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| Audrei Gesser ‘LIBRAS? que lingua é essa? (CRENCAS E PRECONCEITOS EM TORNO DA LINGUA DE SINAIS E DA REALIDADE SURDA Henrique Mor Iucasotcint barcode imagens Steckapet™ ‘r.snast. cmauocaco | sinoicaT WAGON Dos ca esse, e197. ‘:Lngun de sna 2 Unga basa de snl 3, Sues Eat. 4 Surdos-Unquopem.5.Surder Tl IS on3a07 cooai9 Diretos reservados & PARABOLA EDITORIAL, Bua Dr Mii Vicente, 396 -Ipranga Sumario 7 nVIO QUE AINDA PRECISA SER DITO [Pedro M. Garce7] INTRODUCGAO 9 I. A LINGUA DE SINAIS Tl A lingua de sinais é universal?, 11. A lingua de sinais é artificial”, 12 A lingua de sinais tem gramética?, 13 A lingua dos surdos é mimica?, 19 E possivel expressar conceitos abstratos na lingua de sinais?, 22 uma lingua exclusivamente icénica?, 23 A lingua de sinais é um cédigo secreto dos surdes?, 25 A lingua de sinais é 0 alfabeto manual?, 28 A lingua de sinais é uma versdo sinalizada da lingua oral?, 33 A lingua de sinais tem suas origens histéricas na lingua oral?, 35 A ipeas falada’ no Brasil apresenta uma unidade?, 39 A lingua de sinais é égrafa?, 42 I OSURDO 45 Surdo, surdo-mudo ou deficiente auditivo?, 45 O intérprete é.a ‘voz’ do surdo?, 47 O surdo vive no siléncio absoluto?, 47 0 surdo precisa ser oralizado para se integrar nna sociedade ouvinte?, 50 como del lada as lacunas na cognicdo e no pensai para uma concepeio da surdez como diferenca linguistica e cu Qual 6, pois, o objetivo de escrever este livro? Em primeiro lugar, € criar um espago em que esse tipo de discussao seja pensado. De forma tmais geral, 0 desejo do livro origina-se de reflexdes sobre algumas ques- (Ges relativas & area da surdez, pensando especificamente a relagao do ouvinte com esse outro mundo. 0 momento parece oportuno e pal mente pertinente, na medida em que decises politicas tém propiciado um olhar diferenciado para as ticas no Brasil. Percebe-se que 6s discursos sobre o surdo,a lingua de sinais e a surdez, de uma forma am- pliada, “abrem-se” para dois mundos desconhecidos entre si: 0 do surdo em relagao ao mundo ouvinte e o do ouvinte em relagao ao mundo surdo. 0 contetido aqui esbogado pode alcangar diferentes leitores: surdos, ouvintes, leigos, profissionais da surder, estudantes, professores ou simples- ‘mente curiosos, Varies sao as preocupagoes aqui delineadas. A principal é a de ilustrar falas recorrentes e repetitivas advindas de algumas situapdes de interagao face a face com/entre surdos e ouvintes para trazer tona algumas ccrencas, preconceitos e questionamentos em torno da lingua de sinais ¢ da realidade surda, Essa discussio ¢ crucial, pois na e através da linguagem esta- ido representagdes, crencas e significados afir- ios e disseminados na sociedade, nos espacos escolares e familiares, muitas vezes como “normas” e “verdades absolutas” O leitor encontraré neste livro manifestagdes discursivas organiza- das em trés capitulos sob forma de perguntas ou afirmagdes que venho registrando e acumulando — por meio de conversas formais ¢ informais = has minhas idas e vindas em contextos de ensino de LIBRAS para ou- vintes, em eventos académicos e em interagdes cotidianas, 0 leitor po- lumbrar no livro um ponto de partida para evocar o Repensar de algumas crengas compartilhadas, préticas, conceitos e posturas & luz de algumas transformagées que marcam a rea da surdez na atualidade. Ou ,0 que se espera é poder promover um direcionamento para um novo ma nova forma de narrar a(s) realidade(s) surda Ao recuperar; no titulo, a fala de um pai que c ‘mento em relacao a lingua do filho surdo, ao dias essa; quero flagrar 0 total desconhecimento dessa real ‘tanto por parte daqueles que convivem de perto com a surdez, quanto por Parte da sociedade ouvinte de maneira geral. Além disso, propde-se um es- le articulago em que questdes similares possam ser pensadas e, sem evitar seu estranhamento, tornadas mais familiares. Essa foi a forma en- contrada para também sensibilizar ouvintes sobre um mundo surdo desco- 1o e complexo. Como disse poeta Leopardi, “a forca de repetigdes, ¢, Portanto, de habito’, podem ser criadas oportunidades pai 3 gas sobre algumas opinides e também crengas daqi ‘ou nunca estiveram em contato c ssa seu estranha- nao esto easurdez. eT lingua _de sinals cada vez que uma mie surda segura seu bebé em seu pot e snalza para le" (ans Lig). A lingua de sinais é universal? ma das crengas mais recorrentes quando se fala em lingua de sinais & que ela é uni- versal. Uma vez que essa universalidade est ancorada na ideia de que toda lingua de sinals 6 um "c6digo” simplificado apre- endido e transmitido aos surdos de forma geral, é muito comum pensar que todos os surdos falam a mesma lingua em qualquer parte do mundo, Ora, sabemos que nas co- munidades de linguas orais, cada pals, por exemplo, tem sua(s) propria(s) lingua(s). Embora se possa tragar um his- térico das origens e apontar possiveis parentescos e semelhancas no ni- vel estrutural das linguas humanas (sejam elas orais ou de sinais), alguns fatores favorecem a diversificagao e a mudanga da lingua dentro de uma comunidade linguistica, como, por exemplo, a extensdo ¢ a descontinui- ingua japonesa de sinais; no Bras € assim por diante. Vejamos abaixo a difer em 4 diferentes Ifnguas de sinais: Lingua espanol Lingua joponess ‘de sais ‘dese Unga astra de nis Lingua ameicana de sas Retado adapta de Moor & Levan (B51: 28, Em qualquer lugar em que haja surdos interagindo, havera linguas de sinais. Podemos dizer que 0 que é universal 6 0 impulso dos 0s para a comunicacao e, no caso dos surdos, esse impulso é sinalizado. A lingua dos surdos nao pode ser considerada universal, dado que nao funciona como um “decalque” ou “rétulo” que possa ser colado e utili- zado por todos os surdos de todas as sociedades de maneira uniforme e uma tendéncia a simplificar a riqueza lingufstica, sugerindo que talvez para os surdos fosse mais fac | essa erspectiva se mantém? Mesmo que, do ponto de vista pratico, tal unifor- midade fosse desejavel, seria possivel a existéncia, nos cinco continentes, de uma lingua que, além de tinica, permanecesse sempre a mesma? A lingua de sinais é artificial? Crenga. A lingua de sinais dos surdos é natural, pois evoluiu como parte de um grupo cultural do povo surdo. Consideram-se “artificiais” as linguas construfdas e estabelecidas por um grupo de individuos com algum propé- ingua oral) e 0 gestuno lar planejada mals flada 6 o esperant > publicou, em 1887, 2 vers confiou. Ai ela me levou no médico porque eu néo falava nada e Ié 0 médico disse que eu tinka uma perda auditiva grave. Mas eu ndo me lembro dis Sé sei que hoje ndo escuto nada, Fui crescendo e fui para multas escolas dife- rrentes aqui na regiGo de Séo Paulo...comegamos a usar sinais em casa e com ‘alguns parentes mais préximos. Eu achava que era doente, que tinka uma ‘doenga muito séria.. Depois que erescie conheci outros surdos, aprendi mais, sobrea vida dos meus amigos eas coisas comecaram a ficar bem mais claras ‘para mim, pols me comunicava com mais facilidade com 0s sina... Vi que eu ‘do era o inico surdo no mundo e me sinto mais feliz (Sao Paulo, 2002). RELATO 2. ‘Meus pais descobriram que eu era surdo quando eu era bebezinho. Mew pai € minha mde sao surdos profundos e me contam que queriam que eu fosse surdo também, Entio quando eu nasci me levaram no médico e flzeram os testes. Tenho surder profunda. Eu sempre usei sinais com eles e com os pa- rentes ouvintes mais préximos também que conhecem a lingua americana de sinais. Sempre achei que todo mundo fosse igual « mim, sempre achei que todas as pessons fossem surdas. Mas meus pais falavam de ouvinte e surdo, € 6 fui entender mais tarde. No comeco, achava que os ouvintestinham proble- ‘mas porque eram diferentes da maioria da minha famitiae colegas da escola, Porque eu nascie cresci rodeado de surdos aqui nessa escola de surdos...0 ‘mundo virou de ponta cabera quando vi que a maioria é euvinte, pois munca ime vi como diferente. € estranho quando chamam o surdo de deficlente ou eu ndo me considero assim.. (Estados Unidos, 2005). Neste tiltimo depoimento, podemos observar como a surdez é algo natural, uma vez construfda dentro do grupo como algo positivo. A pré- pria descoberta relatada pelo surdo que “virou seu mundo de ponta cabe- $a", pois até entio os “diferentes” eram os ouvintes, deixa claro que ser surdo entre surdos é tio normal quanto é para maioria ouvinte ser ouvinte. Vemos ‘que hd um aprendizado sobre “o outro’, ea imagem surda esta preservada. Falando dessas descobertas, Padden & Humphries (1988: 15) nar- rama hist6ria de um garotinho surdo chamado Sam. Também filho de pais surdos, Sam comega, como toda crianga, a ter curiosidade por uma garo- Unha que mora nas imediagées de sua casa. Eles ficam amigos e passama brincar juntos, mas Sam acha-a “estranha’, pois “nao podia conversar com ‘ela da mesma forma que conversava com seus ios mais velhos e seus Pais”. A interagdo entre os dois era naturalmente mantida, mesmo com a dificuldade dela de entendé-1o, mesmo quando se tratava dos mais sim- ples sinais. Sam entendeu a “estranheza" da amiga quando um dia viu a mie dela movendo a-boca quando olhava para a menina e observou que a garota foi em dire¢ao 4 mae com uma boneca na mao fazendo os mesmos movimentos nos labios. Ao retornar para casa, Sam perguntou a sua mae “que tipo de afligao” a amiguinha tinha, Sua mae entio Ihe explicou que ela era ouvinte e que nao sabia 2m vez de usar sinais, os ouvintes falavam com a boca, e o garoto perguntou: “Essa familia e a menina sao os Linicos ‘desse tipo’?” Outra trajetéria, no entanto, é percorrida pelos surdos de lares ou- iro relato que o jovem surdo sé tem a oportunida- de outra forma no encontro com seus pares surdos. E esse momento que imprime outro rumo a hist6ria, com valores e subje- tividades identificados e aceitos no grupo. Mas, muito provavelmente, as gues. so: ao sere! rem tratamentos, reabi uma gama de significa cas nessa condii¢ao, e como que se" te encaminhadas para os médicos, para faze- es e treinos de fala, assimilam e constroem , ou seja, veem-se talvez como ‘ini- igam’ a existir como “deficientes” (2003), uma forma de violéncia, uma vez que, da maneira como é articu- lada, reafirma uma espécie de desgraca, um desajuste social e individual. A surdez como deficiéncia pertence a uma narrativa assimétrica de poder e saber; uma “inven¢io/produgao” do grupo hegeménico que, em hist6ricos e politicos, nada tem a ver com a forma como 0 grupo se vé ou se representa: “Quando os surdos discutem sua surdez, eles usam termos profundamente relacionados com a sua lingua, seu pas- sado, e sua comunidade" (Padden & Humphries,1988: 44). No discurso predominante, ignora-se completamente o fato de que as alteridades as ‘mens ott mulheres marcados por suas orientagées sexuais, religiosa: nicas, de género, classe e idade (Pérez de Lara, 1999 apud Skliar, 2003). Infelizmente, na nossa sociedade, 0 aspecto cultural da surdez é ainda mais dificil de ser aceito quando os discursos recaem e se fixam exclusi- vamente no fendmeno fisico. Por que a surdez é vista negativamente pela sociedade? O discurso médico tem muito mais forga e prestigio do que o discur- 0 da diversidade, do reconhecimento linguistico e cultural das minorias surdas. A surdez ¢ construfda na perspectiva do défict, da falta, da anorma- ouvir, o que diverge dese padrao deve ser corrigido, *normalizado”. Nesse processo normalizador, abrem-se espagos para a es- tigmatizagao e para a construgao de preconceitos sociais. E, com um discur- 50 tio forte e tao reforcado pela grande maioria, fica dificil pensar a surdez sob outro prisma, ou seja, pensar a surdez como diferenga, pois: todo © proceso de nor cada elemento desviante pa normalizado, 0 individuo na que tudo o que diz respeito a ela. za, 2002: 138). \sa0 € homogeneizador, ou seja, visa trazer © espago igualitério da norma. E uma vez iza a prépria norma, ou sefa, passa a crer tural (teria sido “sempre assim") (Sou- Ha também outros grupos que sofrem preconceitos, como € 0 caso do grupo dos negros, visto que o parémetro social para cor de pele é a Taga ariana, e o que diverge desse “ideal” é anomalia, desvio. Considerar algo como desvio pode levar a consequéncias inominaveis, como aconte- ceu na Segunda Guerra Mundial, 0 mesmo para a questao de géne1 Classe social, de faixa etaria, de orientacao sexual e religiosa, preconceitos que dao como fruto os horrores da intolerancia. Na nossa sociedade, por- tanto, ser “normal” ser homem, branco, ocidental,letrado, heterossexu- al, usuario de lingua oral padrao, ouvinte, nao cadeirante, vidente, sem ‘desvios” cognitivos, mentais e/ou sociais... Outro dia, dando aula a um grupo de alunos surdos em Sio Paulo, um aluno langouas perguntas: “Por que hd tanto preconceito na sociedade? Quan- do teremos mudangas?” Nao & simples responder a questées cuja complexi- dade extrapola nosso desejo de justiga e igualdade. A questo do preconceito social é um ciclo vicioso (e pernicioso) que esta e sempre esteve presente nna vida da humanidade. As sociedades, as instituigBes, as pessoas constro- em estruturas e discursos para a manutencao e disseminacio do preconceito quando apregoam, por exemplo, as representagdes da “normalidade": ~- do normal corporal, do normal da sexualidade, do normal da lidade, do normal da lingua, do normal do aprenzado, do normal do comportamento, do normal da es- crita, do normal da leitura, do normal da atencao, do n et cancel 0, do normal escolar etc Veja-se que o autor nos faz refletir sobre mudangas de posi¢ées, mas também nos alerta para o fato de que h4 um risco em traduzir o discur- so das diferencas justamente por incorrermos no risco de posicioné-las como algo contrério, oposto e negativo & idela de “norma, do “normal’, * Quando as grandes narrativas recaem em opo- 's (homem/muler, branco/negro, Jovem/idoso, ouvinte/ surdo),o “diferencialismo” pode fazer com que "a mulher seja o problema da diferenga de género, o negro da diferenga racial, a crianga ou o velho da diferenca etaria, o jovem da diferenga de geracSo, os surdos da diferenga da lingua” e assim por diante (Skliar, 2006: 23). Retomando a questo levantada pelo aluno surdo sobre futuras mu- dangas na nossa sociedade, pode-se dizer que as mudangas, em se tratan- do de minorias, nao so répidas ou radicals. Em todas as esferas sociais, hd niveis de demonstragao de preconceitos; da mesma forma que ha formas veladas em algumas agdes (dizeres e fazeres). Alguns discursos sobre dife- renga e os usos da palavra diversidade podem, observa com clareza McLaren (2000), melindrosamente mascarar ideologias de assimilagao. Trata-se de um discurso do “multiculturalismo conservador e coorporativo’, criticado pelo autor e que também deve ser pensado no campo da surdez. As mu- dangas passam pelo reconhecimento da suriez. como diferenca, e, por sua vve7, vio além de “uma aceitagao formal” ou de “uma autorizagao para que os surdos sejam diferentes’. Isso vale para todas as diferengas: trata-se de en- tendé-as prioritariamente como um reconhecimento politico (Skliar,1997), A surdez é hereditaria? Os fatores hereditérios da surdez foramalvo de especulagao de muitos cientistas, Um exemplo classico vem das investigagdes realizadas na Ilha de Martha's Vineyard, sudeste de Massachusetts, Estados Unidos, onde duran- te mais ou menos dois séculos a populagao da ilha apresentava um elevado niimero de cidadaos surdos. 0 estudo comparativo partia da estimativa de que, no século XIX, a cada 5.728 individuos americanos nascidos 1 era sur- do, ao passo que em Martha’s Vineyard a proporgéo era a de 1 surdo para cada 155 recém-nascidos (Groce, 1985: 3). Esses ntimeros foram levanta- dos considerando o curso de trés séculos, e poderiam ser maiores se alguns descendentes nao tivessem deixado a ilha para viver no continente. No estudo de que estamos falando, Groce apontou que a elevada ocorréncia da surdez no se dava em fungéo de traumas ou doengas con- tagiosas — capazes de provocar a surdez — e também por acidentes, doengas contraidas na gestacio ou efeitos colaterals do uso de medica- mentos, por exemplo. Mas quando ha uma ocorréncia muito grande entre familiares, entre geracSes, as chances passam a ser genéticas, ou mes- mo hereditérias. Cogitou-se, ainda, a probabilidade de ter ocorrido uma epidemia, que apareceria, de acordo com Groce, nos registros historicos no periodo dos trés séculos analisados. Na investigagdo, sugere-se que 0 modelo de partir de um ge ra a surdez, configurado na ilha, era transmitido a recessivo: Um gene, ao afetar do mecanismo da audi normal nda ocorre (p. 22} aspecto do desenvolvimento neural ou anatOmico do, ¢ alterado de tal forma que o desenvolvimento, Varias especulagdes e reconstrugbes de drvores genealégicas foram feitas para tentar descobrir a primeira vez em que o gene de mutagio ocorreu como essa caracteristica genética se espalhou pela populacio da ilha, mas ndo se chegou a uma conclusao definitiva. 0 fato é que a situa- ‘20 da ilha configurou-se de tal forma que os individuos surdos nao eram vistos € nao se viam como deficientes ou anormais: tinham os mesmos reitos, mesmos empregos, parti lade de forma iguali- tdria, casando-se com ouvintes ou surdos. Essa atitude social de aceitacao da surde2 fez da ilha um local bilingue, onde seus moradores usavam in- glés e lingua de sinais em todos os contextos. Assim pode ser visto, na fala registrada, em 1895, por um repérter britanico: Vocé faz uma chamada nas mediagdes — eles no tém coisas como os chis das tardes. A lingua falada ea lingua de sinais estardo tao misturadas na con- versa que vocé passa de uma para outra, ou usa as duas de uma vez s6, quase inconscientemente. Metade da familia fala, muito provavelmente, a outra me- tade nao, mas os surdos nio esto desconfortiveis em sua privagdo, porque a comunidade tem se ajustado a situagao perfeitamente (Groce, 1985: 53), Pode ser o caso de o uso de duas Iinguas nao ser assim tao tranquilo (0 surdo é considerado “privado” da audisao), embora a obra de Groce nao se aprofunde nesse aspecto. Mas o fato é que, diferentemente de ou- tras situagées em que os falantes de Iinguas orais e de sinais estdo em contato, 0 relato da ilha aponta uma maior naturalidade diante da surdes m caso de uma ilha ou mesmo de uma cidade que se compare & }¢30 vivida em Martha's Vineyard. Ha, todavia, um fato macabro e tris- instaurado e fomentado no perfodo pés-guerra, com o discurso nazista de Adolf Hitler em busca da raga humana “pura’ Conhecemos bem essa desumanidade e perversidade histérica, mas tal- ver nao seja de conhecimento de muitos que, além dos judeus, os surdos ', varios académicos — in- telefone — lideraram Comprometidos com 0 movimento euge' dluindo Alexander Graham Bell, nosso inventor campanhas para proibir qualquer tipo de contato surdo-surdo, relegando-os tico e social absoluto, temerosos de quea raga humana tuosos”, Embora tenha sido professor de veemente do oralismo e julgava a lingua de ine, 1984). O caso de Martha's Vineyard serviu de base para ele investigar a questo da hereditariedade da surdez, mas em suas especulagdes nao conseguiu explicar o fato dealguns pais surdos nao terem filhos surdos. Isto porque 0 desenvolvimento do conceito do aspecto reces- sivo de heranga genética foi apontado por Mendel apenas em 1900. 0 fato mais grave de toda a especulacao de Graham Bell, todavia, nao esta apenas responsabilidade cientificas em liderar campanhas to de sures, jé que ele definia a surdez. como uma “anormalidade da raga humana’: Sua notoriedade, agregada ao pensamento eugénico da época’, fez. com que ele obtivesse atencao piiblica. Ele conseguiu difundir essas ideias imordialmente a partir de uma palestra proferida na National Academy of .ces, em 1883, intitulada Memoir upon the Formation of a Deaf Variety of the Human Race. Varios outros fatos macabros sao relatados, mas, atual- ‘mente, ise reconhece a tremenda atrocidade cometida contra os surdos no passado, que resultou no crime da privagtio linguistica e no estigma social e psicolégico que carregam, até hoje, todos os surdos na nossa sociedade. Ha diferentes tipos e graus de surdez? {duo pode ficar surdo por ria, Certamente. Aliteratura mostra que 0 varias causas, e que ha “aproximadamente 70 tipos de surdez heredi tauragio de les que exterminariam entes fsics, mentas,individuos de casa aacio coereitiva, Je Eugenia em 1921, elas propostas pelo mais ou menos 50% delas esto associadas com outras anormalidades” (Groce, 1985: 22). Dentre as causas congenitas, 0 contato do embrido ou feto com os virus da rubéola, sifilis, toxoplasmose, citomegalovirus e her- pes sio as causas mais recorrentes. Outros indicadores de riscos para os recém-nascidos so as anomalias craniofaciais, hiperbilirrubinemia, neu- rofibromatoses, meningite bacteriana, medicagdes ototéxicas etc. Confor- ‘me Santos, Lima & Rossi (2003: 19-20), 0 tipo de surdez pode ser con- dutiva, neurossensorial ou mista. A condutiva ocorre por uma “alteraga0, na orelha externa (meato actistico) e/ou média (membrana timpanica, cadela ossicular, janelas oval e redonda e tuba auditiva)’. JS sensorial afeta a céclea e/ou o nervo auditivo. As perdas auditivas mistas, por sua vez, englobam alteragdes condutivas e neurossensoriais. vio Extn O grau de surdez pode variar de leve a profundo. A surdez leve pode, entretanto, ir se agravando com o tempo e virar surdez profunda, Sao li- miares de calculo os resultados em decibéis: “normal: até 25 dB, leve: de 26.40 dB, moderada: de 41 a 55 dB, moderadamente severa: de 56 a 70 4B, severa: de 71 a 90 dB, profunda: maior que 91 dB". Uma Gitima palavra, & facilmente demonstravel que a classificagao dos tipos e graus de surdez pode nos cegar para o entendimento das re- 91 apud Santos, Lima & Rossi, 2003, ages que cada individuo estabelece com a lingua de sinais, identidade e cultura surda, Um surdo profundo, por exemplo, pode nao se ident com a lingua ou cultura dos surdos e optar exclusivamente pela oraliza- ‘¢40, da mesma forma que um surdo com surdez leve ou moderada pode demonstrar uma rela¢ao contréria: uma profunda identificagdo com os tragos culturais dos surdos sinalizantes. E nesse sentido que se pode di- zer que nem todos os individuos com algum tipo de perda auditiva sao ne- cessariamente deficientes auditivos ou surdos — estamos falando, 6 claro, da carga ideoldgica que as nomeagées carregam, e respeitando a filiagdo na qual cada um se inscreve s6cio-historicamente. Aparelhos auditivos ajudam o surdo a ouvir melhor? Sim...rufdos! Nao Kingua como se pensa. Vejamos um epis6dio relata- do por uma entrevistada surda profunda: Quando eu era pequena sempre quis ter um aparelho auditivo. Pedia para ‘minha mae comprar e ela sempre dizia que a ver.. Tinka vontade porque via alguns surdos usando atrds da orelha e achava que eu devia usar também. ‘Achava bonito e, enquanto ndo ganhel um, nao sosseguel. Minha mae comprou ‘ume eu fiquei muito fez. No comeco eu usava bem feliz, mas a verdade é que ‘me incomodava. Sempre me incomodou, o aparelho & muito desconfortével. Faz rufdos muito altos e eu tinha dores de cabera e irritagdes, pois ao ligar ‘aquilo comega a fazer barulo na minha orelha. Minha cabepa nfo aguentava. Aos poucos, fui deixando de usar. Néo gostava da sensacdo que sentia. Minka ‘mie comegou a me obrigar a usar e disse que era para o meu bem, para eu po- der ouvir os outros e aprender a falar. Mas nunca ouvi nada ou entendi nada. 'é via a boca dos outros mexendo, abrindo e fechando sem som, e entiio eu imitava para deixar minha mde feliz. entrevista gerada em 2004) Accrenga de que os aparelhos auditivos funcionariam para restabe- lecer a audigao do surdo profundo é compertilhada por muitas pessoas. Puro engano, 0 que os aparelhos auditivos' fazem é amplificar um som, > Entrevista concedia em Linas traduaida para o portugues *Osaparethos audtivns slo dispositivoseletrinicos, miniampliicadores, cuja fungao ¢ con uzir 0 som 4 orelha através da coletae transmissio da onda sonora. Seu mecanismo atua de que possivelmente funciona idosas que, com 0 pas- sar do tempo, perdem parte de sua audir3o, ou mesmo para aqueles que tém um residuo auditivo maior. Entre os individuos com perda auditiva to- tal, hd uma distingao na literatura entre o surdo pés-lingual e pré-lingual. O primeiro refere-se aquele que experimentow a audigio durante um do da sua vida e mantém relagdes, possivelmente de ordem neurolégica © por associages baseadas na experiéncia, com a lingua sonora. 0 surdo pré-lingual, por outro lado, “néio tem experiéncia auditiva ou imagens para invocar” (Sacks, 1990: 6). No caso de surdos profundos, de nascenca, 0 que se obtém ao fazer uso de aparelhos auditivos so apenas ruidos fortes, que sio muito desagradaveis. 0 ‘nico tipo de “funcionalidade” poderia ser a expressada por um surdo queafirmou que, as vezes, gosta de sentir chiados na orelha, especialmente para garantir que perceberd quando a campainha telefone tocam, por meio de sons provocados por uma vibragdo am- icada no timpano, Mas ao ser perguntado se ouvia e entendia a lingua portuguesa quando um ouvinte falava, ele respondeu negativamente: ‘Tem uma época que todos os surdos querem ter 0 aparelho e acho que é por- {que as pessoas pensam que vamos recuperar a nossa audigio, vamos volear a falar portugués. Alguns ouvintes sempre me perguntam se os aparelhos au: ditivos ajudam o surdo a ouvir melhor... Eu ndo escuto nuda além de rutdos. ‘Muttos pais pensam que funciona como méigica... Eu conheco pais que prof ‘bem 0s flltos de sair de casa sem o aparelho na orelha.. As préteses ou aparelhos auditivos, conforme argumentam os fono- audi6logos, ajudariam as criangas com surdez severa ou profunda a “es- timular a audicao residual” ¢, assim fazendo, “perceber os componentes aciisticos da fala’: Veja-se quese esta falando em “percepcdes eestimulos A escuta auditiva e o discernimento dos sons vocélicos ou consonantais da lingua portuguesa sao identificados somente pelos individuos que tem surdez moderada ou leve (Lima, Boechat & Tega, 2003: 44-45) e, mesmo assim, dentro de um modelo gradativo de reabilitagao auditiva que vai desde a detecgdo, discriminagao e reconhecimento dos sons até a com- nso da linguagem. F esta tiltima vai muito além da utilizagao das idades puramente acisticas, uma vez que a compres gem é complexa e envolve uma multiplicidade de fatores: ela pressupde relagdes entre mensagem e contexto, dominio de conceitos e a vivéncia social, o préprio conhecimento de linguagem da crianga, a sua meméria sequencial e 0s conhecimentos gramaticais. E preciso ainda considerar que, quando prescrevem o uso de préte- ses depois da avaliagdo audiométrica, os profissionais da érea pontuam que a idade, a motivagao, o estilo de vida e o estado geral de saitde sao va- ridveis que afetariam o “sucesso” da reabilitacao. Portanto, os aparelhos no atuam na decodificagao instantnea da linguagem apenas ao serem agregados ao ouvido, do mesmo modo que uma pessoa completamente ccega, por exemplo, nao passa a enxergar utilizando culos ou lentes de grau. Varios surdos com surdez profunda, oralizados e nao oralizados, de diferentes idades, submeteram-se ao uso de préteses auditivas, eé impor- tante dizer: todos os relatos que eles fazem so muito similares quando se pergunta sobre as experiéncias com 0 aparetho. Todos informam que ha escuta de ruidos, apenas ruidos que vibram na orelha. Os ind{cios daque- Jes que "voltam a escutar’, pode-se concluir, seriam casos excepcionais. O implante coclear recupera a audigao do surdo? As intervengdes cirdirgicas em pacientes surdos tém sido alvo de muita polémica. A recuperagao da audigao, nesses casos, vai depender de indimeras varidvets, mas hd muito ceticismo em caso de surddos profundos, especialmente adultos. Nos experimentns em que um surdo tenha se sub- metido ao implante, 0 resultado é sempre drastico, pots, além de se tratar de um método invasivo para a colocagio do dispositivo interno, o sucesso com as respostas auditivas dependera de varios fatores: idade do surdo, tempo de surdez, condigdes do nervo auditivo, quantidade de eletrodos implantados, situagao da céclea, tempo da surdez, trabalho fisiot do fonoaudidtogo, acompanhamento periédico do médico para ativacao e ajustes no dispositivo do implantado etc. Hé quem considere todas esses

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