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Fenomenologia, Humanidades e Ciências

O EXISTIR NA PELE PRETA: CONTRIBUIÇÕES DE


FANON PARA A PSICOLOGIA EXISTENCIAL

The Existence in a Black Skin: contributions of Fanon for the Existential Gustavo Alvarenga Oliveira Santos *
Psychology

El Existir con piel negra: contribucciones de Fanon para la Psicología


Existencial

Resumo: O presente texto discute a questão da diferença ontológica, segundo a perspectiva


dos pensadores decolonias e sua importância para a Psicologia Existencial. Em um primeiro
momento, o artigo argumenta que a Psicologia Existencial deve se atentar para a ontologia do
colonizado, uma vez que as bases filosóficas na qual se embasa é prioritariamente européia e
desconsidera as especificidades da experiência pós-colonial sob o ponto de vista do coloni-
zado. Essa experiência foi descrita pelo psiquiatra martinicano Franz Fanon, cuja obra pode
embasar a construção de uma Psicologia Existencial anti-racista. Entende-se que o racismo é
constitutivo da modernidade-colonialidade estando contido nas ontologias européias desde a
moderna, como a de Descartes, à contemporânea como a proposta por Heidegger. Fanon pro-
picia um desvelamento desse racismo estrutural na filosofia moderna, ao realçar a experiência
do preto colonizado o que, segundo os autores do movimento decolonial como Dussel, Maldo-
nado-Torres e Alberto Quijano, contribuiu para a consolidação desse movimento. O texto con-
clui realçando a importância de uma Psicologia plural e atenta à diversidade das experiências.
Palavras-Chaves: Pensamento Decolonial; Psicologia Existencial; Racismo; Ontologia.

Abstract: This text discusses the issue of ontological difference, according to the perspective
of decolonial thinkers and its importance for Existence Psychology. At first, the article argues
that Existential Psychology should pay attention to the ontology of the colonized, since the
philosophical bases on which it is based are primarily European and disregard the specifici-
ties of the post-colonial experience from the point of view of the colonized. This experience
was described by the Martinican psychiatrist Franz Fanon, whose work can support the cons-
truction of an anti-racist Existential Psychology. It is understood that racism is constitutive
of modernity-coloniality being contained in European ontologies from the modern, such as
Descartes, to the contemporary as proposed by Heidegger. Fanon provides an unveiling of this
structural racism in modern philosophy, by highlighting the experience of colonized blacks,
which, according to the authors of the decolonial movement like Dussel, Maldonado-Torres
and Alberto Quijano, contributed to the consolidation of this movement. The text concludes
by emphasizing the importance of a plural Psychology and paying attention to the diversity of
experiences.
Keywords: Decolonial Thought; Existential Psychology; Racism, Ontology.

Resumen: Este texto discute el tema de la diferencia ontológica, de acuerdo con la perspectiva
de los pensadores decoloniales y su importancia para la psicología de la existencia. Al princi-
pio, el artículo argumenta que la Psicología Existencial debería prestar atención a la ontología
de los colonizados, ya que las bases filosóficas en las que se basa son principalmente europeas y
no tienen en cuenta las especificidades de la experiencia poscolonial desde el punto de vista de
los colonizados. Esta experiencia fue descrita por el psiquiatra martinicano Franz Fanon, cuyo
trabajo puede apoyar la construcción de una psicología existencial antirracista. Se entiende que
el racismo es constitutivo de la modernidad-colonialidad contenida en las ontologías europe-
as desde lo moderno, como Descartes, hasta lo contemporáneo como lo propone Heidegger.
Fanon ofrece una revelación de este racismo estructural en la filosofía moderna, al destacar
la experiencia de los negros colonizados, que, según los autores del movimiento descolonial,
como Dussel, Maldonado-Torres y Alberto Quijano, contribuyó a la consolidación de este mo-
vimiento. El texto concluye enfatizando la importancia de una psicología plural y justa con la * Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
diversidad de experiencias. Email: gustalvarenga@hotmail.com. Orcid:
Palabras clave: Pensamiento Decolonial; Psicología Existencial; Racismo; Ontología. 0000-0002-5440-3265

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Introdução
A Psicologia Existencial surge como uma reação crítica aos paradigmas psicológicos vigentes no século
XX, que eram entendidos como deterministas e, portanto, limitados em suas concepções de ser humano. Se-
gundo Rollo May (2000), a Psicologia carecia de uma antropologia mais ampla, e essa foi buscada nas filosofias
da existência e na fenomenologia-existencial e hermenêutica, herdeira do pensamento de Husserl, Heidegger,
Sartre, entre outros. Esse caminho levou a Psicologia ao terreno da ontologia, pois uma antropologia mais
ampla requer que se recoloque a questão do Ser no seio do pensamento filosófico moderno.
A despeito das distintas escolas de pensamento que reivindicam para si o termo Existencial, o termo
Dasein proposto por Heidegger (2005) como o ente que desvela o modo de ser do humano, serviu como uma
concepção que desvela um novo modo de compreensão da realidade. Dessa forma, a Psicologia Existencial
pôde fazer frente aos determinismos mecanicistas presentes na Psicanálise, no Behaviorismo e nas escolas
organicistas da psiquiatria (May, 2000).
É importante ressaltar que algumas escolas psicoterapêuticas como a Daseinsanalyse ou a Análise Exis-
tencial são mais próximas ao pensamento heideggeriano, optando pelo uso do termo em seu original ale-
mão, enquanto outras o traduzem para os idiomas latinos, trazendo termos como ser-no-mundo, presença,
existente, entre outros. Cabe dizer também que, embora Heidegger seja o ponto de partida ontológico dessa
empreitada, outros filósofos, mais ou menos críticos a esse autor, também embasaram novas possibilidades de
compreensão do ser humano, sendo esses, em sua maioria, de origem francesa, como Sartre, Merleau-Ponty
e Michel Henry.
Também existem escolas psicoterapêuticas que, embora não tenham sido influenciadas diretamente por
nenhum filósofo ou pensador das correntes fenomenológicas ou existenciais, admitem o termo existencial,
pela semelhança de pressupostos teóricos e concepções de humano. Nesse sentido, destacam-se a Logoterapia
e a Gestalt-terapia.
Todos esses pensadores que se dedicaram a uma nova ontologia do ser humano que embasou a Psicolo-
gia Existencial como um todo, apostaram que, com sua crítica, haviam esclarecido o ser do humano como um
todo, erigindo um ponto de partida único que, do ponto de vista ontológico, pudesse abarcar as diversidades
ônticas. Ou seja, no afã de encontrar um ponto de partida não determinista que pudesse abarcar a condição
humana de forma ampla e universal, o termo Dasein, utilizado na maioria das escolas psicoterapêuticas, ser-
viu como um conceito que esclareceria a existência humana oferecendo um parâmetro para as análises das
singularidades. O que esse artigo vem tratar diz respeito ao questionamento dessa universalidade ontológica
contida na crítica à modernidade erigida por Heidegger. Se a filosofia heideggeriana reivindica uma ontolo-
gia que ultrapasse a modernidade, ela ainda não supera aquilo que constitui a modernidade desde o seu ponto
macro-fundador qual seja; a modernidade não pode ser considerada apenas como uma evolução do humanis-
mo europeu sobre o obscurantismo medieval.
Dussel (1994) defende que a modernidade se inicia desde a colonização das Américas, pois foi ela que
permitiu que o chamado velho continente deixasse de ser a periferia do mundo dominado pelos árabes e chi-
neses e se tornasse a cultura planetária hegemônica. Ou seja, não se pode pensar em Modernidade excluindo o
fato histórico da colonização, que se inicia em 1492 e que propiciou à Europa a hegemonia social, econômica
e cultural sobre os demais povos do planeta exercendo até hoje uma forma de poder sobre as ex-colônias en-
tendida como colonialidade. Por isso, segundo Quijano (2000), é mais preciso se referir à Modernidade como
modernidade-colonialidade, pois os dois processos são concomitantes e interdependentes.
Assim, aquilo que é considerado nos cânones como os trunfos da razão humana sobre o obscurantis-
mo místico medieval, deve ser entendido como o trunfo do europeu sobre outros povos. Nesse sentido, a
modernidade é o predomínio de uma razão instrumentalizada de origem grega que naturaliza a escravidão,
o domínio e a opressão do Outro. Surge então um problema ético central à era moderna, pois concomitante
ao ressurgimento do humanismo, erige-se a idéia de um humano superior a outros igualmente humanos, o
que acaba justificando o maior genocídio da história, a colonização das Américas e da África, segundo Dussel
(1994).
Para Maldonado-Torres (2008) o maior esquecimento do pensamento europeu não foi precisamente o
esquecimento da questão do Ser como priorizou Heidegger, mas o esquecimento da questão do Outro, para
o autor:

As geopolíticas filosóficas de Heidegger eram ambiciosas, grandiosas e racistas. Como bem observa
Bambach, Heidegger, não obstante opor-se ao racismo biológico dos ideólogos nazis, manteve, mesmo
assim, uma forma de racismo (Bambach, 2003: 5). O seu racismo não é biológico, nem cultural, mas sim

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epistémico. Tal como acontece com todas as formas de racismo, o epistémico está relacionado com a
política e a socialidade. O racismo epistémico descura a capacidade epistémica de certos grupos de pes-
soas. Pode basear-se na metafísica ou na ontologia, mas os resultados acabam por ser os mesmos: evitar
reconhecer os outros como seres inteiramente humanos (Maldonado-Torres, 2008, p. 79).

Já para Dussel (2009) o cogito cartesiano, expressão maior da ontologia moderna, traz uma face oculta e
pouco explorada pelos críticos da modernidade. O Cogito Ergo (Eu penso) só é possível junto ao Ego Conquiro.
Para o filósofo argentino, ao formular o cogito, Descartes contemplava, no porto de Amsterdam, o poder que
a Europa exercia sobre os demais povos graças à razão instrumental. Portanto, está embutido no pensamento
cartesiano o pressuposto de racionalidade e de superioridade ontológica sobre os demais povos e culturas.
Assim, se Eu sou porque conquisto e conquisto porque penso, logo os dominados não pensam e, portanto,
não são.
A ontologia cartesiana, hegemônica da modernidade-colonialidade, mostra-se assim como uma forma
de pensamento que exclui o Outro, em prol de um eurocentrismo que proclama como dominante o sujeito
dotado de uma racionalidade capaz de dominar e controlar a vida, os outros povos e os demais entes, agora
chamados de natureza. A superioridade ontológica do europeu é ilustrada por um sujeito racional pleno,
que conquista e objetiva os outros que não são. Esse apagamento do Outro que se estabelece no processo de
modernização-colonização é o que garantirá a formação de um sistema-mundo eurocêntrico imperialista,
segundo Dussel (1994, p. 21):

Para Habermas, como para Hegel, el descubrimiento de América no es un determinante constitutivo de


la Modernidad. Deseamos demostrar lo contrario. La experiencia no sólo del “Descubrimiento”, sino
especialmente de la “Conquista” será esencial en la constitución del “ego” moderno, pero no sólo como
subjetividad, sino como subjetividad “centro” y “fin” de la historia.

Segundo Maldonado-Torres (2007), a modernidade-colonialidade ao anular o Outro, inaugura a sub-
-ontologia, para o autor porto-riquenho a Res Extensa cartesiana diz respeito não apenas à natureza de modo
geral, mas a todos os humanos considerados não racionais e, portanto, incapazes do pensamento racional
instrumental, base do humanismo europeu. O negro, segundo Fanon (2008/1952), do ponto de vista branco
eurocêntrico, é considerado essa parte irracional e bruta, e sua sub-ontologia é dada já na sua epiderme. Nesse
sentido o preto não é, pois só existe na medida em que se presta a ser uma extensão do branco. Em sua obra
Peau Noire, Masques Blancs ele tece uma longa argumentação em favor de uma diferença ontológica do preto
que exploraremos em parte no presente artigo.
Pois bem, entramos na seara da diferença colonial, termo reivindicado pelos pensadores decoloniais
pertecentes ao grupo Modernidade-Colonialidade. Há uma diferença na ontologia do colonizado em relação
ao colonizador? O Dasein como ser próprio esconde o projeto humanista europeu? Nossa argumentação, se-
guindo Fanon (2015) em Condenados da Terra, é a de que a ontologia heideggeriana oculta a ontologia dos po-
vos colonizados que acabam gerando, segundo esse autor, uma outra ontologia que é a do condenado. O preto
existe de outro modo, portanto, para ser reconhecido como humano, é necessário um processo de libertação.

A Diferença Ontológica e o Preto Colonizado


A obra Peau Noire, Masques Blancs, publicada em 1952 de Franz Fanon, traduzida apenas em 1983 no
Brasil com o título Pele Negra, Máscara Branca, desvela com grande precisão a diferença ontológica dos coloni-
zados. No decorrer desse livro, Fanon demonstra a inferiorização do preto em relação ao branco na sociedade
branca hegemônica e os mecanismos de defesa utilizados para compensar essa inferioridade à qual foi conde-
nado desde os tempos da colonização. Baseado em sua experiência pessoal e em diversos autores da literatura
Psicológica e Filosófica, como Adler, Jung, Freud, Sartre e Hegel, Fanon vai demonstrando, no decorrer dos
capítulos, as diversas facetas dessa inferiorização presentes na linguagem, nas relações de gênero, nos traumas
e constituições psíquicas profundas e na ontologia do ser preto em geral.
Para o que nos interessa demarcaremos como o autor situa a noção do ser preto em uma sociedade he-
gemonicamente branca e eurocêntrica, ou seja, a ontologia ou sub-ontologia do preto em relação ao branco.
Embora esse tema seja tratado em todos os capítulos dessa obra, pois serve como pano de fundo a todos os
processos de inferiorização já citados, no capítulo 5, intitulado “A experiência vivida do Preto” e no capítulo 7
cujo título é “O preto e o reconhecimento”, a questão ontológica é tratada de forma mais precisa. Para Fanon
(2008/1952) a inferioridade do ser Preto se dá, não em relação a ele mesmo, mas como um ser-para-o-outro
branco, assim nos diz o autor:

Enquanto o negro estiver em casa não precisará, salvo por ocasião de pequenas lutas intestinas, con-
firmar seu ser diante de um outro. Claro, bem que existe o momento de ser-para-o-outro de que fala

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Hegel, mas qualquer ontologia torna-se irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada. Parece
que este fato não reteve suficientemente a atenção daqueles que escreveram sobre a questão colonial.
Há, na Weltanschauung de um povo colonizado, uma impureza, uma tara que proíbe qualquer explicação
ontológica. Pode-se contestar, argumentando que o mesmo pode acontecer a qualquer indivíduo, mas
na verdade está se mascarando um problema fundamental. A ontologia, quando se admitir de uma vez
por todas que ela déia de lado a existência, não nos permite compreender o ser do negro. Pois o negro
não tem mais de ser negro, mas sê-lo diante do branco.” (p. 103-104)

Após a colonização branca os pretos perderam seus sistemas de referência para se situarem frente a um
outro a quem deviam deferência. Assim, eles perderam, segundo o autor, sua consistência ontológica, pois
frente ao olhar branco não eram considerados existentes. Quando estudante universitário na Europa, o preto
já não é considerado como preto, mas como parte da sociedade branca. No entanto, seu papel de estudante
só é revelado quando esse se apresenta, pois, sob o olhar branco, continua sendo um preto. Por isso, a con-
denação ontológica se dá no corpo que é desapropriado pela sociedade branca, no corpo se aponta algo que
inferioriza o preto antes de ele ter a chance de se revelar como humano.
Segundo Fanon (2008/1952) o modo como o racismo aparece em relação aos de pele preta se distingue
do racismo europeu contra os judeus, frente a esse último, do ponto de vista europeu, um judeu não traz na
pele sua judeidade, o que é impossível de ocorrer com o preto. Ou seja, é na epiderme que se revela uma sub-
-ontologia o que afeta a disposição do preto sobre o seu esquema corporal, pois na cor de sua pele se desvela
um ser sub-humano, inferior, quase-animal. Ao se referir a uma experiência própria, na qual uma criança
branca aponta para ele como um ser inferior, Fanon (2008/1952, p. 107) descreve o seguinte:

Meu corpo era devolvido desancado, desconjuntando, demolido, todo enlutado, naquele dia branco
de inverno. O preto é um animal, o preto é ruim, o preto é malvado, o preto é feio; olhe, um preto! Faz
frio, o preto treme, o preto treme porque sente frio, o menino treme porque tem medo do preto, o preto
treme de frio, um frio que morde os ossos, o menino bonito treme porque pensa que o preto treme de
raiva, o menino branco se joga nos braços da mãe: mamãe, o preto vai me comer.

Em outra parte do texto diz Fanon (2008/1952, p. 108):

O mundo branco, o único honesto, rejeitava minha participação. De um homem exige-se uma conduta
de homem; de mim, uma conduta de homem negro – ou pelo menos uma conduta de preto. Eu acenava
para o mundo e o mundo amputava meu entusiasmo. Exigiam que eu me confinasse, que encolhesse.”

A cor da pele preta faz de cada singularidade negra responsável por toda sua herança ancestral, inferio-
rizada e escravizada, do ponto de vista do branco europeu. No decorrer de Pele Negra, Máscara Branca Fanon
demonstra que o exotismo, a proximidade com o animal e a natureza, vigor sexual e inferioridade intelectual,
são características estereotipadas que, sob o olhar branco racista, estão contidos na pele preta. Assim, para não
ser preto, o preto deve se esforçar para se desvelar para além desse olhar que o reifica e, quando bem sucedido,
como aqueles que conseguem um título profissional, a cor da pele é relevada, sob o argumento de que deter-
minado preto alcançou a máscara branca e obteve êxito ao negar sua origem inferior marcada em sua pele.
A pele preta demonstra então que, após a colonização, surge uma nova ontologia para a humanidade
européia, que se evidencia quando os colonizadores europeus se esforçam para embranquecer as peles e as
metafísicas particulares na América e África recém conquistadas. Os sistemas de referência dos povos afri-
canos, suas metafísicas, nos dizeres de Fanon, tendem a ser abolidas pela hegemonia do pensamento branco
colonizador. Essa abolição, que não significa destruição, ocorre em várias dimensões, desde a estética, a ética,
moral e, sobretudo na relação com o saber e o ser, o que fortalece a hegemonia do pensamento europeu sobre
os demais. Segundo Quijano (2000) a colonialidade do saber, que diz respeito à hegemonização do saber eu-
ropeu sobre outros saberes, traz junto a colonialidade do Ser, que diz respeito a esse domínio ontológico que
aparece como apagamento do outro negro.
Maldonado-Torres (2007) entende que, a partir da obra de Fanon, uma outra categoria ontológica é
desvelada, a dos dammès, condenados. Para apoiar seu argumento, o autor aponta três distinções ontológicas
desveladas por autores da filosofia moderna; a diferença ontológica entre o ser e o ente, tratada por Heide-
gger, entre o ser e o Outro, desvelada por Levinás, e entre o Outro e o sub-outro, desvelada por Fanon. A
Modernidade inventa essa categoria, inaugurando assim uma sub-ontologia. O Outro preto e indígena, que
surgem com o mundo pós-colonial, não são simplesmente concebidos como inimigos do recém inaugurado
império europeu, mas da concepção de uma espécie de sub-humano, evidenciado na cor de sua pele, segundo
Maldonado-Torres (2007, p. 143):

El colonizado no es un Dasein cualquiera, y el encuentro con la posibilidad de la muerte no tiene el


mismo impacto o resultados que para alguien alienado o despersonalizado por virtud del “uno”. El en-
cuentro con la murte siempre viene de alguna forma muy tarde, ya que la muerte está siempre a su lado

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como amenaza continua. Por esta razón la descolonización, la des-racialización y a la des-gener-acción,


en fin, la des-colonialidad, emerge, no tanto a partir de un encuentro con la propia muerte, sino a partir
de un deseo por evadir la muerte (no solo la de uno, sino más todavía la de otros), como rasgo consti-
tutivo de su experiencia vivida. Heidegger, sin embargo, pierde vista la condición particular de sujetos
en el lado más oscuro de la línea de color, y el significado de su experiencia vivida para la teorización
del ser y para la comprensión de las patologías de la modernidad. Ironicamente, Heidegger reconoce la
existencia de lo que llama el Dasein primitivo, pero no logra conectar con el Dasein colonizado. En vez
de hacer esto, toma el Hombre europeo como modelo de Dasein, y olvida las relaciones de poder que
operan en la misma definición de ser primitivo.

Portanto, se considerarmos essa diferença ontológica como marca da modernidade-colonialidade, é ur-


gente que a psicologia existencial considere essa diferença ontológica. Argumentamos que seja possível uma
psicologia existencial anti-racista, desde que ela considere que o racismo é algo estruturante à modernidade
e necessita ser superado, por uma recolocação do problema ontológico do Outro, entendendo, portanto, a
necessidade da libertação do Outro oprimido e negado, aliando-se à idéia de transmodernidade, proposta por
Dussel (2009).

Possibilidade de uma Psicologia Existencial Anti-racista


Uma psicologia existencial anti-racista exige um profundo reconhecimento da função primária atribu-
ída à cor da pele e seu significado existencial para o branco europeu. A construção de uma sociedade plural e
de uma psicologia que se proponha a essa construção, requer mudanças profundas, pois o racismo está pro-
fundamente arraigado na cultura hegemônica. Assim nos diz Fanon (2008/1952, p. 161):

Na Europa, o preto tem uma função: representar os sentimentos inferiores, as más tendências, o lado
obscuro da alma. No inconsciente coletivo do homo occidentalis, o preto, ou melhor, a cor negra, sim-
boliza o mal, o pecado, a miséria, a morte, a guerra, a fome. Todas as aves de rapina são negras. Na
Martinica que é um país europeu no seu inconsciente coletivo, quando um preto “azul” faz uma visita,
exclama-se: “que maus ventos o trazem?”

Segundo o autor, o inconsciente europeu projeta na pele preta os aspectos não civilizados de sua cultura
e, portanto, ela é concebida como o princípio do mal, ao mesmo tempo revela os aspectos da animalidade e da
sexualidade. As alusões negativas à cor preta referendadas no pensamento popular demonstram isso, aceitar a
cor dessa pele como humana como qualquer outra, transcendendo essa condição imposta, faz parte do esforço
que a Psicoterapia Existencial deve fazer em relação aos pacientes de pele preta que a buscam.
Em termos existenciais o preto está ligado à angústia em relação ao nada terrorífico de um lado, mas
também à incongruência existencial em relação ao corpo próprio por outro. Assumir a própria epiderme é,
segundo Fanon (2008/1952) o maior desafio do preto, pois “Na sociedade antilhana, onde os mitos são os
mesmos da sociedade de Dijon ou de Nice, o jovem negro, identificando-se ao civilizador, fará do preto o
bode expiatório de sua vida moral” (p. 164). Assim ele se torna bode expiatório de si-mesmo, autocompen-
sando sua inferioridade ontológica através de um egocentrismo exarcerbado centrado na máscara branca,
tornando-se alheio e indiferente às suas origens abolidas pela colonização.
O Preto fará de tudo, segundo Fanon, para manter a aparência branca até que um branco o devolva a seu
lugar de Preto do qual ele irá se defender. Nesse caso, só há uma forma de Ser e essa é branca. O autor revela
muita cautela com o processo de análise do Preto, pois nem todos estão prontos e são hábeis para descer às
suas profundezas e reconhecer a sua pele como parte de si e, assim, reivindicar sua existência como preta. A
maioria permanecerá na superficialidade branca, viverão como se fossem brancos, assumindo a cultura e a
metafísica dos colonizadores.
Por outro lado, a libertação ontológica se dá quando o preto ousa descer às suas profundezas e matar o
branco interior que lhe oprime enquanto existência livre, o branco interior é semelhante ao que Paulo Freire
denomina como ter o opressor como hospedeiro dentro da subjetividade oprimida. Tal semelhança demons-
tra um mecanismo típico dos oprimidos de se identificar com o opressor querendo se tornar um deles (Freire,
2020/1974).
Matar esse branco significa revalorizar as origens pretas, suas metafísicas abolidas e reivindicar se in-
cluir como rosto em um sistema social racista. Nesse sentido, a proposta analética da libertação de Enrique
Dussel que prevê uma sociedade transmoderna corrobora com o proposto por Fanon ao propor a libertação
existencial do preto.
Dussel (2007) entende que a inclusão do Outro colonizado se dá a partir do momento em que a moder-
nidade e seu sistema-mundo hegemônico assimila a pluralidade dos povos colonizados em um patamar de
semelhança e distinção. A semelhança diz respeito à analogia que há entre os humanos, analogia essa que se

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expressa no reconhecimento desse Outro excluído como semelhante. O reconhecimento de que o colonizado
é um semelhante humano não se dá sem uma dialética que reivindica sua liberdade, realçando assim sua dis-
tinção. Por isso deve haver, para Dussel (2007), equilíbrio e simetria no diálogo entre os saberes e ontologias
entre os europeus e os povos colonizados. Não podemos pressupor uma sociedade plural se os saberes não
europeus são simplesmente vistos como irracionais ou inferiores ao saber produzido pela ou na Europa.
Em uma Psicologia Existencial anti-racista precisamos, portanto, reivindicar a distinção e o lugar da histó-
ria dos povos pretos, seus costumes, metafísicas e lugares ontológicos próprios como dignos de serem incluídos
no sistema. Isso significa lutar por uma sociedade e cultura plural que, mais do que partir de uma idéia pré-con-
cebida sobre o que é o ser humano, aposta que esse ser, aberto e indefinido, descobre-se quando se encontra
como semelhante na diversidade do Outro. A evolução da modernidade deve avançar para a transmodernidade,
uma proposta para um tempo em que a diversidade epistemológica, ontológica e econômica do sistema-mundo
planetário seja considerada. De forma que os povos e suas respectivas metafísicas, antes subalternizados, possam
ser considerados em condições de semelhança com o europeu, para Dussel (2007, p. 209):

Llamo por ello un programa «trans-moderno» al intento de partir del núcleo generador de nuevos
desarrollos culturales, de la tradición viviente de las culturas Diferentes de la Identidad moderna, en
diálogo con la Modernidad. El proyecto futuro no sería una cultura universal homogénea, única; sino un
pluriverso diferenciado creación del indicado diálogo entre la tradición excluida de las grandes culturas
(y aun las menos universales o secundarias) de la periferia postcolonial con al Modernidad occidental
(una de las culturas hoy existente, la dominante y la que por su propia tendencia intenta destruir todas
las otras culturas, aun por su mercado global, en el que las mercancías del capital trasnacional son igual-
mente portadores materiales de cultura espiritual.

Na Psicologia Existencial devemos assimilar as especificidades ontológicas para além da universalidade
proposta pelos autores europeus. Fanon adverte, por exemplo, que na ontologia preta a relação com o futuro e
os projetos existenciais não é tão importante, como proposto pela psicologia existencial européia. Para Fanon
(2008), não há falta ou potencialidade de algo na consciência preta, ela é plena de si:

Sempre em termos de consciência, a consciência negra é imanente a si própria. Não sou uma potencia-
lidade de algo, sou plenamente o que sou. Não tenho de recorrer ao universal. No meu peito nenhuma
probabilidade tem lugar. Minha consciência negra não se assume como falta de algo. Ela é. Ela é aderen-
te a si própria (Fanon, 2008, p.122).

Desse modo, conceitos caros à Psicologia Existencial como a relação entre a angústia ontológica, a li-
berdade e os projetos de vida tornam-se relativos. Nesse sentido, a angústia enquanto desvela o nada da con-
dição existencial e possibilita ao Dasein uma tomada de consciência de si em prol de sua autenticidade, é uma
fórmula que não cabe em um esquema no qual a falta e a angústia sejam inerentes à condição humana, como
apontado por Fanon na citação acima.
Kusch (1999) entende que o conceito de Dasein descrito por Heidegger desvela uma condição ontológica
importante que se aproxima da forma como os nativos americanos, de modo geral, respondem à questão do
ser traduzida pelo filósofo argentino como mero-estar. O autor entende que o surgimento da burguesia na Eu-
ropa, criou a ilusão de que os humanos possam Ser como algo próprio, denominado por ele como ser-alguém
e por isso Heidegger foi eurocêntrico, universalizando o ser próprio da burguesia européia. A base histórica
do Dasein autêntico refere-se ao merchant burguês que se desprende da tradição medieval e se arrisca em prol
de algo que lhe é próprio. Essa propriedade de si, por não ter sido construída anteriormente, diz respeito
prioritariamente ao futuro que é vazio, de onde lhe provém a angústia e a liberdade.
A consciência negra, por outro lado, está arraigada à sua determinação, seja por sua própria metafísica,
a facticidade do ser negro, seja por já estar, de algum modo, inscrita e determinada no modo de ser-para-o-
-outro-branco. Ao se referir ao olhar de uma criança branca que sentia medo de sua pele negra, Fanon (2008,
p. 105-106) descreve:

Eu era ao mesmo tempo responsável pelo meu corpo, responsável pela minha raça, pelos meus ances-
trais. Lancei sobre mim um olhar objetivo, descobri minha negridão, minhas características étnicas, - e
então detonaram meu tímpano com a antropofagia, com o atraso mental, o fetichismo...

O branco enquanto se projeta em termos existenciais, é responsável por si-mesmo, enquanto o preto
torna-se responsável por toda sua origem e história abolida e fetichizada pelo branco. No entanto, para se
libertar dessa, o caminho não é simplesmente negá-la e se projetar de forma desprendida rumo a um nada
incerto, como faz o burguês branco. Ao preto cabe matar o branco interior que o oprime e que faz com que
defensivamente ele se projete como branco sem tê-lo sido.
Cabe então ao preto reconhecer-se como tal, rosto preto livre e seguro do seu ser sido. Resgatar, assim,
a o valor do rosto preto como rosto humano, as tradições pretas, seus costumes e metafísicas como próprias à

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sua herança. Conectar-se com a origem através do ritmo que reúne o Eu como parte individualizada de uma
totalidade espiritual vem a ser uma das apostas da psicologia africana defendida por Akbar (1975). O autor
busca elementos da cultura africana ancestral como potencialidades teóricas para a compreensão de uma
subjetividade não descolada da totalidade cósmica e o ritmo como recurso terapêutico, capaz de propiciar o
encontro dos Eus a essa totalidade, como se nota nas cosmologias africanas.
Para que uma Psicologia Existencial avance ao ponto de inserir em seu arcabouço teórico e metodoló-
gico o Ser Preto, é necessário que se entenda a proposta de Enrique Dussel em sua obra Ética de la Liberación
(2009) na qual se propõe que a filosofia deve promover um método analógico e não analítico, para tanto ela
não deve se encarregar de entender o Outro colonizado como um ente externo e exótico, mas analogizar suas
distinções como próprias ao humano como um todo.
Qualquer concepção do que seja o humano antes disso, recai num eurocentrismo universalista que apa-
ga e abole essas distinções, em prol da afirmação, naturalização e universalização do sujeito burguês europeu.
Portanto, após séculos de colonização e colonialidade, o humano é ainda um ente a ser descoberto, mais do
que concebido e moldado por um humanismo greco-centrado, eurocêntrico.

Considerações Finais
Após essas considerações a Psicologia Existencial é desafiada a sair da universalidade de um ser-burguês
europeu para trabalhar numa perspectiva na qual o ser-sido se torna o mais relevante. Mergulhar nas profun-
dezas do preto, requer recuperar a analogia de sua pele como pele humana que existe tal como outra. Significa
recuperar a relação de si a si no espelho, promovendo a plena aceitação do que se vê.
Fanon (2007/1952) afirma que, em relação à constituição de seu Ego, o preto se espelha em um corpo
branco. A profundidade com que se interroga é que deve servir de base para o terapeuta que deve se perguntar
o quão disposto está o existente para aprofundar nesse narcisismo branco ilusoriamente construído. Portanto,
para os profissionais terapeutas, não se trata de sempre por em cena essa questão, mas de acompanhar o sujei-
to em sua busca e, obviamente, entender seus efeitos sobre a sua subjetividade, como tende a ser o trato com
qualquer sujeito e seus mecanismos de defesa. Vale lembrar que entre os mecanismos destacados por Fanon, o
preto tende ao ódio de si, exacerbação de seu individualismo, negação de sua história e de seu ser-sido como
um todo.
A escassez de leitura de autores de pele preta que falem de dramas pretos na nossa branca psicologia
européia faz com que profissionais subestimem os problemas e patologias relativos ao existir com a pele
preta em um mundo hegemonicamente branco. Em uma pesquisa qualitativa sobre psicoterapia e racismo no
contexto brasileiro Gouveia e Zanello (2019) entrevistaram pessoas negras atendidas por psicólogos brancos
e constataram a falta de formação desses psicólogos para atender pessoas negras e lidar com as questões do
racismo. Na mesma linha Veiga (2019, p. 245) entende que:

Os currículos de psicologia nas universidades brasileiras são impregnados de colonialismo, e os autores


mais estudados são homens-brancos-europeus. Esses autores que são importantes na história ocidental
da psicologia como ciência, e aqui me refiro à psicologia clínica construíram conceitos para manejar
as subjetividades brancas com foco no sofrimento psíquico. A importação e incorporação direta das
conceituações psicológicas e psicanalíticas produzidas na Europa desconsideram a singularidade da
marca, dos processos de subjetivação não-brancos e impõem uma nosologia à imagem e semelhança da
subjetividade do colonizador.

Em muitos casos, nega-se o racismo estrutural da nossa sociedade e cultura ocidentalizada ou se subes-
tima as vivências relativas a esse racismo tendo como pano de fundo o universalismo de uma existência euro-
péia e branca. Em um trabalho de revisão bibliográfica sobre saúde mental e racismo, Damasceno e Zanello
(2018) constataram a baixa produção brasileira sobre esse tema , demonstrando que a temática do racismo
não é priorizada pela psicologia de forma geral e tampouco pelas demais disciplinas afetas à rede de atenção
psicossocial no país.
Destarte a isso, autores pretos como a brasileira Neusa Sousa Santos e o estadunidense Wade Nobles
apresentam saídas teóricas e metodológicas para a construção de uma psicologia preta. Souza (1983) valen-
do-se da teoria psicanalítica tece uma análise sobre as peculiaridades da psique preta e sua condição subal-
ternizada pela sociedade brasileira. Já Nobles (2009) desenvolve o conceito de pulsão palmarina, inspirado
em Zumbi dos Palmares, tal conceito refere-se ao desejo do preto em ser livre das amarras sociopolíticas que
o prendem. A criação/revisão de conceitos da psicologia eurocentrada impulsiona o trabalho desses autores
que buscam, cada um a seu modo, novas referências paradigmáticas para a inclusão da experiência preta nas
teorizações da psicologia.
Embora a Psicologia Existencial possa ter em Fanon um crítico importante, pouco se tem produzido
a partir de seus conceitos, a crítica à modernidade e sua ontologia hegemônica (a cartesiana) empreendida
pelo pensamento europeu da qual a Psicologia Existencial é herdeira, mostra-se insuficiente para descrever a

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existência preta. Por isso, argumentamos que a transmodernidade, programa histórico proposto por Dussel
(2011) possibilita o diálogo analógico das diferentes concepções de humano presente nos distintos povos que
compõe o globo. Assim, entendemos que autores como Fanon vem a contribuir no sentido de possibilitar uma
compreensão mais clara da ontologia preta, desconsiderada pelos clássicos da psicologia e da filosofia.
Ler autores como Fanon nos alerta sobre a necessidade urgente de favorecer essa discussão em nosso
meio, tão apático em relação às existências subalternizadas que tendem a ser tratadas como um problema
social, negando a singularidade e subjetividade própria de um povo ou uma condição subalternizada. Uma
psicologia existencial anti-racista deve tratar das existências pretas não como um produto de uma sociedade
desigual, mas como singularidades distintas dotadas de interioridade, reflexão e modos de subjetivação.
Nesse sentido algumas iniciativas já foram empreendidas como o trabalho de Nascimento et al (2019)
em que, baseado nos princípios teóricos da Gestalt-Terapia, descreve-se um grupo de acolhimento psicológico
desenvolvido no Núcleo de Psicologia Aplicada da Universidade Federal do Espírito Santo formado prioritaria-
mente por mulheres e homens negros no qual se trabalhou a consciência corporal como forma de propiciar
um aumento da autoestima a partir do cuidado e reconhecimento de si. Outro trabalho empreendido por
Maia, Zamora e Baptista (2019) abordou-se as manifestações do racismo na cidade fluminense de Campos
dos Goytacazes tomando como base o existencialismo de Jean-Paul Sartre e a obra de Fanon. Esses trabalhos,
entre outros que vão, aos poucos, ganhando espaço nos debates acadêmicos, demonstram a necessidade de
trazer esse tema à tona, como aponta Veiga (2019, p. 249):

O encontro entre profissionais negros para revisitar bibliogafias e produzir conhecimento sobre as
subjetividades negras, bem como para supervisões clínico-institucionais coletivas é também estratégia
de aquilombamento dentro do meio profissional e acadêmico ainda predominantemente branco da psi-
cologia no Brasil. O encontro entre negros e negras é cura.

Aquilombar significa criar espaços próprios de legitimação de experiências singulares e reivindicações
de espaços de inclusão a grosso modo, viver a transmodernidade proposta por Dussel. No prefácio de Con-
denados da Terra, Sartre em tom provocativo convoca os leitores europeus a ler com cuidado a obra de Fanon
(2015/1968):

Vocês, tão liberais, tão humanos, que levam ao preciosismo o amor pela cultura, parecem esquecer que
têm colónias e que nelas se mata em vosso nome. Fanon revela aos seus camaradas — a alguns deles,
sobretudo, que estão um pouco ocidentalizados— a solidariedade dos «metropolitanos» com os seus
agentes coloniais. Tenham, portanto, a coragem de o ler, porque essa leitura vos envergonhará e a vergo-
nha, como disse Marx é um sentimento revolucionário. Como vêem, eu também não posso desligar-me
dessa ilusão subjetiva. E, por isso, também lhes digo: “Tudo está perdido, a menos que...”. Como europeu,
apodero-me do livro de um inimigo e converto-o num meio para curar a Europa. Aproveitemo-lo. (p. 8)

Na visão do filósofo francês, a cura da Europa e do projeto de mundo ocidental passa pelo reconhe-
cimento da condição existencial dos colonizados e da libertação dessas sociedades. Os valores da burguesia
européia, para se manterem, sem a hipocrisia, entre eles a liberdade, passa pela busca constante da libertação
dos cativos de sua cultura. Nesse sentido a obra de Fanon alerta a Europa de sua doença.
Portanto, torna-se urgente colocar entre parênteses toda e qualquer concepção de humano, uma vez que
concebamos o humano de tal ou qual modo estabelece-se uma hierarquia de mais ou menos humano segundo
os critérios europeus. Isso não nos coloca sob um risco ético, se partirmos da consideração de que todos os
humanos são semelhantes e distintos e, portanto, capazes de analogia e encontros, como proposto por Dussel
(2011).
Cabe-nos apenas considerar que as psicologias européias respondem a problemas europeus, portanto
são histórica e territorialmente situadas e para sua aplicação ou leitura em nossos territórios requerem, para
sermos mais rigorosos uma descolonização. Descolonizar significa, para além da crítica, reivindicar o lugar
da experiência e da legitimidade de nossas ontologias.

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Recebido em 18.04.2020 – Primeira Decisão Editorial em 07.12.2020 – Aceito em 18.02.2021

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