A ARTE: 0 BELO E 0 AGRADAVEL'
Vilém Flusser
‘Tradugao e notas de Rachel Cecilia de Oliveira Costa
Revisao técnica e notas de Romero Freitas
(Para Louis Bec?
A limitagio fundamental da comunicacdo esté no fato de que a experién-
cia concreta ¢ incomunicével. A razao 6 que essa experiéncia nioié generali-
zével, no sentido de com eno sentido de publi la é, por defi-
-nigdo, nica e privada. E comunicar 6 precisamente comparar (simboliza:),
€ publicar. No entanto: ndo podemos duvidar do fato de que todas as nossas.
experiéncias concretas do mundo so modeladas por aquilo que podemos
chamar de “nossa condigao cultural”. Tomemos como exemplo a experién-
cia concreta do amor de um homem por uma mulher. Ela no pode jamais
ser generalizada, claro, Toda experiéncia amorosa 6 tinica e privada, portan-
to incomunicavel. Mas podemos demonstrat, no entanto, que ela obedece
a um modelo de experiéncia muito especifico. Hé um nivel de condiciona-
mento, o “natural”, sobre 0 qual podemos mostrar que esse amor é uma
experiéncia modelada pela informacao “genética” (pelas condicbes fisicas,
guimicas, psicol6gicas etc.), e nés nao temos necessidade de nas determos
nesse nivel. Muito mais interessante é o fato de que podemos mostrar como
esse amor 6 moldado segundo protétipos_hist6ricos especificos que s40
programados em nossas memérias. Podemos mostrar que(had se trata de
‘modelos “universais”, pois hd sociedades que nao dispdem de um modelo
para a experiéncia do amor entre os sexos, em que os participantes ignoram,
portanto, essa experiéncia concreta. Quanto 2 nossa sociedade, pocemos
‘mostrar como 0s modelos do amor entre os sexos se modificaram durante
nossa hist6ria. Para os gregos, por exemplo, o amor entre os sexos era uma
experiencia vulgar e desprezivel, pois era “pragmética” (essa experiéncia
tinha por resultado uma coisa material e desprezivel: uma crianga). O tinico
amor “puro” era 0 homossextal, ou, como se diz, 0 “platonico”. Durante
a Idade Média existiam dois modelos para 0 amor entre os sexos: 0 amor
“nobre”, entre uma dama e um cavalheiro, que era uma variaggo do modelo
do amor da Virgem; ¢ 0 amor “baixo”, entre uma mulher casada e um poeta.
‘Aexperiéncia entre o marido e sua mulher nao se adaptava bem em nenhum
‘Aare: Obelo eo ageadivel 43
“dos dois modelos. Durante a Idade Média tardia, e sob a influéncia do Roman-
| por isso que o chamamos de “amor romantico”. Ele penotrou lentamente na
“pxperiéncia concreta,e ele estava restrito, ainda durante oromantismo, ape-
"as 8 burguesia. Atualm ima experiéncia comum gracas aos romances
bparatos, ao filme e 3 TV. Nos amamos nossas mulheres por uma experiéncia
ae privada, é claro, mas dentro de estruturas que nos so comunicadas e
_pelas quais nés somos programados. Eis o problema. a
para poder perceber 9 mundo, A arte é
ss0 somos diferentes de outros animais.
so mundo é uma “Lebenswelt” (um mundo de vida humana) gracas arte,
somente uma “Uuelt” (um sistema ecolégico). A arte 6 nosso progra-
periéncia da realidade, nés somos computadores estéticos. 1850
: izersomente que percebemos uma paisagem através do modelo
2 Leonardo ou Turner & que, se ndo ha pintor paisagista,ndo hd paisagem.
iesis"sela pro-duz [pro-duit}o real (oamor ea paisagem, a guerra
Acido tibonucleico) para —
2 Uma contradi¢ao aparente: de um lado, é impossivel comunicar as ex-
Petiéncias do concreto. Do outro lado, nenhuma experigncia do conereto &
_ Possivel sem a comunicacio prévia de um modelo. Mas nao hé nenhuma
Senlradicdo verdadeira. Os modelos para nossa experiéncia do concreto (as
_ Shas de arte”) pid so generalizagSes de uma experiéncia conereta de
Poesia de amor ndo é uma generalizaglo de uma experiéncia amorosa espe-
fica: é uma proposigio para uma nova maneira de amar. Uma composigao
‘odecafénica ou uma pintura impressionista Ao si0 generalizagdes de ex-
Periencias especificas com tons e cores: s80 proposigoes para experiéncias.
ticas e visuais novas. O artista nid
‘xperiéncias privadas: isso seca. al
infadanhn Go
-attista. Eles no podem ser. Sio estruturas propostas pelo artista para.”
Idenar as experiéncias futuras, redes para colher experiéncias novas. Uma
interessado na comunicagio —44 Anefilosone
propor formas novas para nossas experiéncias futuras, ¢ assim enriquecer
‘nossa realidade (¢ a sua). Ele ndo compara sua experiéncia com outra, mas
para seu modelo com outro. Uma poesia de amor nao compara a
experiéncia amorosa do poeta com outra, mas ela se compara com outra
poesia amorosa que o poeta leu.
Aarte é, portanto, na expressio de Heidegger, nosso 6rgdo para sorver a
ealidade. Dirfamos que a comunicagio estética deve preceder toda
nlcagio ética e epistemoldgica. Pois 0 artista 6 o produtor da realidade que
ser4 julgada pelo politico e pesquisada pela cientista. 86 podemos julgar o
que vivemos, e 56 podemos conhecer 0 que julgamos e vivemos. Mas, ¢ cla-
10, 0 problema da precedéncia de uma forma de comunicagao ou de outra é
mal colocado. £ uma consequéncia da esquizofrenia moderna, responsdvel
pela divisdo da comunicagio em ciéncia, politica e atte. De fato, essa divi-
sio é uma loucura que se tornoy, felizmente, insustentavel, Tornou-se claro
que todo cientista é também politico e artista, que todo politico é também