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Psicodiagndéstico Formas compreensivas de investigagao psicolégica Procedimento de Desenhos-Estérias e Procedimnento de Desenhos de Fat Walter Trinca Esla obra consi o resultado de um esforco de alualizacao, realzado Por um grupo de pesquisadores, de duas técnicas de investigacao Psicol6gica amplamente conhecidas e divulgadas como recursos chicos € ndo clinicas: 0 Procedimento de Desenhos-Estérias (D-E) e 0 Proce- dimento de Desenhos de Familia com Estorias (DF-E]. 0 leitor encontrard uma ampla exposicéo das técnicas, que inclu fnalidades, fundamen- fades e pesquisas, assim como bases de interpretacio e de ardlise clinica. Nessas técnicas, sd0 relevantes as dindmicas subje'vas, intersubjetivas e inter-relacionais, bem como a pluralidade e a diversi dade de abordagens tebricas que se lhes aplicam. Particularmente, sao descritas as abordagens psiconalticas, comporta- mentais ¢junguianas, entre asinémeras possibilidades exislentes. E um livro cujo contetdo foi submetido & apreciacéo dos érados corpe- tenles do Conselho Federal de Psicologia CFP, ndo tendo sido conside- rado teste psicolégico, Dessemodo, ica mantide para Procedimento de Desenhos-Est6rias e 0 Procedimento de Desenhos de Familia com Estorias um lugar reconhecido na psicologiabrasileira. ISBN 978-85, ne | oll7885 75185697 25-6070 0 é g 2 3 3 ° = : E 3 - 5 é z 2 5 2 3 3 ° 8 ° 8 Walter Trinca (organizador) FORMAS COMPREENSIVAS © INVESTIGACAO di! PSICOLOGICA Procedimento de Desenhos-Estorias ¢ Procedimento de Desenhos de Familia com Estorias Vetor® Walter Trinca (Organizador) FORMAS COMPREENSIVAS DE INVESTIGACAO PSICOLOGICA PROCEDIMENTO DE DESENHOS-ESTORIAS E PROCEDIMENTO DE DESENHOS DE FAMILIA COM ESTORIAS 1 edigao 2013 1 EDITORA PSICO-PEDAGOGICA LTDA Rua Cvpotoe 8 = CEP 0401-000 - ors i S46-0885- Fox 8146-0940, Tir oredora combr —vendaswvetoreaTora const Dados Internacionais de Catalogagio na Publicago (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil Formas compreensivas de investigacdo psicolégica procedimento de desenhos-estérias ¢ procedimento de desenhos de familia com estorias / ‘Walter Trinca (organizador) . ~ 1. ed. ‘Sao Paulo : Vetor, 2013. Varios autores. Bibliografia 1, Desenho - Psicologia 2, Personalidade - ‘Testes 3. Psicodiagnéstico 4, Psicologia clinica 1. Trinea, Walter. aeees, CD ~616.89 Indices para catilogo sistematico: 1, Desenhos-estérias : Procedimentos diagnésticos: Psicologia clinica 616.89 2. Desenhos de familia com estérias: Procedimentos diagnésticos: Psicologia clinica 616.89 ISBN: 978-85-7585-697-0 Projeto gréfico: Vetor Editora Capa: Vetor Editora Revisdo: Ménica de Deus Martins © 2013 — Vetor Ecltora Psico-Pedagégica Lida. Eproibida.creproducao total ou parcial deste pubicacio, por qualquer meio existente para qualquer finalidade, sem autorizagdo por escrito dos editres. SumARIo Prefacio ..... 7 Ryad Simon PARTE I - Procedimento de Desenhos-Estérias SA 1, Apresentagio do Procedimento de Desenhos-Estérias ... . Walter Trinea 2. Alguns fundamentos psicanaliticos da comunicagdo inconsciente e sua aplicabilidade ao Procedimento de Desenhos-Estérias . 7 a1 Ana Clara Duarte Gavido 8, Procedimento de Desenhos-Estérias: pesquisas qualitativas Maria Izilda Soares Martao, Claudiny A. S. R. de Souza 53 Cristina M. F Monzoni Prestes e 4, Bases da interpretacdo psicanalftica do Procedimento de Desenhos-Estérias .. 97 Walter Trinca 5. O Procedimento de Desenhos-Estérias no contexto clinico-compreensivo 127 Maria Izilda Soares Martéo 6. O Procedimento de Desenhos-Estérias na expressao ena compreensio de vivéncias emocionais .. Leila Salomdo de La Plata Cury Tardivo 145, 7. 0 uso do Procedimento de Desenhos-Estérias na abordagem junguiana .... Irene Gaeta 169 8. 0 uso do Procedimento de Desenhos-Estérias por terapeutas comportamentais Viviane Manfre e Marcia H. S. Melo 189 PARTE II - Procedimento de Desenhos de Familia com Estérias 210 9. Apresentagao do Procedimento de Desenhos de Familia com Bstérias Walter Trinea zu 10. Procedimento de Desenhos de Familia com Estérias: tendéncias atuais ......... : 227 Celia Blini de Lima 11, Procedimento de Desenhos de Familia com Estérias: pesquisas qualitativas .. 249 Marvionila Rodrigues da Silva Brito 12. Um modelo de interpretagao clinica do Procedimento de Desenhos de Familia com Estérias 277 Elisa Marina Bourroul Villela 18. Contribuigdes do Procedimento de Desenhos de Familia com Est6rias para a compreensao da tendéncia antisocial infantil 805 Valéria Barbieri PARTE III - Questées Finais 336 14, Procedimento de Desenhos-Estérias: um brincar compartilhado ... 7 387 Audrey Setton Lopes de Souza 15. Procedimento de Desenhos-Estérias: uma técnica liidiea .. . 851 Walter Trinea Sobre os autores . 371 PREFACIO A ampla colegao de trabalhos aqui apresentados e a varie- dade de temas e autores participantes revelam a atualidade e fecundidade do Procedimento Desenhos Estérias (D-E), inspirada criagao do grande amigo Walter Trinca. Esfuma-se na poeira do tempo a lembranga de quando, nos primérdios da formacéo elfnica, procurou-me para supervisdo. Trabalhamos juntos tentando dar forma a iluminada inspiracdo que teve ‘Trinca de utilizar desenhos e narrativas, propiciando ao examinando transformar em imagens e palavras evocacées do inconsciente dinamico. Desde a discussao de quantos desenhos solicitar, até que nome atribuir a criatura: “Teste ?” “Nao, néo 6 teste; ndo tem material padronizado”, ete. “Procedimento ¢ mais apropriado” “Isso, isso.” “E 0 método?”, ete., ete. E em seguida colecionar uma montanha de resultados, agrupar, organizar, interpretar, redigir: “é preciso fazer uma tese de doutorado, sem titulo néo se é considerado”... E por af vai... ‘Apartir daf o instrumento decolou; teve um voo ascendente e amplo. Interessou muitos colegas entusiastas e eficientes, frutificou em intimeras dissertagées e teses, gracas a aplicagao e eficiéneia de Walter como orientador. Disseminou-se na pratica clinica dos psicélogos necessitados de uma técnica ver- sétil, prontamente aceitavel pelos pacientes, e cujo resultado permitisse uma interpretacio extensa e razoavelmente valida, dos conflitos inconscientes determinantes das inadequacées da adaptacdo e sintomas psiquicos. O recurso é bom, mas nao faz milagres; para aproveité-lo o aplicador precisa estar bem preparado... A hist6ria pregressa do paciente, a anamnese, 0 Ryad Simon interrogatério complementar, outros instrumentos de inves- tigacdo eventualmente necessdrios, os elementos fornecidos a partir do Procedimento de Desenhos-Estérias conjugam-se para permitir uma compreensfo abrangente e profunda das dificuldades e dos sofrimentos observados no sujeito. O psicélogo instrumentado pelo D-E solicita que 0 examinando faga um desenho de sua livre escolha. Essa é uma demanda que traz implicita uma associagéo imagética (onirica). Os sonhos so construidos principalmente a partir de imagens visuais, Em seguida 6 requerido ao sujeito associar uma est6ria suscitada pelo desenho. E aqui jé temos 0 sonho eas associacées livres. Desse modo, o D-E propicia ao exa- minando oferecer “amostras” de seu universo inconsciente Sendo ao todo cinco amostras, o examinador tem agora a sua disposicéo uma colecdo de imagens e associagses que estimulam sua criatividade. Esta, inspirada pela intuicéo psicanalitica - unida a experiéncia clinica — permite construir uum esboco da personalidade do sujeito, bem como ter um vislumbre de seu modo tipico de estabelecer relagées objetais intra e extrapsiquicas. A criatividade de Walter foi se expandindo, a ponto de ampliar a solicitagdo ao examinando: desenhar uma familia. E aqui se abriram novos ¢ instigantes caminhos para inves- tigacao dos complexos envolvimentos interpessoais e intrafa- miliares. Ampliou-se o Ambito e o aleance do Procedimento, sua aplicacéo ultrapassou a esfera individual e se completou no emaranhado domiciliar, enriquecendo 0 cabedal do inves- tigador do inconsciente. Tal qual o inspirado compositor que se inicia na criacdo de sonatas e trios, e a seguir se desdobra na produgao concertos e sinfonias. O D-E néo tem as caracteristicas de um teste. Um teste requer, em primeiro lugar, um material padronizado: uma prancha com estimulos fixos, um questiondrio, uma figura, etc, Em seguida, uma demanda também padronizada: O que 8 Precio vé nessa prancha? Nessa cena? Como responde a tal pergunta? Que solucao a qual problema?, etc. Os dados obtidos so com- parados com tabelas de resultados padronizados, seguindo-se a interpretagao ou avaliacdo. Nada disso se verifica no D-E. sujeito inventa seu desenho e sua estéria é estimulada pelo desenho. Nao ha tabelas de resultados para comparagio de normalidade/patologia, ou nivel de eficiéneia, ou capacidade. Permite que se tenha um vislumbre das fantasias incons- cientes, das angustias, defesas, enfim, uma aproximagéo aos conflitos que estéo ocultos no lado desconhecido da personalidade. ‘Saudemos os frutos abundantes representados pela colegio dos preciosos trabalhos que aqui se oferecem generosamente atestando a validade irrefutavel dessa inspirada criagdo. Fabricar um instrumento sem custo, que permite em breve tempo obter indicios significativos sobre a pessoa examinada constitui uma producdo genial. E realmente uma contribui- cdo inestimdvel para a ciéncia psfquica. Devemos louvar e agradecer o momento de iluminacdo que inspirou a brilhante simplicidade desse invento! Ryad Simon PROCEDIMENTO DE DESENHOS-ESTORIAS APRESENTACAO DO PROCEDIMENTO DE DesENHos-EsTOrIas Walter Trinea 1.1 NATUREZA E CARACTERISTICAS Em 1972, apresentamos o Procedimento de Desenhos- -Estérias (D-B)* como uma forma de investigagao da perso- nalidade e um meio auxiliar de ampliagao do conhecimento da dindmica psfquica no contexto do diagnéstico psicolégico. Nessa ocasiao, formulamos a hipstese de que: desenhos livre, associado a estérias em que ele figura como estimulo para essas estérias, constitui uma técnica com caracteristicas préprias para a obtencéo de infor- ‘mages sobre a personalidade em aspectos que nao s4o facilmente detectéveis pela entrevista psicolégica direta. (TRINGA, 1972, p. 28). TO uso consolidow a grafia esééria, em vez da variante historia, quando se trata de narrativa de fleéo. Witter Trines As caracteristicas principais do Procedimento de Desenhos- -Estérias consistem numa série de cinco desenhos livres (crométicos ou acromaticos), cada qual servindo de estimulo para que se conte uma est6ria associada livremente logo apés a realizacdo de cada desenho. Havendo concluido cada par de desenho-est6ria, 0 examinando continua fornecendo associages e esclarecimento na fase de “inquérito”, bem como 0 titulo da estéria, Dizendo de outro modo, o D-E consiste em cinco unidades de produedo, sendo cada qual composta por desenho livre, estéria, “inquérito” e titulo. O examinando realiza o primeiro desenho livre, com o qual verbaliza uma estéria e, em seguida, responde as questées do examinador por meio de novas associagées e esclarecimentos, vindo a oferecer um titulo para essa unidade de produedo. A atividade requer a repeticdo dos mesmos procedimentos em relagéo as demais unidades de producdo. A ordem sequencial formada por desenho livre, estéria, “inquérito” e titulo nao se modifica ao longo da aplicagao, até que, em condigdes normais, se obtenham as cinco unidades necessérias. Dessa maneira, o Procedimento de Desenhos-Estorias é constituido, basicamente, pelo emprego de formas gréficas e teméticas, que se unem de modo a resultar em uma nova abordagem da vida mental, que se diferencia das demais. Da jungao de processos expressivos-motores com processos aperceptivos-dindmicos surge a técnica, coneebida como uma estrutura simples e configurada em sua identidade gréfico-verbal. Destina-se a sujeitos de ambos os sexos, compreendidos em todas as faixas etdrias em que seja possivel desenhar e verbalizar, podendo pertencer a qualquer nivel mental, socioeconémico e cultural. conjunto dos desenhos livres, das estérias que lhes so associadas, das respostas aos “inquéritos” e dos titulos, embora possa ser considerado como uma reuniao de elementos 2 [Apresentagio do Procedimento de DesenhosEténias diversificados, constitui-se numa estrutura unificada e num processo unitdrio de comunicagao. Presta-se a transmitir mensagens em si mesmas indivisiveis, tendo um sentido de totalidade. Todos os elementos estéo interligados, vindo a formar em seu conjunto uma unidade coerente ¢ indissoltivel. Nesse caso, admite-se que os desenhos livres nao servem somente para eliciar as estérias, mas sdo partes de uma comunicacdo inteirica, que emprega as unidades de produgao para atingir sous fins. As unidades anteriores podem servir de Gesencadeantes para a consecucdo das unidades posteriores, num processo de construgéo significativa da comunicacao. ‘Também, a dinémica dos desenhos livres costuma emprestar maior mobilidade a dinamica das estérias, e vice-versa, trazendo grande fiexibilidade ao processo como um todo. A permissividade associativa dos desenhos livres segue-se a associagéo livre das est6rias, construindo-se um conjunto unitério que se distingue por liberdade e por espontaneidade. ‘Tém sido descritas diversas vantagens do emprego do Procedimento de Desenhos-Estérias, especialmente: 1) rapidez e facilidade de aplicacéo; 2) amplitude e abrangéncia de utilizacdo clinica e nao clinica; 3) adaptabilidade as necessidades de comunicagio inconsciente do examinando; 4) possibilidade de penetracdo e desvendamento de conte- ados psfquicos relevantes; 5) concisio na focalizagéo ¢ no destaque de material clinico significativo; 6) oportunidade de atendimento a populagées carentes, para as quais os métodos tradicionais se tornam pouco realistas. 1.2 Apticacdo Em sua forma tradicional, o D-E diz respeito a situagao de diagnéstico psicol6gico individual e corresponde ao encontro bipessoal que se da entre o examinador eo examinando. Deve 13 Witter Trinea ser aplicado logo nos primeiros contatos, por ser um periodo em que 0 examinando se acha especialmente mobilizado & comunicacao de seus problemas e a solicitagao de ajuda. A técnica de aplicagdo é bastante simples, baseando-se em um convite técito que se faz ao examinando de se aprofundar em sua vida psiquica. 1.2.1 Condigées de aplicacao O Procedimento de Desenhos-Estérias deve ser admini trado por psieélogos devidamente qualificados. As ecndigées do sujeito séo aquelas normalmente exigidas para o exame psicolégico, com especial referéncia a verificacéo de satide, disposicao psiquica para o exame, auséncia de fadiga, ete. Quanto ao ambiente, deve haver siléncio, instalagées confor. taveis, iluminagéo adequada e auséncia de terceiros na sala, ‘Um aspecto fundamental da aplicagio refere-se a estru- turacéo da tarefa solicitada do examinando, Este deve estar ciente do que se espera dele no D-E, mas também dos motivos pelos quais a aplicagdo é realizada, em conformidade com as razées de procura do atendimento, Convém Ihe perguntar a respeito dos motivos pelos quais se encontra na situagéo de exame e, caso nao tiver clareza, tais motivos Ihe serdo explicados com todo o cuidado e franqueza. A estruturacéo da tarefa requer a definicdo clara dos objetivos e propésitos da situacaio de exame, a fim de evitar a indeterminasao e 0 acaso. O contexto no qual o examinando é introduzido oferece um sentido geral aplicagao. Por isso, no D-E tradicional néo 6 necessério 0 oferecimento de um tema; este é confi- gurado pelo préprio contexto no qual a tarefa se insere. O examinando reage ao que se espera dele e ao que ele espera da situacao de exame. Uma das caracteristicas do D-Eé dada Justamente pelo contexto em que se define e se insereve. Se 0 4 -Apresentaco de Procedimento de Desenhos-Ceeriss examinando, seja crianca, adolescente ou adulto, desconhece os propésitos de estar ali presente, néo vemos como seria possivel o estabelecimento de uma relagio de ajuda, nem sequer de um relacionamento transparente e confidvel. As entrevistas prévias, o rapport, a explicitacdo das intencdes do examinador vém sugerir ou criar uma atmosfera mental propicia ao desenvolvimento das emogSes que se oxprossam no Procedimento. 1.2.2 Material necessario O material necessério & aplicagao consta do seguinte: a) folhas de papel em branco, sem pauta, de tamanho oficio; b) lépis preto (ponta de grafite), entre macio e duro; c) caixa de lapis de cor de doze unidades, nos tons cinza, martom, preto, vermelho, amarelo-escuro, amarelo-claro, verde-claro, verde-escuro, azul-claro, azul-eseuro, violeta e cor-de-rosa. 1.2.3 Técnica de aplicagaio a) Preenchidas as condigées anteriores, 0 sujeito é colocado sentado, trabalhando em uma mesa, e o examinador senta- -se A sua frente. E dada a tarefa apés a verificagao de bom. rapport entre examinando e aplicador. : b) Espalham-se os lépis sobre a mesa, ficando o lépis preto (ponta de grafite) localizado ao acaso entre os demais. ©) Coloca-se uma folha de papel na posigéo horizontal com o lado maior préximo ao sujeito. Nao se menciona a possibilidade de este alterar essa posigdo, nem se enfatiza a importéncia do fato. 18 iar Tones 4) Solicita-se do examinando que faga um desenho livre: “Voce tem esta folha em branco e pode fazer o desenho que quiser, como quiser.” e) Aguarda-se a conclusio do primeiro desenho. Quando estiver conclufdo, o desenho nao é retirado da frente do sujeito. O examinador solicita, ento, que conte uma estéria associada ao desenho: “Voeé, agora, olhando o desenho, pode inventar uma estéria, dizendo 0 que acontece.” £) Na eventualidade de o examinando demonstrar dificul- dades de associacéo e elaboragao da estéria, podem-se introduzir recursos auxiliares, dizendo-lhe, por exemplo: “Voeé pode comecar falando a respeito do desenho que fez”, com o intuito de ajudé-lo a contar a estéria, g) Concluida, no primeiro desenho, a fase de contar esté- ria, passa-se ao “inquérito”. Neste, podem solicitar-se quaisquer esclarecimentos necessérios A compreensio & interpretagao do material produzido tanto no desenho quanto na estéria. O “inquérito” tem, também, 0 propésito de obtengao de novas associagées. +h) Apés a conelusao da estéria, e ainda com o desenho diante do sujeito, pede-se-Ihe o titulo da produgio. i) Neste ponto, retira-se o desenho da vista do sujeito. Com isso teremos conclufdo a primeira unidade de producio, composta de desenho livre, estéria, “inquérito”, titulo e demais procedimentos relatados. 3) Oexaminador tomaré nota detalhada da estéria, verbalizacéo do sujeito enquanto desenha, ordem de realizacao das figuras desenhadas, recursos auxiliares utilizados pelo sujeito, perguntas e respostas da fase de “inquérito”, titulo, bem como de todas as reagSes expressivas, verbalizagées paralelas outros comportamentos observados durante a aplicagéo. k) Pretende-se conseguir uma série de cinco unidades de producdo. Assim, conclufda a primeira unidade, repetem-se os mesmos procedimentos para as demais unidades. 16 Aoresentacdo do Procedimente de Desenhos-Eaténas D Na eventualidade de nao se obterem cinco unidades de produgao em uma tinica sessio de 60 minutos, é recomen- davel combinar o retorno do sujeito a uma nova sessio de aplicagio. Nao se aleancando o mimero de unidades de produgao igual a cinco, ainda que utilizado o tempo de duas, sess6es, sera considerado o material que nelas o examinan- do produziu. Se as associagdes verbais forem, no conjunto, muito pobres, convém reaplicar 0 processo. No caso de reaplicacdo, seréo reapresentados os desenhos jé feitos para os quais se solicitam as est6rias, completando-se as cinco unidades de producdo. Para outros esclarecimentos, vide Trinea (2003). 1.2.4 Recomendacées gerais a) O examinador nao deverd se deixar levar facilmente pelas primeiras recusas do examinando perante a tarefa, especialmente quando este se encontra em processo de elaboraeao interior. Muitas vezes, uma recusa formal pode ser contornada pelo estabelecimento de um bom rapport. b) Diante de perguntas como: “que tipo de estéria?”, “que desenho?”, “precisa pintar?”, “qual o modo de fazer?” e outras semelhantes, 0 psicélogo esclarecer que o sujeito deve proceder como quiser. ©) O uso da borracha deve ser evitado, para melhor se caracterizarem certas dreas em que o sujeito tem maiores dificuldades de desenhar. O uso da borracha faria desapare- cer algumas configuragées graficas de valor psicolégico. Se o examinando quiser, ser-Ihe-4o entregues novas folhas de papel nas quais ele possa refazer o desenho, recolhendo-se, porém, a produgao anterior. 4) Nao séo solicitadas, estritamente, estérias a respeito dos desenhos e, sim, diante dos desenhos, pretende-se que 7 water Tinea sejam desencadeadas associacées livres sob a forma de estorias. e) E importante nao haver modificagées das consignas e do padro basico de aplicagao, que fazem parte da identidade do Procedimento. £) Nomomento da aplicacdo, convém evitar toda interferén- cia de estimulagdo estranha & produgio gréfico-verbal. B necessério verificar se hé alguma situacdo de constrangi- mento ao examinando que impeca o uso de sua lizerdade associativa. g) Oexaminador deve se prevenir em relagao As intervengoes ¢ interpretagées precoces durante o proceso de aplicacao. E preferivel aguardar para isso os momentos favoraveis, quando haja melhor compreensao de conjunto do material. h) O aplicador fara o possivel para entrar na atmosfera emocional criada pelos desenhos e pela verbelizacio, aproximando-se empaticamente do examinando em seu universo de fantasias e angustias. 1.3“INQUERITO” Essa fase da aplicagao destina-se & ampliagao do processo de investigagdo da personalidade. A palavra “inquérito” é posta entre aspas para indicar a continuidade das associagses do examinando sob o pressuposto basico da centralizagéo em suas fantasias e angistias. Ao contrério de uma atitude extremamente diretiva do profissional, as indagagées e os esclarecimentos dessa fase no se dissociam das associacSes livres obtidas nas fases anteriores. Nao hé razdo para se pensar no “inquérito” como algo independente do principio geral que outorga liberdade associativa ao examinando, uma vez que as elucidagées pretendidas nessa fase buscam espe- 18 Apresentacio do Procedimenta de Desenhos-Esteias cialmente estimular o prosseguimento, o desenvolvimento ea ampliagao da comunicagéo inconsciente, que de algum modo 6 sugerida tanto pelos desenhos quanto pelas estérias, Por isso, a énfase aqui é dada aos esclarecimentos, aprofundamentos, desdobramentos, completagées, desfechos e novas associagées que se relacionam aos desenhos e as estérias. Se o examinando nao tiver conseguido contar a estéria ou, mesmo, realizar o desenho, esta 6 uma ocasido favordvel de instar a fazé-lo. Ou, ainda, de montar uma encenacéo dos personagens, figuras e situacées. Ha uma grande diferenca, em termos de imaginacéo criadora, entre contar estérias e simplesmente falar a respeito dos desenhos. Seo “inquérito” corresponde a ampliacéo das fantasias do examinando, tem a ver com penetracdo e mergulho em atmosfera onfrica por parte da dupla participante. Sendo reconhecidos os conte- tidos simbiélicos, a conversacdo passa a ter um significado inconsciente. Isso significa que o profissional tentara seguir © proceso associativo em plano latente. Para tanto, devera estar familiarizado em certo grau com os aspectos mais ressaltantes da problematica psiquiea do examinando, que aparecem especialmente nas entrevistas prévias a aplicacao do D-E. Assim, séo compreensiveis as recomendagées de nao forcar ou condicionar o “inquérito” a determinadas direcdes que alterem o curso natural das associagdes do examinando. O profissional teré o cuidado de nao se fixar em questio- namentos diretos, que poderiam ser mais bem explorados nas entrevistas. Ele evitard concentrar-se demasiadamente em aspectos objetivos e pontuais que transformariam a aplicagdo em simples coleta de dados coneretos e racionais, perdendo de vista o fluxo imaginativo. Um aspecto sensfvel do “inquérito” esta no perigo de a aplicagao se converter em excessos de explicagdes légieas e racionais. Ainda que 19 er Tinea o examinando tenha preferéncias pelo plano racional e concreto, talvez seja possivel transmitir-lhe algo a respeito da dimensao simbilica. No Procedimento de Desenhos-Estérias, a proposta bésica, determinante de o sujeito se revelar, é predominantemente indireta, isto 6, por meio dos desenhos e das estérias. O “in- quérito” néo vem modificar essencialmente a forma indireta de expresséo, caso o profissional conserve a nogdo de uma conversagio que se faz por intermédio de personagens, figuras e situagées. Quando hé alguma coisa vaga e indeterminada, ele poderé incentivar as associacées livres. Isso se aplica, igualmente, aos casos em que o sujeito permanece no plano puramente descritivo. 1.4 FINALIDADES © Procedimento de Desenhos-Estérias destina-se inves- tigacdo e ao conhecimento da dinamica da personalidade, em especial quando se relacionam aos contetidos das experiéneias subjetivas, O D-E pode ser empregado preferencialmente na identificagao dos focos conflitivos, assim como dos sistemas mentais determinantes de desajustamentos e comprometi- mentos emocionais. Ele proporciona meios de expresso dos aspectos inconscientes da personalidade, vindo a auxiliar na elucidacao dos confitos e turbuléncias. Os imimeros estudos realizados a seu respeito e com seu emprego vém demonstrar que ele se ajusta adequadamente as necessidades de expresso e comunicagdo indiretas de criancas, adolescentes e adultos que apresentam dificuldades de verbalizacao direta de suas experiéncias subjetivas. Em combinagéo com outros ins- trumentos e procedimentos, como as entrevistas e os testes psicolégicos, oferece informagées adicionais e complementares 20 ‘Apresontacdo de Procadimenta de Desennos-Estias a realizago do diagnéstico psicolégico. Sob determinadas circunstancias, pode ser empregado como recurso auxiliar nas intervengées e situagées terapéuticas. 1.5 FUNDAMENTACAO, O Procedimento de Desenhos-Estérias encontra sua fandamentagio em diferentes fontes. Anteriormente, foram apresentados os principais determinantes que dao sustentagao a existéncia da técnica (TRINCA, 1997; 2003). No momento, selecionamos os aspectos a seguir, que apresentam uma visio geral de seus fundamentos teéricos e praticos: 1.5.1 Teorias do inconsciente O D-E baseia-se no pressuposto da comunicagao incons- ciente. Isso significa que ele se fundamenta nas teorias do inconsciente. Pode-se perguntar, em cada aplicacdo, qual é 0 sentido inconsciente que representa determinado aspecto da produgao grafico-verbal do sujeito. Ultrapassando aesfera da racionalidade consciente, o D-E dirige-se a uma dimensdo em que as associacées gréfico-verbais indicam a existéncia de um universo subjacente, cujo plano é latente e cujos contetidos sdo, por assim, dizer inadvertidos. Aos desenhos e as estorias aplicam-se as observacées de Melanie Klein (1970, p. 185), de que “em seus jogos, as criancas representa simbolicamente fantasias, desejos e experiéncias”. Geralmente, as figuras, os objetos, a dramatizacdo, o enredo e as situacées grafico-verbais sao formas pelas quais a dimensao inconsciente se dé a conhecer: Por intermédio dessas formas, hé uma comunieacio indireta que o sujeito faz sobre si mesmo, encontrando no D-E ‘uma linguagem apropriada para manifestar o mundo interno. 21 Water Trnea 1.5.2 Contexto da livre associagao Como sabemos, a livre associagao nao é controlada por intengao seletiva (LAPLANCHE; PONTALIS, 1971, p.229). Ao contrario, eliminando-se a selegéio consciente, ha uma tendéncia de as representagSes inconscientes assumirem o primeiro plano. Quando a pessoa 6 colocada em candigées de livre associacio, © processo associativo tende a se dirigir a setores nos quais a personalidade é emocionalmente mais sensfvel. Nessa situaco, os conflitos e turbuléncias emocionais tém oportunidades de se manifestarem, visto que o contexto da livre associacéc permite que as representacées se dirjjam aos focos inconscientes mais significativos. Por sua natureza, o Procedimento de Desenhos- -Estérias torna-se uma técnica de livre associagao gréfico-verbal, pela qual os conflitos e turbuléncias encontram um meio de expresso. O examinando utiliza-se do tempo e dos recursos colocados a seu dispor para centralizar a comunicacdo em seus problemas e dificuldades, conduzindo as associagbes grafico- -~verbais para os focos inconscientes que exercem maior pressGoe ‘exigem mais atenco. Por essa razao, é escusado ao examinador dirigir as associagSes do examinando ou auxilié-lo a da: coerén- cia a produedo. Esta é inicialmente errética e imprevisivel, até que encontre uma forma de representacéo que se caracterize como portadora de significado inconsciente. Para tanto, é preciso dar tempo e acolhimento ao examinando, a fim de que lhe seja. possivel realizar a plenitude da comunicacao. Nao resta divida, porém, de que as surpresas da livre associagdo se interligam com ‘0 espaco aberto a atencdo flutuante do examinador. 1.5.3. Estimulagao n4o estruturada Diante de estimulos incompletos, pouco estruturados ou néo estruturados, hé uma tendéncia de haver completacao, 22 Aprosontacdo do Procecimente de Dasenhos-Estérias organizacéo e estruturagao de respostas em conformidade com as necessidades e disposicdes pessoais, sendo que nessa situagdo a pessoa pode revelar seus conflitos e turbuléncias emocionais. Quanto menos estruturado for o estimulo, maior serd a probabilidade do aparecimento de material emocional- mente significativo. Dada a natureza aberta do Procedimento de Desenhos-Estérias, que dispensa o emprego de estimulos previamente estruturados para a aplicagao e a interpretacéo, ha grande liberdade para a manifestagao de componentes emocionais. Nele, esta presente a facilitagdo de expresso da ordem do simbélico, considerando-se que “o que caracteriza © simbolo é que ele é, ao mesmo tempo, ele proprio e alguma outra coisa” (MILNER, 1976, p. 235). Costuma-se encontrar a facilitacdo de expressio nas situacées clinicas abertas e néo diretivas, em que os contetidos emocionais difusos, esparsos ¢ indistintos tém melhores oportunidades para uma tomada de forma. 1.5.4. Contatos clinicos iniciais Sob um setting adequado, o examinando poder comunicar nos contatos clinicos iniciais seus principais problemas, confli- tos e dificuldades, visto que se trata de uma situaao propicia & emergéncia de emogées relevantes e focos significativos de natureza inconsciente. Sendo o D-E aplicado logo nos primei- ros contatos da situacao clinica, 6 facilitada a manifestacéo de focos inconscientes e outros aspectos psicodinamicos que interessam compreenso da problematica psiquica. Geralmente verificam-se uma condensagao suméria e uma concentracao sintética dessa problemética no contexto dos contatos clinicos iniciais. 0 examinando busca mobilizar-se para apresentagao de uma configuracao geral daquilo que 0 leva a procurar ajuda. Fy Wilts Tinea 1.5.5. Semelhancas com os sonhos 0 Procedimento de Desenhos-Est6rias encontra sua funda- mentagao em prinefpios que regem os contetidos manifestos e latentes dos sonhos. Ele se apresenta como um conjunto de produco grafico-verbal aparente, que pode ser relacionada aos contetidos manifestos dos sonhos e, também, como um conjunto unidades de sentidos inconscientes, que podem ser interpretadas de modo semelhante aos contetidos latentes dos sonhos. Tanto na produgao gréfico-verbal quanto na situagéo onfrica, hd uma linguagem simbélica semelhante, que pode ser compreendida de acordo com as mesmas regras. Se as formas do D-E e dos sonhos diferem entre si em sua apresentagéo aparente, é certo que as formas de comunicacéo inconsciente dos padres emocionais podem ser relacionadas entre eles sob um denominador comum. Por causa dessa similaridade, a compreensdo da comunicagéo realizada por intermédio do D-B segue de perto a “via régia” da interpretacao dos sonhos. Se as diversas imagens de um sonho estabelecem relagées entre sie compéem 0 conjunto da comunicacao onfrica, semelhante processo ocorre em relagao ao conjunto da producao gréfico- -verbal do D-E, para determinado examinando. As unidades de produgdo nao se dissociam entre si, mas formam um processo unitério, que converge para a representacio dos focos nodais de natureza inconsciente. Tanto num caso quanto noutro, é possivel empregar o termo “representagdo-meta”, que foi cunhado por Freud para designar um encadeamento no qual certas representacées exercem verdadeira atracéo sobre as demais, dirigindo 0 curso dos processos psiquicos (LAPLANCHE; PONTALIS, 1971, p. 416). Nos dois casos, ha uma “intencionalidade subjacente”, cuja meta se torna evidente por meio da interpretacdo. O plano ineonsciente forja sua meta, que se desenvolve ao longo do sonho e da producéo gréfico-verbal, mas o encadeamento s6 se torna 24 ‘Apresentagdo do Procecimento de DesenhosEetérias perceptivel quando as emogées pouco claras, indistintas e difusas passam a adquirir uma forma aos olhos do profissional. O leitor encontrard subsidios para a verificagio das relagoes entre o D-E ¢ os sonhos, segundo um referencial freudiano, no trabalho de Migliavacca (1987). 1.5.6, Reiteracao da tarefa Nas provas gréficas e tematicas, quando ocorre a reiteragao da tarefa em determinado contexto e sequenciagao, ha maior probabilidade do aparecimento de respostas emocionalmente sensfveis, em comparacéo com a situagdo de tarefa simples. A reiteracdo da tarefa faz aumentar a presenca de um fator de ativagao dos mecanismos e dinamismos da personalidade. No D-E, 0 fator de ativagdo encontra-se presente na repeticéo do par desenhos-estérias, na sequéncia das cinco unidades de produgao, dentro de um contexto livre e adequado as necessidades de comunicagao do examinando. 0 fato de este se confrontar com a tarefa em sequenciacdo vem auxiliar a diminuicao das resisténcias e facilitar a emergéncia do inesperado. Nesse caso, a reiteracdo da tarefa néo resulta em unidades de produgdo isoladas ou separadas, e sim em um todo unificado. 1.6 UMa MODALIDADE DE COMUNICACAO LUDICA Procedimento de Desenhos-Est6rias foi idealizado como uma modalidade de comunicacdo ltidica que, basicamente, de- posita confianga na capacidade de o examinando se expressar livremente e aleancar o escopo da comunicagao, caso Ihe sejam dadas condigdes emocionais de seguranea e acolhimento. Ele poderd se utilizar de liberdade e espontaneidade para determi- 25 ‘Water Tinea nar por si mesmo o que Ihe for importante a comunicar. Essa condigéo constitui a diretriz fundamental da técnice, erigida sobre as bases de um minimo possivel de interferéncias. Contudo, a énfase no aspecto lidieo no significa subes- timar a presenca de processos inibidores da comunieacao em todos os niveis. Haver sempre uma parcela de material elinico incomunicdvel, mas é preciso considerar se 0 que 6 comunicado corresponde a uma amostra relativamente suficiente e confidvel para os propésitos do exame. Além disso, 6 sabido que o examinando poderé falsear a comunicagio, como & possivel que ocorra em qualquer situagéo de exame. Nesse caso, o falseamento deixard inevitavelmente sua marca e poderd ser confrontado com as demais informacées disponiveis. Além disso, ndo se poderia excluir a existéncia de comunicacées com finalidades manipulatérias, especialmente se o examinando se encontrar sob ameacas ou perigos reais. No entanto, essas situagdes nao invalidam 0 fato basico de o D-E se constituir numa técnica ltidica e de poder ser empregado como tal. Como técnica Itidica, 0 D-E situa-se em plano narrativo que abre um pereurso caracterizado por relagdes no seio do espago pictural, ao qual se adiciona o espago aperceptivo. Ele se compée de traos, temas, cenas, cendrios, personificagées, enredos, dramas, alegorias, pathos, humor, ambientagdes, sinalizacées e todo tipo possivel de tonalidades emocionais que fazem parte de um idioma inconsciente. A pressdo ou a movimentagio emocional conduz a determinadas mani- festagdes que requerem do intérprete um elevado grau de familiaridade com o idioma. Para uma abordagem ortodoxa, isso estaria, a rigor, com- preendido no campo da projegio. Mas esta seria suficiente para explicar todo 0 processo que vigora no D-E? Pela rrojecio, “o sujeito expulsa de si e localiza no outro, seja pessoa ou coisa, qualidades, sentimentos, desejos, isto é, objetos que ele 26 -Aprasentacto do Procedimenta da Desenos-Estrias desconhece ou recusa nele préprio” (LAPLANCHE; PONTA- LIS, 1971, p. 344). Um uso abusivo do conceito transforma em projegao toda obra de ficgao que se relacione a criagao de seres animados e inanimados, por exemplo, a ficgao literaria (LAPLANCHE; PONTALIS, 1971, p. 344). © mecanismo de projecéo parece estar a servico de uma vasta gama de situacées desvinculadas de seu sentido original, que sdo tendentes a descaracterizé-lo. No D-B, em vez da simples explicacéo pela projecio, seria preferivel levar em conta as necessidades e urgéncias do proceso de comunicacao, a eriagdo dos espacos pictural e aperceptivo, a construcdo imaginéria e toda a transmissdo do idioma inconsciente. Desse modo, 0 D-E poderia ser compreendido, antes, como uma comunicacéo de emogées inconscientes A maneira dos sonhos do que um objeto ao qual se atribuem projetivamente as qualidades e disposicées do sujeito. Assim como os sonhos néo se reduzem a simples projegio, o D-E pode ser considerado uma técnica Iddica que responde por grande variabilidade e amplitude mentais sob um complexo sistema idiomético, 1.7 Fen IMENO BASICO Qual seria o fenémeno bésico que desempenha um papel ativo e propulsiona a realizacéo do D-E? Uma resposta possi- vel encontra-se na polaridade entre as forgas de vida e as de morte no organismo. Como se sabe, a pulsio de morte busea ter predomindncia sobre a pulsao de vida, produzindo estados mentais que variam de acordo com os diferentes graus da ten- déncia ao inanimado. Sob sua preponderéncia, observam-se diversas formas de enfraquecimento e de esvaziamento do self, mas também uma infinidade de modalidades de perturbacées psfquicas associadas a sensorialidade (TRINCA, 2007; 2011). Em graus elevados de sensorialidade, a vida mental sofre os 27 iar Teines efeitos de bloqueios, inércias, paralisacées e estereotipias, entre outros aspectos. No entanto, as forcas de vida operam. decididamente em prol da mobilidade, e isso significa que esta. em curso um proceso em que se ativam e se desenvolvem novos sentidos para os fatos. O ponto central a ser considerado 6 que, para se subtrair & tendéncia ao inanimado, as forgas que trabalham pela vida realizam uma dindémica mével em favor do desenvolvimento e da expanséo. Ou seja, vida e mobilidade constituem uma unidade voltada para se desembaracar das forgas destrutivas e lidar com toda sorte de conflitos e turbu- Iéneias emocionais. Se as perturbagées psiquicas resultam de sistemas de desequilfbrios, a pessoa busca o restabelecimento do equilfbrio por intermédio da comunicagdo. Para isso, as forgas de vida encontram diferentes formas de comunicagio e servem-se das funcdes mentais que proporcionam dinémicas livres, soltas ¢ flexiveis, criando conjuntos esponténeos por meio de realizacées prazerosas. ‘Em oposigao aos processos rigidos da tendéncia ao inanima- do, entra em vigor a mobilidade psfquica, pela qual a vida se renova em atitude lidica. Esta é associada ao brinquedo, aos jogos infantis, aos desenhos espontaneos, as construgées livres, as imagens mentais espontaneas, mas também as imagens grafico-verbais. Assim, é possivel compreender a preferéncia que normalmente se encontra pelas imagens gréfico-verbais do Procedimento de Desenhos-Rstérias, uma vez que elas so descompromissadas e lidicas. Nao 36 elas so um exercicio de vida imaginativa, mas constituem um meio pelo qual a vida criadora coloca em movimento processos que se opGem A fixidez, & paralisago e & morte psiquica, observados em diferentes formas de doenca mental. Quanto mais aberta, livre e espontanea for a situacao lidica, mais propicia se torna aos movimentos de renovacéo proporcionados pela mobilidade psiquica. A mente necessita libertar-se dos caminhos batidos © dos padrées estabelecidos a fim de se colocar no plano da 28 ‘Apresantacao co Procedimento de Oesenhos- caters descobertae da experiéncia nova, Por intermédio da mobilidade psfquica, as emogdes que permanecem informes, embrionérias, obscuras, difusas, fugidias ou castieas tem oportunidades de se manifestar 4 consciéncia, em vista da reestruturacgdo emo- cional. Geralmente, essas emogdes dizem respeito a conflitos e turbuléneias que necessitam de conhecimento e resolugio. Se, para o sujeito, o significado consciente escapa completamente, ele possui uma noedo vaga, imprecisa ou parcial do que se passa. Por isso, consegue por meio do D-E uma figurago represen- tativa de tais emog6es, ainda que em termos inconscientes. ‘Veiculadas pelo D-E, as emogées buscam uma tomada de forma consciente, e isso se traduz por manifestagdes igualmente imprecisas e inadvertidas, mas tendentes a movimentos de clarificagéo. Em razéo de sua natureza livre e espontanea, as imagens gréfico-verbais do D-E oferecem condigées para a representacéo da mobilidade psfquica. Nelas, hé liberdade de expresso mével e plastica, por isso os conflitos e turbuléncias encontram ocasiao de se apresentarem. Conciuséo Centenas de trabalhos publicados e milhares de aplicacées do Procedimento de Desenhos-Hstérias no Brasil eno exterior confirmam sua validade clinica, seja sob os referenciais psicanaliticos, seja sob outros referenciais. A sequéncia deste livro procuraré demonstrar essa afirmacdo por intermédio de uma ampla explanagdo. Sendo uma téenica de investigacéo da personalidade, e nao um teste psicolégico, ele se define como um processo de “faixa-larga” no diagnéstico psicolégico, oferecendo uma grande amplitude de informagées. Seu em- prego atesta que ele ocupa uma posicao central no diagnéstico psicolégico de tipo compreensivo (TRINCA, 1984), especial- mente se for utilizado em combinacao com as entrevistas. 29 water Trnes Nele, torna-se possivel a apreensio das experiéncias intimas e dos sentidos da existéncia de cada pessoa. Além disso, por seu vasto uso, nao seria possivel lancar alguma luz sobre a propria existéncia humana? REFERENCIAS KLEIN, M. Prinefpios psicoldgicos da andlise infantil. In: Contribuigdes & psicandilise. S40 Paulo: Mestre Jou, 1970. p. 177-191, LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: PUR, 1971. MIGLIAVACCA, E. M. Semethancas entre 0 Procedimento de Desenhos-Est6rias e os contetidos dos sonhos: uma interpretagéo psicanalitica. 186 p. Dissertagdo (Mestrado) - Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo, Séo Paulo, 1987. MILNER, M. L’inconscient et la peinture: une approche psychanalytique du dessin chez ’enfant et ’adulte. Paris: PUR, 1976. Traduedo W. e B. Ashe e P Denis. ‘TRINCA, W.O desenho livre como estimulo de apercepeds tematica. ‘Tese (Doutorado) ~ Instituto de Psicologia da Universidade de S40 Paulo, Sao Paulo, 1972, 180 p. . Processo diagnéstico de tipo compreensivo. In: : (rg.). Diagndstico psicolégico: a prética clinica, Séo Paulo: E.PU., 1984. p. 14-24. . Apresentacdo e aplicacdo. In: (Org.). Formas de investigacdo clinica em psicologia: Procedimento de Desenhos- Est6rias e Procedimento de Desenhos de Familia com Estorias. Sao Paulo: Vetor, 1997. Investigagdo clinica da personalidade: 0 desenho livre como estimulo de apercepeao tematica. 3. ed. Sao Paulo: E.PU, 2003. O ser interior na psicandlise: fundamentos, modelos € processos. Sao Paulo: Vetor, 2007. - Psicandilise compreensiva: uma concepgao de conjunto. S40 Paulo: Vetor, 2011 30 ALGUNS FUNDAMENTOS PSICANALITICOS DA COMUNICACAO INCONSCIENTE E SUA APLICACAO AO PROCEDIMENTO DE DESENHOS-EsTORIAS Ana Clara Duarte Gavido A meu ver, o que nos prende tao poderosamente s6 pode ser a intencdo do artista, até onde ele conseguiu expressé- -la em sua obra e fazer-nos compreendé-la. Entendo que isso no pode ser simplesmente uma questo de com- preenséo intelectual; 0 que ele visa 6 despertar em nés a ‘mesma atitude emocional, a mesma constelago mental que nele produziu o impeto de erian. Freud (1914, grifo do autor). 2.1 APROXIMACOES E SONDAGEM DE FENOMENOS INCONSCIENTES Os primeiros contatos significativos que tive com 0 Procedimento de Desenhos-Estorias ocorreram durante um curso de especializacao em psicoterapia psicanalitica infantil, que frequentei assim que conelui a graduagao em Psicologia. 3 ra ira Date Savio Eramos cerea de 20 alunos e, semanalmente, conversévamos sobre um “Walter Trinca” - como era chamado ~ de uma crianga atendida por um dos colegas do grupo'. Como principiante curiosa em relagéo & comunicacéo inconsciente, chamava-me aten¢do a sintonia entre os contetidos afetivos observados nas unidades de produgao de um D-E e as reagées emocionais grupais durante sua apresentago. A sequéncia dos desenhos e estérias e as pecu- liaridades transferenciais/contratransferenciais comunicadas pelo colega apresentador faziam muito sentido, ndo apenas intelectualmente, mas também emocionalmente. ‘Meu interesse inicial pelo D-E voltou-se ao potencial de sensibilidade da técnica, comparével a um “amplificador” da escuta psicanalitica ou a um zoom em Areas inconscientes, sondando a subjetividade manifestada intersubjetivamente, ou seja, incluindo a subjetividade do psicélogo no campo de observagao?, Tornava-se nitido 0 efeito didatico do Proce- dimento, além de seu alcance diagnéstico, muito embora tais aspectos sejam, na pratica, indissocidveis. E mesmo notével sua utilidade tanto para o aprendizado do método psicanalitico como para a compreenséo do modelo freudiano de funcionamento mental e de outros modelos subsequentes, j& que o D-E se caracteriza pela liberdade de comunicacao e de interpretagéo. Como na captagéio de sentidos dos sonhos, do brincar ou de obras artisticas, diferentes vértices teéricos podem se harmonizar com a espontaneidade comunicativa inerente ao D-E. Posteriormente, tive a grata oportunidade de ser aluna de Walter Trinea no curso de pés-graduagao do IPUSP, quando TGRPPPI — Grupo de Estudos om Paiquitria, Palologi o Pslcoterapia Infantil (1985-1990) +0 termo “potencial” de sensibilidade da tenica deve-se ao fato de que, assim como zo método cléssio “associagdo livre/avengio Hueuante”, a actidade da pereepoto Ge fendmenos inconscientes varia conforme a dupla examinador-examinando ¢ as configuragées da dinémiea relacional Agu nan pokanalin decomesié nose ave enn reformulei o significado que atribufa a seu nome, até entéo automaticamente associado apenas ao Procedimento de Desenhos-Hstorias e nao A pessoa do autor. Na ocasiao, a disciplina nao tratava do D-E, mas pude reafirmar seu valor para a formagao clinica; a comunicagio “ao vivo” evidenciou a originalidade e a profundidade do pensamento psicanalitico de seu autor. Os comentérios supracitados remetem a um tema em destaque na literatura contemporanea: a pessoa “real” do analista e sua influéncia na qualidade do trabalho psicanali- tico. Na verdade, o valor human(stico daquilo que torna um psicanalista diferente de todos os demais (fatores pessoais que particularizam sua investigacio) j4 era reconhecido e nomeado por Freud de “equacdo pessoal”, expresséio usada por astrénomos, referente & infiuéncia inevitdvel da persona lidade do cientista na apreensao dos fenémenos que observa (FREUD, 1990g). ‘Aproximamo-nos, entdo, de uma questéo ética das mais, relevantes ao exereicio da psicandlise: a prioridade a andlise pessoal do psicanalista em sua formagao, seguida (ou alter- nada) pela autoanélise. Uma vez comprometido com a fungao analitica, seja qual for o setting espeeifico, é imprescindivel ao profissional conectar-se a principal via de acesso aos fenéme- nos inconscientes - sua propria pessoa, sua vida interna, seus sonhos - para aprimorar sua capacidade intuitiva e “flutuar a atencao” entre elementos néo sensoriais. Trinca (1997) leva em conta a atitude mental do profissional que utiliza 0 Procedimento de Desenhos-Estérias, também considerando sua personalidade, seus modelos, enfim, caracteristicas proprias extremamente variaveis e que facilitardo, em maior ou menor grau, a penetragdo em camadas mentais profund: [.u] O psiedlogo pode atingir um estado de mobilidade psiquica, que corresponde a um “mergulho”, como nos 33 ‘a Ca Oss Gato sonhos noturnos. © espirito livre brinea consigo mesmo, produzindo imagens esponténeas ¢ sentimentas de pre- senga de vida. A fertilizacdo comega a ocorrer quando 0 examinador deixa de ser uma tela em branco. Ele acolhe 0 Outro em tal grau de profundidade que é come se, ao estar com o Outro, estivesse consigo préprio. O examinando que ‘tem mensagens a transmitir percebe o campo favordvel comunicacéo e sente que nada é mais natural do que atualizar essa comunicagéo. Desse modo, 0 psieélogo co- mhece o frescor criativo em seu trabalho. (TRINCA, 1997, . 204, grifo nosso). Tendo escolhido 0 Método de Rorschach para realizar pesquisas académicas, pude reconhecer que a investigacéo psicanalitica intermediada pelo Procedimento de Desenhos- -Estérias contribui para a flexibilidade do racioeirio elfnico em testes projetivos. Justamente por néo ser um teste psicolégico nem uma avaliacdo classificatéria, 0 D-E permite aguear a captacéo intuitiva e a autenticidade no trabalho investigativo, recursos também preciosos na utilizacéo de instrumentos padronizados, porém um tanto quanto dificultados pelas exigéncias téenicas de carater mecanicista tipicas das padronizacées (GAVIAO; OSTERNACK-PINTO, 2000; GAVIAO, 2003). De modo geral, podemos destacar as seguintes inovacées trazidas pelo Procedimento de Desenhos-Estérias: 1. Ao campo da avaliacdo psicolégica: énfase aos prineipios fundamentais do método psicanalitico - associagéo livre/ * Agradego ao Prof. Dr. André Jacquemin pelo exemplo de postura dentifica na ‘ransmissdo de conhecimentos sobre o Método de Rorschach e a Profa Dra. Tania Maia José Aielio Vaisherg pelo rico aprendizado sobre o Procedimento de Desenhos- -Estorias com Tema e a investigaeéo de subjetividades grupais, na qualidade de ‘embasamentos para uma perspectiva intersubjetivista na utilizacdo peicanalitica do Rorschach, 3a puns eames pratos 6a canoes wa ale, atengéo flutuante -, favorecendo o desprendimento do modelo clinico tradicionalmente voltado ao funcionamento intrapsiquico do paciente e contribuindo para a consoli- dacdo de uma abordagem compreensiva intersubjetiva de express6es grafico-verbais. 2, Ao campo psicanalitico: um novo recurso téenico para a clinica psicanalitica exercida tanto no setting convencional como em settings alternativos (elfnica extensa), facilitando © atendimento de demandas diagnésticas, interventivas e de pesquisa, especialmente quando ha impasses ou bloqueios na comunicacéo. 3. Ao campo da formacdo em psicandlise: um interessante instrumental conceitual para diversos vértices teéricos, pela visibilidade dada a configuracées inconscientes em linguagem estética, espontnea, liidica, apropriada para transmitir conhecimentos relacionados 4 experiéncia emocional, vida onfrica, comunicacao pré-verbal, enfim, vivéneias e conceituacées psicanaliticas apreendidas principalmente por meio da intuigao, e nao do intelecto. 2.2: ATEMPORALIDADE, REPRESENTABILIDADE E SONHOS O termo “psicandlise classiea”, em contraposicdo a “psi- canéllise contemporanea”, pode ser utilizado com certo tom depreciativo, sugestivo de algo antigo e ultrapassado, em vez do sentido de valorizac&o de um corpo de conhecimento fundamental, modelar. Entretanto, se considerarmos que © inegavel desenvolvimento da psicanélise em mais de um séeulo de existéncia corresponde a refinamentos conceituais que permitem aleances clinicos cada vez mais sutis ou “microseépicos” (assim como a medicina desenvolve exames de imagem cada vez mais precisos) estendendo-se a settings 38 ‘a Ga Dre Gato diversificados e socialmente abrangentes, nao encontramos, propriamente, mudaneas essenciais na concepcao da funcio analitica. Sabemos, ainda, que a fiexibilidade do setting e a transposi¢éo do método para diversos contextos — moder- namente designadas por “clinica extensa” ~ ja se faziam presentes nos infcios da psicandlise. Andlises condensadas e estudos culturais realizados por Freud bem como a psicané- lise de crianeas, criada por Melanie Klein, sao exemplos da tradicional versatilidade deste campo cientifico, permitindo sua expanséo e crescente libertagao das heraneas positivistas. ‘Talvez a forga revoluciondria da psicandlise que virou do avesso a consciéneia humana justifique a ideia de que se trata, ainda, de uma ciéneia nova, com apenas cento e poucos anos para processar tamanho golpe narcisico. A expressao funedo analitica é aqui adotada no sentido de observagao, elaboracéo e integragao de experiéncias emocionais vividas numa relacdo humana psicanalltica - par- ticularmente durante o Procedimento de Desenhos-Estérias-, implicando 0 contato com a propria vida interna também por parte do profissional, como propée Freud ao fundar o método. Vale lembrar que Freud (1990a) descobriu a fertilidade do método “associagao livre/atengao flutuante” analisando seus préprios sonhos em A interpretacdo de sonhos, indicando que a autopercepedo interna do psicanalista é a condigao basica para o método se constituir e operar.* Privilegiar a auto-observacao interna eo plano nao sensorial nao significa, evidentemente, desconsiderar a realidade material e externa, visto que todo o corpo te6rico psicanalitico pressupée a confiu- éncia de fatores constitucionais e ambientais no transcorrer do desenvolvimento humano ou a multicausalidade dos fenémenos psfquicos - as “séries complementares” ~ 0 que “Um breve panorama sobre o desenvolvimento do conceito de contratransferéncia desde Freud até a atualidade pode ser visto em Gavido et al. (2011). 38 gue ndarern peanalizos de corunesitc sie esta oi exige a contextualizagio da relaco psicanalitica e do D-Ea cada demanda.* Assim como a nogéo de “equacio pessoal” atualmente valorizada em termos da “pessoa ‘real’ do analista”, os fun- damentos metodolégicos concebidos por Freud permanecem vivos e operantes, preservando seu vigor transformador intrinseeamente relacionado a percepgao de dinamismos inconscientes de natureza atemporal e estética, cujo registro ontrico representa a fungdo pensante primordial da mente. Tais fundamentos continuam na “ordem do dia” da psica- nélise e, também, da investigacdo psicanalitica por meio do Procedimento de Desenhos-Estérias. A citagao a seguir, do capitulo 4 de A interpretagéo de sonhos, pode ser associada a0 Procedimento de Desenhos- -Est6rias (onde aparece “sonho”, ler “D-E”, e onde aparece “onfrico”, ler “gréfico-verbal”), mostrando, por assim dizer, aatualidade da psicandlise classica. Trata-se do item “Consi- deragao a representabilidade”, no qual, apés discorrer sobre 0s fenémenos de condensagao e deslocamento, Freud (1990a, p. 327, grifo do autor) comenta: ‘A discussto precedente levou-nos enfim a deseoberta de «um tereeiro fator cuja participagdo na transformagéo dos pensamentos do sonho em contetido onirico ndo deve ser subestimada: a saber, aconsideraedo ¢ representabilidade no material psiquico peculiar que os sonhos utilizam — ou seja, na sua maior parte, a representabilidade em imagens 0 foco na realidad psiquica favorecido pela metapsicologia freudiana e pelos de- senvolvimentos posteriores trazidos por Klein, Bion e outros autores pés-kleinianos ‘implica considerar, necossariamente, sua natureza relacional, ou sea, suas dimens6es subjetivas/intersubjetivas, intrapsiquicavinterpessoais,individuais/sciais,internas) ‘externas, coexistindo em permanente movimento dialético (FREUD, 1990d, 1990f, KLEIN, 1996a; 1996b; BION, 1962; 198). obra de Winnicott - outro grande autor dda escola ingleea de Psicandlise - destaca-se pelos avancos significativos na concepcso {do um contexte intersubjetivo para a constituigio da subjetividade individual. Uma discussio interessante sobre essa tematica encontra-se em Ogden (1996) a7 0a Cara Date Gado visuais. Dentre os varios pensamentos acessérios ligados 08 pensamentos onfricos essenciais, da-se preferéncia Aqueles que admitem representagso visual; ¢0 trabalho do sonho nao se furta ao esforgo de remodelar pensamentos inadaptaveis numa nova forma verbal - mesmo numa que seja menos Tepresentacio e, dese modo, alivie a pressio psicolégica causada pela constri¢ao da aco de pensar al -, contanto que esse processo facilite a ‘Menos comprometido com a realidade conereta e com a légica racional, o trabalho do sonho ~ e do D-E ~ “vai direto a0 assunto”, evidenciando aspectos da realidade psfquica que interessam ao sujeito, ao que Ihe é existencialmente signifi- cativo, mesmo que por meio de representagées a prinefpio incompreensiveis, absurdas ou enigméticas. A sequéncia de cinco unidades de produgao do D-E delimita uma espécie de espago onirico compartilhado, configurado por uma demanda peculiar, no qual os significados tendem a emergir espontaneamente da experiéncia estética/emocional vivida pela dupla examinador-examinando. Vemos a distancia que tal procedimento mantém dos testes psicolégicos, uma vez que requer a flexibilidade para trabalhar na atmosfera trans- ferencial/contratransferencial, sempre unica e imprevisivel, jamais padronizavel, nem sempre facil de alcancar ndo s6 no D-E, como também no trabalho psicanalitico tradicional. Asistematizacao prevista para a aplicacéo do Procedimento de Desenhos-Hstérias caracteriza sua identidade clinica, nao devendo ser confundida com padronizacéo ou testagem. Em analogia ao recurso do diva no trabalho psicanalitico, podemos entender que a materialidade advinda da sequéncia de cinco unidades de produgdo do D-E constitui um espaco expressivo relativamente estavel, que funciona como um continente para os contetidos simbdlicos emergirem de manera livre e particular. Como sabemos, ainda que os aspectos coneretos 38 ‘guns anders pscsalcas deanna ease sal do setting psicanalitico sejam estaveis (diva e alta frequéncia de sess6es, por exemplo), cada analisando, cada analista e cada dupla analitiea os utilizaraéo de maneira singular; similarmente, cada dupla examinador-examinando do D-E criaré uma interacdo psicodinamica tinica ao apropriar-se dessa mesma tarefa. A percepedo dessas variagées e sutilezas e a criatividade para transformé-las em conhecimento inter- subjetivo titil dependem muito mais da disponibilidade para o contato com as experiéncias emocionais no “aqui e agora” do que de enquadres, que por si sés nao garantem nada. Quantas vezes observamos um uso estereotipado, mecdnico ou até dogmatico das teorias e técnicas psicanalitieas, subtraindo- -Ihes a vivacidade? A significacao e ressignificacdo do plano psiquico incons- ciente e seus beneficios para o desenvolvimento emocional dependem do contato com os afetos imbricados nas inusitadas conexées de elementos da rede simbélica, como ocorre na evolugéo de uma anélise e no Procedimento de Desenhos- -Estérias. 2.3 LINGUAGEM ESTETICA E COMUNICACAO INCONSCIENTE Com a finalidade de realear a dimensao estética na pratica psicanalitica e no Procedimento de Desenhos-Estérias, serao apresentados a seguir alguns estudos classicos que colocam em relevo: sonhos, imagens visuais ou artfsticas enquanto mobilizadores do desenvolvimento da capacidade de pensar. Mais de uma ver, Freud afirmou que néo se pode interpre- tar sonhos sem levar em conta tanto 0 aspecto simbélico quanto as associagdes do sonhador. Ao solicitar estérias associadas aos desenhos, como fazemos no D-E, estamos 39 sna Car Ouate Gade respeitando 0 mesmo proceso, pois “a crianca faz tan- tas associacdes aos elementos isolados de seu brinquedo, quanto 0 adulto aos elementos isolados de seus sonhos” Klein, 1932, p. 31). 0 uso de imagens plésticas no D-E, além disso, favorece a expresso simbélica. Ao tratarmos ‘um D-E do mesmo modo como se trata os sonhos, obser- ‘vamos como 0 material manifesto 6 “breve, insuficiente e Jacénico” diante do que esté latente, Tal verificacio vem confirmar a necessidade do disfarce dos contetidos afiitivos ‘ou dos encobertos “niicleos emocionalmente significati- vos”, (MIGLIAVACCA, 1987, p. 59, grifo da autora). Uma divertida passagem de Freud (1990a) pode servir como estimulo para continuarmos mergulhando na insti- gante dimenséo onfrica que caracteriza o Procedimento de Desenhos-Est6rias. Novamente sugiro ao leitor, na iltima linha, ler “D-E” onde se Ié “sonho”: [..] Suponhamos que eu tenha diante de mim um quebra- ~cabecas feito de figuras, um rébus, Ele retrata uma casa com um bareo no telhado, uma letra solta do alfabeto, a ‘figura de um homem correndo, com a cabega misteriosa- mente desaparecida, assim por diante. Ora, eu poderia ser erroneamente levado a fazer objegdes ea declarar que o quadro como um todo, bem como suas partes integrates, néo fazem sentido. Um barco nao tem nada que estar no telhado de uma casa e um homem sem cabeca nao pode correr. Ademais, o homem 6 maior do que a casa e, se 0 quadro inteiro pretende representar uma paisagem, as letras do alfabeto esto deslocadas nele, pois esses obje- tos néo ocorrem na natureza. Obviamente, porém, s6 podemos fazer um juizo adequado do quebra-cabecas se pusermos de lado essas eriticas da composigéo inteira ¢ de suas partes, © se, em ver disso, tentarmos substituir 40 gue erent panels comin sz su ope. cada elemento isolado por uma sflaba ou palavra que poss ser representada por aquele elemento de um modo ou de outro. As palavras assim compostas jé nfo deixardo de fazer sentido, podendo formar uma frase poética de ex- trema beleza e significado. O sonho é um quebra-eabecas pictogréfico desse tipo. (FREUD, 1990a, p. 270). Os pictogramas afetivos presentes nos sonhos e em dese- nhos figurativos representam de modo elementar, regressivo e sensorial as experiéncias emocionais que ainda estéo a caminho da figurabilidade, na migragao de “representacéo de coisa” para “representacao de palavra”. Nesse sentido, 0 recurso a desenhos ja era espontaneamente introduzido no processo analitico em alguns trabalhos clinicos de Freud. ‘No famoso caso do “pequeno Hans”, na verdade conduzido pelo pai da crianca sob a superviséo de Freud, a curiosidade sexual tfpica da inffincia foi gradativamente adquirindo sinais de acentuada ansiedade de castragao, intensificando-se até configurar um quadro de fobia de cavalos e, depois, de outros animais grandes. O pai do garoto registrava suas observagoes acerca do desenvolvimento do filho e apresentava relatorios para Freud orienté-lo, tendo feito um desenho ainda no infcio do processo: “1 trae Dae Desenhei uma girafa para Hans, que mais tarde esteve em Schénbrunn diversas vezes. Ele me disso: “Desenhe também 0 pipi dela.” “Desenhe voc mesmo”, respondi; a0 que ele acrescentou essa linha a minha figura (ver Fig. 1). Ble comecou desenhando um trago pequano, ¢ enti acrescentou mais um pedacinho, observando: “O pipi dela 6 mais comprido.” [..] (FREUD, 1909, p. 29.24), Nota-se uma auténtica busca de compreensio das angtis- tias relacionadas as descobertas da sexualidade, por parte do menino e dos pais. iniciativa do pai em desenhar para o filho, dando-lhea liberdade para completar o desenho, mostra como a imagem gréfica pode favorecer a comunicagdo e a elaboragao de experiéncias emocionais compartilhadas. Alguns sonhos de Hans sao relatados, sendo curiosa a maneira como o menino se refere & experiéncia oniriea: “Hoje, quando eu estava dormindo, pensei que estava em Gmunden com Mariedl.” (FREUD, 1990b, p. 22, grifo nosso), Vemos © uso espontaneo do verbo “pensei” em vez de “sonhei”, demonstrando como os sonhos ~ e 0 D-E ~ sao equivalentes psiquicos do pensar. Em outras passagens, esse estilo verbal émantido: “Sabe, ontem a noite pensei assim: Alguém disse: ‘Quem quer vir até mim?’ Entao alguém disse: ‘Zu quero,’ Entéo ele teve que obrigar ele a fazer pipi.” (FREUD, 1990b, p. 28, grifo nosso — negrito); a interpretacao desse sonho veio a explicitar a repressao do desejo, manifestado disfarcadamente. ‘Vemos, ainda, o sofrimento do menino apés um pesadelo, do qual despertou chorando e disse a sua mae: “Quando eu estava dormindo, pensei que vocé tinha ido embora eeu ficava sema Mamée para mimarmos juntos.” (FREUD, 1990b, p. 34, grifo nosso). A proximidade natural entre os processos de sonhar, desenhar e pensar também pode ser vista em outra andlise, esta sim conduzida diretamente por Freud e que veio a se 2 prs insane ptaratos ca comacao hens aie. tornar 0 mais elaborado e importante caso clinico do autor: 0 Homem dos lobos (FREUD, 1990e). Mais uma vez trata-se de uma neurose infantil, tema central deste processo analitico realizado com o paciente jé adulto. Como é sabido, 6 um texto bastante instrutivo no que se refere 4 complexidade psicodinémica da neurose obsessiva, as questées relacionadas A realidade/fantasia da cena priméria e — 0 que mais preci- samente nos interessa aqui — a forca plastica advinda de um desenho associado a um sonho, enriquecendo a comunicacao analisando-analista. No item 4, intitulado O sonho ea cena priméria, vemos 0 relato do sonho e o desenho feito e entre- gue espontaneamente pelo paciente, os quais retornaram intimeras vezes a pauta das conversas analiticas: Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama. (Meu leito tem o pé da cama voltado para a janela: em frente da janela havia uma fileira de velhas nogueiras. ‘Sei que era inverno quando tive 0 sonho, e de noite.) De 6 na ira ar Gave repente, a janela abriu-se sozinha-e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da,janela, Havia seis ou sete deles. Os Jobos eram muito brancos e pareciam-se mais com raposas ou ces pastores, pois tinham caudas grandes, como as raposas, e orelhas empinadas, como edes quando prestam atengdo a algo. Com grande terror, evidlentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei. Minha babé correu até minha cama, para ver o que me havia acontecido. Levou muito tempo até que me convencesse de que fora apenas um sonho; tivera uma imagem tao clara e vivida da janela a abrir-se e dos lobos sentados na érvore. Por fim acalmei-me, senti-me como se houvesse escapado de algum perigo e voltei a dormir. (FREUD, 19906, p. 45-46, srifo do autor). A revivescéncia da sensacdo primitiva de perigo (cena priméria) 6 viabilizada basicamente por representacoes pelo contrério (ser olhado/olhar, imobilidade/movimento violento, passividade/atividade), elaboradas detalhadamente nas construgses desenvolvidas no processo analitico “como se se tivesse uma fé ingénua na verdade das fantasias”. Freud ressalta a importancia das fantasias do analista depositadas sobre o analisando devido a complexos préprios (FREUD, 1990e, p. 69-72). Temos af um bom exemplo da dimenséo intersubjetiva e atemporal dos fenémenos inconscientes, to vivos e ativos desde a infancia mais precoce e que, disfargados em imagens e lembrangas encobridoras em virtude de limi- tages na capacidade de representagdo verbal, mostram-se bem mais relevantes que a “verdade histérica”, em si mesma, inalcangavel. Outro interessante estudo de Freud mostra o método psi- canalftico operando em funeSo da comunicacdo estética, com destaque a qualidade do contato com as préprias experiéncias 44 _Agunsndaonts sea da comuncario onsen evan emocionais: O Moisés de Michelangelo (1990c). Podemos apreender desse texto os principais passos da investigacao psicanalitica, ainda que na clinica extensa* Parecendo um detetive em clima de perplexidade e mis- tério diante da magnifica obra situada em Roma, na tumba gigantesca do Papa Jiilio II, confeccionada entre os anos de 1512 e 1516, Freud visita-a em diversas ocasides, pasando horas e horas a contemplé-la. Podemos relacionar esse estado contemplativo aum movimento inicial do método psicanalitico edo D-E: a disponibilidade interna do psicanalista (e também concreta, de tempo e de espaco) para entrar em contato com a manifestagio estética, com algo desconhecido, mantendo a atengdo flutuante e um envolvimento emocional profundo. ‘So consideradas as opinides dos eriticos de arte da época, cujas inconsisténcias e contradigées gritantes néo impediram certa unanimidade quanto a suposta intencdo do artista de representar a cena mais dbvia do mito, tal como descrita na Biblia: a perturbacdo de Moisés ao avistar do Monte Sinai © povo pagao idolatrando 0 Bezerro de Ouro e a firia que 0 fard se levantar e jogar impulsivamente as Tabuas dos Dez Mandamentos. Os detalhes da escultura, como as madeixas da barba, os dedos das maos, a posicéo do pé esquerdo, das Tabuas, entre outros, s4o interpretados pelos eriticos de maneira arbitréria e parcial, claramente infiuenciada pelo texto biblico que parece contaminar e até se sobrepor A experiéncia pessoal de observacéo. No entanto, Freud aproveita essas ideias contraditérias como pegas de um complexo quebra-cabeca, considerando que nao surgiram por acaso, porém nao se contentando com a superficialidade de suas justificativas; pelo contrério, abre-se para indagacées ainda sem perspectiva de resposta. Podemos identificar "De earta forma, como no caso do “pequeno Hans” levado a termo fora do sett -padréo ¢, também, no de Home doe lobos, em que Freud delimita um tempo para 0 término da anélise, instituindo a abreviagéo do tratamento como estratégia de ‘manejo da resisténcia. 45 sna Ciara Duane Gano aqui outro movimento importante do método psicanalitico, mais bem definido por uma negativa: ndo se restringir ao 6bvio, ao aparente, ao manifesto, as teorias conhecidas, em favor de uma abertura ao novo, ao latente, a uma visio de conjunto da configuracéo emocional que permita integrar, gradativamente, os fragmentos aparentemente desconexos, como procuramos fazer durante o “inquéritn” ea interpre- tagéo de um D-E. 0 aprisionamento no plano sensorial e 0 ‘uso intelectualizado das teorias psicanaliticas obstruem a criatividade e a sensibilidade analiticas, induzindo a pontos de vista equivocados, dissociados dos afetos. ‘Mesmo admitindo se tratar, provavelmente, da represen- tagéio da tal cena em que Moisés se revolta contra o ritual pagio, Freud ndo se guia exclusivamente pela imagem da Biblia, deixando-se invadir pelas ressonancias da comuni- cago estética em sua prépria experiéncia com 2 estatua. O impacto emocional evocado pela escultura permite-lhe aprender fenémenos transferenciais/contratransferenciais condensados na imagem. Como em qualquer obra de arte ou produgao do D-E, hé um enderecamento transferencial, uma constelaeéo afetiva peculiar, subentendida nas sutilezas de detalhes a serem compreendidos de maneira integrativa, enquanto movimentos elaborativos de traumas ou conflitos do proprio autor. A consideracao pela turbulenta zelagéo de Michelangelo com o Papa, famosa em fungéo do fervor das ambigées, vaidades, disputas e humilhagées, vem favorecer a apreensdo contextualizada dos afetos de fiiric, revolta, desprezo, compaixao e resignacao expressos no semblante de Moisés, A hipotese de estarmos diante de significados originais, diferenciados da mensagem biblica, peculiares aos anseios de Michelangelo de elaborar sua prépria destrutividade, foi formulada quando Freud emergiu de um verdadeiro mergulho na experiéncia de sentir-se acuado, pecador, como que inserido 46 Aun tinder seat acorn ems a oo na multidao transgressora avistada pelo olhar feroz de Moi- sés, evidenciando a dimensao intersubjetiva da experiéncia psicanalitica, tao cara ao Procedimento de Desenhos-Estérias: (..] nunea uma pega de estatudria me causou impresssio mais forte do que ela, Quantas vezes subi os sngremes dagraus que levam cn desgracioso Corso Cavour a solits- ia piazea em que se ergue a igreja abandonada e tentei saportar 0 irado desprezo do olhar do herdi! As vezes sai timid e culdadosamente da somi-obseuridade do interior como se eu préprio pertencesse a turba sobre a qual seus olhos esto voltados ~ a turba que nao pode prender-se a nenhuma conviegso, que néo tem fé nem paciéneia e que se rejubila ao reconquistar seus ilusérios idolos. FREUD, 19906, p. 255). Freud admite em seus proprios pensamentos “motivos in- dignos e pueris”, principalmente quando se percebe pesaroso por descobrir que sua interpretagdo da estatua ndo era téo inédita quanto gostaria, tendo outro autor antecipado grande parte de suas ideias (LLOYD, 1863 apud FREUD, 1990c). Sem maiores constrangimentos, Freud também vai lidando com suas préprias vaidades e ambicdes ao publicé-las, mostrando como a autopercepedo interna do analista aciona o método para operar em dimensdes inconscientes intersubjetivas e captar quanta vida pode estar contida em uma estétua! Nesse tipo de investigacdo em que a prépria subjetividade 6 incluida, é possivel desprender-se do plano conereto e de con- ceitos preestabelecidos para alcancar significados que estao além do senso comum. Ao tolerar os paradoxos decorrentes de interpretagées contraditérias da obra de Michelangelo e de suas préprias emocées diante da imagem, com muita paciéncia para construir uma visdo integrada dos intimeros elementos parciais, Freud captou significados novos, plausiveis e a ‘na Clre vane Gao coerentes com uma visdo abrangente. A impresséo de um {mpeto raivoso contido (oposta a interpretacdo vigente de iminéncia de uma explosao de raiva) preserva a harmonia do conjunto maior das figuras decorativas do timulo, que estéo sentadas, aquietadas, da mesma maneira como supomos, agora, desejava estar o artista e, ao que parece, o préprio Freud, que na época desse estudo enfrentara conflitos com dissidentes do movimento psicanalitic Para que sua impressao pudesse ser visualizada ou, entao, como uma espécie de resposta gréfica a um “inquérito ima nério” sobre o contraste entre a “calma exterior” e a “emogio interior” comunicadas esteticamente, Freud recorreu a desenhos ilustrativos da sequéncia hipotética de posicdes anteriores & posi¢do realmente representada pelo artista (a terceira), “descondensando” sua captagao de calma seguida de faria, sabiamente contida ao final: L..] 0 que vemos diante de nés ndo 6 0 infeio de uma ago violenta, mas os restos de um movimento jé efetuado. Em seu primeiro transporte de fiiria, Moisés desejou agir, levantar-se, vingar-se e esquecer as Tébuas; mas dominou a tentagao e permaneceré sentado e quieto, com sua ira congelada e seu sofrimento mesclado de desprezo. ‘Tampouco atira fora as Tabuas, de maneira aque se que- 43 puns unen sknas oa comnarlnonaene osu apes brem sobre as pedras, pois foi por sua causa especial que controlou a ira; foi para preservé-las que manteve eontida sua paixio. (FREUD, 1990¢, p. 269-270, 272). Ascultura estaria representando, acima de tudo, desejos de equilibrio psiquico de seu autor, como acontece nos sonhos eno D-E. Mas Freud cogita, ainda, a possibilidade de estar enganado e de que o artista teria introduzido aleatoriamente os detalhes formais que embasaram sua interpretacéo, alertando-nos para outro importante momento do método psicanalitico: reconhecer que nao hé uma verdade absoluta e que nossos pontos de vista podem ser transformados por novas percepgées. Nessa perspectiva podemos considerar, resumidamente, os seguintes movimentos na atitude mental do psicanalista durante o Procedimento de Desenhos-Estérias: a) disponibili- dade interna para associagdo livre/atengao flutuante e contato profundo com os afetos implicitos na produco gréfico-verbal; b) observacao do campo transferencial/contratransferencial (autopercepcao interna, das emogées evocadas esteticamente); ©) consideracao pela literatura cientifica sem aprisionamentos religiosos a teorias ou autores; d) formulacao de hipsteses compreensivas, integrativas, originais e peculiares ao con- texto investigativo especifico, fundamentadas pela prépria experiéneia emocional no campo relacional intersubjetivo; e) abertura para reconhecer eventuais equivocos e falhas humanas inevitaveis, priorizando a autenticidade da relacao. CoNSIDERACOES FINAIS Um aspecto gratificante do método psicanalitico provém justamente da experiéneia emocional intersubjetiva a ser elaborada em parceria, ou seja, o psicanalista necessariamente 49 snare Our Gave aprende algo novo junto com o paciente, caso contrario estaria em uma relagao intelectualizada, de transmisséo de conhecimentos prontos, desvitalizados. Na psicandlise o conhecimento é construido pela dupla e envolve os significados afetivos da relac&o vivenciada no presente. Daf a énfase & autopercepedo interna também por parte do profissional, aprimorada em sua andlise pessoal que, espera-se, no abra mao de fazé-la intensivamente. Procedimento de Desenhos-Estérias permite operar vivamente 0 método psicanalitico pela visibilidade dada as questées afetivas inconscientes que clamam por expressao simbélica e compreensao emocional, como nos sonhos, nas brincadeiras infantis e nas criacées artisticas. Sua peculiaridade encontra-se na facilitagdo de esclarecimentos diagnésticos, superagao de impasses terapéuticos, apreensao de subjetividades grupais ou outros objetivos clinicos e de pesquisa que interessem A psicandlise contemporanea, no setting cldssico ou em outros contextos humanos. Considerando o empobrecimento simbélico caracteristico das demandas da atualidade, relacionadas & prevaléncia do funeionamento borderline ¢ aos aprisionamentos nasensoriali dade primitiva, temos no Procedimento de Desenhos-Est6rias um precioso recurso téenico e também de aprendizado sobre os fenémenos intrigantes que movimentam (ou paralisam) os processos inconscientes. REFERENCIAS BION, W.R. O aprender com a experiéncia. Rio de Janeiro, Imago, 1962. 118 p. Traducdo de: Jayme Salomédo e Paulo Dias Corréa. Uma meméria do futuro. Vol. 1 - 0 sonho. Trad, Paulo Cesar Sandler. Sa0 Paulo, Martins Fontes, 1989, 255 p. (Original de 1975). ‘guns eames panacs da coma; reece 2 ope, FREUD, S. 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Eases trabalhos demonstram a importéncia do Procedimento de Desenhos-Estérias como um recurso da psicologia para descrever a condic&o psicodinamica do individuo nas mais variadas situacées da vida humana, na side e na doenca, seja crianca, adolescente ou adulto. Antes de destacar alguns 3 aaa Sos Mado + Cistina Mars Flomens rae Petes» hush AS. 2d Souza desses trabalhos, vamos dar uma breve ideia do que consiste a andlise qualitativa e quais os pilares teéricos que Ihe dao sustentacao cientifica. 8.1 ANALISE QUALITATIVA Historicamente, o reconhecimento do método qualitativo ou qualitativo-interpretativo data de pouco mais de um século, dando-se concomitante com a necessidade de se criar as chamadas “ciéncias do homem”. A filosofia, hé séculos, buscando compreender o ser humano, teve este como objeto de seus estudos (TURATO, 2004). Muitos pensadores, entre os quais Wilhelm Dilthey (1833-1911), defenderam a ideia de que as ciéneias do homem tivessem métodos préprios para seu estudo, pelas peculiaridades que apresenta ‘TURATO, 2004). Atribui-se a Malinowski (1922) o pioneirismo no uso da metodologia qualitativa, por ser ele quem primeiro revelou os meios de obtencdo dos dados de seus estudos e experiéncias de campo. Assim, surgem as Ciéncias Humanas com o objetivo de compreender o ser humano. Blas abarcam o estudo da sociedade, da cultura e da histéria, partindo do pressuposto de que 6 impossfvel compreender 0 ser humano destituido do context e do entorno em que ele se insere (DILTHEY, 1980, TURATO, 2004). Os antropélogos incorporaram desde 0 infcio as ciéncias do homem, seguidos pelos educadores sociélogos. Posteriormente, deu-se a adesdo dos psicanalistas e, recentemente, dos médicos, enfermeiros e psiedlogos deno- minados “compreensivistas” (que reconhecem as atividades inconscientes, de acordo com as concepeses de Freud). Vale destacar que a psicandlise ofereceu significativas contribui- Ges & concepgao e a pratica desses estudos (TURATO, 2004). De modo geral, o método qualitativo, também denominado compreensivo-interpretativo, advém da “vivéneia do homem”. 5a Prowsiner de Der ats: oneness Ele tem por paradigma predominante a fenomenologia, valoriza as angustias e ansiedades existenciais e utiliza como referencial teérico as concep¢ées psicanaliticas bésicas. Com- preender é a palavra que caracteriza esse tipo de investigacio. Compreender é um termo advindo do latim comprehendere, que significa algo “apreendido em conjunto”. No entendimento fenomenolégico, esse termo abrange entender e interpretar os sentidos e significados dos fendmenos vivenciados. A atitude cientifiea do pesquisador consiste na busca de compreensio do ser humano e o objeto de estudo diz respeito aos “fenémenos humanos apreendidos”. Os objetivos da pesquisa se referem & “interpretagao da relacao de significados sobre os fenémenos para as pessoas e para a sociedade” (TURATO, 2004, p.48). Oestudo clinico-qualitativo, deriva do método qualitativoe requer a utilizacdo de recursos abertos e flexiveis. A forea do método é atribufda ao rigor da validade dos dados e/ou achados. © pesquisador coloca-se como um instrumento da pesquisa. Nessa concep¢ao, os instrumentos que melhor se ajustam ao método séo: observagées livres, entrevistas semidirigidas, entrevistas complementares, coleta intencional em prontuérios ¢, eventualmente, testes psicologicos. O tratamento dos dados contempla a anélise de contetido (TURATO, 2004). O estudo clinico-qualitativo sustenta-se na observacéio de que o conhecimento é construido pelo sujeito e pelo objeto por meio de uma relacdo dialética e intersubjetiva. Entretanto, as concepeses psicanaliticas ampliaram a nogdo relacional, ao defender que ela é permeada por fendmenos tais como a relacdo psicdlogo-paciente, as relages transferenciais ¢ contratransferenciais, os mecanismos de introjecdo, projecdo e identificagéo (CALIL; ARRUDA, 2004). £ nesse contexto cientifico, que busca a compreensao da pessoa, dos fendmenos que ela vivencia e requer uma apreensio particular e mais profunda do individuo, que situamos alguns estudos qualita- tivos com 0 Procedimento de Desenhos-Estérias. 55 Mara ia Soares Marto» Gra Mara Flora Monzonl Pres» Cay A 8.9 Souza 3.2 O ProceDIMENTO DE DESENHOS-ESTORIAS E A ANALISE QUALITATIVA Desvendar o funcionamento emocional é uma tarefa que requer competéncia do psicélogo e adesao do paciente. Por- tanto, trata-se de um exercicio com envolvimento de ambos. No estudo clinico-qualitativo, Trina (1997) recomenda a uutilizago de desenhos livres, Procedimento de Desenhos- -Estorias, jogo de rabiscos e outros recursos que facilitem a livre expressdo do paciente. O Procedimento de Desenhos-Estérias foi concebido para a apreensao da dindmica emocional de forma ampla e profunda, com o objetivo de expressar a liberdade associativa, a criatividade e a espontaneidade do individuo. As produgées grfico-expressivas so pass{veis de interpretagdo por um tipo de anélise denominada “livre inspecéo do material”, a qual contempla o conjunto produzido como se fosse uma unidade ‘nica e singular que, em sintonia com 0 jeito de ser do indivi- duo, retrata seu particular mundo interno (TRINCA, 1997). ‘A riqueza da livre inspegao reside na amplitude dada a compreenséo global da dinémica emocional, além de favo- recer que alguns aspectos essenciais sejam identificados na elucidacao das dificuldades (queixas expressas, por exemplo) causadoras de sofrimentos e impedimentos. Desse modo, a compreensao dos contetidos emocionais deveré elucidar as angustias, os conflitos, as fantasias inconscientes, 0 jeito como a pessoa lida com a realidade e os recursos emocionais de que dispée. Busca-se compreender e interpretar os sintomas em consonancia com outros elementos obtidos nas entrevistas e na historia de vida. Pretende-se, para além das queixas, apreender os signifieados dos problemas retratados e 0 manejo do individuo em relagdo a estes. A profundidade e a abrangéncia dos contetidos emocionais revelados dependem de o psicélogo ter familiaridade com o D-E, ter sensibilidade, 56 Pecans de senor pemsee ud experiéncia clinica e conhecimentos tedricos. Igualmente, sao indispensdveis 0 pensamento clinico e 0 julgamento clinico, como condigées essenciais para a elucidacdo dos sentidos e significados das queixas, dimensionando os sofrimentos do individuo (TRINCA, 1984) Apresentaremos, a seguir, alguns trabalhos que se valeram do Procedimento de Desenhos-Hstérias sob a modalidade de anélise qualitativa. 3.2.1 D-E no judiciario Comegaremos com Alves (2001, 2005), que investigou os efeitos da internago, como medida socioeducativa, em adolescentes privados de liberdade. Participaram desse estudo trés jovens do sexo masculino de 14, 15 17 anos de idade, considerados primérios. A autora recorreu ao D-E para a compreenséo da dinamica emocional desses jovens e dos efeitos da institucionalizagao em suas vidas. O D-E foi utilizado em dois momentos: um, no infcio dos trabalhos e, outro, reaplicado depois de seis meses. A interpretacéo dos dados revelou que os jovens se defendem de forma mantaca e com desconsideragao ao outro, Sentimentos de onipoténcia e baixa autoestima foram expressos. Por meio do D-E, pode-se compreender a importancia atribuida aos vinculos @ as relagdes dentro da instituigo. Esse estudo demonstra que o D-E possibilita a abordagem da vida mental desses jovens, reconhece a anguistia focal relacionada a condig&o de internaeao eo aspecto relacional com a cultura institucional. A constatagao dos prejuizos decorrentes da internagéo pode ser de grande utilidade para subsidiar as politicas piiblicas que contemplam formas de readaptacao social, levando em consideracdo as possibilidades de o jovem infrator se inserir socialmente, Assim, 0 D-E mostra sua abrangéncia para a7 Ma ied Soares Mando Cita Mi Flamena Monson Pets» Cut A 5.8 de Sours explorar e apreender a vida emocional e detectar a influéncia do ambiente no incremento de problemas sociais. A investigacdo clinica da personalidade de adolescentes homicidas foi realizada por Mézzaro (1984). Nesse trabalho, © D-B foi utilizado como recurso clinico em adolescentes homicidas. A interpretacéo dos dados sugere cue os ado- lescentes homicidas apresentam um reclamo generalizado de satisfacao das necessidades primitivas de afeto. Essa dificuldade se relaciona a urgéncia da introjegac de objetos bons e amorosos. A auséncia de objetos bons e as dificuldades de os adolescentes realizarem um papel construtivo- para um desenvolvimento emocional sadio ~ criam situagées de intenso conflito. Os recursos do ego parecem ser deficientes para fazer face as situacées conflitivas relacionadas & vida instintiva. H4 um temor inconsciente de que possam prevalecer as forcas destrutivas. A vivéncia inconsciente de poderosas ansiedades e os sentimentos de culpa decorrem da presenca de um superego com amplas caracteristicas punitivas. O material gréfico- -expressivo revela, com relativa frequéncia, um fenémeno relacionado a natureza do estado mental durante a realizacao do ato homicida: é um momento em que as possibilidades de controle dos impulsos destrutivos desaparecem e estes inva- dem a vida consciente de forma avassaladora. Os resultados indicam que 0 D-E, usado como um recurso no diagnéstico psicolégico de sujeitos homicidas, é uma técnica bem-aceita pelos sujeitos, mostrando as vantagens de ser bastante esti- mulante e mobilizadora, no sentido de vencer as resisténcias conscientes e inconscientes. Sugere-se que o D-E seja usado como técnica inicial no processo psicodiagnéstico, pois pode fornecer hipdteses tteis a serem posteriormente averiguadas, além de atuar como facilitador de todo o processc. Um interessante estudo, realizado por Vecina e colabora- dores (2002), propés refiexdes sobre a configuragéo e o modo de funcionamento da sociedade atual. Eles langaram mao do 58 Poatmern Certs sb: ere abs D-E com 0 objetivo de compreender as condigdes emocionais de 127 criancas e adolescentes, com idades entre 7 14 anos, atendidos em um dos Centros de Juventude (CJ) da cidade de Sao Paulo, tendo como tema central a violéncia. A interpretagéo dos dados permitiu reconhecer a formagao da identidade, a autoimagem desses jovens, a imagem do mundo ame os cerca @ a presenea de tracos de violéncia. Constatou-se que eles tendem a reagir com negagio, idealizagao e autoani- quilamento. As meninas denotam maior sofrimento (violéncia sexual e psicolégica); entretanto, apresentam maior iniciativa para enfrentar a situacdo. Os meninos sentem-se solitrios e rejeitados (por abandono e negligéncia doméstica), e os meios de enfrentamento ocorrem pela destruicao e transgresséo ou, em alguns casos, pela submissao. Verificou-se que eles desa- creditam as leis e as regras sociais. Percebem 0 mundo como carente, pouco acolhedor e ameacador, gerando dor, tristeza e opressio, Retrataram medo, necessidade de manutencéo do segredo, sentimentos de ameacas e de aprisionamento. Os autores conclufram que o ambiente hostil, em que o siléncio e a impoténcia imperam, interfere na formacao da identi- dade, mantendo 0 ciclo perverso pelo ndo falar ou pelo ndo reconhecimento da violéncia sofrida. O D-E foi salutar para a compreenséo da dinamica emocional, elucidando diferencas nas vivéncias de meninos e de meninas. 3.2.2 D-E nos abrigos No contexto institucional, os procedimentos devem ser escolhidos por sua abrangéncia, facilidade de aceitaciio e baixo custo. Assim, O D-E oferece aos psiedlogos boas condicées de uso, como veremos. Le6ncio (2002) retratou vivéncias emocionais de eriangas com idades entre 5 a 12 anos, que se encontravam recém- 59 Mora ed Sore Mart Cosine Maria Foros Moaar Press «ny A 8.9 8 Souza -abrigadas. A autora realizou estudos de casos com o emprego do D-E. Os dados foram interpretados sob a perspectiva psicanalitica, Os resultados apontaram um contexto social deficitario, no qual esto inseridas as criangas e suas familias. O abrigamento foi percebido como uma situagao que inten sificou as dificuldades emocionais dessas erianeas, porque exacerbou suas angistias pela real separacdo da familia e de tudo 0 que thes era familiar. Foi constatado, ainda, que © abrigamento tem o significado de puniedo, decorrente de “maus comportamentos”, para muitas crianeas, inerementan- do seu sofrimento. O uso do D-E facilitou o estabelecimento de confianga entre as criancas e a psicéloga. Os vinculos confidveis permitiram comunicar vivéncias e necessidades de se relacionar. A autora afirma que, apesar dos problemas emocionais decorrentes da enorme privacao ambiental e da situagdo de abrigamento, elas manifestaram forea, energia e capacidade de amar, denotando recursos para lidar com adversidades. Constatou-se que algumas familias sao muito doentes emocionalmente e necessitam de tratamento psico- l6gico urgente para recuperar suas condigées de cuidar dos filhos, Outras carecem de ajuda econémica. Nesse estudo, fica evidente a contribuigéo do D-E e da anélise qualitativa para a compreensdo dos aspectos emocionais globais, além do destaque dado ao contexto social em que as familias se inserem, Os resultados desse estudo subsidiaram programas de atendimento as criancas e suas familias. Salientamos a riqueza do D-E na apreensio da vida emocional, elucidando ainda os aspectos sociais implicados, além da relevancia no aleance das populacées carentes. Diante dos resultados encontrados sobre a qualificacdo do D-E como um recurso de acesso ao mundo emocional, Leéncio e colaboradores (2003; 2004a; 2004; 2005a; 2005b) prossegui- ram os estudos com as criancas abrigadas. O D-E mostrou-se novamente um recurso promissor para descrever as vivéncias 60 Pcsinra de Decoics Stas peut quatanas emocionais e o sofrimento psiquico dessas criancas, sendo eficaz tanto para as comunicacdes emocionais nos processos psicoterapéuticos quanto para verificar a sua evolucao. Em especial, o D-E foi utilizado por Careta e Mota (2005) para compreender as vivéneias emocionais das criancas abrigadas. Careta (2006) realizou estudos com o intuito de conhecer as vivéncias emocionais de gémeos abrigados no primeiro ano de vida. O estudo de caso relata a experiéncia de dois irmaos gémeos, um separado de sua mae ao nascer e, outro, aos 10 meses de idade. O D-E revelou o foco das angus- tias emergentes de ambos e a maneira peculiar de cada um se situar perante as angiistias. A crianga abrigada mais cedo demonstrou maior fragilidade, conquistando a atencéo dos cuidadores, enquanto a crianca que permaneceu mais tempo no lar se evadia das angistias e reagia com agressividade. A autora concluiu pela necessidade da oferta de cuidados psicolégicos aos abrigos, a fim de promover o desenvolvimento emocional das criancas abrigadas, e pela utilidade do D-E nesse contexto. Careta e Motta (2007) efetuaram o diagnéstico precoce das criangas abrigadas, salientando a importéncia do D-E nas intervencées preventivas. Ainda, com 0 propésito de compreender a depressio em adolescentes abrigados, Tafner e colaboradores (2010) utilizaram o D-E, que retratou a dinaémica emocional dos participantes, mostrando-se titil para essa situacdo. 3.2.3 D-E no contexto hospitalar ambiente hospitalar carece de procedimentos psicol6- gicos, especialmente de recursos economicamente acessiveis que em poucos encontros apreendam a dinamica emocional e sejam aceitos pela maioria dos individuos, revelando as varias facetas de sua dindmica emocional. Pretendemos relatar 6 Ma ada Sars Mato «isn are Plans Maran Pate »Clacn A. Re Souza alguns estudos nos quais o D-E pés em evidéncia as angistias e alguns aspectos emocionais relacionados a condicéo de doenga organica. Assim, Flores (1984) procurou verificar a acequagéo do D-E para a apreensio de contetidos emocionais de 30 criancas leucémicas, terminais e hospitalizadas, de ambos cs sexos, com idades variando entre 3 e 10 anos. Pela material produzido no D-E, obteve-se acesso as emogées das criancas diante da morte, as angiistias de separagao, bem como de rejeicéo. As criancas demonstraram haver percepeao do perigo de morte iminente, ainda que nada lhes tivesse sido ditc a respeito. Pelo fato de pensar que véo morrer, sentem-se rejeitadas, abandonadas e deixadas sozinhas. Mantém a ideia de que a morte consequéncia da rejeictio e do abandono, ocorrendo como um castigo, porque elas se sentem més. Coneluiu-se pela utilidade do D-E na apreensdo dos contetidos emocionais das criancas terminais hospitalizadas. Costa e colaboradores (2005) também quiseram compre- ender as vivéncias emocionais de criangas hospitalizadas, utilizando como recurso o D-E. Objetivaram oferecer subsidios as familias e a equipe de enfermagem para o desenvolvimento de novas préticas de cuidados com as criancas. Costa, Mom- belli e Marcon (2009) pesquisaram a natureza dc sofrimento psiquico da mae que acompanha seu filho ao alojamento pedidtrico, em hospital. 0 uso do D-E revelou que as maes sentem angustia, medo, preocupacdo, impoténcia e tristeza, merecendo atencao dos servicos de psicologia. Cousinho (1999) estudou a percepgdo da crianca hospitalizada, tendo sido o D-E um recurso muito itil. Com 0 objetivo de elucidar a stica da crianga com doenga renal grave, Pereira (1999) realizou estudos com 0 D-E. As conclusdes apontam a necessidade de modificagdes nos cuidados prestados pela enfermagem pedidtriea, transformando-os em atendimentos menos desagradaveis. a2 outa go Cesathos str pens uatves Com o intuito de verificar se hé diferencas no D-E de sujeitos esquizofrénicos hospitalizados e de individuos nao es- quizofrénicos, Mestriner (1982, 1986) realizou uma pesquisa em que 40 participantes eram esquizofrénicos hospitalizados e 40, sem diagnéstico de esquizofrenia (normais). As 80 pro- dugées gréfico-expressivas do D-E facilitaram a identificacao dos pacientes esquizofrénieos © néo esquizofrénicos, pondo em relevo algumas caracteristicas da esquizofrenia. Amesma autora (MESTRINER, 1989) recorreu ao D-E, pesquisando um grupo de criancas asméticas, para delimitar os psicodina- mismos dessas criancas. Foram estudados 60 sujeitos entre 5 e 10 anos, sendo 30 criangas asméticas moderadas e graves e 30 sem a manifestagéo da doenca. A anélise permitiu que se levantasse a hipétese de que a crise asmatica ocorre quando a carga impulsiva e ansiosa se torna muito intensa. Esses dois estudos demonstraram que o D-E pode ser estendido aos adultos, aos esquizofrénicos e as criancas asméticas. AV’Osta (1984) teve interesse em verificar de que maneira os pacientes diagnosticados com psicose manfaco-depressiva respondiam ao D-E. A amostra foi composta por dois grupos, com 80 mulheres em cada um. O grupo I continha mulheres com diagnéstico de psicose maniaco-depressiva, enquanto no grupo II as mulheres néo apresentavam a doenca. As interpretagées do D-E foram feitas por trés psicélogos com grande experiéncia clinica. Embora o estudo tenha revelado que o D-E diferencia os individuos com psicose manfaco- -depressiva dos demais, o autor sugeriu novos estudos para essa finalidade. Mercadante (1993), recorrendo ao D-E, procurou com- preender o impacto psicolégico da doenga hematolégica e do transplante da medula éssea como terapéutica de pacientes atendidos em ambulatério de pré-transplantes de medula 6ssea, Os dados revelaram que esses pacientes apresentavam desconhecimento da doenea e das possibilidades de tratamen- 6 ara eh Soars Mr Cisne Mara lemons None Press = CuinyA SR de Seize to, como um mecanismo de autoprote¢do. Foram observados muitos individuos com ansiedade, angistia e depressio. Sarti e Loureiro (1996) realizaram estudos de caso, por meio do D-E, para compreender as manifestagées afetivas de criancas asmaticas e de suas maes. Esse estudo revelou que as criancas demonstraram intensa dependéncia, sentimentos de ameaca e dificuldades de criar e fantasiar. Em relacéo as mies, observaram-se vivéncias de insatisfacdo e ambivaléncias & propria capacidade de provisdo. As autoras coneluiram que os dados obtidos sdo fundamentais para ajudar as criancas e suas mées, considerando-se que estas estéo envolvidas na rotina didria dos cuidados especiais para com seus filhos. Souza (2001) buscou compreender por intermédio do D-E a dinémica psiquiea de homens com idades entre 21 © 42 anos, com diagnéstico de esquizofrenia. O D-E foi interpre- tado segundo o referencial freudiano dos sonhos, proposto por Magliavacea (1987). Os resultados apontaram que os pacientes expressaram suas experiéncias, seu sofrimento, seus desejos e os fatos de sua vida. Outro dado interessante desse estudo é que a maioria dos sujeitos teve consciéncia de serem esquizofrénicos. A autora conchuiu que o D-E conduz ao aprofundamento do psicodinamismo de individuos com esquizofrenia e pode ser interpretado em conformidade com a teoria dos sonhos. Esse estudo ilustra a importancia da compreenséo do panorama emocional do individuo, pois 0 profissional tem acesso aos meandros dos aspectos patologicos endo patolégicos que compoem a vida emocional da pessoa. Tlustra a possibilidade da investigagdo em pessoas diagnos- ticadas com esquizofrenia e como estas se relacionam nao s6 com a doenca, como com a parte saudavel da mente. Outro estudo relevante pontua a importancia do D-E para aapreensao de contetidos emocionais de eriancas que aguar- davam cirurgia eletiva de porte médio. A. M. T. Trinea, (1987) lancou mao do D-E em um estudo com 15 crianeas de 7a 11 a Prescnena de Osentoe cai pss uaiaas anos de idade, para compreender as vivéncias emocionais des- sas criangas. O D-E revelou contetidos emocionais reativados pela situacao pré-cirtirgica, focalizou angistias primitivas e intensificacdo de mecanismos defensivos primarios e também indicou a mobilizagéo de forgas vitais da personalidade. Pelo conhecimento dessas vivéncias emocionais, foi possivel sugerir a criagao de servicos de psicologia nos centros cirirgicos dos hospitais, com o objetivo de efetivar ajuda as criancas, orientar ealiviar as angastias dos pais. Ressalta-se a utilidade do D-E para a compreensdo de angtistias emergentes na pré-cirurgia infantil e na elaboragdo de medidas interventivas. Com base nos resultados obtidos, a autora realizou novo estudo (2002; 2003) com intervencéo terapéutica breve em criancas na situagao pré-cirirgica, Bla encontrou evidéncias de ajuda tera- péutica a essas criancas por meio do D-E, Hasunuma (2008), sob a orientacdo de Ana Maria Trinea, procurou conhecer ¢ compreender por meio dessa técnica o cardter simbélico do adoecimento psicossomatico. Em outro estudo, as vivéncias de criancas hospitalizadas também foram pesquisadas por Quintana e colaboradores (2007). O D-E mostrou que as criangas sentem o hospital como um lugar triste, mas quando héo brincar, torna-se agradavel. Identificam os procedimentos hospitalares como dolorosos, apesar de terem conhecimento de seus beneficios para a superagio da doenca. ‘As relagées interpessoais da crianga com cancer em fase terminal conduziram os estudos de Perina (1992). Pelo D-E, foi possfvel verificar os dinamismos emocionais relativos as ameagas de morte sentidas por essas criancas. Constatou-se que as relagées interpessoais so pautadas por dependéncia e por desejo de restabelecer o vinculo simbistico com a mae. A raiva ea culpa pela condigao de doente terminal sdo projetadas na equipe de satide e nos familiares. O D-E, utilizado por Valle (2003) em um jovem com depressao, permitiu elucidar sentimentos ¢ fantasias de suicidio, bem como atitudes dat 65

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