processo cientifico, impregnando cada uma de suas fases de desenvolvimento. Historicamente, a neces- sidade de controle de todas as varidveis, numa determinada situacio, foi reconhecida muito antes de Bridgman propor as suas concepsdes de operacionismo. Nao obstante, vimos que uma forma de considerar © controle € como um requisito prévio para uma adequada definicao operacional de conceitos relacionais mais complexos. HIPOTESES CIENT{FICAS O exame precedente pode levar a pensar que a ciéncia é um corpo dissecado e murcho de enunciados. De fato, a ciéncia terminada pode 34 ser altamente formalizada e a interpretacio dos enunciados cientificos, num dado momento, pode exigir mais perseveranca do que imaginacio. Entretanto, a criagio de ciéncia requer imaginacdo e engenhosidade da mais alta ordem, assim como trabalho 4rduo. A emogo da descoberta cientifica € tao satisfatéria quanto a que possa derivar de qualquer outra vocagao. A dedicacdo de muitos cientistas ao seu trabalho é um testemunho dessa afirmacao. O emprego de definicdes operacionais eo controle de varidveis so requisitos prévios de um bom labor cien- tifico mas a utilizago dessas técnicas nao garante que o cientista fard uma grande contribuicio. O cientista deve trabalhar com problemas significativos ¢ formular hipéteses efetivas, se quiser realizar um trabalho importante. Deve equacionar um problema de modo que possa ser abordado por técnicas cientificas. Isto subentende que quaisquer questdes devem ser sempre expressas de um modo que permita serem empiricamente respondidas. As questées inicialmente formuladas nao sao parte da ciéncia, porquanto surgem de consideraces pré-cientificas. Mais tarde, as questdes podem set sugeridas pelos resultados de experimentos prévios ou podem decorrer de um estudo de alguma estrutura tedrica que, por sua vez, esteja relacionada com resultados experimentais. O primeiro requisito para uma hipétese cientifica é que ela seja testdvel e o primeiro requisito para uma pergunta cientifica € que seja respondivel. Talvez isto se reduza a dizer que os termos da hipétese ou questao devem ser operacionalmente definidos, as operagées reali- zadas de acordo com o que a questao requer e os resultados observados. Se o experimento for realizado com a finalidade de testar alguma hipé- tese, esta deve ser suficientemente clara no que implica, para que os resultados do experimento sejam previstos de antemao; um resul- tado deve ser especificado entre as varias alternativas. Mais adiante, veremos exemplos, em psicologia, de teorias sobre o comportamento que se propdem explicar o comportamento depois dele ocorrer, embora no possam prever antecipadamente que comportamento ocorrer4. Num exame mais minucioso, essas pretensas teorias resultam capazes de explicar todo e¢ qualquer comportamento que ocorra. Em resumo, nenhum resultado possfvel ou imagindvel poderia refutar a teoria ou, por outras palavras, fosse qual fosse o resultado, a teoria ver-se-ia sempre confirmada. Ora, um requisito das hipdteses cientfficas € que sejam enunciadas com suficiente precisio para que possam ser refutadas. As hipéteses que nao pudem ser desaprovadas sao excessivamente gené- ricas para que se revistam de utilidade cientifica; a ciéncia esfor¢a-se, entre outras coisas, por predizer eventos, dado um conjunto de circuns- tancias precedentes. Se uma hipétese é tio genérica que nao pode ser refutada, também € tio genética que nao pode ser efetivamente pre- 35 vista; portanto, falece-lhe um importante teste para que seja uma hipé- tese cientifica. Por exemplo, se alguém nos diz que a razdo pela qual as coisas acontecem da maneira que acontecem é porque este ¢ o melhor dos mundos possiveis, nao estaremos em melhor posicao que antes para prever os eventos de amanha. Esse tipo de comunicacao € refu- t4vel e, portanto, é cientificamente inutil. Existe um tipo de hipétese em que o requisito de ser direta- mente test4vel ou refutdvel nao tem aplicagio. Trata-se das hipéteses que sao andlogas aos postulados mateméticos. A sua fun¢do no con- siste em especificar diretamente um resultado empirico mas em servir de ponto de partida para a derivado de outros enunciados que, estes sim, especifiquem um resultado empirico. Tais enunciados nao tém significado operacional em fungao de suas derivacées. Exemplos disto so menos comuns em psicologia do que em algumas ciéncias mais avancadas mas algumas teorias matemdticas da aprendizagem parecem conter enunciados do tipo dos postulados; os enunciados de Estes (1950) sobre os “pools” de estimulos e a amostragem que o organismo faz deles sao, sem divida, desse tipo. O enunciado de Hull (1952) sobre a interagio dos estimulos aferentes também tem o cardter de postulado, no que ao seu sistema diz respeito, embora as relagdes “pos- tuladas” derivem de resultados experimentalmente observados. Algu- mas pessoas consideram os enunciados de Freud sobre o inconsciente como do mesmo tipo, embora este caso seja menos claro. Tais postu- lados esto sempre sujeitos a revisio, A luz de novos resultados expe- rimentais, apesar da sua falta de referéncia experimental direta, e devem ser suscetfveis de interpretacéo, em alguma fase, em termos empiricos. Devem conduzir a previsoes. Margenau e Bergamini (1967) citam um excitante exemplo de trabalho cientifico que expde, claramente, a natureza de uma ciéncia avancada que utiliza postulados matemdticos abstratos ¢ conduz a uma observacao empirica final. Deram a histéria o nome de “Em Busca_de Omega Minus”. Em suas linhas gerais, a histéria é a seguinte. Murray Gell-Mann e Yuval Ne’eman, dois eminentes fisicos, aplicaram inde- pendentemente um tipo de matemética do século XIX para descrever as propriedades ¢ o comportamento de particulas atémicas. Cada par- ticula requeria oito mimeros para a especificacio de seus oito valores quanticos; as experiéncias prévias, quando analisadas, indicavam a ne- cessidade das oito propriedades. Gell-Mann chamou ao sistema dedu- tivo o “caminho éctuplo”, inspirado nas oito prescrigdes classicas do budismo para a vida boa. O sistema classificou uma imensidade de particulas subatémicas num limitado mimero de classes e sugeriu que devia existir uma partfcula de uma certa massa especifica, nunca obser- vada até ento, & qual foi dada o nome de “Omega Minus’ 36 A teoria predisse que uma particula “Omega Minus” devia ser produzida uma vez em cada 50.000 fotografias, aproximadamente. As propriedades deduzidas para essa particula até entdo nunca vista per- mitiram a Gell-Mann e Ne’eman prever o que deveria ser observado experimentalmente; isto é, os fisicos experimentais podiam esperar ver uma determinada espécie de rastro na cimara de borbulho usada para detectar particulas, Nicholas Samios foi o ffsico experimental que dirigiu, em Brookha- ven, a busca coroada de éxito de “Omega Minus”. Apés 97.025 ensaios, foi produzida uma particula de “Omega Minus”, a qual se apresentou como uma miniscula marca de arranh3o na fotografia; essas marcas pareciam “insignificantes ao leigo mas maravilhosamente legiveis para 0s técnicos, que viam um significado no minisculo arranhio”. A hip6- tese experimental tinha sido comprovada. Muitos pontos podem ser aduzidos deste exemplo. Primeiro, o trabalho dependia substancialmente de experimentos e teorias pas- sados. Segundo, tinha sido desenvolvido um sistema simbélico incomum para uma finalidade muito diversa, numa outra época, e esse sistema foi uma parte critica do esforgo cientifico. Terceiro, condigées muito especiais tiveram de ser estabelecidas, a fim de se fazerem as obser- vagGes requeridas (foi usado o desintegrador atémico de Brookhaven). Quarto, os termos da teoria tinham, pelo menos superficialmente, uma relacio ténue e indireta com a observacao final; entretanto, a obser- vacao era uma parte absolutamente decisiva €, neste caso, espeta- cular — do processo cientifico. Quinto, a teoria especificou exatamente que observagées tinham de ser feitas. As teorias séo dirigidas pela observacao ¢,”por seu turno, dirigem o cientista na realizacao de novas observacdes. Sexto, a importancia das observacées foi enormemente incrementada por suas relagdes com uma teoria complexa e sofisticada. Qual é, intrinsecamente, a importancia de um simples arranhéo de uma polegada de comprimento numa chapa fotogréfica? Finalmente, queremos sublinhar que Gell-Mann dotou o seu sis- tema com um nome poético, inspirado num fildsofo religioso. Talvez a beleza da sua matemética, somada ao uso a que pdde adapté-la, o inspirasse em algo semelhante ao misticismo numérico de Pitdgoras. Sem divida, o cientista que se defronta com as multiplas harmonias ¢ simetrias da natureza pode ser perdoado se os seus sentimentos de criagdo cientifica so diffceis de distinguir dos sentimentos do artista ou do mistico. O papel da beleza e da elegancia nas teorias cientificas tem sido veementemente defendido. Podemo-nos permitir um salutar respeito pelos sistemas Idgicos e mateméticos que usamos como instru- mentos... desde que uma abordagem empirica e operacional torne esse respeito cauteldso. 37 As hipéteses e teorias cientificas devem ter outras caracteristicas além da sua testabilidade ou beleza, Para comegar, gostariamos que fossem to simples quanto possivel. O principio de parciménia (por vezes denominado navalha de Occam) € 0 enunciado tradicional de que a complicagao desnecessdria deve ser evitada. O cAnone de Lloyd Morgan é uma adaptacio desse princ{pio aos problemas psicoldgicos. Morgan sustentou que o comportamento nunca deve ser explicado em fungao de uma faculdade descoberta nos niveis superiores da escala filogenética, se alguma faculdade encontrada nos niveis inferiores da mesma escala for adequada como explicagio. Morgan formulou o seu cénone como um antidoto para a tendéncia de atribuir caracteristicas humanas aos animais, sempre que estes manifestavam um comporta- mento aparentemente inteligente (isto é, Morgan opunha-se ao que correntemente se designa por antropomorfizagao). Nao devemos interpretar o desejo de simplicidade no sentido de que uma hipétese mais simples deve ser sustentada em face de provas contrdrias ou quando se verifica que é inadequada. Se assim fosse, os fisicos ainda estariam hoje tenazmente aferrados 4 sua mais antiga mais simples concepgao do dtomo como uma particula singular e indi- visivel. Nao € assim porque foram acumuladas provas para mostrar que esse simples modelo é inadequado. Os modelos e teorias deve ser coerentes com todas as provas conhecidas. A anuéncia do cientista, em face das provas, expressa-se no addgio: ““Poupem os fenémenos.” Uma outra versao é “‘o sujeito tem sempre razio” (Skinner, 1959). Quando se tornaram acessiveis os fenémenos que contradiziam o mo- delo do 4tomo como particula indivisivel, foi proposto um modelo de trés particulas que aproveitou os fenédmenos entao conhecidos. Esse modelo, por seu turno, teve de ser substituido por uma concepgao mais complexa. Quando a complexidade é necesséria, a simplicidade & aban- donada. Mas turmas de busca sao imediatamente enviadas pata encon- tré-la de novo. Quando teorias complexas sao requeridas para “‘ex- plicar’” os fenémenos, o progtesso da teoria tem todas as possibilidades de assumir a forma de simplificagaéo. Por exemplo, a teoria ptolemaica foi substitufda pela mais simples teoria copernicana; esta ultima foi possibilitada pela adog&éo de um novo ponto de vista. As consideragdes precedentes deixam claro que as hipéteses ¢ teo- rias nunca sao finais. Se as provas estio de acotdo com as suas pre- visdes, aumenta a confianca em sua validade. Se a confianga numa hipétese for grande, poder-se-4 converter em parte de uma teoria. Teoria teré para nés, no caso ideal, o mesmo significado que Bergman (1957) lhe deu: “Uma teoria € um grupo de leis dedutivamente liga- das” (pag. 1). Neste sentido, uma lei cientifica é uma hipétese que foi comprovada, que foi amplamente aceita e cujas implicagdes foram con- 38 firmadas sem falhas pela observacdo. As nossas teorias psicolégicas, infelizmente, nem sempre consistem em leis; em psicologia, as hipdteses nem sempre sao incorporadas as teorias mediante provas que as corro- borem e, quando tém uma ligagao dedutiva, é apenas no mais lato senso da palavra. Conquanto as hipéteses e até as leis possam ser finalmente substi- tufdas, isso no significa, de.maneira alguma, que o antigo enunciado seja inutil; ele teve, necessariamente, o seu valor preditivo, dentro da faixa de alcance e da era de sua utilidade. Ninguém pode argumentar que as leis de Newton foram ou sao imprestdveis, embora tenham sido substitufdas como explicacées fisicas completas. Ainda hoje os enun- ciados de Newton sao usados para muitas aplicacdes, porque sao eficazes, dentro de suas limitagdes e gama de aplicabilidade. Para dar um outro exemplo, poderfamos predizer a passagem de calor de um corpo para outro se concebéssemos 0 calor como um fluido sutil, da mesma forma que hoje o consideramos relacionado com o movimento molecular. O calor deixou de ser concebido como um fluido, no porque fosse impossivel predizer as mudangas de temperatura mas porque essa concep¢ao do calor no se ajusta a explicacao tedrica global sobre a natureza da matéria. O PAPEL DOS PARADIGMAS Kuhn (1962) enfatiza um elemento muito importante que foi até aqui deixado de lado em nosso exame da ciéncia. A ciéncia normal, disse ele, progride mediante o trabalho que se desenrola dentro da mol- dura de um “‘paradigma”. Um paradigma inclui leis e teorias que suge- rimos serem partes importantes da ciéncia. Mas Kuhn concebe a cién- cia como sendo algo mais concreto e abrangente (1962, pag. 10): As suas realizagSes foram suficientemente inéditas para desviar um grupo permanente de adeptos dos modos concorrentes de atividade cientifica. Ao mesmo tempo, foram suficientemente abertas para deixar a resolugio de toda a espécie de problemas a cargo do grupo redefinido de praticantes. As realizagSes que compartilham dessas duas caracteristicas serao refe- ridas, daqui em diante, como “paradigmas”, um termo que se relaciona estreitamente com “‘ciéncia normal”. Ao escolhé-lo, quis sugerit que alguns exemplos aceitos da pritica cientitica real — exemplos que incluem ¢ rednem a lei, a teoria, a aplicagéo e a instrumentacgo — proporcionam modelos de que promanam certas tradigdes coerentes da pesquisa cientifica. Sao as tradigées que 0 historiador descteve sob rubricas tais como “astro- nomia ptolemaica” (ou ‘‘copernicana”), “dinimica aristotélica” (ou “newto- niana”), “Stica corpuscular” (ou ““ética ondulatéria”) etc. 39 De acordo com o ponto de vista de Kuhn, a ciéncia normal desen- volve-se mediante a resolugdo de problemas irresolvidos que sao pro- postos pelos paradigmas. Uma revoluio na ciéncia ocorre quando sio descobertas anomalias que ndo podem ser resolvidas dentro do para- digma, Essas novidades podem ser suprimidas ou racionalizadas, pot algum tempo; mas terao de ser finalmente defrontadas. A revolucao € reconhecida como tal mais facilmente se a anomalia se fizer acom- panhar de um novo paradigma que abranja todos os dados antigos, assim como os novos e insélitos dados, embora 0 novo paradigma nao tenha, necessariamente, que incluir o antigo; eles poderao ser incom- pativeis em suas respectivas dimensées. O elemento que deixamos de fora do nosso exame prévio foi o paradigma. Toda e qualquer ciéncia passa por uma fase mais primitiva durante a qual existem escolas concorrentes e nenhum paradigma se torna predominante. A psicologia pode estar atualmente nessa fase e, sem dtivida, esteve nessa fase no passado. Examinaremos mais adiante escolas de psicologia que so candidatas ao status de paradigmas. Entre- mentes, assinalaremos apenas que uma escola de psicologia possui algumas das propriedades gerais de um paradigma. Acteditamos, com Kuhn, que o conceito de um paradigma é importante para a compreen- so do progresso da ciéncia. Ele parece ter a qualidade de credibilidade freqiientemente possuida por formulagées que achamos que deveriam ter sido dbvias o tempo todo. Contudo, a concepco kuhniana do papel do patadigma levou a eclosio de tumultos nas ruas filosdficas. A razio € que parece nao existir uma razdo clara para preferir novos paradigmas aos antigos. Assim, a nogio de progresso cientifico é contestada. Além disso, 0 paradigma influi tanto para determinar que observacdes sao feitas e como sio feitas que a existéncia da realidade objetiva também é posta em dtivida. Kuhn‘liga as mudangas paradigmdticas as alternacdes gestaltistas, como quando a nossa percepcao alterna entre ver uma velha bruxa e uma jovem atraente numa figura ambigua particular- mente famosa. Se a realidade nada mais é do que uma figura ambigua € 0 que vemos nela é determinado pelo paradigma que j aceitamos, entdo o que acontece as fundacoes da ciéncia? E facil ver que o ponto de vista kuhniano, o qual sublinha os fatores sociais e psicolégicos no processo cientifico, nao é do agrado dos fildsofos tradicionais da ciéncia, que tendem a confiar substancialmente na andlise racional do empreen- dimento cientifico. Lakatos (1970) fez uma critica sobremodo coerente 4 retirada gradual dos filésofos da ciéncia; primeiro, eles tiveram de renunciar a0 ponto de vista de que as teorias cientificas poderiam ser rigorosamente 40 confirmadas; depois, tornou-se discutivel se elas poderiam até ser ou nao refutadas; e, agora, Kuhn levou-nos a indagar se uma seré realmente preferivel a uma outra. Lakatos acompanha Popper (1959; do ori- ginal de 1935) ao enfatizar a importancia da refutabilidade das teorias cientfficas. Lakatos sugere que podemos compreender melhor 0 pro- cesso cientifico se examinarmos o que ele chama “programas de pes- quisa”, em vez de paradigmas. Ele também se empenha em poupar 0 conceito de “‘progresso cientifico”, mantendo a nogao de relativa refutabilidade de um determinado tipo. Feigl (1970) também defendeu a utilidade do conceito “orto- doxo” de teorias, embora nao se empenhe em argumentar que esse conceito é correto ou completo. Nés assumimos, essencialmente, a mesma posicao de Feigl ¢ as nossas proposigées antetiores sobre a refutabilidade das hipéteses cientfficas derivam de um ponto de vista ortodoxo. E dificil ou impossivel compreender os vdrios pontos da tese de Kuhn sobre revolucées cientificas ou da sua propria revolucdo filos6fica pessoal sem compreender os antecedentes tradicionais, a partir dos quais se realizaram os novos desenvolvimentos. De modo nenhum est4 claro que Kuhn tenha ficado satisfeito com o resultado das suas prdprias investigagdes. O ultimo capitulo de seu livro (1962) intitula-se “Progresso Através de Revolugoes” e nao formulou um veredito muito claro quer a favor ou contra a no¢ao de progresso em ciéncia. Em sua edicao revista (1970), mostrou con- siderdvel compreensfo pelas criticas que foram suscitadas contra ele e tentou redefinir a palavra paradigma de um modo mais claro e satis- fatério, Parece nao ter conseguido; parece preferivel deix4-lo como um conceito geral e global, como era originalmente. Seja o que for que aconte¢a a esse e outros aspectos controvertidos das concepgdes de Kuhn, poucas diividas restam de que ele ser4 recordado pela forma convincente, minuciosa ¢ concentrada como ele mostrou até que ponto a observagao depende tanto da teoria como a teoria da observacio. Polanyi (por exemplo, 1966) e Feyerabend (por exemplo, 1970) sao dois dos mais importantes fildsofos da ciéncia que tém contribufdo para o mesmo processo de indefinigfo que vimos tao dramaticamente exposto por Kuhn. Durante muitos anos, Polanyi vem argumentando que nao existem regras explfcitas para conhecer qualquer coisa. Temos ctitérios “‘técitos” implicitos para conhecer. E Feyerabend, em sua “teoria andrquica do conhecimento” (1970), resume, provavelmente, o verdadeiro estado de coisas, de um modo perfeito, quando diz: “Verificamos, pois, que nao existe uma tnica regra, por mais plausivel que seja € por mais solidamente firmada que esteja na epistemologia, que nao seja violada num momento ou outro.” 41 A ATITUDE CIENT{FICA O fato de trabalharem dentro do quadro cientifico geral parece Jevar os cientistas a adotarem uma atitude, de certo modo singular, em telagio ao mundo e ao seu préprio trabalho. Na sua busca dos fatos, © cientista € propenso a confiar nas observacdes do mundo empirico como Arbitro final da verdade. Dessa maneira, ele descobriu que pode fortalecer os seus enunciados e chegar a um acordo com outros cien- tistas. O cientista moderno tende, por um lado, a suspeitar até do que é intuitivamente Sbvio, porque o ébvio tem estado tantas vezes errado; por outro lado, ele pode procurar relagdes que, superficialmente, no parecem possiveis. O cientista, embora seja um usudrio e, por vezes, criador de sistemas abstratos de matematica e légica, mantém-se cético no tocante as suas derivagdes. Est4 sempre preocupado com a possibili- dade de que os enunciados produzidos dentro desses sistemas nao resul- tem empiricamente verdadeiros. O cientista moderno vé claramente o cisma existente entre os dominios empirico e formal, simbélico. Por um lado, ele diz (Bridgman, 1952): “Dir-se-ia que as operages com lépis e papel, ou os experi- mentos mentais em geral, podem ser titeis na sugestao de programas de investigagio no laboratério” (p4g. 28). Por outro lado, também diz (Bridgman, 1952): “No sentido matemético, nunca se pde a ques- tao de chegar a um limite e, logicamente, o hiato entre as operagdes com faépis e papel do cdlculo e as nossas operacdes instrumentais nao pode ser fechado, Entretanto, no consideramos esse hiato algo par- ticularmente sério e pensamos que faz sentido dizer que uma lei da natureza, quando formulada em forma diferencial, pode ser diretamente verificada” (pag. 14). Sem duvida, estes enunciados implicam um reconhecimento tanto da distingao entre os dois dominios como da relagio entre eles. Estio relacionados de uma forma util se o enunciado simbélico (como o cél- culo) estimular 0 usudrio do sistema a corrigir a ado e provocar nele a expectativa do que realmente ocorte. Dado que o cientista reconhece a natureza conjetural de seus enunciados, ele mantém-se, de um modo geral, relativamente objetivo a respeito do que afirma e evita o dogmatismo. Procura ser desinteres- sado e sem preconceitos mesmo sobre os enunciados de que é autor; sabe que cometerd ertos e que os outros também os cometerio. No plano intelectual, é suficientemente honesto para admitir quaisquer erros que descubra. Para sentir-se 4 vontade, deve tolerar a ambigiiidade, porquanto esta é inevitavel. Devem ser reconhecidas duas importantes limitagGes neste retrato da atitude do cientista. Primeiro, os atributos descritos sio idealizados 42 e aplicam-se mais aos cientistas coletivamente do que, necessariamente, a qualquer cientista individual. Em grande parte, o progresso cient{- fico deve-se ao fato dos cientistas, como um grupo, mostrarem essas caracteristicas; e um cientista, individualmente considerado, poderd ou nao ter em alto grau qualquer dessas caracteristicas. Segundo, embora em seu trabalho profissional os cientistas sejam mais propensos a comportar-se de acordo com esses atributos do que os nao-cientistas, no se segue que assim o fagam em suas vidas privadas. Por exemplo, © cientista que faz uma declaracao politica pode ser tao veemente faccioso quanto qualquer outra pessoa e nao ter mais bases para o que afirma. Quando os cientistas atuam num campo que é estranho A sua formacdo e competéncia especial, podem patentear uma acen- tuada falta de habilidade. Com esta afirmagao, nao pretendemos dizer que o cientista esteja, necessariamente, mai: perdido do que outros fora da sua esfera de competéncia; por exem, lo, aos astros de cinema também pode faltar qualquer competéncia no campo da politica. PENSAR SOBRE CIENCIA... E FAZE-LA Este livro est baseado no pressuposto de que é ttil ao estudante de psicologia saber alguma coisa sobre a histéria e filosofia da ciéncia, especialmente, sobre a histéria da psicologia. O nosso pressuposto nao receber4, por certo, uma completa e universal concordancia. Um que sé em parte concordaria é Beveridge (1957, pdgs. 11-12): Em anos recentes, cada vez maior atencio & dada a0 estudo da histéria da ciéncia e todo o cientista deve ter, pelo menos, algum conhecimento da matél Ela fornece um excelente corretivo a uma especializacio cada vez maior ¢ amplia as perspectivas e compreensio da ciéncia por parte do préprio cientista. Existem livros que tratam 0 assunto nao como uma sim- ples crénica de acontecimentos mas com um profundo discernimento que propicia uma apreciaggo do desenvolvimento do saber como um processo evoluciondrio. Dispomos de uma vasta literatura que se ocupa da filosofia da ciéncia e da I6gica do método cientifico. Depende das inclinagdes pessoais de cada um interessar-se ou nao por esse estudo mas, de um modo geral, seré de pouca utilidade para os que se dedicam A pesquisa. Beveridge € outros criticos talvez se sintam muito felizes ao ver que as relagdes entre a histéria da ciéncia e a filosofia da ciéncia esto sendo submetidas a um rigoroso escrutinio. Pode ser que também dhes agrade a maneira como Kuhn quase demoliu muitas das teorias favoritas dos filésofos da ciéncia, usando a histéria da ciéncia como sua arma. Essa colisio forneceu, sem duvida, parte da motivacao para a conferéncia que examinou alternativas para as relacGes entre os dois campos (Stuewer, 1970). E duvidoso que o futuro fildsofo da ciéncia 43 se atreva a entregar-se a uma excessiva andlise légica de como a ciéncia deve evoluir sem repetidas olhadas para ver como a ciéncia esté evo- luindo. A filosofia da ciéncia, provavelmente, tornar-se-4 muito mais empirica, tal como a prépria ciéncia se tornou muito mais empfrica em suas fases iniciais do desenvolvimento. Jé estio surgindo instru- mentos muito mais sofisticados para o estudo da histéria e das teorias (ver o Capitulo 3) e a miscigenacao da filosofia e da histéria promete coisas muito maiores para o futuro. McMullin (1970), depois de analisar varias abordagens da histéria e da filosofia da ciéncia, pergunta: “Pode a validade de ambas ser misturada numa unica obrae” E conclui: “Segundo me parece, a resposta € que pode” (pag. 60). Cre- mos que McMullin est4 certo e que cada campo fortalecer4 0 outro, mesmo quando separados na obra de certos autores. O estudante do futuro beneficiard ainda mais do que o estudante do presente com o estudo da histéria e filosofia da ciéncia. Embora concordasse com Beveridge sobre o valor do estudo da histéria, Lowry (1971) escreveu um livro enfatizando a outra face da moeda. A finalidade do seu livro, abrangendo 300 anos de teoria psicolégica, foi mostrar como a ortodoxia pode cegar o psicélogo para as possibilidades que, de outro modo, fariam a ciéncia avancar mais rapidamente. Partindo de tal premissa, poder-se-ia argumentar que, para evitar preconceitos, deverfamos permanecer na ignorancia das tra- digdes de um campo do conhecimento. Entretanto, Beveridge, Lowry ¢ os autores do presente livro concordariam, provavelmente, em que € preférivel examinar de perto 0 proceso, para que o seu conhecimento possa ajudar-nos a evitar uma excessiva ortodoxia. Nao obstante, estamos basicamente de acordo com o ponto de vista de Beveridge, se o interpretarmos no sentido de que os cientistas podem ficar demasiado preocupados com as questdes filoséficas e de que, fun- damentalmente, eles tém de aprender a sua ciéncia mais no laboratério (definido em termos gerais) do que através do estudo da Idgica ou da filosofia da ciéncia. O cientista nfo pode permitir que a filosofia o torne demasiado cético. A ciéncia parece exigir um grau intermédio de ceticismo para que o seu avanco se faca com éxito. O ceticismo excessivo pode impedir o cientista de dar os primeiros passos positivos num caminho que nem sempre poder4 ser claramente antevisto — Passos esses que, entretanto, so necessdtios para um verdadeiro avango cientffico; e, por outro lado, o ceticismo de menos sujeita o cientista ao sério risco de aceitar hipéteses grosseiramente inadequadas como se elas tivessem sido confirmadas. Talvez a maior parte do ceticismo deva se concentrar no nivel cient{fico, com algumas coisas aceitas como dados axiométicos. 44 A coisa que o cientista mais freqiientemente aceita como um “dado” € a sua propria qualidade de cientista, evitando, por conse- guinte, muitos dos mais perturbadores quebra-cabecas filosdficos. Tal- vez consiga escapar com éxito a armadilha do solipsismo e ignorar o problema espfrito-corpo. Bridgman (1959, pag. 128) vé a questo da seguinte maneira: . © cientista, quando atua no laboratério, nfo est4, usualmente, cOnscio de si proprio nem esté explicitamente presente no relatério que faz de suas descobertas ¢ conclusdes. De fato, um dos ideais ostensivos de uma ciéncia como a fisica ou a quimica consiste em relatar os fatos de uma forma tio impessoal que qualquer outro cientista possa colocar-se na posi¢ao de subs- crever um relatério idéntico. O fisico ou quimico aceita-se tal qual é — ele aceita os achados de seus préprios sentidos pelo seu valor facial ¢ nao se preocupa com questées tais como a natureza do conhecimento ou com diividas sobre si proprio que colocariam continuamente em questio o seu equilibrio mental. Eis uma caracteristica que, no uso comum, distingue claramente toda a “ciéncia”; isto é, a ciéncia, como tal, parece nao levantar ‘a questo da divida do cientista sobre si proprio. Entre as suas cogitagdes no esté a interrogasao existencial sobre “Quem sou eu?” Isto aplica-se nao 36 as chamadas ciéncias fisicas mas também a biologia ou ciéncias da vida ¢ as ciéncias mentais, pelo menos na medida em que a ciéncia mental € representada pela psicologia experimental no laboratério. RESUMO E CONCLUSGES O propésito deste capitulo foi examinar a natureza da ciéncia. As discordancias sobre o que é ciéncia alertam-nos para o fato de que a ciéncia ainda no estd definida de um modo que tenha a concordancia de todos. Acreditamos, porém, que as caracteristicas que sugerimos merecerao uma aceitacéo geral. A ciéncia envolve, de fato, o estabele- cimento de relagdes, de uma forma prescrita, entre eventos e linguagem. O “método empirico” é usado. As definigdes operacionais, a andlise, 0 principio. de controle e a verificagao de hipéteses fazem parte do proce- dimento cientifico. A finalidade da ciéncia é estabelecer novas defi- nigées empfrico-simbélicas que sejam “corretas”, no sentido de que conduzem a previsdo e ao controle. Embora as conclusdes a que a ciéncia chega nao devam ser consideradas finais, elas tém, pelo menos, a garantia de uma utilidade limitada, mediante o uso dos procedimentos acima descritos, em suas linhas gerais. Idealmente, as conclusées expres- sam-se numa terminologia bem definida, exata e quantitativa. Todos os métodos cientificos podem ser aplicados de diferentes maneiras ou em diferentes graus; prestamos especial atencdo as diferencas no modo de aplicacio do principio de controle. Apesar das aceitacdes bastante freqiientes de uma orientagdo muito descritiva, é duvidoso que o inte- resse no desenvolvimento da teoria esteja alguma vez ausente. 45

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