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SE CELIA SAKURAI ~ IMIGRACAO TUTELADA. OS JAPONESES NO BRASIL. Tese de Doutorado apresentada ao De- partamento de Antropologia do Institu- to de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientagio da Prof. Dra. Mariza Corréa Este exemplar corresponde a redacao final da tese defendida e aprovada pela Comissio Julgadora emZ2 / C%) /2000 BANCA Prof. Dra. Mariza Corréa (orientadora) Lope Prof. Dra. Guita Grin Debert a ne 7 i— L1) jwor3“Me [ee QeW” Prof. Dra. Giralda Seyferth 4 ) IoD Prof, Dr. Boris Fausto. 27 72< Aree unioane BO Ns CHAMADA: di FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA. BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Sa29i Sakurai, Celia Imigragao tutelada: os japoneses no Brasil / Celia Sakurai. - -| Campinas, SP : [s. n.], 2000, Orientador: Mariza Corréa. Tese (doutorado ) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. 1, Imigrantes - Brasil. 2. Imigrantes - Japoneses. 3, Discriminagao racial. 4. Japoneses ~ Cotia (SP) - . I. Corréa, Mariza . I. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. IIL-Titulo, iii RESUMO As condig6es sécio-histéricas do pais de origem podem estar intimamente ligadas a estratégias de fixagdo dos imigrantes no seu pais de destino. No Brasil, os japoneses e seus descendentes tém a sua imagem publica ligada a agri- cultura. A nogao de imigragao tutelada ajuda a refletir sobre como o grupo imigrante japonés se fixa no pais, ¢ atende aos interesses do Japao no Brasil. Atéa discrimina- ¢4o contra os japoneses ¢ utilizada para construir uma marca postiva para o grupo. ABSTRACT i Social-historic conditions of the country of origin may be closely related to immigrant ’s strategies into a new country. In Brazil, Japanese immigrants and their descendents developed a public image associated to agriculture. The idea of tuttelled migration helps us to better understand how the Japanese immigrants as a group simultaneously set up in Brazil, and meet the interests of Japan. Even the discrimination against the Japanese has been used to get a positive score to the group. iv “Transcorreram trinta anos desde que chegamos a este pais. Nesse lapso de tempo pereceram, vitimados por varias causas, um total de quase vinte mil almas entre velhos, jovens, homens e mulheres. Voltar ao Japao, abandonando seus tumulos, ndo constitui absolutamen- te 0 caminho certo com respeito aos nossos antepassa- dos. Eu trabalharei com todo empenho até o dia de ser sepultado neste pais. Com a imagem saudosa da pdtria, 0 Japao, no coragao, orarei até 0 meu iiltimo suspiro pela sua prosperidade. E farei 0 maximo de esforgo para fazer de meus filhos bons brasileiros, capazes de servir bem & sua pdtria” (Shungoro Wako, 1938)! * in CEHIIB, 1992: 241. INDICE DOS QUADROS E TABELAS INDICE DOS CAPITULOS PREFACIO.. INTRODUGAO ...... 1 CAPITULO 1. “OS INTERESSES DA RACA E DA SEGURANGA PUBLICA E SOCIAL DA REPUBLICA". OS IMIGRANTES NO CENTRO DE UMA DIS- cussAo . 5 CAPITULO 2 “REVERENCIEMOS O IMPERADOR, EXPULSEMOS OS BAR- BAROS “ UM POUCO DE HISTORIA. JAPAO. 27 CAPITULO 3 O “PRECONCEITO DA NACIONALIDADE POLEMICAS EM TORNO DOS IMIGRANTES JAPONESES NAS DECADAS DE 1920-30. CAPITULO 4 *. IMIGRANTE” PATRIA NA SOLA DOS PES”. AMBIGUIDADES NO “SER 76 CAPITULO 5 “OLHA OS BUGRES! “ A FIXACAO NO BRASIL. DADOS PARA REFLETIR. .. CAPITULO 6 “PROFUSAO DE VARIEDADES, CORES, QUALIDAD. CAC CRIANDO IDENTIDADES. CONCLUSAO. .. BIBLIOGRAFIA CITADA... APENDICE. .... vi {NDICE-DOS QUADROS QUADRO 1 Entrada de imigrantes no Brasil por periodo-1884-1945 QUADRO 2 Densidade demografica do Japio comparada com a dos pai que recebem trabalhadores japoneses-1921.. 41 QUADRO 3 Japoneses fora de seu territério por destino, condigao e por pe- riodo % 1885-1945. 146 QUADRO 4 Imigragao japonesa no Brasil por periodo % 1908-1963. ......52 QUADRO 5 Imigrantes japoneses no Brasil no periodo entre 1908 e 1941. ....60 QUADRO 6 Entrada de imigrantes japoneses entre 1924-1934.......... 60 QUADRO 7 Produg&o de algodao em carogo por lavradores japoneses nas zonas pionciras do Estado de Sao Paulo - 1932-1938. 89 QUADRO 8 Remessa de dinheiro per capita de imigrantes japoneses -1920- 1931... 92 QUADRO 9 Populacao residente no nucleo urbano de Cotia no século XIX. ..... 119 QUADRO 10 Populag&o do municipio de Cotia e arredores em 1886...... 119 QUADRO 11 Morfologia da populagao da regiao de Cotia QUADRO 12 Tamanho das propriedades rurais em Cotia. 1905 e 1940..121 QUADRO 13 Distribuigao por sexo dos imigrantes japoneses no Brasil -1908- 1962... 2129 QUADRO 14 Distribuigao por sexo dos imigrantes japoneses nos Estados Unidos-1900-1926. 129 QUADRO 15 Distribuigao por sexo dos imigrantes japoneses na Argentina - 1914... 129 QUADRO 16 Distribuigdo por sexo dos imigrantes japoneses no México - 1895-1970. 131 QUADRO 17 Distribuigao por sexo dos imigrantes japoneses no Peru -1899- 1923... 131 vii QUADRO 18 Origem dos dez grupos mais numerosos de imigrantes japoneses no Brasil segundo a regiao do Japo até a Segunda Guerra Mundial %. .....133 QUADRO 19 Idade dos japoneses morando no exterior como imigrantes ou colonos -1932. .. 134 QUADRO 20 Tamanho da familia no Japao.... 137 QUADRO 21 Populagao de origem japonesa municipios de Marilia, Tupa, Lins ¢ Presidente Prudente. 1940... 139 QUADRO 22 Populagao masculina de origem japonesa: agricultores e auténomos. municipios de Marilia, Tupa Lins e Presidente Prudente, 1940. 40 QUADRO 23 Consumo diario de tomates na cidade de Sao Paulo. (1926- 1940). 149 QUADRO 24 Indice de crescimento da populagdo do Brasil, do Estado de Sio Paulo ¢ da cidade de Sao Paulo - 1900-1920-1940-1950.... 155 QUADRO 25 CAC -Ano de criagao ¢ localizacao dos Depésites Regionais até o final da década de 1940. 55 viii INDICE DAS TABELAS TABELA 1 Idade média dos registros tardios da populagao japonesa nascida em Cotia por coortes- 1916-1970. .. 123 TABELA 2 Quadro das retificagdes contidas nos registros de nascimento dos descendentes de japoneses nascidos em Cotia 1916-1970... 125 TABELA 3 Quadro das retificagdes contidas nos registros de nascimento dos des- cendentes de japoneses nascidos em Cotia por faixa de idade - 1916-1970...... 126 TABELA 4 Pais de nascimento dos noivos por coorte- Cotia 1916-1960 %. .... 132 TABELA 5 Pais de nascimento das noivas por coorte Cotia 1916-1960 %. ...132 TABELA 6 Origem dos noivos, noivas, pais, maes das pessoas registradas em Cotia segundo regiao de origem no Japao- Cotia -1916-1970 %. 135 TABELA 7 Numero de filhos por familia e por periodo da populagao registrada no cartério de Cotia - Cotia 1916-1970. 138 TABELA 8 Numero de nascidos no Japao - Cotia por coorte- 1916-1970. 140 TABELA 9 Locais onde os registrados se casaram - Cotia - ‘1916-1970.....144 TABELA 10 Levantamento dos casamentos ocorridos em Cotia entre imi- grantes ¢ descendentes de japoneses residentes no mesmo bairro - 1916-1960 por coortes. .. 153 ix INDICE DOS GRAFICOS GRAFICO 1 Estrutura social japonesa na época Tokugawa. GRAFICO 2 Pirdmide etaria dos imigrantes japoneses no Brasil. . 36 GRAFICO 3 Porcentagem de imigrantes residentes na Borda do Planalto- 1915-1957 142 GRAFICO 4 Porcentagem de imigrantes residentes no Litoral- 1915-1957 ws. 142 GRAFICO 5 Porcentagem de imigrantes residentes na regido Noroeste- 1915- 1957. 142 GRAFICO 6 Porcentagem de imigrantes residentes na regiao Sorocabana- 1915-1957... 143 GRAFICO 7 Porcentagem de imigrantes residentes na regio da Alta Paulista- 1915-1957... 143 GRAFICO 8 Porcentagem de imigrantes residentes na capital e cercanias de 143 Sao Paulo- 1915-1957 INDICE DOS MAPAS MAPA 1 O Japao na época Tokugawa. MAPA 2 Possessdes japonesas - 1868-1941. MAPA 3 Divisao do Estado de Sao Paulo por zonas.. MAPA 4 O ‘perigo amarelo’ na América Latina. MAPA 5 O Japaéo moderno- regides. MAPA 6 Localizacao dos Depésitos Regionais da CAC PREFACIO Os imigrantes no Brasil tm uma presenga marcante no cendrio social do pais. Esse cenério tem sido recortado por historiadores, socidlogos, antropélogos, de for- ma a introduzir o imigrante como um integrante novo a estrutura social brasileira, desde pelo menos 0 tiltimo quartel do século XIX, se considerarmos apenas a imi- gragdo em massa. A chegada de grande numero de estrangeiros provenientes basica- mente da Furopa para o sudeste do pais, desencadeia uma atmosfera de novidade no pais que estava se encaminhando para a renovacdo, especialmente no ambito das forgas sociais em convivio. ‘outro’, o ‘estrangeiro’, 0 ‘diferente’. passa a compartilhar com os nativos brasileiros a sua vida e os seus sonhos nesse pais que. para eles também, é ‘estra- nho’, ‘diferente’, ‘novo’. Uma intensa trama de relagdes de alteridade marca a pre- senga desses imigrantes em qualquer espago em que se instala, nfo importa o seu local de origem. Inameros tém sido os estudos, enfoques, teorias, nos quais os imigrantes so os personagens centrais. Nos paises onde a sua presenga é mais numerosa, a preocu- pacao é mais destacada. A compreensdo de como os grupos de ndo-originarios do pais se introduz e se instala no novo ambiente, tem estimulado analistas de diferen- tes disciplinas académicas, estudiosos, e mesmo curiosos a se embrenhar nesse tema. O produto desse conjunto de inquietagdes tem se concretizado em livros, artigos, teses académicas, artigos jornalisticos, romances de ficgdo, livros de memérias, en- saios iconograficos, entre as mais recorrentes. Em suma, o imigrante ¢ um persona- gem que chama a atengo, que desafia a percep¢ao daqueles com quem convivem, na medida em que expée de maneira visivel a nogao de ‘outr Este trabalho € mais um que trata da imigracdo. E, é da mesma forma, fruto dessa inquietagdo sobre quem é, como é esse(s) outro(s). Tenho raz6es particulars para essa inquietagiio, desde que ela sempre fez parte da minha histéria pessoal. Descendente de terceira geragao de imigrantes japoneses, a minha histéria pessoal € familiar se confundem com a trajetéria dos japoneses no Brasil. E no raro, até hoje, a marca da diferenga esté ainda muito presente no meu cotidiano. E nao apenas na aparéncia fisica, mas em outras dimensGes, como na maneira de me ver diante de situages, locais, interlocutores. Esta breve confissao de ordem estritamente pessoal a maneira que encontro para introduzir as linhas gerais deste trabalho. Este no € o primeiro trabalho que apresento sobre a imigragiio japonesa no ~ Brasil. Posso dizer que na realidade, € fruto de um processo que iniciei h4 anos atrés. Fui aos poucos rodeando assuntos dentro do tema que me induzissem a refletir sobre aspectos especificos da histéria dos japoneses no Brasil. Comecei relendo as memérias das imigrantes; depois, quis estudar sobre a participagao politica dos des- cendentes de japoneses: voltei-me depois para a questio da mobilidade geografica dos imigrantes dentro do Estado de Sao Paulo. Um outro breve estudo sobre os japo- neses durante a Segunda Guerra Mundial, e finalmente, um ensaio que me conven- ceu que era necessirio me aprofundar nos contextos temporais espaciais em que 0 processo da imigraeao japonesa se desenvolveu. Esta tese € 0 desenvolvimento de questdes que necessitavam de maiores detalhamentos, ¢ certamente, 0 ponto de partida para outras tantas que ela sugere. E nesta trajetéria, sei que poderei contar com o estimulo de inumeros colegas e ami- gos, como ocorreu até agora. Eu posso afirmar com toda a tranqililidade, que me consider uma pessoa de muita sorte. Nesses anos todos, tive o privilégio de trabalhar ¢ conviver com pesso- as que me ajudaram a perceber que é sempre possivel ir adiante, melhorar. Séo mais que ligdes da academia, sao ligdes de vida que procurei aprender. Desde os tempos de Graduagdo e Mestrado em Ciéncias Sociais na USP, nos trabalhos de pesquisa desenvolvidos em diferentes instituigdes, no Doutorado da UNICAMP, estive sempre aprendendo. Com Ruth Cardoso, Eunice Durham, dos tem- pos da USP que me abriram os caminhos para a vida académica; com amigos como Ana Cristina Braga Martes, amiga desde os velhos tempos, estivemos passando jun- tas por experiéncias mais ou menos parecidas, ¢ contando sempre com a sua amiza- de. O IDESP € um caso muito especial. Foi ld que iniciei os meus trabalhos sobre imigragao japonesa e comecei a perceber a imensa riqueza deste tema. Sao inesque- civeis as discussdes em torno da mesa comprida (que as vezes parecia maior do que era), na Dr. Arnaldo, quando nos reuniamos para discutir a nossa produgao. Impla- caveis eram os comentarios dos colegas. Nada passava em branco. Foi ali que apren- di a prestar atengao aos detalhes e as coisas grandes. Os profs. Sérgio Miceli, Boris Fausto, os coordenadores do grupo, me ensi- naram, € muito. Sou ‘niponicamente’ (com todas as interpretacdes que o termo su- gere), agradecida a eles. Agradeco por todas as oportunidades, pelo incentivo, por todas as broncas ¢ elogios. Confesso que nem sempre foi facil digerir as criticas, mas hoje reconhego que foram extremamente sugestivas para eu poder melhorar, Mais recentemente, a prof. Maria do Carmo Campello de Souza, que diz nao enten- der nada de imigragiio, me coloca a prova, exatamente porque no entende nada de 7 imigragdo. Ela chama a atengdo para aspectos que passam desapercebidos para aqueles que esto viciados dentro do tema. Carmute, obrigada por me ajudar a ‘abrir os olhos”. Para no ser injusta, coloco em ordem alfabética os colegas do grupo: José Renato de Campos Araujo, Maria do Rosario Rolfsen Salles, Oswaldo Truzzi, Roberto Grun, amigos e companheiros de sofrimento e de glérias. Estamos juntos ao longo de dez anos, sem que 0 grupo se desfizesse. Isto é um bom sinal. O clima de companheirismo, de ajuda matua, tem sido a nossa marca. Ha uma troca muito rica entre nds, que vai desde bibliografia (Roberto sempre com a ultima publicagéio in- ternacional), de aportes metodolégicos, fontes, recortes de pesquisa que sé me fize- ram crescer. Amigos, esta € mais um produto do nosso grupo. Na UNICAMP, fiz muitos conhecimentos. Sai do circuito da USP e convivi com mestres que me trataram mais como colega que como aluna. A comecar pela minha orientadora, Mariza Corréa, Mariza, eu te agradego pelo imenso respeito que vocé sempre me tratou. A sua atengdo, a prontidao com que vocé sempre me atendeu me marcaram profundamente. Eu vejo em sua pessoa como ¢ possivel conciliar uma intensa vida intelectual com cordialidade. carinho e atengéio. Para um orientando inseguro, esses so ingredientes mais importantes que grandes discussdes teéricas. Ainda na UNICAMP, Suely Koffes, Ana Maria Goldani, professoras dos meus cursos de formagSo na area de Familia e Género; os mestres profs. Vilmar Faria e Juarez Brandao que me reciclaram na area de metodologia. Inesquecivel também a colocagao do prof. Juarez numa das aulas em que ele nos disse para deixarmos de ser timidos e que tivéssemos a coragem de ousar, de questionar. Eu tentei, professor. No CEMI (Centro de Estudos de Migragées Internacionais), a prof. Bela Bianco, Teresa Sales me colocaram muitas vezes ‘na fogueira’, me colocando diante de desafios, abrindo oportunidades de didlogos tedricos e metodolégicos que sé vieram me enri- quecer. Obrigada. Agradego também & CAPES pelas bolsas de estudos. Mais recentemente, a minha estada no Museu Histérico da Imigragao Japone- sa no Brasil tem me colocado em contato com situagdes que me estimulam a pensar sobre a vida da ‘colénia’. Nessa vivéncia quase cotidiana tenho aprendido muito. Aos meus colegas e amigos, Célia Abe Oi, Massato Ninomiya, Hiro Kai, Erica Uehara, Irene e Jorge Watanabe, grata de coraedo por tudo. A dona Emi Kato, sr. Nakayama, Mieko, o meu agradecimento especial pela prontidio com que sempre me atende- ram. E agora, a familia. Minha irma, Emilia, me ajudou como profissional a enten- der os caminhos da anélise quantitativa. Rigorosa como sio os estatisticos, ela me impés uma férrea disciplina para ndo me dispersar com os dados de Cotia. Foram intmeros os telefonemas e fax entre S40 Paulo e Belo Horizonte para concretizar xiii esta parte do trabalho. Aliando pulso com sentimentos de uma ligagdo muito forte, conseguimos trabalhar juntas, As falhas que aparecerem, sao responsabilidade da aluna que nfo deve ter assimilado bem as ligdes. Quanto ao marido, é tio dificil nesta hora, colocar aquilo que significam os sentimentos misturados ao trabalho intelectual. Nesses anos todos, 0 seu apoio em todos os sentidos foi fundamental. A palavra cheia de significados que deixo para vocé, Braz, € ‘arigatai’ (no cap. 4 eu explico o que é). Minha mie foi e é, a grande doutora em imigragfo japonesa. A sua intensa vivéncia, sua rara memoria e a sua disposigao para dar informagdes foram o meu maior estimulo. Atenta e atenciosa, minha mae Fumico é a minha maior incentivadora. Eu sei que devo a ela e a todos os meus ascendentes, pai, avés, alguma coisa que estivesse ao meu aleance realizar. Escrevi. Sei que € pouco, mas € 0 acho que sei fazer. Desta forma, estou procurando retribuir a vocés, tudo aquilo que, como imi- grantes, vocés fizeram para que eu tivesse condigdes hoje, de apresentar este traba- Tho para a sociedade. Sei que estou contemplando um sonho que meu pai Tadashi ¢ meus avés sempre tiveram. Guilherme, meu filho, vocé é a continuagao de uma linhagem que tem uma historia ainda muito curta no Brasil pelo seu lado japonés. Vocé é da quarta geragaio de uma familia que veio para o Brasil exatamente na época que eu trato neste traba- tho. Gostaria que vocé aprendesse o que seus bisavés e avés passaram quando che- garam neste pais que é nosso, ¢ que eles lutaram muito para que fosse nosso. Nao foi facil. Se vocé sempre me questionou porque eu vivia escrevendo a tese, eu te digo que eu estou procurando deixar para vocé, um lado de uma historia sobre a qual nos devemos sempre pensar. Ela é parte de vocé também. ECAG CIRCULANT? INTRODUGAO Tudo comegou a indagagao de minha orientadora, hd anos atrés: por que os japo- neses se dedicam & agricultura? Esta pergunta simples, me deixou inquieta por muito tem- po. Por que a agricultura é um nicho associado aos japoneses, se tantas outras pessoas € grupos a ela também se dedicam? A busca de uma resposta a indagacdo me fez enfrentar ‘o desafio. Esta tese é, Mariza, a minha maneira de te responder |. E foi realmente um desafio. Isto porque eu sempre tive uma irritagdo (confesso) quando fazia leituras sobre os japoneses no Brasil. Via nelas, uma tendéncia a sobrevalorizar o papel do imigrante japonés. As idéias de ‘povo unido’, de agricultores exemplares, vistos pelo senso comum, e por outro lado, os préprios japoneses se vendo como vencedores num ambiente totalmente estranho, carregando consigo um tom até épi- co na reconstituigio de sua historia. O que me inquietava era a recorréncia dessa imagem positiva, quando € sabido que historicamente ela nem sempre foi assim. Era preciso buscar raz6es para isso. E justamente quando vem a pergunta do por- qué adedicagao a agricultura. Responder apenas que os japoneses sempre foram agricul- tores seria no minimo, ingenuidade. Aceitar também a explicacdo de que o comércio é menos nobre que a agricultura na tradigdo historia japonesa (cap. 2) é também pouco aceitivel. O processo imigrat6rio é muito mais complexo que o transplante de uma tradi- ¢40 do pais de.origem. Também porque, o Japdo nao poderia ser caracterizado como pais agricola. O que haveria, entéo? Escolhi um caminho que me fornecesse condigdes para refletir sobre as condigSes nas quais 0s japoneses se fixaram na agricultura. Por isto, busquei entender os contextos, (0s momentos com os quais estava trabalhando, numa perspectiva de procurar entender aquilo que estava ocorrendo no Brasil, no Japdo, no Estado de Sao Paulo especificamen- te, e também dentro do préprio grupo. Na realidade, os caminkos do pensar nem sempre nos conduzem aquele proposto. O projeto inicial da tese ‘era ode estudar as familias de origem japonesa, dentro da linha da minha area Familia e Relagdes de Género ‘no Doutorado da UNICAMP. No entanto, eu me deparei com uma reflexdo que me pareceu anteceder a esta discussio especifica. Fiz uma escolha pela compreenso dos mecanismos mais largos para depois, futuramen- te me dedicar a entender mais de perto o que ocorreu no interior das familias em fungo dessa historia mais larga. 2 produto é uma leitura da imigragao japonesa que procura delinear os contornos dentro dos quais os imigrantes japoneses se inserem no Brasil. A dedicagao a agricultura éuma decorréncia de diferentes fatores. Ela nao é gratuita, mas o resultado de uma inten- sa gama de relagdes que vao criando a imagem que se tem dos japoneses. No decorrer deste processo, criam-se também as identidades com as suas marcas étnicas. As etnicidades do grupo vao sendo construidas de acordo com o interlocutor, com o contexto, com as metas do proprio grupo. Por isto, esté claro para mim, que a insergaio dos japoneses no contexto urbano é uma outra pesquisa ?, Da mesma forma, optei por fazer um recorte temporal. O periodo estudado vai até o inicio da Segunda Guerra Mundial. Justifico: a meu ver é até 0 inicio dos anos 1940 que ocorre a construgiio deste conjunto de relagdes. E 0 periodo crucial para se compreender como se desenvolve 0 didlogo dos japoneses com a sociedade abrangente. A guerra é um capitulo a parte que demanda uma pesquisa especifica. O ponto de partida no passado vai mais para tras que 1908, 0 ano de inicio da imigragio japonesa. Para mim, era necessirio voltar para meados do século XIX para ter um qua~ ‘dro mais amplo dos contextos que estava buscando. Desta forma, o trabalho se divide em seis cap{tulos. No primeiro, quero entender o lugar dos imigrantes na histéria do Brasil. Nesse capitulo, contemplo 0 contexto sécio- politico no qual os imigrantes entram na histéria de nosso pais. E um perfodo de quase um século, desde meados do século XIX até o periodo apés a Segunda Guerra Mundial. Isto porque era necessario acompanhar as mudaneas que iam ocorrendo para se perceber como o imigrante vai se integrando a vida brasileira. Esta sintese da o pano de fundo para a compreensdo de uma discussdo de Ambito politico-ideolégico e também académico que coloca, a meu ver, o imigrante como um interlocutor central. Nele, o imigrante nao apare- ce apenas como 0 substituto do escravo como mao de obra, mas exerce um papel ativo, que muda com o tempo e as circusntancias. No segundo capitulo, fago um quadro do Japao antes e durante 0 periodo da imigrago. Houve a necessidade de pontuar alguns eventos da histéria japonesa que pu- dessem explicar 0 contexto da saida de japoneses pelo mundo. A meu ver, a hipétese da explosaio demogréfica aceitavel até um certo ponto, desde que ‘os niimeros néo mentem jamais’. Mas € de posse desses ntimeros que procuro desenvolver um argumento que vai mais além do demografico. E no problema da inser¢ao do Japao no mundo moderno que incorporo a vinda de japoneses para o Brasil e para outras partes do mundo. Oterceiro, é a discussao especifica sobre os japoneses. E um capitulo que sinte- tiza, sob 0 ponto de vista de parte das elites brasileiras, a discusstio esbogada nos dois ? Esta pesquisa sobre os japoneses na cidade de Séo Paulo jé foi iniciada, Ela recai sobre aspectos que conduzem a uma reflexdo sobre personagens que ajudaram a construir um caminko paralelo ao esquema voltado para a ogricultura (Sakurai, 2000). 3 capitulos anteriores percorrendo sobretudo as décadas de 1920 e 1930. Com os elemen- tos ja desenvolvidos sobre o lugar do imigrante no Brasil, abordo como os imigrantes japoneses so tratados neste periodo. ‘A questao racial tem um lugar de destaque neste contexto, e certamente a alimen- tou com novos elementos. 0 problema da ‘raga’, apesar de extremamente importante para a compreensao da historia da imigracdo japonesa no Brasil, tem sido ignorada, ou mascarada, tanto pelos académicos como pelos autores de ascendéncia japonesa. Ela é sumamente importante, tanto que a meu ver, requer um aprofundamento minucioso que foge aos objetivos deste trabalho. Aqui so colocadas as vertentes principais desta dis- cussdo que até renden a formulacao da legislasao restrtiva de 1934, Ela ndo é portanto, nem gratuita ¢ sem conseqiiéncias. No seu pivé esto os japoneses. Por que? Porque 0 Japo, enquanto Estado em ascens&o, ganhando visibilidade internacional, esté por tras. Na realidade, mais do que racial, o problema ¢ de alcada das relagdes internacionais, do didlogo entre o Brasil e 0 Japao. quarto capitulo volta-se para a minha leitura sobre como, a partir dos contextos expostos, os imigrantes japoneses enfrentam a sua vida no Brasil. Neste capitulo coloco um aspecto, também este pouco mencionado, do que chamo de ‘tutela’ do governo japo- nés. Este aspecto ja havia sido esbogado em artigo publicado numa coletanea (Fausto, 1999). Este capitulo desenvolve a questo com o objetivo de demonstrar o porqué da “vocagao’ agricola dos japoneses. Que também nao € absolutamente gratuita, mas esta intimamente ligada a contextos sociais e politicos. Neste conjunto de elementos, uma das identidades dos japoneses vai se forjando e fornecendo as marcas de sua etnicidade no Brasil. Depois, no quinto capitulo, com os elementos que tenho em mos, analiso um aspecto que os dados dos capitulos anteriores colocam interrogacées. Na bibliografia no senso comum, a migrac&io temporéria é, até a guerra, o fator explicativo para o traba- Tho e a poupanga. A questao do retorno sempre foi motivo de inquietagaio de minha parte. E um fato transmitido e repetido a exaustéo, sem quaisquer questionamento. A pobreza, pelo excesso de populagao, teria expulsado os japoneses para o Brasil. O intuito dos imigrantes era o de enriquecer no Brasil e retomar rico para o Japao. As evidéncias dos capitulos anteriores coloca em duvida este problema, dando espaco para desenvolver 0 raciocinio sob novos angulos. Finalmente, no tiltimo capitulo, escolhi analisar 0 caso da Cooperativa Agricola de Cotia para entender melhor como o desenvolvimento de novas praticas agricolas foram centrais para a consolidacdo da imagem de agricultor dos imigrantes japoneses no con- texto brasileiro. E um olhar voltado para um caso particular que no entanto, tem reper- cussdes para todo 0 grupo. Em suma, hd neste trabalho, pontos que problematizam aspectos que a ‘histéria oficial’ coloca como definitivas, do mesmo modo que abro atalhos para interpretagdes 4 que me conduzem a premissa de que é sempre possivel compreender os fatos sociais sob novas luzes. ‘Trabalhei com fontes escritas e com a bibiografia. Além disso, fiz um levantamento de dados para preencher os objetivos dos capitulos 5 ¢ 6. As especificagées de como irabalhei com esses dados esto no Apéndice. Terminado o trabalho, creio que a minha irritagao inicial se dissipou, pelo menos por enquanto. Sei que ainda hé muita pesquisa a ser feita, conforme sugeri acima. O perfodo apés a guerra é outro grande bloco. Espero que surjam mais perguntas inocentes como a de minha orientadora para que, diante do desafio, eu me anime a respondé-las. CAPITULO 1 “Qs interesses da raga e da seguranga publica e social da Republica”.' Os imigrantes no centro de uma discussao. 1. Os Imigrantes nos Projetos de Modernizagao do Brasil “Se a errancia é a liberagdo em relagao a todo ponto dado no espaco e se opée conceitualmente ao fato de ser fixado neste ponto, a forma sociolégica do estran- geiro apresenta-se como a unidade destas duas caracteristicas, Entretanto, este fe- némeno mostra também que as relagdes espaciais sdo, de um lado, condi¢do e, de outro, simbolo das relacdes humanas. Assim, 0 estrangeiro que abordamos aqui ndo é este personagem muitas vezes descrito no passado, 0 viajante que chega em um dia e parte no seguinte, mas antes a pessoa que chega hoje e que permaneceré ama- nha, 0 viajante potencial de certa maneira: mesmo que ndo tenha seguido seu cami- nho, ndo abandonou totalmente a liberdade de ir e de vir. Esta ligado a um grupo espacialmente determinado ou a um grupo cujos limites evocam limites espaciais, mas sua posigdo no grupo & essencialmente determinada pelo fato de que ele nao pertence a este grupo desde o inicio, que ele introduziu caracteristicas que nao the sao préprias endo podem sé-lo” (Georg Simmel, 1908) Tratar de imigracao é em ultima instancia, tratar de estrangeiros’ . As palavras de ‘Simmel sio instigantes para uma reflexdo sobre o imigrante como estrangeiro e a relago quase permanente de tensdo entre aquele que vem de fora ¢ 0 nativo. Neste artigo escrito em 1908, Simmel jé esta sinalizando para temas contemporaneos dentro dos estudos sobre imigragao, como a etnicidade e a construgdo de identidades. O cere da questo da etnicidade nada mais é do que aquilo que Simmel chama de tensao, originaria do estranhamento ¢ das relagdes que dai sao construidas. Em conseqiiéncia, as identidades dos grupos seriam forjadas a partir também dessas tensdes. Em suma, trata-se de uma cadeia de relagées e dos desdobramentos dessas relagdes, que dao a diregdo para se investigar como clas se constréem ao longo do tempo. © Brasil recebeu mais de 4 milhdes de imigrantes ao longo de mais de um século, eportanto 4 milhdes de estrangeiros e mais os seus descendentes. A presenga de um “outro” ndo passa desapercebida, sobretudo nos estados do sul-sudeste. A visibilidade desse outro que vem de fora ajuda também a entender as etnicidades no Brasil. Para ! Roguette-Pinto, 1938: 12 O termo estrangeiro esté sendo usado aqui no seu sentido mais amplo, de pessoa nascida em outro pais. A discussdo politica e social do termo, em contraposi¢ao & do imigrante, tal como o faz Sayad (1998), abrange uma outra ordem de quesibes. Estrangeiro é usado aqui na sua concepedo corriqueira. 6 melhor compreender como os imigrantes, no importa a origem neste primeiro momento, se fixaram e se integraram a vida do pais, € preciso localiz4-los em um tempo e nos espagos sociais desse tempo. Esta forma de abordar o tema conduz a discussio de como ocorreram os movimentos de integragdo dos imigrantes ao pais. Este panorama inicial é importante na medida em que determina as posturas dos grupos imigrantes diante da so- ciedade receptora. Desde que 0 objetivo deste trabalho € 0 de repassar os caminhos pelos quais os. imigrantes japoneses foram se integrando a vida nacional, com especial atengao as ten- sdes entre eles ¢ a sociedade abrangente. Para isto, ¢ necessario resgatar, mesmo sem exausto, 0 contexto que reinava no pais nos momentos em que os imigrantes vém para o Brasil. Sem isso, fica-se a dever ao conhecimento mais profundo de fendmeno tdo impor- tante para a compreensao do préprio pais. Ao definir que a insergao do imigrante ao pais de recepgao é um processo que implica num continuo movimento relacional - imigrantes ou grupo de imigrantes/pais de recepgdo -, a andlise que destaca apenas apenas um dos lados da relagao pode apresen- tar lacunas e explicagSes parciais. Ganha-se maior compreensio sobre os rumos que os diferentes grupos tomaram na definigdo de suas etnicidades ao longo do tempo quando, por outro lado, se focaliza o outro interlocutor, mesmo que este esteja distante do cotidi- ano do imigrante. Para 0 caso dos japoneses em particular, 0 didlogo com a sociedade brasileira é central. O didlogo entre os imigrantes e a sociedade abrangente implica em ficar perma- nentemente atento para os fatos, para as opinides, para o pensamento que domina cada etapa dos acontecimentos que acompanham os imigrantes na sua trajetria no pais que os recebe. Assim, a atencdo nao se restringe aos contornos econdmicos, mas se volta tam- bém-para os outros campos da vida social. Nos trabalhos académicos sobre a imigracdo no Brasil tem sido dada grande énfa- se aos aspectos econdmicos ¢ sociais do fendmeno, sobretudo aqueles que se referem ao imigrante como substituto da m&o-de-obra escrava e os seus desdobramentos sociais. Um balango da bibliografia recente ja foi apresentada por Boris Fausto em sua Historiografia da Imigracdo para Sdo Paulo (Fausto, 1991), onde o autor tematiza 0 assunto em torno de dois problemas: a mobilidade social dos imigrantes, a sua integragao co pluralismo cultural. Em seu balango, Boris Fausto chama a atengo para o interesse tardio ao tema no Brasil, apesar de sua importancia para se compreender mudangas marcantes de nossa historia. A imigragao, até recentemente, nunca foi um tema de estudo em si, como nos Estados Unidos, onde a imigragao e a presenga dos imigrantes naquele pais sempre foi um problema a ser discutido e melhor entendido. No Brasil, como na Argentina, como ressalta Fausto, a imigrago sempre foi encarada como uma “histéria de final feliz” (Fausto, 1991:13). No decorter de sua revisdo, o autor mostra pela bibliografia a partir 7 dos anos 1970, como se desenrola a hist6ria de final feliz, particularmente nos estudos sobre a mobilidade ascensional dos imigrantes. Na maior parte brazilianistas, os autores desses estudos mostram como a conformagao da sociedade paulista, desde o inicio do século, permitiu a ascensfo social dos imigrantes, e uma visibilidade que coincide com a imagem de cidadaos bem sucedidos. Boris Fausto assinala também para o fato de que a imigrago sempre veio mescla- da ao problema no resolvido dos negros em nosso pais. Fausto tem pois razdo: o pro- blema dos negros na sociedade brasileira engendrou um grande niimero de reflexdes ¢ de polémicas que percorrem o pensamento politico e social brasileiro hd pelo menos um século e meio. A questio premente para o pais so os negros e a mestigagem. No entanto, se partirmos da premissa de que a questo do negro esta relacionada aalgum outro interlocutor, a pergunta que dai decorre é quem é esse interlocutor e em que este difere do negro? Uma das resposta a estas perguntas nos faz retornar a Simmel para auxiliar nesta reflexdo. O imigrante como ‘o outro’, contribuiu para dar maior vigor a discussdo que estava presente no Brasil, pelo menos desde o I? Reinado. Pelo contras- te, ndo importa a origem ow a época, aquele que vem ‘de fora’ é recebido com um trata- mento diferenciado. Se uma categoria analitica genérica de etnicidade puder ser utilizada para os imigrantes no Brasil, o seu sinal certamente sera a da diferenga (Carneiro da Cunha, 1986). Diferenga que se elabora e muda de tom, conforme a época eas circuns- tancias, mas que permanece como o sinal diacritico dessa categoria social, que é tao complexa e diferenciada. Essa diferenga nao se restringe apenas ao fato de que na relacio de alteridade entre o que vem de fora - 0 estrangeiro - e o nativo, esta presente um elemento de exterioridade ¢ oposigao (Simmel, 1908:54). As 6bvias diferengas culturais entre todos 08 brasileiros nativos e os imigrantes suscitam, pelo contraste e pela posigo de exterioridade destes, uma ampla reflex&o sobre 0 nosso préprio pais. Deste modo, a questo do negro abre tanto um caminho para o seu problema em si, como ao distinguir 0 imigrante como diferente, contribui para ir moldando um estatuto préprio a estes. A periodizacao dos diferentes momentos da trajetéria do imigrante como elemen- to portador do ‘novo’, tendo sempre o nacional como o elemento de contraste, levanta as formas através das quais a identidade dos personagens da histéria de final feliz vai se construindo ao longo do tempo. Vale ressalvar que a idéia de ‘nacional’, termo largamen- te utilizado até meados deste século, é também uma categoria mével, deixando entender, no entanto, que brancos, negros, indios e mestigos fazem parte desse contingente. Qual a idgia que se faz do imigrante e a do nacional quando se pensa em introduzir estrangeiros como trabalhadores no Brasil? Num primeiro momento, de meados do século XIX até a abolicHo da escravatura em 1888, a questo da imigragao esta adstrita a substitui¢ao do trabalho escravo pelo livre. Hé uma extensa pauta de idéias em jogo, que vai desde a abolicdo por etapas (tal 8 como de fato ocorreu), como a sua simples extingao. Entra no jogo a discussao politica da liberdade, nao necessariamente a idéia liberal de mercado. Utiliza-se a parcela das idéias liberais de ressaltar apenas a questdo da liberdade individual, “que ndo diferia, de maneira significativa, no mundo dos seus avés” (Skidmore, 1976:43), ja que as cor- rentes interessadas na modernizagio do pafs so contra o parcelamento da grande pro- priedade. Portanto, a propriedade (e 0 acesso A propriedade) fica fora de cogitagao. Para isso, procura-se criar no ex-escravo a mentalidade de que o trabalho é a sua forma de libertagdo. (Marinho de Azevedo, 1987: 51) Nesse ponto, entra em cogitagao, a en- trada de imigrantes europeus, que se supunha, ja eram portadores dessa mentalidade, os provaveis substitutos dos escravos na criacao do novo Brasil. No Primeiro Reinado, a questio da escravidao € a que prevalece nos debates. Percebe-se neste periodo a predominancia das idéias do evolucionismo social postulado pelo positivismo comtiano e trazidas para o Brasil, encaixando-se perfeitamente aos inte- resses daqueles que viam na escravidao o entrave para a modernizagao do pais. Ha dois pontos a serem considerados a partir deste periodo em vista desta questo: o primeiro é 0 do papel dos intelectuais, e o segundo, o dos interesses econdmicos pressionando a politica imperial em diregao a abolig&o da escravatura. A intelectualidade brasileira, formada por profissionais liberais, muitos forma- dos na Europa, professores, jornalistas, militares de alta patente, influenciam o debate com a publicagao de suas opinides a respeito do atraso do Brasil perante os grandes centros mundiais. A escravidao é uma macula que envergonha, que coloca o Brasil numa condic&o insustentavel diante dos seus interlocutores, sobretudo 0s europeus. segundo ponto, relativo aos interesses econdmicos, é complexo, na medida em que envolve uma nova conformagao econémica com o advento do café e de outras cultu- ras, como o algodao, fumo, cacau’. A pauta de exportagdes do Brasil se diversifica, novas formas de processamento da produgao agricola sao introduzidas, com o uso de maquinario para o beneficiamento do café e algodao, ferrovias sdo abertas em decorrén- cia da necessidade de escoamento da produgao, especialmente em Sao Paulo. Os fazen- deiros de café, logo constituem um estrato da oligarquia fundiaria que se diferencia da nordestina tradicional, pelo “zelo, a atividade, 0 entusiasmo pelas idéias de progresso de que se acham imbuidos os paulistas” (Canabrava, 1971: 97-98). Sdo em parte esses paulistas que percebem a inoperdncia econdmica da escravatura por seus altos custos de manuteng&o, apoiados também por seus descendentes que retornam diplomados da Eu- ropa, fortemente influenciados pelas diferentes discusses em torno das idéias de civiliza- cdo, de progresso e de liberdade Abolicionistas e imigrantistas formam dois grupos distintos que tém como meta a modernizagao do pais, porém com propostas diversas de conduta. Os imigrantistas, por * Sobre o assunto ver a sintese de Alice Canabrava, na Historia Geral da Civilizagao Brasileira, Tomo Il, vol.4. 9 volta de 1870, discutem com maior vigor as vantagens de introduzir imigrantes no pais. Sao pensadores ¢ politicos que por nao acreditarem na possibilidade de contornar o pro- blema da incorporagao do negro a sociedade brasileira, abandonam a idéia de ‘evangelizar’ os negros € mestigos em diregao a ‘civilizagao” e propéem a imigragao como o caminho para a formagdo de uma nova sociedade brasileira. O imigrante é elevado a uma condigdo especial. E 0 europeu civilizado, o sangue branco que vem ‘limpar’, renovar, trazer novos ares ao Brasil, sempre dotado de quali- dades positivas. Essa imagem perpassa toda a discussio das teorias raciais que comegam a afluir no inicio da Repiblica, ganhando cada vez mais corpo nas avaliagdes dos politi- cos e ideélogos da Primeira Repiblica. Nese momento, hé uma mudanga na forma como € tratada a questo do negro e a da imigragdo, desde que nao se trata mais da institui¢ao escravidio ou imigragao, mas so os negros ¢ os imigrantes os personagens da discussio. No periodo em questéo, especialmente nos anos que precedem a proclamagao da Repiiblica até os anos 1910, a questo formagdo da nacionalidade brasileira ganha con- tornos mais fortes, seja pela mudanga de regime politico no pais, seja pelo contexto inter- nacional, que cobrava uma definigao nesse sentido: “Repare-se ainda que essas discus- sdes transcorriam em tempos de unificacdo dos Estados nacionais europeus, numa época em que a homogeneidade cultural, lingiiistica, comunitdria apresentava-se como um trunfo indispensével para viabilizar as nagdes modernas” (Alencastro & Renaux, 1997: 295). vigor da argumentacdo modernizante € fundamental no Brasil na virada para 0 século XX, 0 ‘progresso’ da bandeira da Repiblica é entendido como uma necessidade para libertar o pais de suas anomalias sociais, anomalias em cujo cere esto os “critéri- os de inclusGo/exclusdo ao estatuto de cidadao nacional” (Corréa, 1998: 33). Contu- do, era preciso mascarar 0 problema, buscando argumentos que legitimassem, do-ponto de vista da época, a questdo da cidadania. No Brasil, a questdo nacional e a busca das homogeneidades sao elaboradas so- bretudo a partir daquele ponto que, na época, é considerado o mais fragil para as elites dominantes no pais: a questdo do povo brasileiro. Buscar homogeneidade numa popula- 20 formada por brancos, negros e muitos mesti¢os foi uma tarefa que suscitou intensos debates, baseados nas teses do racismo cientifico (Corréa, 1998) para encobrir as desi- gualdades sociais. A chegada dos imigrantes esté embutida dentro desta discussao. Itali- anos, portugueses, espanhdis, alemies vém reforgar a corrente dos que so favoraveis & limpeza do sangue nacional, a purificagao étnica (Marinho de Azevedo, 1987: 72 ¢ 75) pela introdugio de mais brancos no territério nacional. A vinda de imigrantes para o Brasil se justifica portanto, por razées de ordem econémica, mas também ideolégica. Se analisada por este ponto de vista - 0 do imigrante recuperando o atraso, corrigindo falhas, introduzindo novidades - justifica-se a idéia de porqué a bibliografia sobre o tema ressalta tanto a questo da mobilidade social ascen- 10 dente dos imigrantes no Brasil. Por um lado, pelo contraste com a populagio jé residente, sobretudo os ex-escravos e os mestigos. E por outro lado, 0 contexto politico e econémico que apresenta caminhos alternativos para a ascensao social de novas camadas sociais, fora dos limites da grande propriedade fundidria. O contexto em que se encontram os imigrantes no Brasil desde a sua chegada ¢ 0 do chamado ‘novo Brasil’ propalado pelos pensadores desde o final do século passado. A histéria da imigragao no Brasil, ¢ 0 seu enredo feliz, passa por etapas, que vio desde a acolhida calorosa dos primeiros tempos, até a etapa em que a presenga dos imigrantes nao € téo simpatica. Com a convivéncia ha a quebra da imagem do imigrante genérico e ocorre uma mudanga significativa no seu tratamento, com a nomeagao da origem dos interlocutores. Se até o final da década de 1920 o discurso em torno do imigrante se referia a temas genéricos, como 0s relativos ao problema do branquea- mento da populagao brasileira, da onda civilizada que se entendia ser 0 europeu porta- dor natural, o imigrante é também tratado como uma categoria genérica, No entanto, quando afloram os conflitos do dia-a-dia, o imigrante passa a ter uma denominagao particular. Os italianos sao “carcamanos”, os japoneses “velhacos”, os alemies “nazis- tas”. Com a convivéncia, percebe-se que o enredo nao atende necessariamente as ex- pectativas, e o imigrante passa a ser visto com outros olhos. Passa de redentor para a nacionalidade brasileira, para o arruaceiro; de elemento civilizador, para o indesejavel (Medeiros de Menezes, 1996). As greves e rebelides nas fazendas de café, os rompimen- tos de contrato, a afluéncia as cidades, a formagdo de grupos de trabalhadores pobres de origem estrangeira so registros de uma histéria que percorre décadas e que pode ser sintetizada como um movimento de ajuste da sociedade (particularmente a paulista), presenga de homens livres e portanto de trabalhadores livres.’ A mobilidade espacial, os empreendimentos, mas também as manifestagdes das frustragées séo partes desse movi- mento de ajuste aquilo de novo que estava ocorrendo. Num interessante artigo publicado na revista Sociologia, Renato José Costa Pacheco (Pacheco, 1959), arrola romances e contos onde italianos, japoneses, so personagens vivos, em contato com a populacdo nacional, buscando acumular poupanea com o seu trabalho, casando-se, criando filhos...Nesse contexto, surgem conflitos originados pela concorréncia por espacos de trabalho, discordancias com a escolha dos cénjuges dos filhos ¢ sobretudo, comecam a aflorar esteredtipos sobre cada grupo em particular. A ficgdo nao foge aquilo que a realidade da convivéncia dos imigrantes na vida do pais vinha apontando. Muitos fazendeiros acusam os imigrantes pela superprodugao do * Sobre esse assunto, veja-se 0 artigo de Cardoso (1960), onde 0 autor, ao explorar as condigées para a industrializagdo em Sao Paulo, expde com clareza, 0 significado do trabathador livre na nova sociedade paulista café no inicio do século, primeiro porque “Hoje, 0 colono sé quer que o fazendeiro faca novas plantagoes de café. Nisso consiste a garantia da rdpida formagao de seu ‘pectilio” (O Estado de Sao Paulo, 13 de janeiro de 1899). A conseqiiéncia seria a de que 0s imigrantes teriam responsabilidade sobre a “situagdo do fazendeiro sempre acos- sado pela necessidade de mais uma nova plantagdo cafeeira imposta como condigéo de permanéncia do trabalhador na fazenda. Foi certamente esse um dos maiores fatores de grande plantagao que nos levou & superprodugao” (Carlos Botelho, Cor- reio Paulistano, 21 de junho de 1902) (in Beiguelman, 1977: 92-93). Um ponto que chama a atengdo ¢ a da abundancia de mao-de-obra imigrante de que dispunham os grandes proprietirios de terras, em especial em Sao Paulo. Os contin- gentes de italianos, espanhéis, portugueses, e mais tarde de japoneses entrados no Brasil para trabalhar nas fazendas de café so maiores que as necessidades. Segundo Hall (1989: 8), a proporgdo de bragos necessirios ao café e a dos imigrantes entrados no pais até 1914 € 0 dobro da necessaria. E evidente que esses cdlculos so precarios, desde que se deve levar em consideragao os ciclos de ascensao e queda do prego do café no mercado mundial. As flutuag6es no prego do café, no entanto, nem sempre estavam sincronizados com os contratos estabelecidos para a vinda de imigrantes, ou seja, houve momentos de busca de novos fluxos porque havia necessidade de mao-de-obra, como houve anos que, em plena crise, chegavam imigrantes que nao eram necessérios para aquele momento. Isto punha em xeque o sistema de subsidios de passagens, que s6 foi mantido porque 0 governo do estado de Sao Paulo o assegurou até 1924. Diante da situago real vivida pelos primeiros imigrantes chegados ao Brasil, ob- serva-se uma intervengao direta de seus paises de origem, no sentido de regulamentar junto ao governo brasileiro, um melhor tratamento para eles. Talvez, a atitude mais visivel ¢ radical tenha sido a do governo italiano, em 1902, ao proibir a vinda de italianos para o Brasil. 0 periodo de que ora se trata é fértil no contraste entre o ideal e o real. Se por um Jado, os imigrantes estariam contribuindo para o branqueamento da populagao, por outro lado, estéo longe do modelo idealizado, nao apenas porque a idéia de imigrante até ent&o era idealizada, como também, porque o ‘novo’. qualidade antes sé positiva e também idealizada, nem sempre mantém a sua positividade. Nao sdo apenas as manifestagdes piiblicas como as greves ou fugas que incomodam. O paradoxo que a realidade aponta é ado imigrante como pobre ¢ também como préspero, do analfabeto e do letrado, daque- Je que introduz novas idéias, comportamentos e formas de organizagao institucional e da produgao. Alteram-se a forma como sao vistos e a propria auto-percepgao do imigrante. A diferenga, o novo, no entanto, nao sto mais categorias genéricas para se referir a um imigrante também genérico, mas a partir desse momento, passam a ter atributos especificos, passam a ser qualificados, diferenciados, clasificados. A grande questo passa a ser ade pensar como acomodar um contingente de milhdes de estrangeiros e mais os seus descendentes dentro da perspectiva da unidade nacional. 12 Se no final do século XIX, um folheto de propaganda para a vinda de imigrantes dizia o seguinte: “Cumpre ndo confundir o problema da imigracdo com o da substitui- ao dos bragos necessérios & grande lavoura. Esta quer salariados e chega a prefe- rir até os de raca inferior. O escopo da imigrasdo, porém, é de ordem muitissimo mais elevada, busca organizar os elementos que devem formar a grande nacionali- dade brasileira , senhora da maior e melhor parte do continente Sul-Americano Exige, por isso mesmo, a maior selegdo nestes elementos. Ora, para que o imigrante ativo, laborioso, inteligente, progressive venha para o Brasil, é preciso que este pai oferega condi¢ées de bem-estar para si e para sua familia, impossiveis de encontrar na Europa” (Artigos de Propaganda da Sociedade Central de Imigragao, fundada em 1883, ano I, bol. n. 1-4, dezembro de 1883-agosto de 1884, in Marinho de Azevedo, 1987: 85-86). Por outro lado, frases que circulavam no inicio do século, como “Cada cafeei- ro, assinala a sepultura de um italiano” (in Petrone, 1997: 111), j4 denotam mudan- a, tanto porque o imigrante é nomeado,- italiano -, como também assinala que as con- digdes de bem-estar propostas acima, nao eram to reais como se esperava. A mudanga de foco na forma como o imigrante é tratado culmina com a Constitui- go de 1934, quando so estabelecidas cotas para a sua entrada. Nada mais revelador que esse estabelecimento de cotas para se perceber uma mudanga. Depois de mais de cingilenta anos de convivéncia com os estrangeiros, alguns pensadores brasileiros se mostram criticos e no raro, extremamente avessos a presenca de imigrantes e de seus descendentes dentro do territério nacional. Para melhor se compreender essa mudangas de posigao, ¢ preciso recorrer, uma vez mais, a0 contexto intelectual e politico do periodo que cobre a Primeira Republica (1889-1930) e 0 periodo imediatamente posterior. A Primeira Republica é 0 periodo das modificagOes estruturais do Brasil na diregiio de sua modernizagiio. E 0 periodo de expansdo do café no oeste paulista e todo o quadro que essa expansao abrange: a extensio das ferrovias, a urbanizagao, a configuracao de um sistema industrial que se irradia a partir de Sao Paulo. Nos traba- Ihos citados por Boris Fausto, coloca-se uma correlagao entre a presenca dos imigran- tes, e sua mobilidade social ascendente dentro deste novo quadro. O que ¢ importante frisar é a constatagao de que o imigrante é parte fundamental na constituigao da econo- mia e as conseqtientes mudangas na estrutura da sociedade e nas diregdes da politica. E um quadro bastante amplo, mas elucidativo para recompor uma reflexo a respeito da questo basica de como se moldam as identidades dos imigrantes no Brasil. Trés situagdes sdo centrais para a questdo do imigrante, que passa a ser um pro- blema concreto sobretudo a partir da década de 1920. E uma realidade diversa daquela das primeiras levas de imigrantes do final do século, quando a expectativa das elites era a de apenas buscar uma alternativa para a aboligao da escravatura. Esperava-se a fixagao 3 do imigrante na agricultura, subordinados aos grandes proprietarios de terras, Percebe- se que na realidade, as elites dirigentes do pais nao tinham até aquela época, uma pers- pectiva de futuro muito além do imediato. Pelo lado do imigrante, é importante se notar nessa trajetéria o vislumbre de um futuro melhor para si ¢ seus descendentes, aquilo que estd no imaginario de qualquer pessoa que imigra. Sao Paulo, naquele momento, estava oferecendo condigées para tan- to, mesmo no meio urbano. Os imigrantes, especialmente os italianos e espanhéis, que nas primeiras duas décadas do século, saidos das fazendas de café, vém para a capital, ‘comecam a experimentar um novo patamar em sua experiéncia como grupo. Imigrantes se inserem basicamente nas primeiras industrias paulistas, tal como fica evidente nas estatis- ticas sobre m&o-de-obra operaria em Sao Paulo’. O quesito ‘estrangeiro’ esta sempre presente quando se reconstituem as manifestagdes ligadas a0 movimento de moderniza- cdo das primeiras décadas do século. No campo, observa-se a tendéncia ao partilhamento das grandes propriedades e o aparecimento de pequenas propriedades nas maos de familias de origem estrangeira; nas cidades de médio e pequeno porte nota-se a presenga desses estrangeiros no peque- no comércio e nas atividades que os inserem nas camadas médias. Na capital do estado, a participagio é visivel na industria, no pequeno comércio auténomo. Ha portanto, uma nitida mudanga de posicao dos imigrantes na sociedade, uma visibilidade que ganha corpo na diregiio daquilo que era esperado que a imigrag&o trou- xesse pata o Brasil. Imigrantes trazem “progresso’ ao pais. No entanto, esse progresso € paradoxal, como continuaré sendo nas décadas seguintes, quando se manifestaré com maior vigor. Se por um lado, o Brasil oferece espagos para 0 progresso, por outro lado, na vistio daqueles que dirigem os destinos do pais, a presenga dos ‘estrangeiros’ comega aincomodar. As greves fugas das fazendas sio 0 exemplo usado para manifestar a preocupacao. O que ocorre é que o espago do progresso passa a fazer emergir pelo menos trés problemas: 0 problema da m4o-de-obra nacional em contraste com a imigrante; em se- gundo lugar, faz vir a tona a pergunta se a grande propriedade rural monocultora é uma estrutura adequada ao desenvolvimento moderno do pais. Finalmente, pde novamente em destaque. o pluralismo étnico da sociedade brasileira. Sao, portanto, pontos que tocam em bases que até entdo sustentavam o sistema econdmico ¢ politico do pais. Progresso ¢ tradig&o so postos & prova e pela posi¢Ao que ocupam os imigrantes na estrutura social brasileira dos anos 1920, hé uma sobrevalorizacao desses papéis em diregao ao que denota o progresso. Uma vez mais, os imigranies sdo o estrangeiro de Simmel, * Yeja-se por exemplo, em Pinheiro (1997). 4 O primeiro ponto diz assim respeito a questo da mao-de-obra nacional. Aquele que vem de fora ocupa espacos no sistema econdmico que poderiam ter sido preenchi- dos pelos trabalhadores nacionais. E por que isso ndo ocorreu? A pergunta é feita s6 quando esses espagos ja estao sendo preenchidos pelos imigrantes. Da pequena oficina caseira até a implantagao de estabelecimentos que seriam a génese das indistrias, exis- te um caminho que pelo menos aponta para a consolidaao de um mercado interno ¢ por conseguinte, de camadas da populagao em condigdes de absorver a produgao des- sas indiistrias, que evidentemente, nao se restringe 4 populagdo imigrante. Se existe uma supervalorizagao da relagdo entre a imigragdo eo desenvolvimen- to da industria paulista é porque esse aspecto foi supervalorizado pelos proprios imi grantes. “A tradigdo industrial, a sofisticagdo politica e a experiéncia organizacional, de que se pretendeu fazer portadores os imigrantes que ingressa- ram nas indiistrias de Sao Paulo, é uma visdo préxima do mito” (Pinheiro, 1997: 140). O slogan das Indistrias Matarazzo- “Fides (esperanga), Honor (honra), La- bor (trabalho)"- (Martins, 1973: 100) estampa de forma explicita, a imagem que o imigrante visa passar para a sociedade. Em contraposi¢&o ao trabalhador nacional “ Diz-se que os brasileiros, desde que est@o com a espingarda ao ombro ou com 0 anzol no rio, desde que tém o lambari para comer e a viola para tocar, de nada mais cuidam”, disse 0 deputado Paula Sousa em 1858 na Assembléia Legislativa Provincial de Sao Paulo, sintetizando a imagem do trabalhador nacional como ocioso, pouco ambicioso (in Beiguelman, 1977: 100). Se de um lado o brasileiro é indolente, como durante décadas se apregoou, o imigrante traria novos alentos para Sao Paulo, sobretudo para as novas areas do café. Paula Beiguelman (1977, op. cit.), chamaa ateng&o para a diferenciagao das reas cafeciras no que se refere a questio da mao- de-obra. Junto com a marcha do café para o este vai também a mentalidade nova do trabalho assalariado dos imigrantes. Seria ingénuo afirmar que é a nova mentalidade que introduz o imigrante nessas novas areas. Obviamente, a escassez de trabalhado- res, ¢ feitos os cdlculos das despesas com o escravo, 0 imigrante é a melhor op¢ao para aqueles fazendeiros que aos poucos vao se tornando imigrantistas. No contraste de imagens entre o trabalhador nacional esperando pescar o lambari, 0 imigrante se faz aparecer como aquele que acredita no pais em que se estabeleceu, portanto tem esperanga, e com honra e trabalho, realiza. E ao realizar, faz o Brasil pro- gredir. Indistrias fundadas por familias de origem imigrante comegam a forjar, com as suas fortunas ¢ casamentos, uma camada que vai se fundindo com a elite da sociedade paulista (Truzzi, 1991). Essa camada emergente introduz 0 cosmopolitismo que se verifi- ca até na unio de familias: a até entdo sociedade paulista de quatrocentos anos se abre para acolher os ricos de origem estrangeira. Essas uniées, tal como atestam obras de ficgdo da época, nao so contestadas, mas até aplaudidas (Pacheco, 1959) sem conotacao negativa. 1s QUADRO 1 - Entrada de imigrantes no Brasil por periodo - 1884-1945 periodo n° de imigrantes 1984-1888 277.950 1889-1900 4.301.281 1901-1910 671.351 4911-1920 797.744 1921-1930 840.215 1931-1940 288.607 1941-1945 18.430 total 4.195.878 Fonte: IBGE- Anudrio Estatistico do Brasil 1951 © segundo ponto refere-se ao segmento dos trabalhadores das indistrias. Tam- bém nesse aspecto, hd um sobrepeso do papel dos imigrantes na formagdo da camada dos trabalhadores assalariados nas industrias de Sdo Paulo. Os seus movimentos de or- ganizacéio, como as diversas correntes do anarquismo, a constituigao do Partido Comu- nista Brasileiro, foram de alguma forma associadas diretamente aos imigrantes. Nas gre- ves e nos movimentos reivindicativos, italianos, espanhdis eram responsabilizados pelos protestos e atritos contra os patrdes, muitos deles também, de origem estrangeira. Pesquisas pontuais sobre empresariado (Martins, 1973; Bresser Pereira, 1964) e sobre os movimentos operarios (Maran, 1979; Magnani, 1982), tém relativizado a rela- cao direta entre imigrantes e a nova conformagao social de So Paulo. Nao é necessari- amente a origem estrangeira dos atores que explica as mudangas. No entanto, estas esto presentes: as nascentes industrias paulistas so colocadas em alerta, tanto que so estabelecidas quotas de trabalhadores estrangeiros em seus quadros para a defesa do trabalhador nacional (1931). 0 artigo 1° do decreto 20.291 de 12 de agosto de 1931 coloca a obrigagao de pelo menos 2/3 de brasileiros natos em empresas com mais de 5 empregados. O final dos anos 1920 marcam uma queda acentuada na entrada de imigrantes, segundo dados do IBGE, que apontam para o fim da chamada ‘grande imigrago" no Brasil. Esse final de década, com a queda da bolsa de Nova lorque em 1929, é também um marco na historia mundial e por consegilinte, na histéria de nosso pais. Dentre todas as mudangas que se evidenciam no cenério politico e econdmico, vale ressaltar que também no plano das idéias que dardo rumo ao Brasil, hd um segmento que coloca em, destaque o lugar do imigrante dentro deste conjunto de mudangas. Na redefinigao do Brasi] enquanto nao com projetos modernizantes, o imigrante volta novamente a set tema de polémicas, justamente por sua condig&o de exterioridade. Apesar de fixados 16 no pais ¢ inseridos em atividades diversas e em diferentes camadas da sociedade, os imigrantes continuam neste caso, a servir como interlocutores ‘de fora’. 2. “Fides (esperanga), Honor (honra), Labor (trabalho)”. O Imigrante no centro das discussdes sobre a na¢ao brasileira nos anos 1930. O Conceito de Assimilacao no Brasil. A questo teérica da assimilagao de imigrantes no Brasil, difere da norte-americana que da destaque ao plano cultural nesse movimento, enquanto que entre nés, a discussdo gira novamente em torno da questo do negro, da mesticagem, e da imigraeao quando em suma, esta se discutindo a formagao da ‘raga brasileira’. Na década de 1930, hé um resgate dos estudos das racas enquanto problema bio- social. Em seu artigo, Seyferth chama a atengdo para o fato de que, no periodo em ques- 120, os grupos imigrantes ja sdo identificados pelas suas etnicidades ou seja, por limites étnicos onde a crenga na afinidade de origem, de conotagao racial reforgadas pela exis- téncia de instituigdes comunitarias, habitos e estilos de vida proprios de cada grupo dife- renciam o imigrante (Seyferth, 1998: 225). Se por um lado, a filosofia do trabalho, da honra so as marcas do sucesso imi- grante, por outro lado também os imigrantes so parte das ‘classes perigosas’: aqui eram inicialmente compostas por eles (descendentes de africanos) e sé muito mais tarde as classes trabalhadoras, macigamente integradas por imigrantes, serdo objeto da mesma atencdo da ciéncia” (Corréa. 1982: 19- grifos meus). ‘Na realidade, a questo central, como afirmou Corréa, é a quest&o das desigual- dades no Brasil. Hé duas vertentes na opgdo de tratar as ‘classes perigosas’ pelo cami- nho das diferencas taciais: aquela que se utiliza do argumento da inferioridade do negro e a outra que prevé a necessidade de assimilagao bioldgica do imigrante, com 0 objetivo Ultimo de integrar racialmente a nago brasileira. Como ja foi exposto, no inicio, o imigrante exerce um papel de contrapeso em oposi¢ao ao negro, quando aparece como solugdo para o branqueamento da populacao. Esta posigtio de contrapeso, no entanto, passa a ndo ser tao eficaz, segundo o discurso das elites, desde 0 momento em que o imigrante passa a ascender socialmente. Ele passa a ser um ineémodo para a elite agraria que se percebe vulneravel diante das transforma- Ges que estavam ocorrendo no pais desde 0 inicio do século. Nos processos de industri- alizagao, urbanizacao, parcelamento das grandes propriedades, na formacio de um mer- cado interno mais diversificado, estao presentes os imigrantes e seus descendentes. E “Em um artigo bilingue espanhol-portugués, , Giralda Seyferth (1998) faz uma excelente sintese sobre a relagao entre identidades éinicas e racismo no Brasil desde o Império até o final da II Guerra Mundial, 7 evidente que a participagio destes é parte de um processo mais abrangente que envolve a participagdo do Brasil no sistema capitalista mundial. Mas, para fins ret6ricos era pre- ciso voltar a atengdo para esse novo segmento da populagao brasileira, que pelo menos no centro-sul do pais, ganha uma visibilidade publica e parte da nagao. Para evitar a discussio direta do modelo onde os imigrantes esto inseridos, as elites resgatam o discurso racial para procurar atacar e procurar diminuir o peso desta visibilidade. Em 1920, Oliveira Vianna, publica Populagées Meridionais do Brasil, e em 1932, Raca e Assimilacdo detectando que havia algo de novo nas populacées meridionais do pais: “levaram-me a uma convicedo contrdria ao preconceito da uniformidade atual do nosso povo” (Vianna, 1987: 15), apontando para essa nao uniformidade do brasilei- ro, as diferengas histéricas e sociais das diferentes regides do pais. Dentre essas diferen- gas est certamente a presenga dos imigrantes. Para sustentar a sua tese, nos trés primei- ros capitulos de Raca e Assimilacdo, discorre sobre a psicologia das ragas nacionais, a fim de demonstrar que a formagdo racial e nacionalidade so frutos “dos atributos dife- renciais da mentalidade coletiva de cada um désses grupos nacionais: 0 povo fran- cés, 0 povo inglés, 0 povo alemao, 0 povo italiano” (Vianna, 1959: 19- sublinhado no original). Nos capitulos da segunda parte, introduz a problematica em torno da assimilacao, calcado na nogao de melting pot. O melting pot é entendido como fusdo de racas, miscigenagao, diferente da perspectiva norte-americana que prevé fusio cultural. Ao fa- zer um balango dessa questo no Brasil de sua época, o autor se atém nos brancos. E em especial, aos imigrantes fixados nas colénias do sul do pais e em Sao Paulo. A preocupa- ga0 do autor é com o que chama de ‘ilhas étnicas’, o mesmo que enquistamento étnico, termo introduzido por Silvio Romero em 1910, ¢ largamente utilizado mais tarde. Toda essa segunda parte do livro de Oliveira Vianna é dedicada a andlise da ocor- réncia de nao mistura racial da populacao de origem estrangeira nos locais citados. Por meio da metodologia de Bloom Wessel, sociélogo e demégrafo norte-americano, Vianna demonstra que nas coldnias do sul, e em Sao Paulo, onde se acrescentam os japoneses. de origem nao caucasiana, est ocorrendo um processo de baixo indice de casamentos fora do grupo nacional de origem, concorrendo para um grau de homogeneidade racial ¢ biolégica interna, nao promovendo assim, o branqueamento esperado. Na sua conclusao constata que nessas colénias esto se desenvolvendo “recursos sutis e invisiveis de defesa de que as etnias transmigradas se utilizam para reagir contra a acdo assimiladora nos novos meios (Vianna, 1959: 126- grifo meu). Nao se percebe uma tomada de posigao explicita contra essas atitudes de defesa, mas fica claro 0 cuidado de deixar o problema em aberto. Bem no final, Oliveira Vianna levanta um problema diverso daquele que tratou no decorrer do livro, a questo da cultura, cuja importdncia dai por diante € crucial para a 18 maneira de se pensar o imigrante no Brasil. Ao dizer: “nestes campos cisatlanticos de colonizagdo como 0 nosso, os climas sociais tém sobre as condigdes culturais trazidas pelas virias etnias imigrantes uma agdo dissociativa, transformadora e seletiva com- pardvel a que os climas fisicos, principalmente os tropicais, devem estar exercendo sdbre as condi¢ées bioldgicas dos novos tipos imigrantes. Hé portanto, processos de selecdo e adaptacao cultural, como hd processos de selecdo e adaptacdo bioldgica, agindo sobre as etnias aqui afluentes, e que cumpre investigar...”(Vianna, 1959: 127) Oliveira Vianna levanta também no final de Raga ¢ Assimilagao, a questo que iria tomar conta das reflexdes sobre os imigrantes no Brasil, que ¢ 0 problema da aculturagao. Ele apenas cita, mas nao faz nenhum comentario a respeito. O problema da aculturagao do imigrante abre uma vertente que perdurard por varias décadas nos estu- dos sobre imigragao no Brasil. Ela se inaugura pela década de 1940 e vem até 0 inicio da década de 1970. Assimilagio e aculturagao so dois conceitos que caminham juntos e tém um peso respeitvel na percepgao sobre o imigrante. Pensa-se em tirar do imigrante as suas ca- racteristicas de estrangeiro, e torna-lo um ‘igual’. A diferenga é percebida como um atri- buto negativo, sendo considerado positive aquele que tem o padrao cultural brasileiro como referéncia. Mais uma vez, a questo de fundo nao € propriamente o imigrante, mas anagao brasileira. O imigrante continua sendo um contrapeso nessas reflexdes. O periodo em que os temas da assimilagao ¢ aculturagao sdo desenvolvidos é bastante longo para ser tratado em bloco. No entanto, € possivel se perceber uma linha condutora nos trabalhos que tratam do assunto, apenas destacando dois aspectos: 1. 0 desenvolvimento dessa reflexao dentro do meio académico paulista e 2. 0 inicio de traba- Ihos sobre grupos imigrantes especificos como tema de teses, artigos, até entdo inexistentes. A grande inovagdo que se inaugura a partir da época que escreve Oliveira Vianna, a década de 1930, é a incorporacdo da cultura como o centro e ponto de partida das preo- cupagdes dos analistas sobre a imigrago. Eo problema da diferenga, das bagagens cultu- rais, daquele novo, que no final do século passado era considerado positivo, que passam a preocupar. A diferenga cultural, que é a marca da imigragdo, é tomada come emote central para a argumentagdo em torno da assimilagdo e aculturagdo. Assimilar e aculturar significa esmaecer as diferengas, transformar 0 outro . Um trabalho que faz um estudo cuidadoso da assimilagao do ponto de vista da cultura é 0 de Emilio Willems de 1940, Assimilagao e Populagdes Marginais no Brasil. Estudo Sociolégico dos imigrantes germénicos e seus descendentes. provavelmente 0 primeiro estudo sistemético sobre o problema. Nele, Willems dissocia a assimilagao de toda a conotago biolégica ou racial. Assimilagao ¢ um conceito estritamente social. E importante notar uma diferenga de terminologia entre Oliveira Vianna e Willems. Enquan- to que para Vianna etnia corresponde a nacionalidade e raga é um conceito bioldgico, 19 para Willems, etnia ¢ raga se correspondem, isto é, tém um sentido biolégico. Mais im- portante, no entanto, é a concepeao de assimilacao nos dois autores. Como foi exposto acima, Oliveira Vianna concebe assimilagéio como a incluso das etnias (nacionalidades) no melting pot, isto é, no entrecruzamento das etnias entre si e com 0s nacionais; ja para Willems “assimilacdo é, portanto, fusdo cultural e, como tal, afiliacdo espiritual e afetiva. Para os processos biolégicos paralelos ou subsequentes usamos 0s termos aclimata¢ao ou adaptacdo (do organismo ao clima ou ao meio fisico no sentido mais lato da palavra) e amalgamagao ou fusdo (para a miscigenagdo de etnias e racas diversas)...” (Willems, 1940: 15- grifo meu). Isso significa também o reconhecimento das contribuigdes culturais do imigrante (op. cit: 5). Sobre a concepgao de assimilacao utilizada por Vianna, Willems a considera ultrapas- sada desde a I* Guerra Mundial, quando se evidencia que as diferengas culturais per- sistem mesmo com medidas compuls6rias para a assimilagao. A concepgao de assimilagao de Emilio Willems acrescenta 0 elemento psicologico a formulagées antes expostas por autores como Julio de Revorédo (Revorédo, 1934) que, como outros autores da década de 1930, entendem a assimilagao como andlogo ao processo de metabolismo dos organismos vivos. Essa analogia foi criada por Fairchild, autor norte-americano mais citado entre os brasileiros que trabalham com a questo na- quela época. A citagdo que se segue desse autor, coloca novamente em relevo o proble- ma da diferenga que caracteriza o imigrante: “No caso de um sér organico, a assimila- ¢do é parte do processo nutritive. O proceso, em seu todo, consiste em receber 0 organismo, certas substancias extrinsecas, que, sujeitas a forcas transformadoras. sao reduzidas d uniformidade e ao mesmo posteriormente incorporadas. E a trans- formacéo, a mudanca, do heterogéneo para o homogéneo, do desigual para o igual” (apud Revorédo, 1934: 227). Em seguida a definigao, Revorédo acrescenta: “O imi- grante tem de passar por um processo de transformacao em que desapparegam os ultimos tracos de sua nacionalidade, concomitantemente com acquisi¢do dos ele- mentos ou qualidades da nacionalidade que o recebe. Esse é 0 proceso pello qual ele é assimilado” (Revorédo, 1934: 227). Essa assimilagio tem um carater temporal, j4 que 0 autor a entende como um processo que ndo se restringe a primeira geragdo, mas sobretudo as seguintes. Importan- te é salientar a énfase que coloca na maneira como os nativos devem se relacionar com os estrangeiros para que o proceso seja bem sucedido: por um lado, a proposicao de uma politica dos governos para evitar os ‘enkystamentos’ (segundo grafia da ¢poca), “ndo evitarem os brasileiros 0 contacto com o exotico; antes, ¢ por todas as maneiras, empenharem-se em attrahil-o para o seu convivio” (Revorédo, 1934: 236) ressaltan- do adiante, qualidades do brasileiro que facilitam a assimilagAo: afavel, simples, genero- 50, prestadio, hospitaleiro (Revorédo, 1934:238). Nessa formulagao, entram em jogo a questo da nacionalidade, de tragos de como é o brasileiro, mas se langa a idéia da reciprocidade, ou seja, da relacdo nativo/estrangeiro como sendo fundamental para que a assimilagdo seja bem sucedida. Revorédo € o primeiro a colocar explicitamente uma res- 20 ponsabilidade para o brasileiro. Nao é apenas do imigrante a tarefa de se tornar brasilei- To. Outra questdo que autores da década de 1930 levantam é a inassimilabilidade de alguns grupos imigrantes. Os casos mais patentes e que mais aparecem so os dos ale- mies e dos japoneses. Sobre essa questio, ha uma intensa polémica de cunho intelectual e politico. Autores, como Oliveira Vianna, apostam na impossibilidade dos japoneses se assimilarem, usando a imagem do enxofre para ilustrar a sua idéia: “O japonés é como enxofre: insoltivel” (Vianna, 1959: 155). Outros autores, no entanto, tém posigao oposta. Julio Revorédo e Alfredo Ellis Junior, por exemplo, nao concordam com a posigao acima: “O vulgo habitualmente affirma a existencia de racas e de povos que nao se deixam assimilar, no paiz de immigracdo. Entre nés, sem o menor discernimento, dizem que o Japonez é inassimilavel, pelos seus caracteristicos de nacionalidade. Nada mais errado. Nao so racas determinadas, ou antes, ndo sdo povos que pelo arraigamento de seus costumes, de seu idioma, de sua civilizagdo e de sua religiao, de tudo emfim que caracterisa a sua nacionalidade, que so inassimildveis. O principal factor, para que ndo se diga radicalmente 0 unico factor, da inassimilisagdo é 0 ambiente, ou o meio social. Este é que predetermina as consequencias decorrentes de um movimen- to immigratorio” (Ellis Jr, 1937: 76, nota 1). Os contornos politicos da polémica em torno da assimilagdo sao bastante visi- veis e tém uma clara relago com a decadéncia das oligarquias rurais, especialmente as do nordeste brasileiro. Intelectuais, como Julio de Revorédo, que acompanham os de- bates da Constituinte de 1934, se manifestam contra, utilizando-se inclusive de ataques de ordem pessoal para se opor & idéia de Xavier de Oliveira, de que “Nao precisamos de immigrantes para sermos uma grande nacdo” (apud Revorédo, 1934: 172). ~ Revorédo publica seu livro Immigragdo no mesmo ano da Constituigao. Esse li- vro é, em realidade, uma exposig&o da perplexidade do autor diante dos rumos que to- mava a Constituinte. Lembra, iniciando 0 seu prefacio, do pequeno interesse que até entdo o tema havia tido para o grande publico, mas naquele momento percebe a relevan- cia do tema. Isto porque a imigragao é um problema relativo a ordem da propria politica nacional. Ao analisar toda a legislagdo norte-americana restritiva a imigragdo (1924), ¢ depois examinar a legislaco brasileira, o autor é muito critico ao que se propunha na Carta em elaboragao. Sua posigao ¢ otimista em relagdo ao futuro da imigragao, ressal- tando que “os destinos da nossa incipiente nacionalidade estado intimamente ligados 4 pratica de uma intelligente, de uma sabia politica de immigragdo” (Revorédo, 1934: 295). Da mesma forma, Alfredo Ellis Junior € altamente positivo em relacao a imigracao. Autor da obra Populagées Paulistas (1934), querendo diferenciar Sao Paulo do resto do pais, usa 0 trabalho, a mobilidade ascensional sem restrigdes de origem e a ndo exis- téncia de uma aristocracia, para de um lado, defender a imigragio, ¢ por outro, demons- trar que em Sao Paulo a populagao “vae se alvejando” (Ellis Jr. 1937: 90) porque o BIBLIOT a1 SECAG negro tem baixa taxa de natalidade, além da falta de empenho na “lucta pela vida" (Ellis Jr. op. cit : 89), e predisposicao a doencas. Com esses argumentos, 0 autor diferencia Sao Paulo do restante do pais, referindo-se a ele como “Ia no Brasil” (op. cit. : 91), a mesticagem esta fazendo desaparecer o elemento negro, o que nao ocorre em Sao Paulo. A defesa de Ellis nfo é de defesa da imigragdo em si, mas do posicionamento politico de Sao Paulo, recém saido da Revolugao Constitucionalista em 1932 ea favor da miscigenagao para acabar com o problema do negro. No reforgo ao seu corpo de refle- x@es para marcar a diferenga de Sao Paulo, elabora a idéia de que todos os imigrantes podem se tornar nacionais (portanto so assimilaveis), sobretudo quando o meio social que os recebe ¢ aberto as contribuigdes dos que vém de fora. E € 0 que, para ele, ocorre em Sao Paulo. As vésperas da II Guerra Mundial, o nazismo na Alemanha, o fascismo na Itdlia e © militarismo expansionista japonés, que esto se expandindo para fora de seus territéri- 0s, sugerem também razGes para as reflexdes sobre a assimilagdo dos imigrantes. A iminéncia de uma guerra, na qual o Brasil ainda ndo tem uma posigdo definida, dé uma outra conotaco politica a presenga dos imigrantes no pais. A politica de cotas restringin- do a entrada de novos imigrantes no Brasil a partir de 1934, a politica de restrigdes, especialmente a de ensino de linguas estrangeiras no pais a partir de 1937, so medidas do governo brasileiro que evidenciam apreensio oficial com o imigrante. E uma apreen- so diferente do periodo anterior, desde que o problema nao é apenas interno, mas vem de fora. O nacionalismo do Estado Novo, medo difundido entre as camadas mais educadas do centro-sul de uma possivel incursdo armada de nazistas ¢ militaristas japo- neses, ou pelo menos de difusdo dessas idéias no pais, sio pontos que conduzem a medi- das de protecao da nacionalidade brasileira e perseguigao a possiveis inimigos residentes no pais. E no meio dessa discussio que se pensa em como integrar culturalmente o imi- grante, preferencialmente os seus descendentes. No processo de assimilagao, tal como propée Revorédo, atengao especial deveria ser dada as geragdes de descendentes, os agentes da assimilag&o. Para tornar-se nacional, educagao é o fator imprescindivel. A educagao apagaria os tragos das diferencas culturais, dai se entender as medidas de proi- bigdo do ensino de linguas estrangeiras, de circulagdo de periddicos e jornais que nao fossem em lingua portuguesa, nesse periodo em que a nacionalidade pode ser colocada em xeque. Nesse contexto € que Emilio Willems procura mostrar a necessidade de assimi- lagdo, recorrendo a fatores de ordem psicolégica para fortalecer o seu ponto. Quando fala em “populagdes marginais”, esta se referindo aqueles imigrantes e descendentes que esto na confluéncia de duas culturas, numa situago de conflito, de crise de perso- nalidade, de sentimentos de inferioridade. A questio que Willems considera mais preocupante, nao é aquela que atinge os individuos, ja que essas crises tém carater passageiro (Willems, 1940: 106). O problema é que a marginalidade cultural conduz a ITRAY CENTR 22 uma autoconsciéncia e consciéncia racial excessiva. A sua definigao de consciéncia ra- cial é tomada de Everett Stonequist, autor de The marginal man (1935) que diz: “Cons- ciéncia racial é uma forma de auto-consciéncia, uma consciéncia que aparece quan- do 0 individuo percebe que outros o observam de certa maneira porque pertence a um grupo racial distinto...Nao significa simplesmente consciéncia de raga como tal, mas também a consciéncia associada de uma posi¢ao social incerta e, geral- mente inferior; o individuo estd como que estigmatizado aos olhos do grupo domi- nante” (apud Willems, 1940: 108-109, nota 97). Essa consciéncia racial se exacerba no contato com 0s nativos, os “lusos’, segun- do 0 autor, promovendo conflitos velados contra estes, mas também dentro do préprio grupo. Os diversos trechos de artigos do jornal Der Kompass de 1938, citados por Willems, manifestam o inconformismo dos alemaes radicados no Brasil de nao serem con- siderados pelos nacionais-socialistas como parte integrante do povo alemao. E dentro do raciocinio da marginalidade, portanto, que Willems manifesta o seu temor diante do con- texto de nacionalismos e de uma guerra. Como contornar o problema do imigrante, sendo por sua assimilagdo social e integracao cultural? Os temores dos brasileiros em relacio aos imigrantes origindrios dos paises do Eixo (Alemanha, Itdlia, Japao) estdo presentes em inimeras publicagdes, panfletos que mostram esta preocupacio, referindo-se particularmente ao problema dos enquistamentos. Desde a Constituinte de 1934, quando se discute a inassimilabilidade de grupos imigran- tes, 0s alvos so, como se disse acima, os origindrios pelo menos da Alemanha e Japio. A Alemanha nazista recoloca o problema da discuss racial na década de 1930, diferente daquela do final do século XIX. No inicio preocupava-se basicamente em pen- sar a superioridade dos brancos diante dos negros e amarelos, tendo como ponto central, os males da miscigenago. Agora, o problema toma novas formas, sobretudo a da eugenia. Num momento em que os imigrantes comegam a aparecer publicamente, o problema é 0 da concorréncia entre os nacionais ¢ os estrangeiros. Diante disso, a questo da selegaio étnica vem a tona, com os contornos cientificos disponiveis na época. Ja Oliveira Vianna, em Raga e Assimilagdo, em suas primeiras paginas, justifica a retomada da discussao racial mostrando como, por reagao as teorias da superioridade racial germénica, a tendéncia nesse campo foi a de caminhar para provar a igualdade entre as trés ragas e, de certo modo, abandonar a discussdo que se desenvolvera até entdo. Suas palavras: “Constituiu-se como que um estado de cepticismo generaliza- do, sob a aco do qual os fatos de diferenciacdo racial mais patentes sdo postos em diwvida, formando-se em t6rno déles um ambiente de displicéncia e desinterésse” (Vianna, op. cit.: 12). O problema agora é 0 de pensar como a nacao brasileira enfrentaria a presenga de pessoas de origens diversas dentro de seu territério. A mudanga de perspectiva se deve as evidéncias da realidade da época: a de que a miscigenagao é um fato. Seja ela entre as 23 trés ragas, seja entre pessoas de diferentes origens nacionais. Nao apenas Oliveira Vianna, como autores posteriores a ele, discutem a diversidade de origens dos grupos imigrantes. Se pensados sob o critério da cor da pele, a quase totalidade dos imigrantes é formada pelos brancos. No entanto, esses brancos se diferenciam em tipos ( Europeu, Slavonicus, Alpinus, Dinaricus, Meridionalis), e por conseguinte, o tratamento em bloco nao é vii vel, do ponto-de-vista da bio-sociologia, da psicologia étnica, da antropossociologia, segundo Vianna (Vianna, op. cit: 45-47). Certamente, o nazismo € a porta de entrada para os cientistas da época se aprofundarem em pesquisas em torno das ragas. Para reagir 4 ideologia da superioridade germanica, as pesquisas se voltam para a interdisciplinaridade, onde a Biologia, a Antropologia Fisica, a Medicina, e também a Psicologia, entram em didlogo, procurando desmontar as idéias de homogeneidade e su- perioridade. Essas pesquisas, que se desenvolvem na Europa e América do Norte, tém eco no Brasil, onde, segundo Vianna, “se caldeiam os tipos antropolégicos mais diferentes, onde as ragas mais primitivas se misturam com as ragas arianas; sé ai é que elas podem ser estudadas em condigoes dtimas de eficiéncia investigadora” (Vianna, op. cit: 15), E € o que ocorre. Essas investigagées no Brasil se desenvolveram basicamente em duas etapas que se completam: a primeira, é a que se volta para uma discussio de ordem mais geral, que é a da selegao étnica; a segunda, numa primeira etapa, aprofunda esses estudos com trabalhos com a perspectiva dos calculos antropométricos, que mais tarde terao diversos desdobramentos. ‘A selegao étnica ou a eugenia (do grego, ew= bom; gens= produzir) se refere & manipulagiio dos processos de selecdo evolutiva, a fim de desenvolver um estoque gené- tico ou populacional proprio (Marshall, 1994: 161), cujo alcance nao é apenas biolégico, mas principalmente, “a Eugenia estd, exactamente, na ponte que liga a biologia, as questées sociaes, & politica, & religido, 4 philosophia e...aos preconceitos" (Roquette- Pinto, 1938: 69). O horizonte € portanto, extremamente largo propicio a reflexdes. Roquette-Pinto, em um dos ensaios publicados em 1938, transcreve as conclusdes do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em 1929, onde nos 12 parégrafos do documento, o foco sio os imigrantes. E um documento dirigido aos poderes piblicos alertando sobre “os interesses da raca e da seguranca piiblica e social da Repiblica" (in Roquette-Pinto, 1938: 72 grifo meu). O imigrante no final da década de 1920 nao é mais aquela figura mitica, mas é agora um problema de seguranga publica e social, que pode interferir até mesmo na consolidagao do regime politico. E por isso, que 0 Congres- so propée a selegao de quem vai poder entrar no pais para se fixar e deixar descenden- tes. Quem sao os elementos desejaveis para o pais? Sao aqueles que provém de populagées cujos ‘attributos coletivos’ sejam aprovadas; aqueles que possuem ‘con- digdes individuaes’, sendo que apenas a satide fisica nao basta “como caracteristicos do valor eugenico do individuo, o qual s6 péde ser afferido pela apreciagao das qualidades mentaes e moraes em que se traduzem os attributos profundos de sua 24 heranga e, portanto, do seu valor como elemento racial”; a pobreza entendida como manifestagao de inferioridade mental e moral deve ser rejeitada, preferindo-se portan- to, os imigrantes com habilitagdo técnica e profissional, ou pelo menos, os possuidores de um pecilio que transfeririam para o Brasil. Rejeitam, assim, a imigrag&o subvencio- nada. E numa clara referéncia as agitacdes operarias da época, interferem sobre a en- trada de imigrantes com antecedentes criminais e “gue entre as manifestacées mais freqiientes das taras hereditérias que incapacitam o immigrante, como elemento ethnico indesejavel, figuram formas de desiquilibrio mental traduzido em tendencias anti-sociaes...”, concluindo que em face do desenvolvimento das forgas mecanicas na produgdo, 0 mimero de pessoas presentes no pais ¢ secundario. O importante é selecionar quem sera recebido como imigrante. O documento sugere uma politica sis- tematica de reserva d entrada de imigrantes (apud Roquette-Pinto, 1938). Se nao pelo lado psicolégico, esses trabalhos tém também a preocupagao de de- monstrar quantitativamente, o problema discutido. Em Raga e Assimilagdo, Oliveira Vianna faz duras criticas ao sistema de levantamento de dados estatisticos no pais, especialmente sobre os descendentes de imigrantes. Todos os autores da década de 1930 aqui citados, niio so contundentes como Vianna, mas engrossam as suas criticas. Por ocasido do Cen- so Demogréfico de 1940, foi contratado um demégrafo italiano, Giorgio Mortara, que introduz no Censo brasileiro, quesitos para um mapeamento mais completo da situagdo da imigrago no Brasil. Mortara introduz uma vertente aos estudos de imigragao que per- duram por décadas no Brasil, que sio os estudos quantitativos, As ‘medigdes’ entram na agenda de investigagdes dos estudiosos da imigragaio. Nao apenas Mortara publica arti- g0s sobre aspectos essenciais na discussdo sobre a assimilagdo, mas faz discipulos, inclu- sive Willems, A corrente quantitativa reintroduz um problema que marcou os pensadores raci- ais do final do século XIX, como Nina Rodrigues, que so 0s estudos antropométricos. Sao agora teforgados por pesquisas como a de norte-americanos que estudam nao a raga no sentido biolégico, tal como fazia Nina Rodrigues, mas realizam estudos para medir a influéncia no meio fisico entre os descendentes de imigrantes. Jé em 1911, Franz Boas publica um livro sobre a questo - Abstract on the Report in Bodily Form of Descendants of Immigrants - mostrando como o meio fisico em que se estabelece 0 imigrante, tem influéncia, por exemplo, no peso e altura dos descendentes. Arthur Ramos, na sua face como antropélogo, procura, no segundo volume de sua obra Introducdo a Antropologia Brasileira publicado em 1947, mapear e incluir, ao longo de 641 paginas, os grupos imigrantes no Brasil dentro do contexto das rela- gbes raciais ¢ culturais do pais. Este trabalho tem a caracteristica primordial de ser minuciosamente descritivo ¢ informativo, com a intengdo de reforgar a sua tese do na- cionalismo cultural (Stoleke, 1998:216) que tem como ponto central o argumento que a miscigenagao cultural e fisica é um processo natural do contato entre os povos, consi- derando nao existir nem raca pura, nem cultura pura. Ataca em toda a sua obra 0 etnocentrismo europeu, ou o ‘culturo-centrismo’ (Ramos, 1947:25) da chamada civili- 28 zago ocidental que distorceram as nogdes de raga e miscigenagao ao classificarem as ragas como puras ou impuras, superiores ou inferiores a partir da ética do colonizador. A sua proposta neste livro é de conhecer a realidade brasileira da miscigenagao fisica e cultural pensada como um processo continuo. O seu argumento na Antropologia Brasileira pode ser sintetizado na seguinte citacao: “As grandezas e misérias do ho- mem brasileiro, de qualquer matiz epidérmico, sao injungées e resultados de milti- plas influéncias que nada tém a ver com a raga (no sentido biolégico) . E por isso, como jé foi antevisto na obra de alguns precursores ilustres, o estudo da mestigagem fisica tem que ser corrigido e completado com o da ‘mesticagem cultural’, neste vasto capitulo da antropologia que hoje chamamos de aculturagdo” (Ramos. 1947:462-grifo meu). Este trabalho de Arthur Ramos ¢ um produto que justifica a cdte- dra em Antropologia e Etnografia na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil que obtém em 1946. A preocupagao de dedicar todo um volume as “culturas européias ¢ “europeizadas’”( que define no Prefacio “como imigrantes ‘ocidentalizados’, dentro do espirito colonizador europeu, ou adaptando processos culturais da Europa”- grifo do autor), ajudam-no a sustentar a argumentagdo de que a aculturagao é um movimento inexoravel, e a miscigenagao, uma decorréncia do proceso de aculturac&o. Neste volu- me, Ramos no tem a preocupagdo de expor as suas posigdes pessoais diante da questo racial, das teorias racistas de cunho biolégico e de mestigagem. E curioso como Ramos desenvolve a sua exposigdo neste trabalho. Ela é inteira- mente compartimentada em capitulos que tratam de cada um dos elementos que com- pdem o mosaico cultural e étnico e suas diversas associagdes. Dividido em duas partes, analisa minuciosamente cada grupo imigrante na primeira parte, com um volume de infor- magées dificilmente encontrado em outros trabalhos. Os imigrantes europeus e europeizados sdo descritos pelos seus tipos fisicos, aspectos da historia, da cultura mate- rial e espiritual, so apresentados por dados sobre o movimento imigratério para o Brasil, (onde recebeu auxilio de Giorgio Mortara) e a sua situagao naquele momento. Inclui ndo apenas os grupos majoritérios numericamente como 0s italianos, por- tugueses, alemaes, japoneses e espanhéis, mas inclui franceses, anglo-saxées, holande- ses, judeus, todos os grupos eslavos, ciganos, chineses. Na segunda, que intitula “Os Contactos Raciais ¢ Culturais”, apresenta as ‘opinides ¢ estereotipias’ sobre a mestigagem no Brasil criticando autores como Euclides da Cunha, Alberto Torres, Pau- lo Prado, Roquette-Pinto, para depois tratar da aculturagdo indigena, negra, dos gru- pos imigrantes, para no fim propor a necessidade de se fazer uma antropologia histéri- cae regional do Brasil, trabalho nao efetivado por sua morte anos depois. Apresenta Sobre a trajetéria de Arthur Ramos e 0 seu posicionamento no contexto intelectual e politica de sua época, vide Corréa, 1998, Stolcke, 1998 ¢ Martine:-Echazabal, 1996. 26 52 paginas de referéncias bibliograficas demonstrando 0 seu cuidado de dar carater cientifico ao seu trabalho, e sobretudo, o de identificar a Antropologia como um campo especifico do conhecimento cientifico. Nao é uma obra conclusiva, mas informativa. Ao compartimentar os capitulos em assuntos, nao mostra as relagdes dai decorrentes, isto é, de uns com os outros. Ao sugerir a antropologia regional, deixa em aberto exatamente esas relagdes entre os diferentes grupos que analisa nesta obra. A grande contribuic&o de Arthur Ramos no tratamento dos imigrantes ¢ certamen- te aquela sugestdo que ficou em aberto, de encarar o imigrante como parte da diversida- de étnica e cultural do Brasil. Nesse sentido, abre caminho para estudos posteriores que seguem a sua sugestdo de nfo mais pensar o imigrante como ‘de fora’, mas estudé-lo como parte integrante e influenciando os que o rodeiam, tal como ressalta Simmel. Os estudos de aculturacao dos imigrantes que seguem o rastro de Arthur Ramos se conduzem dentro das universidades, como trabalhos académicos na area de Antropo- logia. Os estudos sobre assimilagao ficam a cargo dos sociélogos, enquanto que as refle- xdes sobre os componentes étnicos da populagao brasileira introduzem um terceiro agru- pamento de trabalhos. Séo aqueles voltados as tentativas de sintetizagao sobre a identi- dade nacional brasileira, onde a questdo da formagao da populagao ganha espacos. As décadas de 1950 1960 sao extremamente férteis no volume de trabalhos ¢ reflexdes sobre assimilagdo e aculturago de imigrantes, ndo apenas porque ja havia uma tradigZo nesse campo, mas também porque havia um clima no pés-guerra que se voltava a restitui- gio da “/é na natureza humana”. (Stolcke, op. cit: 209) O imigrante é um objeto de estudo que tem um apelo especial no sentido de de- monstrar a possibilidade de homens de origens diferentes poderem conviver, trocar € diminuir fronteiras. O mundo da redemocratizagao, os objetivos de progresso que mar- cam 0 pos-guerra, sio um campo proficuo para que os estudos sobre assimilagio aculturagao dos imigrantes tenham espago em livros ¢ revistas especializadas, Se por um lado, ha uma literatura que desenvolve especificamente idéias em torno da democracia racial brasileira, os estudos sobre imigragdo véo na mesma diregao, mostrando que mes- mo 03 grupos antes congiderados problematicos, como os alemaes e japoneses, também estavam se assimilando. Ea partir deste contexto que a revisdo bibliografica de Boris Fausto se inicia. A sua afirmaco do “final feliz” deve ser compreendida a partir deste momento. Antes, como se viu, houve muitas controvérsias sobre o lugar do imigrante no pais. Mas é sobretudo a partir dessas controvérsias que os proprios grupos de imigrantes vao construindo as suas identidades ¢ as suas etnicidades. Sem este pano de fundo, mesmo que panordmico dos varios contextos que esses imigrantes vivenciaram, no se pode compreender trajetérias, de grupos, como os japoneses, no seu convivio com a sociedade abrangente * Refiro-me aos trabalhos sobre alemdes e japoneses de Emilio Willemns, Egos Schaden e Hiroshi Saito.

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