You are on page 1of 90
Copyright © Fransitco Baa Pic, 2004 Todos of ress de bia errs 4 EDITORA FTD SA, Mai Ru Ru arb 16 (el Vine) Sto Plo — SP ‘CEP 0126010 Tal (Out) 3598-4000 Cit eal STAD — CED di Cis Be 0139970 cect epoca smack projetov@ed.com be Grd al -Celisy Ales asym Daley Gesain hae sin Lake Cag pedro Adin chink Maria Chen Baris Fests awa Grace Ao Lopes Clee Pye tho (apres) Ore Gree header NeandieCa Dremel asd Mies Mail Ma Cor Digidene Mi Laue Aca ional Pies hone dine Finanga0 Ananda Pan Marmcin Daniel Ri hl ite ame, Georgie Cats Rizzi Regiauldo Ssares Damascens Tic cia oslo: lp « [Nelo Ete, Calman Els. Pai nbs Dados imermicioess ele Catalogo ma Publica (CIP) {Clanata Bevin do Line, SP; Brsil) Pest Fanci Raw ‘taps ir flew Da rags «utp Francnen Rae into atege Alerandre Cools — T-Sh Paes PTR 2008. — (Gol panies eas Clsios mie) ‘Til orga: Lape mi 1. iterator nfangowjavenlL Dapus, Mean, 1802-1870. TL Caan, Aland, Tiel 1. Sse 46813 comes Tndies pave cailogy sstrmation 1 Literate infamojureni 028.5 2 Literatura jvenil O28 Bastidores da histéria Apresentacao FRANCISCO BAITHAR PEIXOTO QUANTO voce imagina que possa valer uma tulipa? Como flor tio fragil pode influenciar o destino de pessoas? A tuli- pa, muito apreciada na Europa e em outras partes do mun- do, encontrou na Holanda seu maior centro de cultivo, Em toro desse comércio, houve enorme especulagdo financeira, que trouxe riqueza a alguns ¢ ruina a muitos, ‘A tulipa negra, romance de Alexandre Dumas, conta historia acontecida na Holanda, por volta de 1672, quando elevado prémio em dinheiro foi oferecido ao plantador que conseguis- se produzir uma culipa de cor negra. Muitas tentativas vinham sendo feitas, mas sem resultado. Por essa ocasiiio, forma-se uma rede de intrigas, que comega com o assassinate de dois dirigentes poderosos daquele pais, os irmaos Joao ¢ Cornélio cle Witt, ¢ envolve um grande amigo dos dois, Van Baerle. Van Baerle é um grande botdnico que vive para suas flores fe sequer imagina ser alvo da inveja de um vizinho também ultivador de tulipas: Isaac Boxtel. E por artimanha desse ini inigo que Van Baer ¢ feito prisioneito. No entanto, jé havia conseguido produzir um bulbo da tulipa negra, A questo, f partir dai, € como fazer para que floresgam dentro dos muros da prisio. Como € proprio do romance histérico, neste se cruzam personagens reais e ficticias, acontecimentos reais € outros que foram criados pela imaginagio, De um assassinato bru- tal, 0 romancista extrai uma histéria de amor. A causa do assassinato dos irmaos De Witt tem fundo histérico e esta ligada a disputas pelo poder no pais. A partir desse epis6- dio, Dumas cria um enredo onde se misturam paixdes, édio, inveja, ambigio e vinganga. Em contraponto a esses sentimentos negatives, hd o amor da jovem Rosa por Van Baerle. Filha do carcereiro que mantém © botinico sob guarda, ela, com coragem ¢ lealdade extrema- das, é essencial para que, ao fim, a justiga prepondere. Contra a ambisio ¢ a tirania, surge a flor negra como simbolo da persisténcia que conduz a vitéri O lado romanesco, baseado em suspense e emogio, prende a atencio do leitor ao desenrolar da trama, Ninguém consegue abandonar o livro antes de conhecer 6 desfecho. © aspecto histérico, por sua vez, amplia a compreensio de um periodo politico, mareado por hostilidades entre a Franca de Luis XTV ¢ a Holanda do Principe Guilherme de Orange. Com obras traduzidas no mundo inteiro, Dumas difun- diu elementos da historia ¢ da sociedade francesas. Como ocorre com seus outros livros, este também se caracteriza pela agilidade narrativa e por muita agio. Aventuras e intrigas palacianas movimentam herdis ¢ heroinas destemidos diante de perversos vildes. Se alguém vai mesmo produzir a flor negra tio aguarda- da, e 0 prémio tera algum ganhador, é 0 que se descobre na leitura de A tulipa negra, empolgante romance de Alexandre Dumas, publicado em 1850. carituLo caPtTuLo, CAPITULO. CAPITULO. caPiTuLo. CAPITULO CAPITULO CAPITULO carituLo cariTuLo caPiTuLo caPiTULo. caPiTULo. cariTuLo CAPITULO CAPITULO CAPITULO cariTuLo 10 u 2 16 17 18 Sumario Bastidores da historia (Apresentasio) Francisco Balthar Peixoto Conselhos de pai pra filho O apaixonado por tulipas © édio de um plantador de tulipas © homem feliz conhece a despraca A gratidao de um povo Os dois irmios Van Baerle é preso Uma invasio "Vea Warde va pares A filha do carcereito © testamento de Van Baerle Aesecieio Quase que o bulbo da tulipa é roubado Os pombes de Dordrecht A portinhola da cela Aluna e professor O ptimeito bulbo O namorado de Rosa 1 Is 21 25 27 a7 47 51 63 65 67 7 78 81 a7 CAPITULO CAPITULO cariTuLo CAPITULO cAPITULO. caPiTULO cariTuLo CAPITULO CAPITULO caPiruLo caPiTULO cariTuLo CAPITULO caPEruLo cariruto cariTuLo Mulher e flor que aconteceu nesses oito dias O segundo bulbo © desabrochar O invejoso A tulipa negea mada de dono O presidente Van Systens Um membro da Associagao Horticola O terceiro bulbo Rosa defende Van Baerle A cangio das flotes Van Baerle acerta as contas com Grifo Nio se sabe que castigo Van Baerle vai softer Haarlem Um tiltimo pedido A tulipa ea Rosa Tulipas ¢ traigoes Francisco Balthar Peixoto Quem foi Alextndre Dumas Os ancestrais das hist6rias de amor e aventura (Bate-papo pos-leitura) Laie Antonio Aguiar Conselhos de pai pra filho CAPITULO O SUL da Holanda, ha uma cidade bonita e alepre; Hamada Dordrecht, Numa grande casa'branca, euidadosa- mente tratada, morava um jovem mé- dico muito feliz. Sea nome, Cornelius van Baerle. ‘A casa tinha sido de seu ava e de seu pai, antigos comer- Plantes que sempre ganharam muito dinheito ¢ eram respei- taclos na cidade. ‘Van Baerle era afilhado de Cornélio de Witt, grande amigo de seu pai, o velho Van Baerle. Os irmaos Joao e Cornélio de Witt cram politicos importantes no pais. 7 A TULIPA NEGRA Pouce antes de morrer, o velho Van Baerle aconselhou 6 filho, abragando-o como numa despedida: — Beba, coma e gaste, se vocé de fato deseja viver. Porque viver nao é trabalhar o dia inteiro sentado numa poltrona de couro, num gabinete ou numa loja. Um dia vocé vai morrer ¢, se no tiver a felicidade de ter gerado um filho, seu nome desaparecera ¢ essa minha fortuna, que vem dos antepassa—_ dos, vai cair nas maos de pessoas estranhas, Antes de mais: nada, no imite, de modo algum, seu padrinho, Cornélio de Witt, que se meteu na politica e nos assuntos de governo e, com toda certeza, acabara mal. A morte do senhor Van Baerle deixou o filho muito triste, Ele amava bem mais o pai do que toda aquela riqueza q dai para a frente, passaria a Ihe pertencer. Ficou sozinho ni grande casa da familia. Procurou seguir os conselhos que o pai the dera. J4 30. exercia a profissio de médico e fazia o possivel para gastar 8 dinheiro que agora era todo seu, O padrinho, De Witt, ofereceu-lhe emprego nos servigos’ piiblicos ¢ outros trabalhos em que ele poderia fazer grand carreira, mas Van Baerle no accitou, Para nio desgosté-lo, embarcou num navio a fim de defender a Holanda, que estava em guerra contra ingleses e franceses. Mas, depois de pouco_ tempo, retornou para stia casa em Dordrecht. E agora, com vinte e oito anos de idade, que fazer sozi- nho nessa casa tio grande e luxuosa, e com tanta fortuna? Teria de procurar a felicidade da forma que mais lhe agra dasse. Van Baerle comecou a estudar as plantas e os insetos. asaya borboletas ¢ outros insetos da regio. Espetava-os. com alfinetes ¢ ia guardando-os ¢ colecionando-os em ‘cai- CONSELHOS DE PAI PRA FILHO ‘Avs para melhor examinar os diversos tipos. Depois, passou para ervas e plantas. Nessa €poca, Holanda e Portugal davam um valor espe- ial ao cultivo da tulipa. Van Baerle também gostava bastante sli» tulipas. Por conta disso, procurava estudar as plantas ada vez mais. Cortava suas hastes, examinava os cortes ¢ os slesenhava, Em seguida, deixava que a etva ou a planta secas- se entre folhas de caderno, Infelizmente, porém, para esse trabalho nao era preciso gastar muito dinheiro nem os rendimentos que vinham de ‘ns terras.e bosques, como seu pai tinha recomendado antes tle morrer, Ao contrario, em pouco tempo, ele estava mais Fico ainda do que o pai. 4 eo cavitu.o2 |O apaixonado por tulipas TULIPA, vinda de paises do Oriente, ha muito tempo tinha chegado a Euro- pa. Para os holandeses, € a preferida entreas flores. Ela se desenvolve a partir de bulbos. Cada bulbo é plantado no comeso do més de abril. Em seguida, nasce uma bela flor com a forma de uma taga de vinho, O bulbo pode dividit-se, entdo, em trés outros produzir trés novas flores no ano seguinte. Os holandeses dedicavam-se ao trabalho de encontrar novas cores, pois seus bulbos eram vendidos por muito di- nheiro, ATULIPA NEGRA “Mas ¢ tio grande o ntimero dessas flores que vale a pena estudar, uma por uma, e pinta-las” — pensava Van Baerle. E, com isso, Van Baerle comegou a gastar o dinheiro dos rendimentos ¢ a formar sua colecao. Um dia, ofereceram a ele uma tulipa muito cara. Era uma boa maneira de empregar o dinheiro que tinha herdado de seu pai. Comprou-a. Preparou-se para fazer um corte na haste, Olhou a flor com atengao e, de repente, sentiu dentro de si um prazer diferente. Dai em diante, sua vida mudou. Van Baerle viajou por varios lugares da Holanda, com- ptando bulbos de tulipa, bonitos € muito caros. Pretendia plantar em suas terras as mais belas tulipas da Holanda e, com certeza, do mundo. Nao pensaya em outra coisa. Trazia para seu jarcim as melhores terras, as mais férteis, as mais ricas, Jardineiros experientes trabalhavam nelas e as preparavam para o plantio. Em fins de marco, ele plantou com todo 0 cuidado os primeiros bulbos. Em abril, pequenos rebentos comeraram a brotar, Van Baerle olhou com amor para eles. Logo apareceram hastes finas, pontiagudas como espadas. Em seguida, formou-se uma flor entre duas folhas. Van Baerle cuidava desses rebentos, dessas hastes novas, como se fossem criangas. Nas noites frias, ele os cobria com palha. Nos dias quentes, estendia panos sobre eles para protegé-los do sol. Ags poucos, ficou conhecendo todos os movimentos da luz e das sombras, Sabia medir a forga do vento sobre as hastes. Cagaya os insetos perigosos ¢ passava longas horas observando suas plantas crescerem. ‘© APAIXONADO POR TULIPAS Sem dlivida, ele havia se tornado um verdadeito plantador de tulipas, ‘Todo esse seu trabalho, porém, deu muito bom resultado. Van Baerle conseguiu produzir, entre outras, t18s belas s diferentes. Chamou-as Joana, nome de sua mie, Beerle, nome de seu pai, Comélo de Witt, nome de seu padrinho. Van Baerle era amigo de muita gente e estimado por seus empregados, seus jardineiros e pelos habitantes da cidade, Niio passava por sua cabega que pudesse existir no mundo homem capaz de querer a desgrasa de outro. & CAPITULO 3 O édio de um plantador de tulipas AN BAERLE morava em Dordrecht a0 lado de um vizinho, plantador e filho de plantador de tulipas, chamado Tsaac Boxtel, que nio teve a sorte de ser tio tico como ele. Com grande esforgo € cuidados constantes, Boxtel preparou um pedago de terra pobre de seu jardim para a plantagio de tulipas. Homem de muita experiéneia, conhecia os principais cui- dados que devia ter com as plantas. Sabia os dias, as horas eo momento certo para cobrir os rebentos, assim como avaliava a forga do vento sobre as hastes de suas flores. 16 A TULIPA NEGRA H& muito tempo, suas tulipas eram conhecidas. Tinha conseguido produzir uma nova espécie de tulipa que ficou conhecida na Franca, na Espanha e em Portugal. Quase nao saia de casa. Um dia, no entanto, soube da novidade: seu vizinho Van Bacrle tinha comprado bulbos de tulipa por prego muito alte, Boxtel achou graga e pensou: “Como esse homem é pintor e tem muito dinheiro, quer pintar as tulipas de seu jardim, muito mais do que cultiva-las”. E esqueceu inteiramente Van Baerle. Mas, porta com porta, muro com muro, Boxtel ia ter um rival, talvez, um vencedor, em vez de um simples jardineiro, Além de tudo, seu vizinho era afilhado de Cornélio de Witt, homem de imenso prestigio no pais. De simples preocupagio, passou ater medo. — * Como eta de esperar, Van Baerle, com a inteligencia que possuia, conseguit criar belas tulipas. Produziu espécies novas, cores variadas e formas diferentes. Certa manha, porém, Boxtel notou sombtas novas sobre suas flores, Saiu de casa ¢ olhou para o alto. Bram operarios em cima de um telhado. Van Baerle tinha mandado levantar mais um andar numa construgio que havia em seu jardim. OQ novo andar nao deixava que, ao meio-dia, o sol ihumi- nasse todo o jardim de Boxtel. Tinha ficado menos quente. Além disso, a direcao do vento também tinha mudado. Boxtel nao gostou. Mas o que poderia fazer? Que dizer? A lei di pais dava direito ao senhor Van Baerle de aumentar a casa. No inverno seguinte, porém, Boxtel constatou que 0 vento eta menos fotte em seu jarditn ¢, no comeso do vex 180, verificou que as hastes de suas tulipas estavam mais compridas. Em maio e junho, 0 sol no queimava tao de= 1 pressa suas flores. } O ODIO DE UM PLANTADOR DE TULIPAS Boxtel quase agradeceu a Van Baerle por ter construido uma protegao contra o sol para suas plantas, sem que ele, © beneficiado, precisasse gastar um centavo, Mesmo as- sim, no ficou tranquilo, E dizia para si mesmo: “Por que construir mais um andar? Van Baerle j4 posstii a maior casa de Dordrecht; Tem bastante espago para suas borboletas, ctvas e plantas. Talvez, tenha muitos desenhos e quadros, mas essas coisas no ocupam muito espaco. Um belo dia, uma janela do novo andar da casa de Van Baerle ficou aberta. Boxtel subiu numa arvore do jardim ¢ espiou. Como @ infeliz ficou assustado quando avistou, dos lados da casa do vizinho, ferramentas, armarios, caixas de varios formatos com bulbos bem arrumados, etiquetas, entre outros objetos préprios para plantio. De noite, pds uma escada e, por cima do muro, viu nao s6 algumas tulipas, mas enormes canteiros de terra fértil, revolvida, trabalhada, pronta para ser plantada. Era yerdade: seu vizinho tinha se tornado um plantador. E Boxtel pensou: “Van Baerle é um homem culto, é médico ¢ estudou todas as ervas ¢ todas as plantas. Por isso, deve- i produzir as mais belas tulipas da Holanda e talvez do mundo”. Escondido aerés de uma drvore, Boxtel acompanhava om os olhos cada passo do vizinho com muita raiva e inveja de seus progressos, Mas queria vet stas flores e conhecer todos os cuidados que Van Baerle tinha com elas. Comprou uma luneta. Com ela podia ver 0 crescimento das tulipas. Bram tio lindas que encantavam seus olhos, “Ihas, 20 mesmo tempo, o deixavam cada vez mais louco tle inveja, 8 A TULIPA NEGRA Chegou a pensar em pular o muro de noite, destruir as flores, os bulbos e até o proprio dono, Passara a odiar Van Baerle. Vivia imaginando uma forma de prejudicar as flores do vizinho. Pensou em atirar pedras ou pedagos de pau nos belos canteiros, ao anoitecer. Destruiria assim anos de trabalho. Mas, sendo ele o tinico vizinho de Van Baerle, com certeza seria preso ¢ condenado. Além disso, para um verdadeiro plantador, matar uma tulipa é crime sem perdao. Durante muito tempo, pensou numa maneira de Ihe fa- zer mal. E, finalmente, parecia té-la encontrado, Certa noite, Boxtel amarrou com um fio dois gatos pelas patas traseiras. Em seguida, jogou os bichos do alto do muro, no meio do canteiro principal onde estavam as tulipas mais bonitas do vizinho: a Comélio de Witt; a Brabantina, branca~ -leitosa, ptirpura e vermelha; a Marmérea, de Roterda, cinza, com cintilagdes metilicas, vermelha ¢ encarnada brilhante; a Maravilba, de Haarlem, além da Colontbina escura da Colombina dlara-fosca. Os gatos tentayam escapar, cada um por seu lado, mas 6 fio com que tinham sido atados era muito resistente. Eles se viravam um para o outro, insistiam, tornavam a virar-se, cortiam em circulo ¢, dessa forma, cortavam as hastes das flores e arranhavam os bulbos. Escondido no alto da drvore, Boxtel nada via por causa da escuridio da noite. Mas, pelos gritos desesperados dos dois gatos, imaginava os estragos ¢ se enchia de alegria. Depois de algum tempo, o fio se partiu, e novamente tudo ficou silencioso. Boxtel continuou na arvore, cheio de ddio, esperando impaciente a claridade do dia. O ODIO DE UM PLANTADOR DETULIPAS, Pela manha, Van Baetle apareceu ¢ caminhou direto para os canteiros das tulipas. Estava feliz. De repente, vit a desordem, Suas flores estavam derru- badas, as hastes cortadas, os bulbos sangrando, No entanto, para sua alegria e desespero de Boxtel, ne- nhuma das seis tulipas —a Cornétio de Witt, a Brabantina, a Mar- twdrea, a Maravilha e as duas Colombinas — tinha sido atingida ou quebrada, Embora lamentasse o que havia acontecido, Van Baerle consolava-se porque estava esperando.o pior. Achou que tudo tinha acontecido apenas por uma casual correria de gatos. Ja- mais poderia imaginar a causa verdadeira. Para que stas plantas nao sofressem nenhum outro prejuizo, ele ordenou que um empregado passasse as noites vigiando o jardim. Boxtel escutou-o dar a ordem e ficou aliviado por nao terem desconfiado dele. Ja aguardar outra ocasidio para pre- judicar novamente Van Baetle. Foi nessa época que a Associa¢io Horticola de Haarlem decidiu oferecer um prémio de cem mil florins a quem pro- duzisse a primeira tulipa negra. A flor deveria ser negra como carvo ¢ sem nenhuma mancha de outra cor, resultado que até entao ninguém tinha conseguido. —Tanto faz oferecer cem mil florins como oferecer dois milhdes — era o que diziam as pessoas. ~Ninguém vai con- seguir. Isso € impossivel. Os plantadores de Haarlem acharam boa a ideia do pré- mio, mas no se animaram a gastar dinheiro. — Nem vale a pena tentar — diziam. Van Baerle foi dos poucos que acteditaram na possivel ctiagio e produgo de uma tulipa negra, Comegou logo a 19 ery A TULIPA NEGRA trabalhar, Preparou sementeiras ¢ fez 0 que era necessirio para passar as tulipas do vermelho para o marrom e deste, para o marrom-escuto. A partir do ano seguinte, conseguitt produzir tulipa de cor arroxeada, Boxtel também tentou produzir uma tulipa negra, mas sé chegou a cor marrom-clara. Desanimado, deixou de cuidar de stias flores. Dedicou-se, dat em diante, a espionar com a luncta as atividades do vizinho. Enquanto isso, em seu laboratério, Van Baerle fazia tra- balho mais importante, Cortava, aparava, misturava uma espécie com outra, Ora deixava seus bulbos tomando sol ¢ claridade, ota os mantinha protegidos na sombra. Como o laboratério era todo envidracado, Boxtel facil- mente podia acompanhar o trabalho e as descobertas com o auxilio da luneta. Via 0 vizinho separar os bulbos, regé-los ¢ usar produ- tos para colori-los, Boxtel sabia que nunca seria capaz de fazer trabalho tao cuidadoso. As vezes, mirando Van Baerle na funeta, ele imaginava estar apontando uma arma pata © vizinho. a caritu.os |O homem feliz conhece a desgraga © COMECO do ano de 1672, Cor- J nélio de Witt veio passar alguns meses em Dordrecht, para tratar de assuntos da familia. Certa noite, foi visitar o afilhado, Van Baerle, com quem con- {| versou muito e agradeceu por ter dado seu nome a uma das espécies magnificas de tulipas que havia produzido, Van Baerle mostrou ao padrinho os cémodos da casa. Os criados acompanhavam os dois, levando lanternas para iluminar © local por onde passavam. De repente, o visitance disse em voz baixa: a ‘A TULIPA NEGRA —Meu filho, preciso ficar alguns instantes sozinho com. voc’. Van Baerle respondeu em voz alta: = Senhor, gostaria de conhecer agora meu laboratério, ‘onde deixo scear as tulipas para minhas experitncias? Nunca criado algum havia entrado naquela parte da casa, Por isso, ao escutarem a palavra laboratério, eles se afastaram respeitosamente, Van Baetle pegou a lanterna de um dos criados e De Witt o acompanhou sozinho. Boxtel ja tinha notado a presenga de muitos curiosos na frente da casa do vizinho, Procurou saber 0 que havia e, de- tessa, se instalou na Arvore para espionar, apesar do frio. Com sua luneta, observava tudo do alto. O laboratério onde os dois senhores estavam naquele momento eta 0 mesmo quarto envidragado que Boxtel espionava. De repente, luzes iluminaram paredes e vidragas. Boxtel! reconheceu, ento, © rosto pilido e os cabelos negros e compridos de De Witt, Os dois homens conversavam. De longe, Boxtel tentava entender alguma coisa do que esta- vam dizendo. De Witt titou do bolso um pacote branco, cuidadosamente fechado, e 0 entregou a Van Baerle, que © guardou no armirio onde estavam seus bulbos mais pre~ ciosos. Pelos gestos de ambos, Boxtel achou que deviam ser papéis muito importantes. Se fossem bulbos, Van Baetle, com certeza, teria olhado antes de guardar. De Witt nao cultivava tulipas. Como dirigente politico, sua maior ocupagio eta com homens, essas plantas bem. menos agradéveis de ver e, sobretudo, muito mais dificeis de tratar do que as tulipas. Entao, Boxtel pensou: “De Witt deve tet medo de alguma coisa. Por isso, quer esconder esse pacote, Deve ser algum assunto politico”. © HOMEM FELIZ CONHECE A DESGRAGA E Boxtel tinha razao, porque dentro dele havia cartas do governo francés. De Wite tinha tentado impedir a guerra com a Franga. A paz era possivel, mas o povo holandés queria a guerra. De Witt sabia que essas cartas poderiam ser perigosas queria escondé-las, Por esse motivo, quando as entregou a Van Baerle, fez esta recomendacao: — Nio entregue este pacote a ninguém, a nao ser que a pessoa lhe apresente uma autorizagao assinada por mim. Nao acrescentou mais nada, Nem mesmo falou ao afi- Ihado sobre sua ligagao com o governo francés. Levantou-se. Van Baerle apanhou a lanterna eo local foi ficando escuro, Os dois se encaminharam para a porta de saida, A rua ainda estava cheia de curiosos. CAPITULO S A gratidao de um povo | EMPOS depois, em 20 de agosto de 1672, Haia, capital da Holanda — ci- : f| dade cheia de vida, clara e muito alegre, BUI cleo cliaaltbeciannscnipts laine £97 g0s—estava com as ruas cheias de gente Gra! apressada, ofegante, excitada. Armados com facas, espingardas, pedasos de pau, homens avangavam para a pristo Buycenhoff, a fim de assistir a saida de Cornélio de Witt que ali se encontrava encarcerado. Ele nfo havia concordado em recomesar a guerra contra os franceses. Quiseram obrigé-lo a assinar a nomeagio do Principe Guilherme de Orange, como comandante do exér- 5 6 ATU "A. NEGRA cito. Ele se negou, Quebraram-lhe, entio, os ossos dos pés € das miios, Mas ele ndo mudou a decisio, No meio daquela gente, grande ntimero de pessoas pre- tendia mati-lo quando saisse. —Ele vai embora! Vai escapar de nossas mios! — diziam. alguns para provocar a multidio. —Nio vamos deixar que escapem Cornélio e seu irmio Jodo de Witt, também traidor como ele! Gritavam alto: — Morte! Eles se venderam aos franceses! Vao-se salvar e gastar nosso dinheito na Franga. Nao vamos deixar que saiam da prisio. = Vida longa ao Principe Guilherme de Orange! Mort: para os De Witt! Morte para os franceses! A multidio chegou a prisio Buytenhoff, Parou em fien- te, forcada por soldados comandados pelo oficial Tilly, que gritou para eles: —Tenho ordens de nao deixar ninguém entrat na prisio. — Morte para os De Witt! — continuavam berrando, —Vocés repetem sempre a mesma coisa. Isso € cansativo. Fasam com que 0 Parlamento me dé ordem de deixar que passem, seniio eu atiro. O povo correu a0 Parlamento. & CAPITULO6 Os dois irm4os NQUANTO tudo isso acontecia, Joio de Witt descia de sua carruagem, acom- panhado de um criado, Atravessaram a pé o pequeno patio situado antes da prisio. Ele encontrou o carcereiro que © conhecia e lhe disse: — Bom dia, Grifo’, vim buscar meu irmao, condenado ao exilio, como vocé sabe. Vou levi-lo para fora da cidade. * NT. O nome do carcereiro, no texto original francés, ¢ Gryphus. O autor latinizou © nome proprio, fato comm na lingua holandesa, buscando uma melhor verossi- milhanga. Ao nomear 0 personagem assim, é possivel que quisesse provocar na mente do leitor uma assorias0 com grifo, animal fabuloso que tem corpo e patas traseinas de leio e cabesa, asas © patas dianteiras de dua, 7 A TULIPA NEGRA O carcereiro abriu a porta e deixou que ele entrasse. Logo em seguida, Joao de Witt encontrou uma linda mosa, de dezessete a dezoito anos, que o cumprimentou de forma graciosa e a quem ele disse: — Bem dia-bela Resa, Gomo'vaimeu ini —Senhor Joao — respondeu a filha do carcereiro —, nao é pelo mal que ja Ihe fizeram que eu tenho pena dele, porque isso jA passou. — De que tem pena entio? — perguntou Joao de Witt. =Tenho pena pelo mal que ainda Ihe querem fazer. O senhor nio esta ouvindo gritos? — Estou, sim — disse Jodo de Witt. — Esse povol Nas so Ihe fizemos o bem. Talvez se acalmem quando nos virem. — Nio acredito que se acalmem — disse Rosa baixinho, afastando-se para atender a um sinal que o pai lhe fez. — Acho que vocé tem razio — disse Joao de Witt. Continuando a andar em dirego a cela do irmio, ago- ra, bem mais triste do que quando entrou, Joio de Witt pensou: “Vejam sé. Uma moga, ainda tao jovem, que nunca estudou nem aprendew a ler, com uma s6 palavra, sabe resumir a histéria do mundo melhor que muita gente instrufda”. Cornélio estava deitado na cama de prisioneito. Tinha bracos, pés e maos enfaixados com curativos. Viti 0 imo entrar e olhou para ele, — Meu pobre irmao! = exclamou Joao. —Se vocé esti ai —respondeu o prisioneiro —, entio esta tudo bem. —Vim para levi-lo. Vamos rapido. Vou carregé-lo. = Basta que me ajude a levantar. Eu posso andar. —Minha carruagem esti Id embaixo, por tris dos soldados. Qs DOIS IRMAOS = Que soldados? — indagou preso. — As pessoas de Haia querem nos ver partir. A praga ji esta cheia de gente. ~ Entio, como vocé conseguiu chegar até aqui? Que ba- tulho fazem todas essas pessoas! Por que, afinal de contas, hos querem tanto mal? — E sempre pela mesma razio: nés nao permitimos que cles voltassem a fazer guerra contra a Franga. — Pois é, nao queriamos a guerra, ¢ eles foram derrotados em varias batalhas. Eu nao gosto de guerra... — Principalmente, quando niio se é 0 mais forte. — Era possivel fazer um acordo, Algum dia, Joio, sua correspondéncia com © governo francés provara isso. Ela mostraré também quanto voc® ama seu pais € os servicos que prestou a ele, — Mas, diga-me uma coisa, vocé no queimou minhas cartas? = estranhou Jo3o. —Nijo, eu quis guarda-las para nossos filhos — respondeu oirmio, —Se voct nio as quieimou, entio estamos perdidos — disse v0 de Witt. — Eles nos matarao. E ovelho politico holandés foi até a janela, Viu os solda- dos cada vez mais comprimidos pelo povo. Voltou-se nova- mente para o preso e Ihe perguntou: — O que vocé fez com as cartas? - ae a Van Baerle, meu afilhado. Vocé 0 conhece. E 0 homem mais sereno e moderado da Holanda. Sé pensa nas flores. Ninguém tera a ideia de procurar as cartas na casa dele. ~E um de nossos amigos. Ele também esti perdido. — Perdido? 29 30 A TULIPA NEGRA — Sim. Porque, se for forte, vai nos defender. Se for fraco, deixara que apanhem as cartas, Vamos fugir, meu irmio, Tal- vez, ainda seja possivel. — Sera que eu nao conheso bem meu afilhado? Além disso, nada comentei com ele. Apenas dei-lhe um pacote. Ele nao sabe de nada. — Depressa, entdo! — gritou Joao.— Vamos mandar uma ordem para ele queimar o tal pacote. —E quem a levaré? — Meu criado Craeke. Ele entrou comigo na prisio. Mas agora eu preciso de alguém. Vocé nao tem condigées de descer essa escada, ¢ eu niio vou conseguir carregd-lo sozinho. —Pense bem, Joao, antes de mandar queimar essas cartas. — Antes de tudo, meu corajoso itmio, é preciso que os De Witt, primeira, se salvem, para depois pensar na fama. Se morrermos, quem nos defender? Quem, ao menos, nos tera compreendido? Gritos horrorosos de fiiria, vindos da praga, chegavam até a prisio. —Entendeu agora, Cornélio? ~ Que morram os amigos dos franceses! — Morte aos traidores! ~ gritava a multidao, —E 08 traidores somos nds ~ disse o prisioneiro, levan- tando os ombros. — Sim, somos nés — repetiu Joao de Witt. — Onde esta Craeke? — Deve estat na potta de sua cela. — Diga a ele para entrar. Joao de Witt abriu a porta da cela e disse ao criado de confianga que aguardava do lado de fora: 05 DOIS IRMAOS. — Entre, Craeke, e preste bem atengio ao que Cornélio vai lhe dizer. —Nio, nao! — exclamou Cornélio de Witt. — Infelizmen- te, dizer somente nio basta. Vou ter de escrevet. — Por qué? — estranhou Joo de Witt. ~ Porque Van Baerle nao entregar4 o pacote, nem o quei mara, a no ser com uma ordem escrita por mim. —Mas, met caro, vocé vai conseguir escrever? — pergun- tou Joao. —You tentar. Vocé tem alguma coisa com que eu possa escrever? } —Tome esse lapis — disse Joao — ¢ esse papel — acrescen- tou ele enquanto rasgava a primeira folha de uma Biblia que estava na mesa de cabeceita. Cornélio pegou o lépis ¢ escteveu com muito sacrificio. A pressao dos dedos, ao segurar o lapis, provocou manchas vivas de sangue no curativo de sua mao direitat Caro afilhado, Queimeo pacote que lhe confieiparaguardar. Queime-o sem-olhar, senc-abrin, para que vocé continue senu saber 0 que hd: dentro dele. Os segredos queccle.contésm podenmatar quenvo estiver guardande. Ques» me-o ¢ vock sakvarh Jodo e Cornélio. Adeus ene quelra bewe, Cornélio de witt 20 de agosto de 1672 — Craeke — recomendou Joio de Witt, ao entregar o bilhete do irmao =, ninguém deve ver vocé conosco. Siga na frente e procure passar. Nés ainda vamos esperar alguns minutos antes de sair, a 2 A TULIPA NEGRA Passados cinco minutos, Joao disse: = Agora, Cornélio, é a nossa vez, Vamos, Em frente a prisio Buytenhoff, a multidao era imensa. Mas 0s cavaleiros comandados por Tilly continuavam impe- dindo com firmeza que a mulcidtio avangasse mais para perto da fortaleza. Os soldados tinham ordem para atirar, se fosse necessétio. Nesse momento, ouviram-se gritos vindos do fando da praca, Muita gente correu ¢, de repente, quase voando, um homem transtornado de tanta alegria aproximou-se, sacu- dindo um papel com a mao ¢ gritando: —Temos a ordem! A ordem foi assinada! Podemos entrar, — Eles tém a ordem! — disse um oficial em voz baixa ¢ com espanto. ‘Alguém mais atrevido chegou diante do oficial e esten= deu-lhe um papel. — Aqui esta a ordem — disse. © oficial tomou o papel, leu, depois o dobrou com cui dado ¢ guardou no bolso. —Os que assinaram esta ordem sio os verdadeitos carras- cos do senhor De Witt = disse 0 oficial. - Eu nao assinaria uma ordem dessas. Em seguida, voltou-se para seus soldados ¢ ordenou: = Cavaleitos, a diteita! Marchar! E acrescentou em voz baixa, mas de uma forma que pu- desse ser ouvida: — Agora, estranguladores, fagam seu trabalho! ‘A multidio enfurecida correu em diresao as portas fe- chadas da ptisio, enquanto os guatdas que, até entdo, tinham impedido que avangassem, retiravam-se lentamente. OS DOIS IRMAOS Joao de Witt ajudava seu irmao a descer a escada, Em- baixo, encontrou novamente a filha do carcereiro, que tremia de medo. = Senor Jodo — disse Rosa =, que desgragi —O que houve? — perguntou ele. — Os cavaleiros de Tilly receberam ordem para ir embora, — Sem a presenca dos cavaleiros, estamos perdidos — ob- servou De Witt, — Posso Ihe dar am conselho? — perguntou 2 moga. — Pode, sim, minha jovem. —Escute, senhor, nao ¢ bom que saiam pela rua principal. A multidio os espera lA. Em seu lugar, ew iria pela galeria subterranea. A abertura da para uma rua deserta, Poderio deixar a cidade pela porta que preferirem. — Mas meu irmio nio vai conseguir andar até Id. — Eu tentarei — replicou 0 preso com firmeza. — Eu disse ao cocheiro que fosse com a carruagem esperar os senhores na saida do subterraneo — informou Rosa. — Resta saber se Grifo vai querer abrir a porta — disse Jodo. — Nio tem importincia— observou a moga.—Prevendo que isso podia acontecer, eu consegui pegar a chave. Ela est aqui comigo. Os dois irmios olharam para Rosa com gratidio. = Minha jovem = disse o prisioneiro —, no tenho nada para Ihe dar em ttoca do que esta fazendo por mim. Tudo @ que tenho ¢ uma Biblia, que vocé vai encontrar em minha cela. Que ela lhe traga felicidade. — Obrigada, senhor — disse Rosa. — Ela vai ficar comigo, embora eu nio saiba ler — lamentou-se, — Agora, prestem atengio: o povo ja esta tentando atrombar a porta. Vamos depressal 4 ATULIPA NEGRA Nisso, ouviram-se pancadas cada vez mais fortes no meio dos gritos: —Morte para os De Witt! Sempre guiados por Rosa, os dois irmaos desceram a escada, atravessaram uma porta estreita e chegaram aos fun- dos da prisio, A carruagem esperava por eles. — Depressal Depressa! — gritou Rosa. — Obrigado, minha filha — disse Joao de Witt. — Espero que vocé tenha salvado a vida de dois homens. ~ Ainda nfo tenho certeza = respondeu Rosa, enquanto ajudava Cornélio a subir na cattuagem. Jodo de Witt sentou-se ao lado do irmio e ordenou: — Vamos até 0 portao de ferro de Tol-Hek. A carruagem partiu. Rosa acompanhou 0 veiculo com o olhat até dobrar a esquina da tua. Ja era tempo. Logo depois, chegaram muitos homens aos gritos: — Olhem ali! Eles esto fugindo! Rosa entrou, fechou a porta ¢ jogou a chave num pogo. Perto da porta, encontrow novamente o pai. Ele estava pali- do de medo e disse para ela: — Ouga os homens batendo! Em poucos minutos, yao entrar. E eu nao abri, porque nao tinha ordem. Eles vio nos matar! — Esconda-se — disse Rosa, — Onde? — No porio secteto. —E vocé, minha filha? — perguntou Grifo. — Eu deseo com 0 senhor. Venha, venha, meu pai —disse ela, abrindo um pequeno algapao. —E nossos prisioneiros? — disse Grifo, OS DOIS IRMAOS ~ Deus cuidaré deles, mew pai = respondew a mosa, = Deixe pelo menos que eu cuide do senhor. Ele acompanhou a filha ¢ os dois se esconderam. © povo dava pancadas cada vez mais violentas na prisio ¢ gritava: — Morte pata os traidores! ~ Morte para Cornélio e Joao de Witt! — Morte! Morte! & 8 caviruro7 | Van Baerle é prteso j RAEKE, o fiel criado de Joao de Witt, 4%] montado num bom cavalo, correu o Bi) que pode para se desviar do tumulto, Uma vez em seguranga, deixou o ani- mal numa cocheira para evitar suspei- SPaa| tas e continuow tranguilamente sua viagem de barco até Dordrecht. Ainda longe, reconhecew a cidade risonha, com belas casas de paredes vermelhas ¢ linhas brancas, Ao desembarcar, em meio a muitos moinhos de vento, reconheceut logo a casa branea e rosa que eta o destino de sua viagem. Foi direto para li wu 38 A TULIPA NEGRA Van Baerle estava em seu laboratério. Contemplava seus bulbos e sonhava com a beleza das tulipas que estava produzindo. E pensava: “A grande tulipa negra nascera em meu jardim, Que nome darei a ela? Talipa nigra Barlaensis, E um belo nome. E vou ganhar os cem mil florins do prémio prometido. Darei metade aos pobres de Dordrecht. E metade vou empregar nas minhas experiéncias ¢ tentar perfumar a tulipa. As pessoas exclamarao: Nasceu a grande tulipa negra! Seu nome & Tulipa nigra Barlaensis, Por que Barlaensis? Porque © pai da flor é 0 senhor Van Baerle, o plantador que ja fez nascer varias espécies novas: a Joana, a Brabantina, a Cornélio de Witt, a Jodo de Witt, a Colombina, a Mavavilha”’ De repente, soou forte a campainha do laboratério. Van Bacrle apanhou trés bulbos que estavam na mesa, virou a) cabega e perguntou em voz alta: — Quem esté ai? —Chegou um mensagi criados. —Um mensageiro de Haia? Quem é © que quer? —E Craeke, senhor. = Ah! Est bem. E o homem de confianga de Joao de Witt. Diga-the que aguarde. — Eu no posso esperar — disse uma voz decidida. E Craeke foi entrando. ‘Van Baerle assustou-se, e dois de seus bulbos cafram: um, debaixo da mesa € 0 outro, perto da larcira, —Afinal, o que aconteceu, Cracke? — perguntou Van Baerle enquanto procurava seus dois bulbos. — O que hi € que o senhor precisa ler este papel, sem perder nem mais um minuto, Acabei de encontrar homens de Haia — respondeu um dos VAN BAERLE E PRESO. armados. Eles esto vindo para sua casa. Leia lego o que estd escrito. Cracke nao esperou a resposta, Ele compreendeu o peri- go. Deixou na mesa a carta de seu patrio e fugiu 0 mais depressa que pode. — Esta bem, Craeke! Esta bem! — disse Van Baerle, —Va- nos ler seu papel. Ao dizer isso, estendeu 0 brago debaixo da mesa e encon- trou um dos dois bulbos perdidos. Apanhou-o ¢ examinou, — Este aqui nao sofreu com a queda — disse. — Que ideia teve Craeke de entrar sem mais nem menos em minha casa, em meu laboratério2! Agora, vamos procurar 0 outro bulbo. Ajoclhado no chao, olhou em volta ¢, finalmente, achou © segundo bulbo perto da lareira. Pegou-o e olhou para ele com atengio, — Este também ni sofreu! — exclamou, Nesse momento, abriram a porta outra vez com violén- cia. Van Baerle sentiu a raiva tomar conta dele. Levantou-se e indagow: — © que é que ha agora? Ser’ que alguém ficou louco aqui? = Senhor, senhor! — gritou um criado, — Que estd acontecendo? — perguntou Van Baerle. — Fuja, senhor! Fuja depressa! —Fugir? Por qué? — A casa esti cheia de soldados, — Que é que procuram? —Eles querem 0 senhor. —E por que motivo? ~ Para prendé-lo. Eles esto acompanhando um juiz. — Para prender-me? Como? Por qué? 139 0 A TULIPA NEGRA — Ja este subindo! Esto subindo! — gritou © criado, = Meu filho, apanhe seu dinheiro, suas joias e fuja—disse a velha criada. — Fugir pot onde? —Pule a janela! — Sio mais de oito metros. —O senhor vai cair em cima de terra frouxa. —Em cima de minhas tulipas? Nunca! Van Baerle pegou seu terceito bulbo, foi até a janela, abriu-a, olhou suas flores ¢ repetiu: — Nunca! Deu um passo atrés. Sua grande preocupagio etam os preciosos bulbos. Virou-se e procuroy um papel. Viu a folha da Biblia que Cracke tinha posto em cima da mesa. Nao sabia mais de onde viera aquela folha, tamanho era o transtorno, Apanhou-a, embrulhou nela seus trés bulbos, escondeu-os na roupa e esperou. Nesse instante, entraram 0 juiz e os soldados que o acompanhavam. —O senhor é 0 doutor Cornelius van Baerle? — pergun- tou 0 juiz. — Bu sou Cornelius van Baerle ~ respondeu ele, fazendo uma sauda¢io respeitosa — eo senhor sabe muito bem. Faz bastante tempo que me conhece. — Entio, entregue-me os papéis que escondeu. — Papéis? - repeti Van Baerle, atordoado com a pergunta. — Nio faga essa cara de espanto. — Nio estou entendendo. © que o senhor quer dizer? — Eu vou explicar, Entregue-nos os papéis. que o traidor De Witt deixou com o senhor no més de janeiro passado. VAN BAERLE E PRESO: Van Baerle deu a impressio de que havia se lembrado de alguma coisa. — Hum! Parece que esté comegando a se lembrar ~ disse © juiz, — Sem dtivida. Mas nao de papéis que possam Ihe inte- ressar. — Isso € 0 que nés vamos ver. Aqui ¢ 0 local onde traba- tha, nao & — Sim. O juiz passou os olhos sobre tudo 0 que havia em redor. Voltou-se, entio, para Van Baerle e disse: — Muito bem. O senhor quer me entregar esses papéis? — Eu nio posso, senhor juiz, Esses papéis no me perten- cem, Foram confiados a mim para guardar. — Doutor Van Baerle — falou firme o juiz—, em nome da lei, eu the ordeno que abra esse armario © me entregue as cartas, Eu sei que elas esto nessa gaveta — ¢ com 0 dedo o juiz apontou uma gaveta perto da chaminé. Van Baerle nao fez nenhum movimento. — Esté bem, Eu mesmo vou abrir— disse o juiz. Abritto armério e vin, 4 sua frente, virios bulbos de tulipas bem arrumados e 0 pacote de Comélio de Witt. Entio, gritouz — Ah! A justica no recebeu informagio falsal — Como? Ento, o que é que ha? — perguntou Van Baerle. = Nio se faga de inocente — respondeu 0 juiz -, e nos acompanhe. — Ir-com 0s senhores? — gritou 0 doutor. — Sim, em nome da lei, tenho de prendé-lo, —Prender-me? Mas o que foi que eu fiz? __— Isso no & comigo. O senhor se explicart com seus jutzes. 41 el A TULIPA NEGRA 2 —B onde seri? — Em Haia. Os criados de Van Baerle chorayam, Ele abragou a ve ctiada © apertou a mio de cada um deles. Depois, seguia juiz e foi obrigado a subir numa carreta, como prisioneiro do governo. Levaram-no a galope para Haia. capfrutos |Uma invasao AN BAERLE foi preso por causa de Boxtel que, como ja se pode imaginar, | tinha espiado tudo com a luneta, no dia em que De Witt visitou o afilhado e Ihe dew o pacote. Depois, quando soube das desgracas dos irmios De Witt, mandow uma dentincia anénima por correio, acusando 0 vizinho com informagdes que pareciam verdadeiras. Isaac Boxtel pensava o seguinte: “Se Van Baerle for preso, com certeza haver muita confusio ¢ ninguém vai se pteocu- par em cuidar das tulipas no jardim. A noite, seri o momento de entrar na casa e roubar o bulbo que irs produzir a grande B “4 A TULIPA NEGRA tulipa negra, Ela nascer4 no meu jardim ¢ no no dele”, Por fraqueza ou por vergonha, nao espionou mais a casa de Van Baerle. Preferiu ficar deitado. — Estou doente — dizia Boxtel para seus criados. — Nao you me levantar hoje. B assim permaneceu até escutar ruidos de passos e de gritos. Ele compreendeu. O coragio bateu de alegria no peito. Seu criado entrou para Ihe dar a noticia. Boxtel se escondeu debaixo do cobertor. —O senhor nao pode imaginar 0 que esta acontecendo neste momento, —Como posso saber de qualquer coisa se estou doente e na cama?! — disse Boxtel com voz mejo alterada. —Senhor, prenderam seu vizinho Van Baerle poralta traigio. = Nio € possivel! —Acabei de ver o juiz e seus soldados. —Se vocé viu, ew acredito, O criado saiu do quarto, voltando pouco depois para dizer: =O senhor Van Baerle foi preso, colocado numa carreta vai ser levado para Haia. — Que estranho! — comentou o criado com os outros, depois de sair do quarto. — © senhor Isaac Boxtel deve estar bern doente para no se levantar da cama com essas noticias. Boxtel ainda permaneceu deitado o dia inteiro. A noite, levantou-se da cama, subiu na atvore e certifi- cou-se de que nao havia ninguém no jardim de Van Baerle. Esperou as badaladas de dez horas, esperou as de onze ho- ras. Ao dar meia-noite, ele desceu da Arvore. © coragio batia forte. Suas mos tremiam. Com esforgo, carregou uma escada do seu jardim até o muro do vizinho. Subiu e olhou, Tudo estava tranquilo. Nenhuma luz, nenhum ruido. A janela do UMA INVASAO laboratétio tinha ficado aberta. Ninguém se lembrou de fechar. Boxtel nao tinha o que temer, Passou a escada para o jardim do vizinho e desceu., Depois de muito procurar nos canteiros e nao encontrar nada do que queria, apanhou uma escada mais alta em uma casa em reforma, trouxe-a com esforgo ¢ subiu para o labo- ratério. de Van Baerle. O coragao batia-the ainda mais forte. Ele parou um pouco. Recuperou a coragem, ditigiu-se ao armario e abriu, Encon- trou bulbos das diversas espécies de tulipas criadas por Van Baetle. Nada, porém, dos bulbos da tulipa negra. Ao olhar para cima da mesa, leu, num livto de anotagSes de Van Baerle, 0 seguinte: “Hoje, 20 de agosto de 1672, retirei do canteiro grande 0 bulbo da culipa negra e separei-o em trés pedagos perfeitos”, Boxtel continuow procurando, mas nada encontrou. De repente, bateu na testa com a mio ¢ disse: — Eu sou um imbecil! Um verdadeiro plantador de culi- Pas no consegue viver sem seus bulbos. Principalmente, se 9s bulbos forem de uma grande tulipa negra. Tenho certeza de que Van Baerle levou os bulbos para Haia. E esto 1A com ele. Muito bem! Nio é em Dordrecht que devo ficar, Eu vou para Haia atrés dos bulbos, Desapontado, Boxtel desceu aescada, colocou-ano mesmo lugar onde cla estava e voltou pra casa, tremendo de raiva. Se 6 cartru.os | Van Baerle na ptisao RA PERTO de meia-noite quando 0 pobre Van Baerle foi encarcerado na prisio Buytenhoff, em Haia. Grifo, 0 carcereiro, o recebeu. Leu o documento que encaminhava c © prisioneito ¢ exclamouz ~ Hum! E 0 afilhado de Cornélio de Witt. Muito bem, et! jovem, a cela foi desocupada hd pouco tempo. Pode fica com a vaga. ~E sorriu com ar de deboche, Em seguida, apanhou a lanterna ¢ as chaves ¢ levou Van Baerle para a cela que De Witt tinha desocupado pela manha. Ficava no alto do prédio. Grifo estava levando | A TULIPA NEGRA 8 © afilhado para a mesma cela em que 0 padrinho estivera preso. Rosa ouviu © ruido na escada, Abriu um pouco a porta de seu quarto e olhou. Com a lanterna na mao, ela clareava seu lindo rosto, os olhos azuis e os cabelos louros. Mal hou- ve tempo de o jovem doutor perceber 0 vulto da moga, pois logo o carcereiro o empurrou para sua cela de prisionciro. Mostrou a cama ¢ sai. Van Baerle ficou $6. Jogou-se na cama, mas nao conseguit dormir, Passou toda a noite olhando para a janela estreita, gradeada de ferro. Ao amanhecet, ansioso para saber © que existia fora da prisio, aproximou-se da janela ¢ observou em volta, Na extremidade da praca, diante dele, vit a forca. Pendu- rados nela, estavam os restos dos corpos de dois homens. O bom povo de Haia havia despedagado as vitimas. Acima dos corpos, alguém escreveu numa tabuleta: Aqui estido pendurados 0 grande criminoso Joao de Witt ¢ sew srntio, o-covarde ¢ ordindrio Cornélio de Witt Deis inimigos do pov, mas grandes amigos do rei da Franga ‘Van Baerle deu um grito de horror. Pés-se a bater com s pés ¢ as mios. Grifo ouviu o barulho e corteu furioso. Abriu a porta e perguntou com raiva por que 0 prisioneiro estava incomodando. Van Baerle agarrou o carcereiro pelo brago, puxou-o até a janela ¢ disse: =O senhor ja viu lé embaixo? — Onde? indagou Grifo. —Naquela tabuleta. VAN BAERLE NA PRISAO — Em que lugar? — perguntou o carcereiro, Trémulo ¢ muito palido, Van Baerle apontou no fundo da praga a forca com a inserigdo em cima. Grifo caiu na tisada. —Ah!—exclamou ele —, entio, 0 senhor leu. Muito bem, meu caro, aquilo é 0 que acontece com os inimigos do Prin- cipe de Orange. Van Baerle deixou-se cair na cama, com os bragos pendu- rados e os olhos fechados. Estava arrasado. —Os senhores De Witt foram assassinados! — murmurou Van Baerle. —E a justiga do povo! Eles foram executados — disse Griff. Depois de dizer essas palavras, saiu ca cela, puxando a porta com violéncia e emparrande os ferrolhos com muito ruido. Ao recobrar as forgas, Van Baerle passou a observar tudo em volta da cela. Em seguida, rezou pelo padrinho ¢ por seu irmio Jodo de Witt, Pediu também forgas para suportar to- dos os males que ainda pudessem vir contra ele. S6 entao retirou do peito os trés bulbos da tulipa negra. Olhou-os com amor e os escondeu debaixo da cama, pondo um tijolo em cima para disfargar, “Nesta prisio, nao hi terra, nao ha sol. Uma tulipa nao pode brotar: aqui. Portanto, de nada serviram tantos anos de trabalho” — concluiu Van Baerle. Com esse pensamento na cabe¢a, © prisioneiro entrou em terrivel desespero. Me 49 cavirutoio |A filha do carcereiro NOITE, quando Grifo trouxe comi- da para Van Baerle, ao abrir a porta da cela, escorregou na laje tamida do chio, Nao consegui equilibrar-se, Caiu de mau jeito e quebrou o brago. Van Baerle fez um movimento para ajuda-lo. Ele gritou: — Nio se mexal Nao foi nada. — E quis levantarse, apoiando o corpo no brago, mas a dor no pulso era muito forte. Grifo deu um grito e sentiu-se mal. A porta da prisio tinha ficado aberta ¢ Van Baerle po- dia fugir se quisesse. Mas ele nem pensou nisso. Jé havia i 2 A TULIPA NEGRA esquecido a maldade do homem e procurou socorré-lo, Rosa tinha escutado o barulho e ouvido o grito, Subiu correndo as escadas. Viu seu pai estendido no chio e Van Baerle curvado sobre ele. Como a filha conhecia bem a bru- talidade do pai, achou que ele tinha batido no prisioneito € que os dois tivessem lutado, Logo, porém, compreendeu, Levantou os olhos para o jovem ¢ Ihe agradeceu. ‘Van Baerle ficou constrangido e disse: =Nio fiz mais do que minha obrigasio, socorrendo meu semelhante. —Socorrendo meu pai — disse Rosa — o senhor mostra que ja esqueceu as palavras grossciras que ele The disse hoje de manha. Van Baerle observou a linda jovem, porém nio teve tempo de responder. Grifo ja voltava a si. Abriu os olhos e disse: —Vejam como so as coisas. A gente vem trazer 0 jantar de um prisioneito, cai, quebra o braco e ele o deixa no chao. —Nio fale assim, meu pai — protestou Rosa. — © senhor esta sendo injusto! Eu o vi no momento em que ele tentava ajuda-lo a levantar-se. — Ele? — disse Grifo com ar de ditvida. —E yerdade — confirmou Wan Baerle — e ainda continuo pronto para socorré-lo, —Vocé? — admirou-se Grifo. - Entao, € médico? —Foi minha primeira profissio — disse Van Baerle. — Quer dizer que poder& curar meu brago? —Com certeza. —E de que precisa para isso? —De duas talas de madeira e pedagos de tecido. A FILHA DO CARCEREIRO —Esté ouvindo, Rosa? — disse Grifo, — © prisioneiro vai tratar de meu brago, Nao terei de gastar com isso. Ajude-me afevantar, Sou pesado como chumbo. — Moga — pediti Van Baerle — veja se consegue o que € preciso, —Com certeza = respondeu Grifo. — Nao ¢ dificil, Rosa. Apoiou-se no ombto da filha, passou o brago em volta de seu pescoso ¢ firmou-se nas proprias pernas. Sentou-se no banco que Van Baerle tinha empurrado para perto dele e disse a Rosaz — Vocé niio entendeu? Vamos! Vi buscar 0 que ele pediu. Rosa desceu e, logo depois, trouxe as talas e 0 tecido, ‘Van Baetle estendeu 0 brago de Grifo sobre uma mesa, reajustow a fratura, colocou as duas talas, uma de cada lado, e envolveu-as com 0 tecido. Outra vez, 0 carcereiro perdeu os sentidos. — Veja se consegue vinagre, Rosa— pedi an Baerle, -Nés esfregaremos nos lados de sua cabeca e logo ele ficar bem. Aptoveitando que o pai estava desmaiado e com cuida- do para que ele nio a escutasse, Rosa voltou-se para Van Baerle ¢ disse: ~ Uma mio lava a outra, © senhor nos prestou ajuda e eu quero fazer alguma coisa em troca. Amanhi, 0 juiz devers r para o interrogatério, Hoje, ele veio fazer as perguntas € riu de maneira estranha quando soube que o senhor estava na mesma cela que De Witt ocupou antes de ser morto. Tenho muito medo do que lhe possa acontecer. — Mas — perguntou Van Baerle = 0 que podem fazer contra mim? — Daqui o senhor vé 0s corpos de seus amigos — obser vou Rosa, 3 4 A TULIPA NEGRA — Mas ew nio pratiquei nenhum crime, —Ezaqueles que estio I embaixo, pendurados, cortados em pedagos, sera que cometeram algum crime? — per« guntou ela. — Voct tem razio — disse Van Baerle, apavorada, — Além disso —continuiou Rosa, todo mundo acha que osenhor também é culpado. Seta condenado, e as coisas agora estio acontecendo depressa. —E entio? O que voce esté pensando? — Baerle. indagou Van — O que quero dizer € que eu estou sozinha. Sou fiaca, Meu pai continua desmaiado, o cachorro esta preso. Entao, nada impede que o senhor fuja. = Como é mesmo? — indagou Van Baerle. — Eu nao pude salvar os irmios De Witt, mas gostaria’ muito de salvar o senhor. Nao perca tempo. Em minutos, meu pai pode abrir os olhos. Ai, sera tarde demais. ‘Van Baerle olhou para Rosa. Parecia nfo ter entendido o que ela acabava de dizer. — O senhor nao est compreendendo? — Estou, sim. Mas no posso aceitar. Voce seria acusada por me ter ajudado, — Nio importa — disse ela. — Obrigado, moga — respondeui Van Baetle — mas eu fico. —O senhor yai ficar? Meu Deus! O senhor niio entendeu que vai ser condenado. E condenado 4 motte. Talvez, morto pelo povo e feito em pedagos, como aconteceti com seus amigos. Nio se preocupe comige ¢ fuja desta cela. Ela trouxe a desgraca para os De Witt. = Que foi? O que voce disse? — perguntou Grifo, desper- tando. — Quem esta falando dos criminosos De Witt? A FILHA DO CARCEREIRO —Nio se importe, meu caro —disse Van Baerle com ar de tiso, — Esquentar 0 sangue nao faz bem a fratura. Depois, disse em voz baixa a Rosat — Nio pratiquei nenhum crime, Vou aguardar meus juizes com tranquilidade. Sou inocente. — Meu pai esti se levantando. Ele nao deve desconfiar de que nds conversamos. — Que mal faz? — disse o prisioneiro. — Nunca mais deixar que eu volte aqui — disse a moga. Van Baerle ouviu a ftase com um sorriso. Sentira um pouco de felicidade em sua desgraga, = Que € que os dois estio resmungando ai? — perguntou Grifo. — Nada, O doutor acabou de me explicar como devo cuidar de seu brago. =Vamos! — disse 0 carcereiro. — Jé esti demais. Voeé nio deve entrar na cela dos prisioneiros. E, quando vier, saia 0 mais rapido possivel. Ande na minha frente: Depressa. Rosa e Van Baerle olharam um para 0 outro. & Iss captruto 11 |O testamento de Van Baerle OSA nfo estava enganada. No dia se- guinte, os juizes vieram A prisio inter- rogar Van Baerle. Mas nao Ihe fizeram muitas perguntas, pois o prisioneiro no negou nada, Confirmou também que 0 : pacote havia sido confiado a ele pelo proprio padrinho, Comélio de Witt. = Senhores juizes — afirmou Van Baetle — cudo o que eu disse é verdad. Juro que nio sabia o que estava dentro do pacote. Também nao sei como tomaram conhecimento de que o tal pa- cote estava comigo e por que motivo eu posso ser acusado de ter guardado alguma coisa, a pedido de meu ilustre einfeliz. padrinho, 38 A TULIPA NEGRA Para os juizes, nao havia mais ditvida de que o afilhado tinha ajudado o padrinho, Logo, ambos eram igualmente culpados. Ficou, entio, comprovado que Van Baerle havia guardado em casa certa correspondéncia importante dos De ‘Witt com o governo da Franga. Van Baerle foi levado de volta a prisdo, enquanto era pre parada a sentenga. E como se tratava de assunto muito grave, depois de meia hora a decisio ja estava tomada. Grifo estava deitado, tinha febre ¢ sofria ainda a fra- tura do brag, Rosa apanhou as chaves ¢ abriu a porta da cela de Van Baerle para o escrivio oficial, que lew a sentenga mais ou menos nos seguingtes tetmos: “O se- nhor Cornelius van Baerle devera ser retirado da prisio Buytenhoff, situada na praca de mesmo nome, ¢ levado ao cadafalso. Tera sua eabega cortada pelo executor dos julgamentos”. ‘ z Van Baerle ouviu essas terriveis palavras, mais espantado do que triste. Num canto da sala, Rosa chorou. =O senhor tem alguma coisa para dizer? — indagou 0 esctivao. — Uma tinica coisa: sendo um homem honesto, nunca pensei que viesse a morter por um motivo desses — observor Van Baerle, — Mas — continuou ele — diga, por favor, senhor escrivao, em que dia isso vai acontecet? — Hoje mesmo — respondeu o escrivio, espantado cot © sangue-frio do prisioneiro. =A que horas? — Ao meio-dia, senhor. — Hum! Ha pouco, eram dez horas, Nao tenho muit tempo pela frente. © TESTAMENTO DE VAN BAERLE — O senhor tem o tempo suficiente para pedir a Deus perdao pelos seus pecados. Depois dessas palavras, o escrivio foi embora. Rosa acompanhou-o e em seguida yoltou para junto do ptisioneiro, — Senhor! = exclamou ela, chorando. — Nio chote assim, Rosa — disse Van Baerle. — A pena que eu sinto de ver vocé chorar ¢ maior do que a da minha morte proxima. = Sera que et Ihe posso pedir uma coisa? — perguntou Rosa. — Enxugue seus lindos olhos, minha bela menina — res- pondeu Van Baerle. A moga ajoelhou-se aos pés de Van Baetle, — Perdoe meu pai — disse ela. — Seu pail = exclamou Van Baerle, espantado. — Sim, ele tem sido duro demais com o senhor. — Ele ja foi castigado, minha querida Rosa, com o aci- dente que sofreu. Por mim, esti perdoado — disse Van Baetle. — Obrigada! — disse Rosa. — Agora, diga-me uma coisa, 0 que € que eu posso fazer pelo senhor? ~ Pode enxugar os belos olhos ~ respondeu Van Baerle com um sorriso. — Mas choro pelo senhor! — exclamou a moga. —Dé-me sua linda mio e prometa nio rir, minha quericla. = Rir?! — estranhou Rosa. — Numa hora dessas? Entio, no tem olhado para mim, senhor Van Baerle. ~Tenho olhado para yocé, sim, Rosa. Com os olhos do corpo e com os olhos da alma. Na tetra, nio conheci moga mais bela e melhor que vocé, Porém, eu you deixar a vida ¢ nao quero ter nada para lamentar. sa a ATULIPA NEGRA Rosa estremeceu. Nesse momento, soaram as badaladas. das onze horas na torre de Buytenhoff. — Vamos agir rapido = disse Van Baerle. Ele retirou de sob a cama o papel em que estavam em- brulhados os trés bulbos e disse: — Minha bela amiga, eu amei muito as flores, no tempo. em que nao sabia amar outra coisa, Nio fique acanhada com 9 que eu digo. Dentro de uma hora, estarei morto. Acho que encontrei a grande tulipa negra — continuou Van Baerle, — Nao sei se vocé sabe que um prémio de cem mil florins deve ser concedido a seu criador pela Associaga0 Horticola de Haarlem. Eu dou a vocé esses trés bulbos ¢ vocé recebera os cem mil florins. — Senhor Van Baetle! — Pode recebé-los, Rosa — disse ele, enxugando uma ligri~ ma presa na palpebra. — Meu pai e minha mie esto mortos. Nunea tive irmao. Nio tenho irma. Somente amei as flores. Em troca, s6 Ihe pego uma coisa: prometa-me que se casard com um jovem corajoso que vocé ame. Alguém que ame vocé tanto como eu amei as flores, A pobre moga solugava, Van Bacrle tomou sua mio e explicou tudo 0 que ela deve- ria fazer com os bulbos e, depois, com a tulipa negra, quando florescesse, Finalmente, falou-lhe sobre a impottincia da co- municagio do fato ao presidente da Associago Horticola de Haarlem, a fim de poder ganhar o prémio de cem mil florins. Rosa dei um suspito profundo. — Agora, no desejo mais nada a néo ser que a tulipa negra se chame Rosa Barlaensis — continuou Van Baerle. — Assim, a flor ter, a0 mesmo tempo, seu nome e o meu. Dé-me papel ¢ lapis. Vou deixar tudo escrito para voc’. O TESTAMENTO DE VAN BAERLE Rosa, chotando ainda, entregou-lhe um livro com as ini- ciais C. W. —O que ¢ isso? — perguntou o prisioneiro, —Vejat — respondeu a moga, — Ba Biblia que pertenceu a sett pobre padrinho, Escreva nela o que tiver para dizer, senhor Van Baerle, Embora cu nio saiba ler, © que estiver escrito ser4 cumprido. ‘Van Bacrle recebeu a Biblia ¢ beijou-a com respeito, Pegou © lipis que estava dentro do livro e, com mio firme, escreveu na segunda pagina, porque a primeira tinha sido arrancada, ¢ estava embrulhando os bulbos negros: Neste dia. 23 de agosto de 1672, antes de-uiiia morte. iyjiesta, ex| dete para Rosa Grife 6 dittico bow gece me restau este mutta, jl que todos or outros uve fortun confiscastos. Detseo para: ela-trés bulbos que, conforme estou convencide, deven. produzir, no préxisno més de wiato, «grande talipa negra. 0 préewio, no unlor de cen wul flavins, sforecido pela Associagho Horttcolavde taarlewva,cew-produtor, deve ser entregue wela, ea met lugar, no dia de sew casascento Come wise jovern mats ow} menos daménhaidadeeque elaame, Dever ser dado i-tulipa negreo nomede Rosnbarlasnsis, que corresponde a mew nomeean dela. Que} Deus comceda amin rete pers, © ela, a felicidade? Cornelius vast Baerle Em seguida, entregou a Biblia a Rosa. — Leia — disse Van Baerle, — Eu jé Ihe disse que nao sei ler Ele, ento, leu para ela o testamento que acabara de fazer. Rosa estava muito emocionada. —Aceita minhas condigdes? —perguntou Van Baetle com um sorriso triste ¢ beijando a ponta dos dedos trémulos da mosa. 61 ATULIPA NEGRA & — Nio sei Ihe dizer — respondeu ela com dificuldade. —E por qué? — indagou cle. = Porque jamais amarei alguém nem me casarei. Depois de dizer essas palavras, Rosa dobrou os joelhos, quase caiu, Van Baerle, assustado, ia carrega-la nos bragos quand ouvit barulho de gente subindo a escada. — Estao vindo busci-lo— gritou Rosa, — Meu Deus! Nai tem mais nada para me dizer? —Esconda com cuidado os trés bulbos e cuide deles p amor amim. Adeus, Rosa! — Sim, sim —respondeu ela, sem levantar a cabega. — Vor fazer tudo 0 que o senhor pediu. E acrescentou baixinho: Mas eu nao me casarei. Escondeu os bulbos junto ao coragao que batia fortemente, Oescrivao veio buscar 0 condenado, acompanhado do car- rasco, de soldados, de guardas e de alguns curiosos. Van Baer! recebeu a todos como amigos ¢ nig como perseguidores, Na hora de descer, procurou Rosa com os olhos. Mas, por tris das espadas, s6 iu tum corpo estendido perto di um banco ¢ @ rosto pilido, meio encoberto pelos long cabelos. Rosa parecia estar desfalecida. Mesmo assim, con: tinuava apertando contra o peito os bulbos embrulhad na primeira folha da Biblia em que estava escrita a carta de Cornélio de Witt, Se Van Baerle tivesse lido: essa carta, com certeza esta: tiam a salvo um homem ¢ uma tulipa, ox CAPITULO 12 A execugio SSIM que Van Bacrle apareceu, uma gritaria tremenda partiu da multidio de curiosos ‘que enchia as ruas laterais e chegava até a raga, onde o preso seria executado. No meio de tantos gritos e ameagas, ‘Van Baerle caminhava como se nada em si mesmo. Nao pensava nos seus inimigos, nem nos seus juizes, nem nos que iriam matéelo. S6 pensava nas belas tulipas que ia poder acmiar, li do alto do eéu, junto aos inocentes, ao lado de Deus. Subiui com passos firmes a escada do cadafalso, Ajoelhou- ~se ¢ colecou © queixo em cima do cepo timido e frio. Nessa escutasse, recolhido 03 ap A TULIPA NEGRA posigito, ele podia ver a janela de grades da Buytenhoff, onde estivera preso, Depois, fecha os alhos. Chegou a perceber um brilho como se fosse de um raio. Era a espada levantada do carrasco, pronta para cair sobre sua cabeca, Van Baetle disse adeus 4 grande tulipa negra. In4 revé-la ao acordar na presenga de Deus, num mundo feito de outra luz e de outra cor. O vento frio da espada passou por cima de seu pescogo. Mas, para sua surpresa, nao sentira nem dor nem pancada. De repente, foi levantado por mios muito leves. Ficou de pé ¢ abritt os olhos. Perto dele, alguém leu alguma coisa. Tentou prestar aten- ¢4o, olhou, escutou. Viu 0 sol, a janela de grades da prisio, as mesmas pessoas curiosas. Comegott a compreender: 0 Principe Guilherme de Orange, no ultimo momento, teve compaixao do seu carter e acreditou que fosse inocente. Ia, portanto, permitir que o prisioneiro vivesse. Van Baerle esperava que 0 perdio fosse completo ¢ que ele fosse levado, em liberdade, para seus canteiros de Dordrecht. Estava enganado. Ira viver, sim, mas na prisio pelo resto da vida. “Menos mal!" — pensou Van Baerle, — “Nem tudo esta perdido. Na prisao, tenho Rosa, e ainda existem os meus trés bulbos da tulipa negra.” Eram sete, porém, as grandes prisdes da Holanda, ele foi mandado para cumprir sua pena de prisio perpétua na fortaleza de Loewestein. “Hum! = murmurou Van Baerle —, aquele lugar é tao Gimido. B a terra de 14 nfo é boa para tulipas. Além disso, Rosa nao estard em Loewestein.” Baixou a cabega, triste. caviruto 13 | Quase que © bulbo da tulipa é roubado NQUANTO Van Baerle pensava em tudo isso, chegou uma carreta puxada por cavalos vigorosos, a fim de leva-lo com maior rapidez para Loewestein. Recebeu ordem de subir ¢ obedeceu. Seu tiltimo olhar foi para a prisio Buytenhoff, Tinha esperanga de ver Rosa, mas a carreta pat- tiu muito depressa, A maioria dos curiosos queria que ele tivesse sido executado. Por isso, o insultavam e gritavam injiirias por onde ele passava. O mais descontente de todos, porém, era set vizinho, Isaac Boxtel, 6 my)| ATULIPA NEGRA De manha cedo, foi a prisio para falar com o carcereit mou um cio eo animal acabou rasgando a roupa dele, com os bulbos junto ao peito, foi, entio, procurar o home encarregado de executar os condenados & morte. =O condenado é um amigo meu ~ mentiu ele, — Deix -me enterrar seu corpo ¢ Ihe pagarei cem florins se permitis que eu fasa isso, O cartasco concordou com a proposta, exigindo apen que 0 pagamento fosse adiantado. Boxtel pagou da forma que o homem quis ¢ aguardou primeira fila 0 momento de recolher © corpo. Quando Va Baerle chegou, o invejoso fez um sinil para seu céimplic que, antes de levantar a espada, respondeu com outro sin que queria dizer: “Fique tranquil”, Mas aconteceu, como se sabe, que o Principe de Orang no tiltimo instante, perdoau 0 castigo mortal do condenad Boxtel ficou desesperado ¢ Van Baerle ganhou a vida. “Os bulbos devem estar com ele e, na prisio, encontrara gum meio de fazer florescer sua tulipa negra” — pensou E deu um grito de raiva. Algumas pessoas que estavam perto acharam que o gri fosse uma expressio de alegria pelo perdao do principe e teram nele. Boxtel nem pensou em se defender. Correu atti da carreta que conduzia Van Baerle, Perdew 0 equilibrio, cai rasgou a roupa e ainda foi pisoteado por gente que passa Boxtel fora castigado por esse mal terrivel que se ch: inveja. 66 mas no conseguiu falar com Grifo nem com Rosa. Ela cha- Como Boxtel estava certo de que Van Baerle morreria capfruto 14 | Os pombos de Dordrecht POBRE Van Baerle, olhando a paisa- gem através da jancla da nova cela em Loewestein, tinha dois pensamentos: uma flor e uma mulher, Achava que Rosa e seus trés bulbos da tulipa ne- gra estavam perdidos para sempre. Felizmente, estava enganado. Numa manhi, quando olhava para fora, ele viu um ban- do de pombos que vinha do lado de Dordrecht, sua terra natal, Voavam na dirego da prisio e pousavam no telhado. Van Baerle pensou: “Se esses pombos vém de Dordtecht, com certeza podem voltar para la. Vou prender um bilhete o al ATULIPA NEGRA 68) na asa de um deles. Talvez, possa fazer com que chegu noticias minhas ao lugar onde sou amado”. Jogava pio aos pombos que, a cada dia, vinham co: mais perto dele. Ao fim de tm més, consegui pegar u Prendeu os dois juntos debaixo do telhado, ao lado da j da cela. Os pombos construiram um ninho e, pouco depois ele encontrou ovos, Quando a pessoa é jovem ¢ esti condenada pristo pet pétua, tem muito tempo pela frente e muita paciéncial Era caso de Van Baerle, La pelo comego do ano de 1673, prendew um bilhete debaixo da asa da pomba e deixou q ela saisse sozinha. A ave voou cheia de vida para Dordre A noite, estava de volta. © bilheté continuava ¢ da asa, ¢ ai ficou mais uns quinze dias, embora ela yoa retornasse diariamente ao telhado. Finalmente, no décimo sexto dia, a pomba voltou sem O bilhete era dirigido velha criada de Van Baerle e também havia escrito umas palavras para Rosa. A criada gostava muito de aves e cuidava dos pomb que apareciam em sua casa, Por sorte, um belo dia, um p bo chamou sua atengio. Ela viu 0 papel que o ani tinha debaixo da asa. Conseguiu pegar a ave. Encot carta ea levou para Rosa. No final da tarde de um dos primeiros dias de feve Van Baerle ouviu uma voz muito conhecida na escada. Fi trémulo ¢ procurou escutar melhor. Levantou-se e foi porta. Era ela, sim, com certeza. Rosa tinha viajado de Hal Loewestein. Van Baerle nao sabia como a jovem tinha ent do na prisio nem como faria para chegar aonde ele estas OS POMBOS DE DORDRECHT A portinhola da cela se abriu. Alguém olhava para ele. ra Rosa, —Senhor, aqui estou eu — disse a jovem. Van Baerle estendeu os bragos, deu um grito de alegria exclamou: — Rosa! Rosa! — Siléncio! Temos que falar baixo, porque meu pai esté ine seguindo — preveniu a moga. —Seu pai? —Sim. Ele esté 14 no patio, embaixo da escada, e vai subir, —Por qué? — Consegui fazer chegar um pedido meu ao Principe de Orange para que ele mandasse transferir meu pai para esta prisio. O principe ordenou a transferéncia, —Entio, vou poder ver vocé todos os dias? — Van Baerle. —O maior niimero de vezes possivel. — Oh! Rosa, minha bela Rosa, quer dizer que vocé tem. tum pouco de amor por mim?! —Um pouco? — respondeu ela.— O senhor nio ¢ mesmo muito exigente. Van Baerle estendeu as mios para Rosa, com muito cari- ho, mas somente os dedos dos dois jovens puderam se tocar iravés das grades, — Atengio! Ai vem meu pai — neontro dele no alto da escada. perguntow disse a moga, ¢€ correu ao Me cartrutois |A portinhola da cela s) RIFO costamava andar acompanhado de um cachorro para que o animal o ajudasse naguarda dos presos. Entrou na cela de Van Baerle, erguew a lanterna e disse: —Sou stu novo carcereiro, Nao sou mati, mas exijo disciplina, —Sim, ew o conhego muito bam, meu caro senhot Grifo — respondeui 0 prisioneito, aproxinando-se da parte iluminada pela lantern ~ Ah! E Cornelius van Baesle! Como mundo é pe- queno! n ATULIPA NEGRA. — Pois é, Grifo. Estou vendo que ficou completament bom do brago — obseryou Van Baerle. —Realmente, tratou dele muito bem. Depois de seis manas, cu jé fazia todos os movimentos com o brago. Mas senhor é um homem perigoso! Com pessoas cultas é preci estar sempre alerta! — Mestre Grifo, no inicio, eu tive mesmo vontade de git, mas acredite que ndo penso mais nisso. Grifo foi até a janela, A claridade do dia ainda deixays ver um horizonte imenso, apesar da névoa. =Que vista bonita tem daqui, hem? — exclamou o care reiro, sem se virar. —Unmna belissima vista — respondeu Van Baerle, olh para Rosa, — Sim, sim, uma vista muito ampla — comentou Grifo. Nesse momento, os dois pombos se assustaram, sair do ninho e desapareceram no meio da névoa. — Que foi isso? — indagou o carcereiro. — So meus pombos — respondeu Van Baerle, —Meus pombos, meus pombos! — gritou o carcereiro. E prisioneiro possui alguma coisa? Amanhi, eles estara assados na minha panela. Grifo debrugou-se bem para fora da janela a fim de ol servar melhor. Van Baerle aproveitou para correr até a p e apertar a mo de Rosa. — As nove horas, hoje 4 noite — disse ela em voz baixa Van Baerle. Grifo continuou pensando nos pombos, Ele nio vi nada, no escutou nada, Fechou a janela devagar, tom a filha pelo braco, saiu, trancou a porta e foi ver ou prisioneiro. A PORTINHOLA DA CELA Quando deixou de ouvir os passos de Grifo, Van Baerle correu até a janela e desmanchou 0 ninho dos pombos. Preferiu deixar de ver as aves para sempre do que expor & morte os mensageiros que Ihe deram a felicidade de ver Rosa novamente. Depois, ficou aguardando ansioso que dessem nove horas na torre de Loewestein. Na nona batida, ele ouviu o passo leve da moga, e logo se abriu a portinhola, — Aqui estou — disse Rosa. — Rosa querida! — E entio, est contente em me ver? —Voct ainda pergunta?! Como fez. para poder vit? — quis saber Van Baerle. — Meu pai costuma dormir logo depois de jantar, Sempre bebe demais, Mas nao diga isso a ninguém, porque é gragas a esse sono que cu posso vir vé-lo ¢ conversar um pouco todas as noites. —Eu Ihe agradego, Rosa, minha querida— disse Van Baerle tentando beijar seu rosto. Mas Rosa recuou ¢ disse: —Trouxe os bulbos de sua tulipa. —Vocé trouxe? — disse ele. Seu coragio bateu forte. Ele ainda no havia tido coragem de perguntar por eles. —Foram dados a mim, mas eles The pertencem. Estava procurando um modo de devolver. —E, antes de minha carta, vocé pensava em me ver de nove? —Sim, pensava. E nao pensava noutra coisa — respondeu ela, Rosa estava tio bela que Van Baerle tentou novamente beijé-la. Mas cla recuow como da primeira vez. E sain tio depressa que se esqueceu de devolver a Van Baerle os trés bulbos da tulipa negra. CAPITULO 16 Aluna e professor OMENTE cinco prisioneitos estavam em Loewestein, e Grifo nao tinha muito © que fazer. Por isso, acho estranho que o tivessem mandado para essa pri- sio. Logo ele, o melhor earcereiro da “Com certeza, sos” — pensava — regio, prisioneitos devem set muito perigo- principalmente esse doutor, o tal de Cornelius van Baerle’ E passou a vigid dia, entrava na cela lo de todas as formas. Trés vez por do mogo, para apanhi-lo de surpresa, escrevendo alguma coisa. Mas Van Baerle nao escrevia nada. % A TULIPA NEGRA Rosa estava ld ¢ seus bulbos também, A porta da cela podial ficar aberta. Ele no sairia jamais. Na noite seguinte, Rosa subiu novamente para ver o pri< sioneiro, Através das grades, a primeita coisa que fez foi estender a Van Baerle os trés bulbos, que continuavam em- brulhados no mesmo papel. Para espanto seu, 0 jovem afastou com delicadeza sua. mao, — Escute = disse Van Baerle , é muito perigoso e muito importante. Nés nao podemos falhar. Trata-se de produzir a grande tulipa negra. Por isso, devemos tomar todos os cui- dados. Ouga bem o que devemos fazer a fim de que tudo dé certo. iy — Estou prestando toda a atengio ~ respondeu Rosa. — Deve existir por aqui alguma plantagio de flores, nto @ — Existe, sim — respondeu Rosa =, um lindo jardim a beira do rio. Esta cheio de arvores antigas ¢ bonitas. —Vocé pode, minha querida Rosa, trazer-me um pouco: de terra desse jardim, para que cu possa examinar? — Fique tranquil, que amanha teré a terra. — Retire um pouco da que fica A sombra ¢ outro tanto da que toma sol. Assim, posso avaliar as qualidades da terra, tanto na umidade, quanto na secura. A terra escolhi- da por mim e misturada com uma outta, de acordo com a necessidade, nds dividiremos em trés porgdes para nos- sos trés bulbos. Vocé apanha um e planta num dia certo. Cuidara dele conforme minhas indicagées e ele florescera, sem duvida. — Vou fazer tudo com muita aten¢io — prometeu Rosa. = Vocé me dara o segundo bulbo. Cuidarei dele aqui mesmo. Isso yai preencher meu tempo, Tenho reccio de ALUNA E PROFESSOR nao conseguir muita coisa, mas o sol as vezes penetra na cela e quem sabe? Pode dar certo. Vamos guardar o terceiro, para © caso de ocorrer alguma falha em nossas primeiras experiéncias. = Compteendo, Amanhi, tera a tetta para escolher a minha e a sua. Mas eu nao vou poder subir com grande quantidade de uma s6 vez. — Nio estamos com muita pressa, querida. Antes de um més, nossos bulbos nio devem ser plantados. Vocé vai fazer tudo como eu estou dizendo? — perguntou Van Baerle. — Eu lhe prometo. — Plantado o bulbo, é preciso me informar sobre nosso nené, sobre o tempo, o vento, rastros de animais. Existem gatos nesta prisao? Dois desses bichinhos j4 estragaram can- teiros meus em Dordrecht, — Ficarei atenta— disse a moga. = Bom, nos dias de lua, no deixe de olhar, porque po- dem pular ratos de cima dos muros. Temos que ficar atentos — observou Van Baerle. = Vou cuidar também dos ratos — disse Rosa. — Eu pres- tarei atengo tanto aos gatos como aos ratos. Da janela do meu quarto de dormir cu vejo as flores, ~ Existem, ainda, animais muito mai e ratos — disse ele. Van Baerle havia aprendido bastante apés a prisio € se tornou um homem desconfiado de tudo. — E que animais sio esses? — perguntou Rosa. —QOshomens. Alguns se artiscam a ser presos por roubar um florim. Por um bulbo de tulipa, que vale cem mil florins, com Certeza setao capazes de matar. — Eu setei a tinica pessoa com acesso & plantagio. terriveis que gatos ATULIPA NEGRA —Vocé me promete? — Prometo. — Esti bem, Rosa. Obrigado, querida, Toda a minha ale- gria viré, entao, de vocé — disse ele. E como os labios de Van Baetle se aproximaram da gra- de, com a mesma paixdo da véspera ¢, também, como jé estava na hora de retirar-se, Rosa afastou 0 rosto e estendeu a mao em que estava o bulbo. Van Baerle beijou as pontas dos dedos de sua mio, Seria porque a mao segurava um dos bulbos da grande tulipa negra? Seria porque a mao era de Rosa? Como saber? Rosa saiu com os outros dois bulbos. Apertava-os contra © peito, Acaso por serem os bulbos da grande tulipa negra? Ou pot virem esses bulbos de Van Baerle? Ei mais facil responder: 4 segunda alternativa. Seja come for, a partir daquele mo- mento, a vida ficou mais leve e doce para o prisioneiro. No inicio de abril, Van Baerle plantou o bulbo que Rosa Ihe tinha entregue num vaso de barro que ele conseguiu, quebrando com cuidado o gargalo de uma jarra d’gua. Tinha passado um més preparando a terra que Rosa lhe trazia, aos poucos, em suas visitas. Diariamente, os dois conversavam sobre tulipas e outros assuntos. Pouco a pouco, Van Baerle passou a falar-lhe d ‘outras coisas que nao flores, e Rosa tomou cuidado de manter sempre 0 rosto um pouco recuado da portinhola. Agora, ela sabia quanto os labios de um jovem podem deixar uma moga apaixonada, Algo, porém, deixava Van Baerle preocupado. E que Rosa dependia completamente do pai. Todos os dias, ele falava ALUNA E PROFESSOR sobre isso com ela. Diversas vezes, tinha que enganar Grifo, escondendo 0 vaso. Na verdade, a felicidade de Van Baerle dependia do car- cereiro, um homem que podia, a qualquer momento, no se sentir feliz em Loewestein e pedir para mudar de prisio. —O que vai ser de nds? — perguntava ele a Rosa, — Para que nos serviriam os pombos? Além disso, querida, vocé nio saberia ler o que eu escrevesse, nem me escrever sobre o que estivesse pensando. —Veja bem — disse Rosa, que, no fundo do coragio, tam- bém tinha medo da separagio, tanto quanto ele. — Nos temos uma hora todas as noites, vamos aproveité-la bem. — Mas nés no a aproveitamos mal — observou Van Baerle. — Entio, vamos empregi-la melhor — disse Rosa, sortin- do. — Ensine-me a ler e a escrever. Eu you aproveitar suas ligdes ¢, dessa forma, jamais estaremos separados, a nio ser por nossa vontade. — Ah! Entio vamos ter a eternidade pela frente — excla- mou Van Baerle. Rosa sorriu e sacudiu os ombros. — B verdade — gritou Van Baerle batendo com as mios, de alegria. — Voeé é uma boa aluna ¢, certamente, vai ganhar os cem mil florins, — Nao se esquesa de que sua aluna tem ainda outra coisa a aprender, além do cultive das tulipas — acrescentou a jo- vem, rindo, — Sim — retrucou Van Baerle =, eu estou tao interessado quanto vocé, minha querida, em que saiba ler. = Quando vamos comecar? — perguntou ela, — Imediatamente. — Nao. Amanhi. Esti na minha hora de deix4-lo. al ATULIPA NEGRA = Mas em que livro vamos ler? — indagow ele, — Bem — disse Rosa —, eu tenho um livro e acho que el vai trazet Felicidade para nds dois. CAPITULO 17 O primeiro bulbo © DIA seguinte, Rosa voltou com a Biblia que Cornélio de Witt Ihe dera antes de morrer. Como a portinhola era muito alta, ela precisava ficar com a cabega levan- tada, Segurava o liyro na altura da lan- terna ¢ acompanhaya as palavras com um dos dedos. Aluz clareava 0 rosto, deixando vera beleza de seus olhos azuis e de seus longos cabelos louros. Estavam tio proximos que os olhos de um mergulhavam nos do outro. As pestanas 4s vezes se tocavam ¢ os cabelos se misturavam, aumentando a paixio dos jovens. a al A TULIPA NEGRA & Rosa, ao descer para seu quarto, repetia as ligoes de leitur ¢, a9 mesmo tempo, seu coragao aprendia ligdes de amor. Certa noite, ela chegou meia hora mais tarde que de co: ctume. — Nio se zangue — disse a Van Baerle, — Nao foi mi culpa. E que meu pai reencontrou um homem que conhec em Haia, e que the pediu varias vezes para visitar a prisi Gosta de bebida e conta histérias divertidas. —Voct nio sabe nada sobre ele? — perguntou Van Baerle, —Nio — respondeu Rosa. — Hum! — fez Van Baerle, sacudindo a cabesa, preocu: pado, ~Talvez, seja algum espiio daqueles que mandam prises para observar guardas ¢ prisioneiros. — Eu jo tinha visto algumas vezes em Haia. Ele ia Buytenhoff, exatamente quando voce estava preso. Quan vim para c, ele veio também. Mas aqui ele costuma tr bebida e, como vocé sabe, beber é um vicio que meu pai controla. —Com certeza, deve haver outro motivo — disse Van — Outro motivo? — Esse homem deve queter casar com voc — expli Van Baerle. — Talvez seja verdade. Mas em Haia ele falava semy em vocé e, aqui, parece nio conhecé-lo, Notei uma ou coisa, Ontem, eu estava trabalhando no canteiro de t onde you plantar 0 bulbo, no local mais quente. Esta portanto, ao sol, De repente, vi uma sombra por tras d Arvores ¢ o reconheci. Era ele, Seguia todos os meus vimentos. —Certamente, ele a.ama. Esse homem € jovem? E bonito Van Baerle olhou para Rosa com atengio. © PRIMEIRO BULBO. — Jovem? Bonito? Ele é feio, caminha curvado para a frente ¢ esta perto dos cinquenta anos. Nao se atreve ame olhar no rosto, nem a me falar. — Como se chama? = Jacob Gisels. — Nao conhego, Mas, Rosa, quem vé voce se apaixona, E voe€ nio 0 ama? — Nio — respondeu ela. Rosa quis mudar de assunto ¢ perguntou a Van Baerle; — Come vai sua tulipa? — Rosa, imagine a minha alegria: hoje de manhi, quando olhaya para ela ao sol, vi despontar a pontinha do primeiro brotol —E eu, quando vou plantar meu bulbo? — moga, —No dia certo, direi a vocé, mas ¢ importante que nao fale disso para ninguém. Nem pega ajuda a outras pessoas, Al- guém poderia reconhecer o valor do bulbo e, principalmente, minha querida, guarde bem escandido o terceiro bulbo, — Ele ainda est4 no papel com que vocé 0 embrulhou. Guardei no fundo de um armétio, no meio de minha roupa, Rosa parecia escutar alguma coisa, Ficou inquieta. — Que € que ha? — indagou Van Baerle. — Acho que escutei um rufdo. = O que, afinal? — Parecem pasos na escada, ¢ nio sio os de meu pai. = De Grifo nao so, com certeza. Quando é ele, ouve-se de longe. perguntow a —Talvez, sejam do senhor Jacob! — alertou a moga. Rosa desceu correndo. Logo em seguida, ouvit uma porta se fechar com rapidez. 8 ATULIPA NEGRA ‘Van Baerle ficou muito inquieto. Para ele, isso parecia s somente o comego de algo mais grave, No dia seguinte, nada importante aconteceu. Grifo fe: suas trés visitas. Nada descobriu. Ele nao vinha sempre mesmas horas. Van Baerle, por sua vez, tinha descoberto uma manei de esconder o vaso. Colocou-o do lado de fora da janela, disfargou-o com os musgos que crescem sobre as telhas ¢ ent as pedras. Grifo jamais poderia adivinhar onde estava. ‘Certa manha, no entanto, Van Baerle estava entretid admirando seu bulbo, ¢ nio pereebeu que Grifo subia escada, De repente, a porta se abriu ¢ o yelho carcerei encontrou @ prisioneiro com o vaso da planta entre joelhos. Ao yer um objeto desconhecido — ¢, por isso mesm proibido de ter na cela — nas mios de Van Baerle, Grif avangou sobre ele com a rapidez que pode. = Que coisa tem ai? — gritou o carcereiro. — Eu? Nada, nada! — exclamou Van Baerle, trémulo. —Um vaso! E com terra! Que quer dizer isso? Vou tot -lo. Alguma coisa deve estar escondida dentro. —Meu caro senhor Grifol.. Nio toque! E... A mio de Grifo ja remexia a terra. —Senhor, cuidado — disse Van Baerle, palido. E com um movimento rapido, quase desesperado, ar batou 0 vaso das mios de Grifo, vaso que ele cuidava cot uum tesouro precioso, O carcereiro avangou sobre ele com o bastio levanta gritou: —Entregue-me esse vaso! —Deixe-o comigo. E uma tulipa. © PRIMEIRO BULBO — Sim sim, tulipa?l —repetia 0 vélho! asgpehendaennech en mi Ba juto,, = Désme esse vaso ou et chamo a guarda — cae ~ Chame quem guises, mas 0 senhor nao terd ea pobre flor. Eu prefiro deixar que me sate. Grifo, irtitado, enfiou a mio na terra, © bulbo negro. Jogou-o contra a parede ¢ magou com seu pesado sapato, _A\ideia de matar esse homem malvado passou como um raio pela cabesa de Van Basle, Com as duas maos, ele levan. tou 6 pesado vaso cheio de toda aquela terra, agora indtil,« ia deixar cair na cabega de Grifo. : Um grito o impedis, Era Rosa. Ela correu e ficou entre o pai ectemign: Van Bactle jogou o vaso no eho. Grifo gritou, ~So mesmo um homer cruel como o senthor —exelamou Van Bacele ~ para tirar de um infeliz prisioneiro seu tnieo consolo: a promessa de uma flor. ~ Que coisa horrivel! — disse Rosa, ~ Veet calea boca e dessa imediatamente ~ gritos o pai — Infeliz! Infeliz! — contiruava Van Bacele. A ~ Bato preveni~ disse Grifo, E continuou fazendo ameacas po prisnecres ~ Maldito! Maldito!—grtava Van Barledesesperado e, om os dedos trémalos,revitava os restos do bulbo esimagado, — Amanha nés plantaremos 0 outro, meu caro — disse Rosa, em voz baa, E saiu com o pai. Ela compreendia muito bem a dor que o prisioneiro sentia. gritou o desta vez, retirou em seguida o es- cartruto 1s |}O namorado de Rosa q §| AL ROSA tinha saido, ouviu-se na escada uma voz que perguntava a Grifo {} © que tinha acontecido. | © —Meu pai, o senhor escutou? — per- BS guntou Rosa, Gl -Oque =O senhor Jacob esti chamando. Ele esté impaciente, —Foi esse barulho — disse Grifo,— Esses homens cultos... Vamos descer —e apontou a escada pata a filha. Ao fechar a porta, disse: ~ Ja nos vemos, amigo Jacob. A noite, 2 moga voltou. Suas primeiras palavras foram a ay) ATULIPA NEGRA 88! para dizer a Van Baerle que o pai nao iria impedir mais q ele cultivasse flores. — Como voct sabe? — perguntou 0 prisioneiro. — Porque ele mesmo disse. —E por que mudou de ideia? =O senhor Jacob falou com ele muito zangado. — Hum! Entio, esse senhor Jacob nao larga voce?! — Ele esta sempre com meu pai. Escutou o senhor grit esta manha, Meu pai contou-lhe tudo, O rosto dele fic pilido, depois fechou os punhos. Quis bater em meu pai gritou: “Vocé esmagou aquele bulbo? Teve coragem de fa 4sso2” Meu pai respondeu: “Claro!” Entao Jacob gritou ain mais alto: “Vocé fez uma coisa dessas? Voce € um ctimin so!” Meu pai perguntou a ele: “Seré que vocé também est louco?” — Esse Jacob ¢ um homem de bem — disse Van Baerle, Rosa continuou: — Ele falou muito irritado com meu pai. E repetiz “Esmagado! © bulbo foi esmagado. Meu Deus!” Depois, senhor Jacob voltou-se para mim e perguntou: “Nao d ser 0 tinico bulbo. Ele nao tem outros dois?” —Ohomem lhe fez essa pergunta? —estranhou Van Baerk preocupado, = Sim, ¢ meu pai disse: “Amanhi vou procuri-los e v encontrar”. Em seguida, 0 senhor Jacob dirigiu-se 2 mim perguntou: “Que disse esse infeliz, jovem?” Eu nao queria res ponder-— disse Rosa.—Felizmente, meu pai falou: “Ele esta louco de raiva. Mas todos voeés esto malucos. Nao é nenhu- ma desgraga ter esmagado um bulbo. Quem quiser comp! centenas no mercado por um florim”. Entdo, eu disse: “Sim, mas talyez todos esses nao tenham o valor daquele”.— Acho © NAMORADO DE ROSA que disse 0 que nio devia — lamentou Rosa. — Jacob olhow para mim dentro dos olhos ¢ perguntou: “Aquele bulbo valia muito, nao @” Eu respondi: “O que sei é que todos os prisio- neiros gostam de se ocupar com alguma coisa. E’ maldade tirar a distragéo deles. E 0 senhor Van Bacrle ocupava seu tempo cuidando desse bulbo”. Meu pai perguntou: “Como ele con- seguiu esse bulbo? Eu tenho de saber!” Depois de uma pausa, Rosa continuou: —O senhor Jacob me olhou novamente nos olhos. Pare- cia querer ler meu pensamento. Dei-lhe as costas ¢ andei devagar até a porta. Escutei ainda o homem dizer para meu pai: “Nao é dificil saber, E somente revistar o prisioneito, Se cle tiver outros bulbos, encontraremos, Em geral, sio tré Caso nio encontre, faga-o sair da cela amanhi, me deixe procurar, Eu you achar os outros bulbos”. — Ele disse isso? Entao, Rosa, o homem no jardim era ele! = observou Van Baerle. —Sem diivida — afirmou ela, Van Baerle continuou com voz trémula: — Esse homem nao seguiu vocé porque a ama. Esté atris do meu bulbo. E de minha tulipa que ele é namorado, Ama- aha, durante o almogo, fale na frente dele que vai trabalhar no jardim e, logo depois, va para Li. Remova a terra, prepare tudo. Dé a impressio de que esta plantando alguma coisa. Em seguida, saia do jardim e fique espiando pela porta. Ele vai procurar. — Fique tranquilo, seus desejos para mim sio ordens — disse Rosa com uma doce mistura de tristeza ¢ de seriedade. — Assim, Rosa = continuou Van Baerle, cada vez mais inflamado —, se vocé notar que esté sendo seguida ou espio- nada, tanto por seu pai como por esse perigoso e detestavel | A TULIPA NEGRA Jacob, é mais seguro que nio venha mais me ver, mesmo isso seja um sacrificio doloroso para mim, que sé tenho ¥ neste mundo. Rosa ficou com os olhos cheios de lagrimas, O corag apertava em seu peito. — Pobre de mim! — disse ela. = O qué?! — perguntou Van Baerle. = Eu sinto = disse ela, aos prantos ~ que voce ama mente as tulipas. Nao hé lugar em seu coracio para um o tro amor, E foi embora depressa, Depois que Rosa sait, Van Baerle passou uma das pi nites de sua vida. Talvez, no voleasse a ver nem Rosa, nem tulipas, Pela madrugada, conseguits dormir, vencido pelo « 0, perseguido pelos temores, atormentado pelo remorso, Em seus sonhos, a grande tulipa negra apagava-se p: a pouco € seu lugar era ocupado pelos meigos olhos de Rosa. & Mulher e flor CAPITULO 19 ECHADA em seu quarto, a pobre Rosa +] nvio sabia com quem ou com que sonha- Uf] v2 Van Bacrle. Compreendiaa preferén- D) cia que ele dava a tulipa negra, a mais nobre ea mais orgulhosa das flores, ¢ nio ala, humilde filha de carcereiro, Ele ecaiuim fhotaeih Galicie, absconfiscaretn seus bens sempre fata rico. Mas, como no havia quem lhe dissesse como ela estava enganada, Rosa no conseguia sonhar, Apenas chorava. E decidiu nao voltar mais a portinhola da cela. Resolveu continuar sozinha as ligdes de leitura ¢ escrita. Fez novos ¢ répidos progressos, ai A TULIPA NEGRA Na segunda pagina de sua Biblia, que agora era a primei ela lia diariamente 0 oferecimento da Rosa Barlaensis. Chora toda vez e repetia para si mesma: “Naquele momento, Van Baerle me amava", No entanto, nao querendo desesperar o prisioneiro, pensa~ va em dar-Ihe noticias de sua tulipa dentro de alguns dias. Van Baerle, por sua vez, ficou se atormentando a noite toda ¢ todo o dia seguinte. “Como pude falar de modo tio desastrado com Rosa? Como pide dizer a ela para deixar de yer-me, a fim de salvar uma tulipa?” — pensava, Da cela de Van Baerle, escutava-se 0 toque das horas: sete horas, oito horas, nove horas. Nada. Nenhum ruido de passos. Soaram nove horas e um quarto, nove horas meia, nove horas ¢ trés quartos, Finalmente, dez horas, horario em que Rosa saia todas as noites. — Ela no veio — pensou Van Baerle. — Ela nio vai vir faz muito bem. Em seu lugar, eu faria o mesmo. Embora pensasse assim, ficou 4 escuta, esperando. A noite foi longa e triste até 0 raiar do dia. As oito horas da manh, ele ouviu o carcereiro subir a escada. Nio mexeu nem a eabega. noite, Rosa também nao veio, Foi outra noite termtyel para Van Baerle, Grifo —imaginou ele—tinha proibido a filha de vé-lo. E o tranguilo plantador de tulipas pensou em matar 0 carcereiro. Mas, se fizesse, nunca mais veria Rosa — conti- nuou imaginando. Assim, Grifo foi salvo do maior perigo de sua triste vida, No dia seguinte, brilhava um belo sol de abril. Era o tempo certo de plantar © bulbo. Rosa, talvez, nao estivesse lembrada MULHER E FLOR mais dele e deixasse passar o momento. Qu nem mesmo plan- tasse o bulbo. No quarto dia, Van Baerle estava quase sem forgas para se alimentar. O carcereiro levou de volta o prato, com quase toda a comida, No quinto, ele nio tocou em nada. Dava pena vé-lo pilido, mudo, debrugado na janela de grade. — Que bom! — disse Grifo, & noite. — Acho que vamos ficar livres do sabichao, Rosa estremeceu. — Como assim? — perguntou Jacob. — Ele nfo bebe, nio come e nao se levanta mais. “Estou entendendo” — pensou Rosa, — “Ele est preocu- pado com a tulipa.” Ao yoltar para seu quarto, ela apanhou pena e papel e passou a noite inteira escrevendo como podia. No dia seguinte, ao levantar para arrastar-se até a janela, Van Baerle viu um papel que tinham colocado por baixo da porta. Jogou-se para apanhé-lo. Abriti-o e mal reconheceu a letra de Rosa, tanto ela havia melhorado durante a auséncia de sete dias. Estava escrito: Figue trarauito, sua-tulipe esta indo bem. Embora essa frase curta tenha acalmado uma parte do softimento de Van Baerle, ele entendew a ironia de Rosa. Ela nao estava doente, Estava, sim, magoada com o que ele Ihe tinha dito. Nao estava proibida de vir. Deixata de visita-lo por vontade prépria. Por sua vez, Wan Baerle, com papel e lapis que ela Ihe tinha trazido, escreveu o seguinte: ay ATULIPA NEGRA No apreacupagio conv minhartulipa que medeixadocate, a tristeaa que sofre porque ndo vejo vocb. A noite, depois que Grifo saiu, Van Baerle colocouo pap por baixo da porta e ficou atento a qualquer ruido. Mesto assim, nao petcebeu nem os passos de Rosa, n © rogar de seu vestido. Escutou somente uma voz suave co} um sopro e doce como uma caricia, que fazia passar através da portinhola apenas duas palavras: ‘Até amanha’. Esse amanhi seria 0 oitavo dia. Portanto, durante tod esse tempo, Van Baerle e Rosa no se viram. carfruto 20 |O) que aconteceu nesses oito dias © DIA seguinte, na hora dé costume, Rosa tocou de leve na portinhola, como estava habituada a fazer nos dias alegres da amizade dos dois. ‘Van Baerle estava bem préximo, ansioso para rever aquela encantadora figura, desaparecida hé tanto tempo. Y Com a lanterna na mio, ela o aguardava, Nio consegui esconder 0 espanto ao notar a tristeza e a palidez do rosto dele. = Vocé est doente? — perguntou Rosa. — Sim — respondeu ele —, doente de corpo e de espirito. 95

You might also like