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CONCLUSKO Os Dois Sentimentos da Infancia Na sociedade medieval, que tomamos como ponto de partida, 0 sentimento da infincia ndo existia - 0 que ndo quer dizer que as criangas fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sen- timento da infancia néo significa o mesmo que afeigio pelas criangas: ‘corresponde & consciéncia da particularidade infantil, essa particul ridade que distingue essencialmente a crianga do adulto, mesmo jo- vem. Essa consciéncia ndo existia, Por essa tazo, assim que a crian- nclicdes de viver sem a slicitude constante de tua mae ou guia mais destes. Essa sociedade de adultos hoje em dia muitas vezes ‘Ros parece pueril: sem diivida, por uma questo de idade mental, mas também por sua questdo de idade fisica, pois ela era em parte com- Posta de criancas e de jovens de pouca idade. A lingua no atribula & Palavra enfant o sentido do restrito que Ihe atribuimos hoje: em fran- és, dizia-se enfant como hoje se diz gars na linguagem corrente. Essa indeterminagdo da idade se estendia a toda a atividade social: a0s jo- 205 ¢ brincadeiras, as profissdes, as armas. Nao existem representa- ‘G6es coletivas onde as criangas pequenas ¢ grandes nio tenham seu ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e alo se distin 05 DOIS SENTIMENTOS DA INFANCIA, 137 lugar, amontoadas num cacho pendente do pescogo das mulheres ', ido num canto, desempenhando seu papel numa festa tradicio nal, trabalhando como aprendizes num atelig, ou servindo como pas jens de um cavaleiro. A crianga muito pequenina, demasiado frégil ainda para se mis- turar d vida dos adultos, “ndo contava”: essa expressio de Moliére comprova a persisténcia no século XVII de uma mentalidade muito antiga. O Argan de Le Malade imaginaire tinha duas filhas, uma em idade de casar ea outra,a pequena Louison, mal comesando a falare ‘andar. Argan ameagava pdr a filha mais velha num convento, para desencorajar seus amores. Seu irmao Ihe diz: “De onde tirastes a idéia, meu irmao, vés que possuis tantos bens etendes apenas uma f- |ha = pots ndo conto a pequena ~ de mandar a menina para um conven to" A pequena no contava porque podia desaparecer. “Perdi dois ou trés filhos pequenos, ndo sem tristeza, mas sem desespero”, reco- nhece Montaigne ’. Assim que a crianga superava esse period de alto nivel de mortalidade, em que sua sobrevivencia era improvivel, ela se confundia com os adultos. As palavras de Montaigne ¢ Moliére comprovam a permanéncia dessa atitude arcaica com relagdo a infancia, Era uma sobrevivencia tenaz, porém ameagada. Jé desde o século XIV, uma tendéncia do gosto procurava exprimir na arte, na iconografia e na religido (no culto dos mortos) a personalidade que se admitia existir nas criancas, €0 sentido pottico ¢ familiar que se atribuia & sua particularidade, Acompanhamos a evolugdo do putto, do retrato da crianga, até mes- mo da crianga morta em pequena. Essa evolugio terminou por dar & crianea, & criancinha pequena ~ a0 menos onde esse sentimento aflo- fava, ou seja, nas camadas superiores da sociedade dos séculos XVI XVII ~ um traje especial que a distinguia dos adultos. Essa especiali- zagdo do traje das criangas, ¢ sobretudo dos meninos pequenos, ‘Tarn Sociedade em-que as formas exteriofes ¢ 0 taje ena uma importéncia muito grande, é uma prova da mudanca ocorrida na ati- {ude com relacio ds countas: cle contarun mule pet do que 0 ‘imaginava 0 irmao do Malade imaginaire. De fato, nessa pega que parece ser to severa para com as criancinhas quanto certas expres- sées de La Fontaine, hd uma conversa entre Argan ea pequena Loui- 1 P. Michault, Doctrinal d temps présent ed. Th. Walton, 1931p. 119: Pus wey une Jenme grausse.// Portan deus enfants en sa trousse”. Pintura de Van Laer (1592 1612) reprodusida em Berndt. nt 468 2 Le Melade imaginaire, ato Ill, cena 1, 3 Montaigne, Essats, (8. 158 HISTORIA SOCIAL DA CRIANCA £ DA FAMILIA son: “Olha para mim, sim? ~ Que é, papai? - Aqui. - 0 qué? - Nao tens nada a me dizer? - Se quiserdes, eu vos contarei, para distrair- vos, a historia da Pele de Asno, ou entio a fabula do Corvo e da Ra- psa, que aprendi hd pouco tempo”. Um novo sentimento da infén- cia havia surgido, em que a crianga, por sua ingenuidade, gentileza graca, se tornava uma fonte de distragio e de relaxamento para o adulto, um sentimento que poderiamos chamar de “paparicagdo” Originariamente, esse sentimento pertencera as mulheres, encarrega- das de cuidar das eriancas ~ maes ou amas. Na edigdo do século XVI do Grand Propriétaire de toutes choses, lemos a propésito da figura da.ama ‘: “A ama se alegra quando a crianca fica alegre, esente pena da crianga quando esta fica doente; levanta-a quando cai, enfaixa quando se agita e a limpa quando se suja”. Ela educa a crianga “ea ensina a falar, pronunciando as palavras como se fosse tatibitate, para ensind-la’ melhor e mais depressa.. ela carrega a crianca nos ‘bracos, nos ombros ou no colo, para acalmé-la quando chora; mast ga carne para a crianga quando esta ainda ndo tem dentes, para f zé-la engolir sem perigo e com proveito; nina a crianga para fazé-la dormir, e enfaixa seus membros para que nio fique com nenhuma sidez no corpo, ¢ a banha e a unta para nutrir sua pele...” Thomas More detém-se longamente nas imagens da primeira infancia, do me- nino que é enviado a escola por sua mae: “Quando o menino néo se levantava a tempo, demorando-se na cama, ¢ quando, jé de pé, ele ‘chorava porque estava atrasado, sabendo que Ihe bateriam na escola, sua mae Ihe dizia que isso s6 acontecia nos primeiros dias, que ele teria tempo de chegar na hora: ~ Vai, bom filho, juro-te que eu mes- ma ja preveni teu mestre; toma teu pio com manteiga, pois nao serds surrado.” E assim ela o enviava a escola, consolado o suficiente para nao cair em prantos ante a idéia de deixé-Ia em casa. Mas ela ndo to- cava no fundo da questio e a crianga atrasada seria realmente surra- da quando ch a escola’, __TAmaneira de ser das criancas deve ter sempre dora as mies ¢ as amas, mas esse sentimento pertencia ao vasto| dominio dos sentimentos nao expressos{De agoraem diante, porém, ‘as pessoas nao Resitariam mais em admitir o prazer provocado pelas maneiras das criancas pequenas, 0 prazer que sentiam em “paparicd- las”. M™ de Sévigné confessa, nio sem uma certa saya longo tempo se distraindo com sua netink ‘ria da descoberta das Indias por Crist6vio Colombo, que me 4 Le Grond Propritiaire de toutes choses, adusido para o francés por J. Carbichon, ISS. 5 Citado por Jarman, Landmarks i the History of Education, Londres, 1951. OS DOIS SENTIMENTOS DA INFANCIA 159 verte imensamente; mas vossa filha me distrai ainda mais. Eu aamo muito... Ela acaricia vosso retrato ¢ 0 paparica de um jeito tao engr gado que tenho de correr a beijé-la. *". “Ha uma hora que me dis {raio com vossa filha, ela é encantadora.” “Mandei cortar seus cabe- los. Ela agora usa um penteado solto. Esse penteado foi feito para la, Sua tez, seu colo e seu corpinho sio admirdveis. Ela faz cem gra~ cinhas, fala, faz carinho, faz 0 sinal da cruz, pede desculpas, faz reve- réncia, beija a mao, sacode os ombros, danca, agrada, segura 0 quei- xo: enfim, ela é linda em tudo que faz. Divirto-me com ela horas a fio". E, como se temesse alguma infeccdo, acrescenta com urna le- viandade que nos surpreende, pois para nds a morte de uma crianga é, lum assunto grave com 0 qual nio se brinca: “Nao quero que ¢ssa| coisinha morra™. Isso se explica, no entanto, pelo fato de que esse! rimeiro sentimento da infancia se combinava ~ como vimos em Mo ligre- com uma certa indiferenga, ou, melhor ainda, com a indiferen— a tradicional. A mesma MM de Sévigné descreve 0 luto de uma mie da seguinte maneira: “M™ de Coetquen acabara de receber a noticia da morte de sua filhinha; ela desmaiou. Ficou muito afta e disse que jamais teria outra tdo bonita”. Mas talvez M™ de Sévigné ‘chasse que essa mae ndo tinha muito coragdo, pois acrescenta: “Mas seu marido ficou inconsoldvel Esse sentimento da infancia pode ser ainda melhor percebido através das teagdes criticas que provocou no fim do século XVI € sobretuido no século XVII. Algumas pessoas rabugentas considera ram insuportivel a atengdo que se dispensava entdo as eriangas: sen- timento novo também, como que 0 negativo do sentimento da infan- cia a que chamamos “paparicacio”. Essa irritagdo ¢ a base da hosti- Tidade de Montaigne: "Nao posso conceber essa paixio que faz com que as pessoas beijem as criancas recém-nascidas, que nao tém ainda em movimento na alma, nem forma reconhecivel no corpe pela qual se possam tomar amaveis, e nunca permiti de boa vontade que elas fossem alimentadas na minha frente”. Ele no admite a idia de se amar as criangas “como passatempo, como se fossem macscos”, se achar gruca em “seus sapateados, brincadeiras e bobagens pueris™. E que, em torno dele, as pessoas se ocupavam demais com as ccriangas *. ‘Um outro testemunho desse estado, de espirito seria dado um sé- ‘culo mais tarde por Coulanges, 0 primo'de M™ de Sévigné’. A ma- 6 Moe de Sévigné, Leures Ide abril de 1672 + Mme de Sevigne. Leiner 19deagosto de 1671. & Montaigne. Essats. I. 8 9 Coulanges. Chansons choses, 1694 164 HISTORIA SOCIAL DA CRIANGA EDA FAMILIA listas haviam-se tornado sensiveis ao fendmeno outrora neglicencia- do da infincia, mas recusavam-se a considerar as criangas como brinquedos encantadores, pois viam nelas frigeis criaturas de Deus que era preciso ao mesmo tempo preservar e disciplinar. Esse senti- ‘mento, por sua vez, passou para a vida familiar. No século XVIII, encontramos na familia esses dois elementos antigos associados a um elemento novo: a preocupagio com a higie- ne ea saide fisica, O cuidado com o corpo néo era desconhecido dos ‘moralistas ¢ dos educadores do século XVII. Tratava-se dos doentes ‘com dedicagio (e também com grandes precaugées para desmascarar os simuladores), mas ndo havia interesse pelo corpo dos que goza- vam de boa saiide, a ndo ser com um objetivo moral: um corpo mal ‘enrijecido inclinava & moleza, a preguica, 4 concupiscéncia, a todos os. ‘A correspondéncia do General de Martange com sua mulher " ‘nos da uma idéia das preocupagées intimas de uma familia, cerca de uum século depois de M™* de Sévigné. Martange nasceu em 1722 e ‘casou-se em 1754. Mais adiante teremos a oportunidade de voltar a cesses textos. Martange se preocupava com tudo o que dissesse respei- to 4 vida de seus filhos, desde a “paparicagio” até a educagdo. Havia também uma grande preocupago com sua sate e até mesmo sua hi- giene. Tudo o que se referia as criancas ¢ & familia tornara-se um as- sunto sério e digno de atencdo. Nao apenas o futuro da crianga, mas também sua simples presenca ¢ existéncia eram dignas de preocup io ~ a crianga havia assumido um lugar central dentro da familia. 17 Correspondance indaive du général de Martange, 15761782, ed. Bréard, 1898. — 2. A Vida Escolastica 1 Jovens e Velhos Escolares da Idade Média' A segunda parte deste livro, intitulada “A vida escolistica™, & consagrada aos aspectos da histéria da educagdo que revelam 0 pro- ‘gresso do sentimento da infancia na mentalidade comum: como ae ‘cola eo colégio que, na Idade Média, eram reservados a um pequeno niimero de clérigos © misturavam as diferentes idades dentro de um espirito de liberdade de costumes, se tornaram no inicio dos tempos modemos um meio de isolar cada vez mais as criangas durante um periodo de formagao tanto moral como intelectual, de adestré-las, fracas a uma disciplina mais autoritéria,e, desse modo. separi-las da Sociedade dos adultos, Essa evoluedo do século XV ao XVIII ndo se deu sem resisténcias. Os tragos comuns da Idade Média persistiram |UNa presente etic foram consevadas apenas as cnclusies de cada capitulo. © ap tle intitulado “Do externato ao internato” foi inteiramente suprimigo.

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